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Pierre Sanchis**
Resumo: para Durkheim a relação entre mito e ciência não é simples. Nem constante.
Ela vai se enriquecendo no decorrer do tempo, numa complexa trama analítica
que põe em jogo as oposições, por um lado entre a radical função mitológica
e o repertório concreto dos mitos, por outro lado o nível gnosiológico e aquele
do “faz viver” social dos humanos, onde se pode constatar a permanência de
certa dimensão mítica.
O
pensamento de Durkheim foi pouco trabalhado neste sentido1. Vê-se de prefe-
rência nele o instaurador de um positivismo sociológico, o homem que lutou
contra os Mitos, para liberar os seus concidadãos daquilo que os impedia de
aceder à visão científica - ou “racional” - do mundo das coisas e das relações
sociais.Este Durkheim, de fato, existiu.
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* Recebido em: 24.01.2013. Aprovado em: 30.01.2014. O presente texto, inicialmente desti-
nado à transmissão oral, retoma a substância de dois trabalhos anteriores (“Ainda Durkheim,
ainda a religião” [em ROLIM 1997, p. 11-31] e “A contribuição de Emile Durkheim” [em
TEIXEIRA, 2003, p. 36-66]), reformatando-a nas perspectivas do Mito. Agradeço à Profa.
Izabel Missagia, que incentivou sua publicação e assumiu generosamente, com a colabo-
ração de Carlos Eduardo Cardozo, a quem também agradeço, a sua formatação conforme
as exigências editoriais da revista.
** Doutor pela Ecole des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris. Professor emérito na
UFMG. Estudou o catolicismo popular em Portugal e no Brasil. É autor de Arraial, a festa
de um povo: as romarias portuguesas, Lisboa, Dom Quixote (Edição francesa pela EHESS)
e de vários artigos. Organizou Catolicismo (São Paulo, Loyola, 3 vol) e Fiéis e cidadãos.
Percursos de sincretismo no Brasil (Rio de Janeiro, Eduerj). Atualmente estuda a relação
do campo religioso no Brasil com o sincretismo e a modernidade.
Não é nossa intenção retraçar aqui todas as especulações das quais se fantasiou
o pensamento religioso. O que estamos procurando são apenas as noções ele-
Mas este movimento hoje terá chegado a sua plena realização?: “Todavia muito falta
ainda para que essas influências longínquas, que acabamos de estudar, tenham
cessado de se fazer sentir” (DURKHEIM; MAUSS, 1901-1902, p. 203a). Daí
a necessidade de uma política educacional que ajude a transformação, para
que a “ciência” possa acabar ocupando a totalidade, que lhe compete por di-
reito, do espaço epistemológico.
Logo em 1898 ou 19024, no entanto, Durkheim expressa o cuidado que lhe inspira,
como um já palpável resultado desta cruzada, a situação da moral laica, aque-
la que “se proíbe qualquer empréstimo às religiões reveladas”. Com efeito,
constata ele neste sentido, uma vez destacada do seu conúbio multisecular
com a religião, esta moral, na qual Durkheim tanto tinha apostado, parece
ter perdido a sua “força”. “Empobrecida, descorada”, ela “ministra uma edu-
cação moral sem prestígio e sem vida”. O já calejado militante parece então
resignar-se à constatação de um fracasso: uma ética cortada da religião não
se revelaria impotente para o cumprimento de seu papel essencial: infundir
“verdadeiramente”, não já aos indivíduos mas à França coletiva, “um estado
de saúde moral”. É que, em perspectivas laicas, falta ao educador “aquilo que
o levantava acima dele próprio e lhe comunicava um suplemento de energia”.
Seria preciso, pois, voltar à religião? Sem dúvida, não! Mas também “não bas-
ta suprimir; é preciso substituir”. Finalmente, para funcionar como cimento
de uma nova sociedade, a moral deve revestir-se de uma aura religiosa - ainda
que não se saiba bem como... Trata-se, na verdade, nesse texto, de uma po-
sição problematizadora, ambígua e indefinida entre o campo da moral e o da
religião5, problema fundamentado numa outra ambivalência: entre a Ciência e
a Vida, a “força”, a “saúde moral”.
MITO E RELIGIÃO
uma sociedade não pode nem criar-se nem recriar-se sem, pelo mesmo movi-
mento, criar algo ideal. Esta criação não constitui, para ela, um tipo de ato
supérfluo, pelo qual completar-se-ia, uma vez formada; é o ato pelo qual ela
se faz e se refaz periodicamente [...] A sociedade ideal [o Mito da sociedade,
sua identidade mítica] não está fora da sociedade real; faz parte dela.[...]. Pois
uma sociedade não é simplesmente constituída pela massa dos indivíduos que
a compõem, pelo chão que eles ocupam, pelas coisas de que usam, pelos movi-
mentos que realizam, mas, antes de tudo, pela idéia que ela se faz de si própria
(DURKHEIM, 1968, p. 604, ênfase nossa).
Pelo mito (“político’ a bem da verdade) que define, para os seus membros, o seu ser
intencional28. O milagre da corda de que fala Mircea Eliade, através do qual o
fakir joga no ar uma corda e a ela se suspende, não estando ela suspensa a nada.
Assim, na religião e pela religião, o real social, ultrapassando o “real” no mito,
pode existir, no seu nível específico de ser. A religião, com o mundo sagrado que
ela cria e administra, é sinal (símbolo, emblema), e sinal eficaz do próprio laço
Tudo o que importa, então, é sentir, por baixo do frio moral que reina na super-
fície de nossa vida coletiva, as fontes de calor que nossas sociedades portam em
si. Pode-se até ir além, e dizer com alguma precisão em que região da sociedade
essas forças novas estão particularmente em via de formar-se: é nas classes
populares (DURKHEIM, 1969 [1914], p.77).
Quando pensamos ser a primeira geração não controlada pela idéia do sagra-
do, os primeiros a sermos capazes de nos colocar uns frente aos outros como
indivíduos verdadeiros, os primeiros, pois, a atingir uma verdadeira consciência
de si, trata-se, sem dúvida, de uma representação coletiva (DOUGLAS, 1986, p.
99, apud BELLAH, 1990, p. 23).
Não queremos dizer que o pensamento mitológico o ignore, mas que o rompe
mais frequente e abertamente que o pensamento científico. Inversamente mos-
traremos que à ciência é impossível não violá-lo, mesmo conformando-se mais
escrupulosamente a ele que a religião. Entre a ciência e a religião, não existe,
sob este aspecto bem como sob muitos outros, senão diferenças de graus; mas
se não se deve exagerá-las é importante considerá-las, porque são significativas
(DURKHEIM, 1989, p. 41).
Resta saber - e a pergunta voltou a ser de uma atualidade candente, depois do triunfo - e da
ruina - das grandes ideologias totalitárias, numa época que se quer pós-ideológica
não significaria alguma coisa poder reconhecer que existe em nós, fora de nós,
forças religiosas que depende de nos revelar, chamar à existência, que nem po-
demos não gerar, pelo simples fato de nos aproximarmos uns dos outros, de
pensarmos, sentirmos e agirmos em comum? (DURKHEIM, 1969, p.76).
Abstract: according to Durkheim, the relationships between myth and science are not sim-
ple. Not even constant. It becomes richer with the passing of time, in a complex
analytic plot which brings into play the oppositions between the radical mytholo-
gical function and the concrete repertoire of myths on the one hand, and the gno-
siologic level as well as the level of the social “makes living” of human being on
the other, in which one can see the permanence of a certain mythical dimension.
Notas
1 “Pelo menos neste preciso sentido. Pois o caso seria diferente se tratando de mais ampla
perspectiva (“Durkheim e a religião”), quando a dimensão religiosa poderia ser abordada
preferencialmente a partir dos ritos, o enfoque privilegiado do autor. A pergunta seria
então: terá ainda o “velho Durkheim” (R. Bellah) algo de válido a nos propor sobre um
assunto que se-nos-apresenta hoje com cara tão profundamente renovada? Ou ao contrário
suas teses, que a aceleração das mudanças faz soar a nossos ouvidos como repetitivamente
“clássicas”, terão perdido qualquer pregnância analítica frente a fluxos sociais domina-
dos por uma individualização galopante? Quero apostar, quanto a mim, que exista entre
Durkheim e nós a analogia de certo “clima” intelectual, capaz de permitir significativa
comunicação em torno da observação do fenômeno “religioso” e, mais precisamente, do
“mito”. Quem sabe, até, com maior propriedade do que há alguns anos atrás, nesta hora
em que parece instaurar-se, ambígua mas incontestável, senão uma “volta do Sagrado”,
pelo menos a volta a um certo sagrado. Também no campo do estudo da religião - e não
só no domínio da sociologia geral - o velho e austero Durkheim mereça ser redescoberto.
Como, de fato, o está sendo. Penso no exemplo de sociólogos e antropólogos como R.
Bellah (1990, pp..22-25), em artigo que comenta as conclusões do trabalho mais antigo e
muito notado, reproduzido no mesmo número da Revista: “Morale, Religion et Société dans
l’oeuvre durkheimienne”, Ibib., pp. 9-21) , sem falar de Parsons (1978, pp. 213-231), nos
USA; Jeffrey C. Alexander (1988) e Mary Douglas (1986) do lado inglês ou, na França, os
vários autores de um número dos Archives de Sciences Sociales des Religions 69 (1990),
que tem por título: “Reler Durkheim”. Poder-se-ia até falar de um caráter cíclico desta
redescoberta: não publicava H. Desroche há vinte e cinco anos na mesma revista o artigo
intitulado: “Uma volta a Durkheim? (1969, pp. 79-88)”?
2 Parece, pois, que Durkheim, como A. Comte - ao contrário do que sugere R. Ortiz (1989) -
acreditou um tempo que “a Ciência” forneceria um dia à Sociedade os princípios normativos
de sua ação.
3 As referências às Formas elementares da vida religiosa correspondem à edição brasileira
quando datadas de 1989. No caso contrário [1968], à edicão francesa.
4 “La morale laïque” (DURKHEIM 1963a) (As citações restantes deste parágrafo referem
todas a este texto). Os comentadores discordam sobre a data do texto original. Cf. J.Baubérot
(1990, p.152).
5 Ortiz (1989) destaca esta polivalência de Durkheim, ao mesmo tempo fundador de uma
“Ciência”, e cultor de uma “ideologia” (no sentido moderno) ou de uma “Filosofia social”:
a pedagogia,” a meio-caminho entre a “filosofia” como entendida no seu tempo (formação
de um consenso republicano) e de uma ciência verdadeira, necessariamente mais lenta, mais
prudente, menos diretamente engajada no fornecimento de uma “doutrina” capaz de fundar
uma nova sociedade. A pedagogia, ela, misto de conclusões científicas e de orientações
diretamente políticas, teria como função principal a formação dos educadores da França
moderna. Encontraremos, sem dúvida, parte destas afirmações nas Formas elementares,
mas não sem o que nos parece, por outro lado, ruptura e abandono de certas ilusões.
Referências
DURKHEIM, È. Le sentiment religieux à l’heure actuelle. Archives des Sciences Sociales des
Religions, 27, 1969.