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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.

25738

Notas sobre os Instrumentos Científicos em Galileu


[Notes on Scientific Instruments in Galileo]

Cristiano Novaes de Rezende*

Resumo: Na primeira parte deste artigo, procuramos caracterizar


o conceito de instrumentalismo a partir dos problemas astronômi-
cos, políticos e teológicos que levaram à contraposição desse pro-
grama epistemológico — que limita a ciência ao trabalho de “salvar
as aparências” — à concepção de ciência que culminou na Revolução
científica dos séculos XVI e XVII. Na segunda parte, mostramos que
há certa concepção do conhecimento matemático que se alinha com
o instrumentalismo, mas que também há uma outra concepção, sus-
tentada por Galileu, que considera a matemática como expressão de
relações estruturais constitutivas da própria realidade física. Na ter-
ceira parte, defendemos que, contra a ideia de instrumento contida no
programa instrumentalista, Galileu entende seus instrumentos cien-
tíficos como teorias em estado concreto e operante. Para demonstrar
isso, examinamos algumas posições de Galileu sobre o uso de alguns
instrumentos científicos que ele próprio confeccionou, a saber: o com-
passo geométrico militar, a balança hidrostática e o telescópio.
Palavras-chave: realismo, instrumentalismo, ciência, teologia, polí-
tica.
Abstract: In the first part of this paper, we try to characterize the
concept of instrumentalism analyzing the astronomical, political and
theological problems that led to the contraposition of such episte-
mological program — that reduces science to the work of "saving
appearances" — to the conception of science that culminated with
the Scientific Revolution of the sixteenth and seventeenth centuries.
In the second part, we show that there is a certain conception of
mathematical knowledge that aligns with instrumentalism, but that
there is also another conception, supported by Galileo, that considers
mathematics as an expression of structural relations constitutive of
physical reality itself. In the third part, we defend that, against the
idea of instrument contained in the instrumentalist program, Galileo
understands his scientific instruments as theories in concrete and
operant state. To demonstrate such interpretation, we have examined
Galileo’s positions on the use of some of the scientific instruments
he has made, namely, the military-geometric compass, the hydrostatic
scale, and the telescope.
Keywords: realism, instrumentalism, science, theology, politics.

* Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em filosofia pela USP.
E-mail: cnrz1972@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4935-629X.

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Para Marcelo Moschetti

1- Instrumentalismo, Teologia e ção do Diálogo e da consequente


política condenação de Galileu, o Car-
deal Belarmino — intelectual or-
O caso da condenação de Ga- gânico da inquisição romana —
lileu Galilei pela inquisição ro- recomendara aos adeptos do co-
mana articula de forma emblemá- pernicanismo que, por prudên-
tica um problema epistemológico cia, fizessem o contrário: deixas-
e um problema teológico-político. sem a verdade ao encargo da au-
Uma defesa realista do coperni- toridade religiosa e reduzissem o
canismo, como a pretendida por sistema copernicano não propri-
Galileu no Diálogo sobre os dois amente a uma metáfora mas sim
Máximos Sistemas de Mundo: Pto- a um mero instrumento matemá-
lomaico e Copernicano, de 1632, tico de reprodução e predição das
exigia uma correlata interpretação posições observáveis dos planetas.
não-realista, mas sim metafórica, Belarmino está longe de ser um
das passagens da Bíblia que pare- tolo. Ele reconhece que o sistema
cem corroborar um sistema plane- copernicano é superior em simpli-
tário geocêntrico e com uma Terra cidade e comodidade no nível dos
estacionária. No entanto, no con- cálculos, mas também sabe que o
texto da Contra Reforma, onde o realismo tem uma tarefa demons-
modo de interpretar as Sagradas trativa: precisa primeiro mostrar
Escrituras dividia católicos e pro- que a teoria proposta é capaz de
testantes, a admissão de interpre- reproduzir os fenômenos passa-
tações do texto bíblico alternati- dos, coincidir com os fenômenos
vas às autorizadas, como seriam presentes e predizer os fenôme-
as interpretações metafóricas, era nos futuros. Para usar o jargão da
uma questão extremamente deli- época, a tarefa liminar de uma te-
cada. Mormente se lembrarmos oria é mostrar-se capaz de “salvar
que, de ambos os lados, o poder as aparências” . Mas isso, embora
político pretendia-se fundado na absolutamente necessário para a
autoridade religiosa, a qual, por verdade, não é suficiente. Leia-
sua vez, encontrava fundamento mos as palavras de Belarmino, nas
nas escrituras e, em última instân- quais ele aceita, inclusive, que seja
cia, na revelação divina. dada outra interpretação das pas-
sagens bíblicas relevantes, desde
Na célebre Carta a Foscarini,
que uma verdadeira demonstração
de 1615, isto é, antes da publica-
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seja apresentada: foi demonstrado. Con-


tudo, não acreditarei que
Dizer que se salvam melhor exista tal demonstração
as aparências de acordo antes que alguém a mos-
com a suposição de a Terra tre a mim: pois demons-
ser móvel e o Sol imó- trar que, supondo o Sol imó-
vel, do que supondo os vel no centro e a Terra se
excêntricos e os epiciclos, movendo pelo céu, podere-
é falar muito bem — não mos salvar as aparências,
havendo nenhum perigo não é o mesmo que demons-
nisso e por ser isso sufi- trar que assim é na verdade.
ciente para o matemático. Acredito que a primeira
Mas afirmar que na rea- demonstração possa ser
lidade o Sol é imóvel no dada, mas tenho as mai-
centro do universo... é ores dúvidas em relação à
arriscar-se não somente segunda e, em caso de dú-
a irritar todos os filóso- vida, não devemos aban-
fos escolásticos e teólogos, donar a interpretação das
mas também a ofender a Sagradas Escrituras dada
Santa Fé, tornando fal- pelos Padres da Igreja [. . .]
sas as Sagradas Escrituras. (BELARMINO apud LO-
[. . .] Se existir uma verda- PARIC, 2008, p. 240, itá-
deira demonstração de que licos nossos).
o Sol está parado no cen-
tro do mundo, de que a Para explicitar plenamente por
Terra está no terceiro céu que salvar as aparências não é o
e de que o Sol não cir- mesmo que demonstrar que as-
cula em torno da Terra, sim é na verdade, cabe remeter
mas a Terra em torno do a expressão ao seu contexto de
Sol, afirmo que deveremos origem. Ela deriva da crítica de
começar a trabalhar com Aristóteles aos arroubos teóricos
muita ponderação para do pitagorismo (Metafísica, A, 5,
explicar as Passagens das 985b 23ss apud KIRK, RAVEN &
Escrituras aparentemente SCHFIELD, 1994, p. 347), cu-
contrárias a essa opinião jos partícipes, diante de discre-
e que deveremos dizer pâncias entre a teoria (logos) e
não termos entendido es- os dados observacionais (phaino-
sas passagens, em vez de mena), conservavam a teoria e mu-
sustentar ser falso o que davam os dados, forjando obje-
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tos exigidos pela teoria mas ja- coincidir com os fenômenos pre-
mais observados (ou até mesmo sentes e predizer os fenômenos fu-
jamais observáveis!). Contra isso, turos. Logo, fazê-lo não é condi-
o sensato Aristóteles propõe: em ção suficiente para afirmar a ver-
caso de discrepância entre a te- dade da teoria, embora não fazê-
oria e os fenômenos, “conservar lo seja suficiente para afirmar sua
os fenômenos!” (sozein ta phaino- falsidade.
mena), isto é, literalmente, “salvar É nesse mesmo espírito que o
as aparências”, num uso do verbo luterano Andreas Osiander — que
“salvar” que significa mais pro- supervisionara a publicação do De
priamente manter, guardar, con- Revolutionibus Orbium Coelestium,
servar. Ora, muitos astrôno- de Copérnico, em 1543 — tentara
mos gregos — de Eudoxo e Ca- possivelmente proteger o autor,
lipo, no século IV a.C. a Ptolo- adicionando a esta obra um pre-
meu, no século II d.C. — leva- fácio apócrifo com um programa
ram às últimas consequências esse instrumentalista, de matriz pro-
preceito aristotélico. Diante de testante, que constituíra, quase
alguns fenômenos astronômicos um século antes, um precedente
tradicionalmente desafiadores, tal até mais radical que o da inquisi-
como o chamado movimento re- ção romana:
trógrado aparente dos planetas1 ,
esses astrônomos propuseram ar-
tifícios geométricos2 , artifícios que Com efeito, é próprio do as-
eles nunca pretenderam que des- trônomo compor, por meio
crevessem a real estrutura do uni- de uma observação diligente
verso, mas que, ainda assim, eram e habilidosa, o registro dos
eficazes justamente em “salvar as movimentos celestes. E, em
aparências”. Ou seja, uma teoria seguida, inventar e ima-
assumidamente falsa — no sen- ginar as causas dos mes-
tido de jamais haver pretendido mos, ou melhor, já que
que esses círculos matemáticos em não se podem alcançar de
que os planetas eram colocados modo algum as verdadeiras,
durante o cálculo existissem na re- quaisquer hipóteses que,
alidade — pode perfeitamente re- uma vez supostas, per-
produzir os fenômenos passados, mitam que esses mesmos

1 O movimento retrógrado corresponde ao fato de que, em dado momento de sua trajetória anual, os planetas
parecem ‘andar para trás’, para depois retomarem o sentido original
2 Por exemplo: o artifício do epiciclo e deferente consistia em colocar o planeta orbitando não diretamente ao
redor da Terra mas ao redor de um ponto que, este sim, orbitava ao redor da Terra.

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movimentos sejam corre- seja revelado por Deus. Per-


tamente calculados, tanto mitamos, pois, que, junto
no passado como no fu- com as antigas, em nada
turo, de acordo com os prin- mais verossímeis, façam-
cípios da geometria. Ora, se conhecer também es-
ambas as tarefas foram sas novas hipóteses, tanto
executadas com excelên- mais por serem elas ao
cia pelo autor. Com efeito, mesmo tempo admiráveis
não é necessário que essas e fáceis, e por trazerem
hipóteses sejam verdadeiras consigo um enorme te-
e nem mesmo verossímeis, souro de doutíssimas ob-
bastando apenas que for- servações. E que ninguém
neçam cálculos que concor- espere da astronomia algo
dem com as observações (. . .) de certo no que concerne a
Pois é mais do que patente hipóteses, pois nada disso
que essa arte ignora sim- procura ela nos oferecer
plesmente e por completo (OSIANDER, 1980 - itáli-
as causas dos movimen- cos nossos).
tos aparentes irregulares.
E se inventa algumas na É com base nesse prefácio que
imaginação, como certa- Belarmino começa sua argumen-
mente inventa muitas de- tação na Carta a Foscarini, di-
las, todavia não o faz de zendo que para este último, assim
modo algum para persu- como para Galileu, seria prudente
adir quem quer que seja contentar-se em falar “por suposi-
de que assim é, mas tão ção (ex hypothesi) e não de modo
somente para estabelecer absoluto, como eu sempre cri que
corretamente o cálculo. E tenha falado Copérnico” (em GA-
como às vezes várias hipó- LILEU, 2009, p. 131 - itálicos
teses se oferecem para um nossos). Assim, a manutenção do
mesmo movimento (. . .), sistema astronômico heliocêntrico
o astrônomo de preferência na condição de uma hipótese eficaz,
tomará aquela cuja compre- garante que o direito ao discurso
ensão seja a mais fácil. O robusto sobre como as coisas efe-
filósofo talvez exigisse antes tivamente são permaneça — por
a verossimilhança, contudo, impossibilidade do contrário (Osi-
nenhum dos dois compre- ander) ou por prudência (Belar-
enderá ou transmitirá nada mino) — sob a guarda da religião,
de certo a não ser que lhe direito no qual, em última aná-
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lise, funda-se o poder teológico- 2 - Instrumentalismo e Matemá-


político. Ora, como se vê, um pro- tica
grama que trata o trabalho cien-
tífico como a mera elaboração de Em seu artigo “Descartes e Gali-
instrumentos eficazes de reprodu- leu: copernicanismo e o funda-
ção e predição de fenômenos em- mento metafísico da física” , M.
píricos presta-se, portanto, a ope- Friedman (2011) apresenta um
rar como correlato epistemológico enunciado especialmente claro do
do fundamentalismo religioso no realismo de Galileu. Trata-se do
plano político. Amansado cogni- seguinte trecho da Primeira Carta
tivamente, o copernicanismo po- sobre as Manchas Solares, de 1612:
deria ser empregado como sendo
apenas uma nova tecnologia de
cálculo, mais leve e ágil do que a os astrônomos filosóficos
maquinaria geométrica de Ptolo- [são aqueles] que, indo
meu, mas em nada ameaçadora no além da exigência de, de
âmbito do discurso sobre como as alguma forma, salvar as
coisas realmente são. E — supos- aparências, procuraram
tamente — nada haveria de vergo- investigar a verdadeira
nhoso nessa deflação epistemoló- constituição do universo
gica, nessa redução instrumental, — o problema mais im-
visto que tantos outros do mesmo portante e admirável que
modo se resignaram. existe. Pois esta consti-
tuição existe; ela é única,
verdadeira, real e não po-
deria ser de outra forma.
E a grandeza e a nobreza
deste problema lhe con-
fere o direito de ser co-
Nesse sentido, o realismo de locado à frente de todas
Galileu, defendido no Diálogo so- as questões suscetíveis de
bre os dois Máximos Sistemas de solução teórica (FRIED-
Mundo, e responsável por sua der- MAN, 2011, p. 82)
radeira condenação, é a reivindi-
cação do direito ao discurso sobre
a realidade, desde fora dos par- Como explica Friedman, nesta
ticulares grupos agraciados pela carta Galileu distingue os
revelação divina ou fundados na “astrônomos filosóficos” daqueles
autoridade dos mesmos. que o próprio Galileu chama de
“astrônomos matemáticos”, sendo
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estes últimos os que usam quais- xar de salvar as aparências, fosse


quer instrumentos que possam fa- além disso.
cilitar seus cálculos. De nossa Mas, então, cabe perguntar: se
parte, gostaríamos de notar que, o realismo possui duas tarefas,
a bem dizer desde os pitagóri- das quais apenas a primeira é sal-
cos, o que está em questão é o es- var as aparências, qual será a se-
tatuto da relação entre matemá- gunda? Isto é, nas palavras de Fri-
tica e realidade física. A crítica edman: “como pode um sistema
de Aristóteles aos pitagóricos já astronômico ir além de salvar as
era precisamente uma recusa de aparências de modo a capturar ou
certo realismo matemático: “os corresponder à ‘verdadeira cons-
chamados pitagóricos dedicaram- tituição do Universo’?” (FRIED-
se às matemáticas; foram eles os MAN, 2011, p. 83). Ora, o modo
primeiros a fazer progredir estes como o comentador reconstrói a
estudos, e tendo sido criados ne- resposta galileana é bastante elu-
les, pensaram que seus princípios cidativo, pois mostra que a con-
eram princípios das coisas (archas cepção de conhecimento matemá-
tôn ontôn)” (Metafísica, A, 5, 985b tico sustentada pela tradição cien-
23ss apud KIRK, RAVEN & SCH- tífica em que se alinham Galileu,
FIELD, 1994, p. 347). Osian- Descartes e Newton é considera-
der, por sua vez, coloca “os prin- velmente mais forte tanto frente
cípios da Geometria” sob regime ao instrumentalismo antigo e mo-
de completa recusa não só da ver- derno quanto frente ao contem-
dade mas até mesmo da verossi- porâneo método hipotético dedu-
milhança, bastando a uma teoria, tivo, limitado a cotejar os dados
reduzida à condição de mera hi- observacionais com as hipóteses
pótese, fornecer cálculos que con- teóricas e suas consequências:
cordem com as observações. Já
Belarmino recomenda muita pru- Segundo [a concepção ga-
dência aos copernicanos, mas isso lileana], a matemática não
justamente em razão da profunda apenas poderia ser usada
diferença que há entre a demons- para modelar os fenô-
tração “suficiente ao matemático” menos, como há muito
e a “demonstração verdadeira” . já vinha sendo feito na
E o próprio Galileu, como se viu, astronomia tradicional,
também reconhece tal diferença, como poderia também ser
defendendo, consequentemente, empregada progressiva-
ao contrário de Osiander, uma as- mente para analisar as
tronomia filosófica que, sem dei- ações das causas dos fenô-
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menos. Quanto a isso, a trada a partir dos fenôme-


célebre análise feita por nos (FRIEDMAN, 2011, p.
Galileu da queda dos cor- 83 - itálicos nossos).
pos e do movimento dos
projéteis foi paradigmá- Há, portanto, um uso da mate-
tica [. . .] [No caso dos pro- mática que é puramente instru-
jéteis,] a trajetória parabó- mental e que, como tal, compõe-
lica resultante não é ob- se tranquilamente com o funda-
tida somente pela adap- mentalismo religioso tanto da Re-
tação da curva aos dados forma quanto da Contra Reforma;
observados: ela é matema- mas há também uma outra atitude
ticamente derivada de uma matemática, de ascendência pita-
análise das ações causais re- górica, que encontra-se, ao contrá-
levantes. [. . .] Visto que rio, afinada com os anseios filosó-
nossa descrição proposita- ficos que impulsionaram a Revo-
damente abstrai de todas lução Científica dos séculos XVI e
as outras ações (atrito, re- XVII. Ambos os usos da matemá-
sistência do ar, etc.), este é tica consistem na produção de ins-
apenas um primeiro passo trumentos de cálculo. Mas a pró-
da análise. Uma teoria pria concepção de instrumento aí
matemática completa irá, presente varia, assim como varia o
portanto, proceder pro- estatuto epistemológico da mate-
gressivamente à medida mática.
que formos capazes de in-
corporar essas ações cau-
sais adicionais [. . . ]. Em
3 - Os Instrumentos científicos
consequência, o resultado
construídos por Galileu
será muito mais que um
modelo entre outros para O que há de ser um instrumento
salvar as aparências [. . . ]. científico para Galileu? Certa-
Em vez disso, a interação mente não parece equivaler à
contínua e progressiva en- mesma concepção de instrumento
tre análises causais mate- que preside a própria elaboração
máticas e evidências empíri- do conceito de instrumentalismo.
cas resultaria, esperava-se, Esse termo foi empregado por
ao final, em um modelo Karl Popper para designar um dos
único - que, então, teria o três pontos de vista sobre o conhe-
estatuto de uma conclusão cimento humano apresentados em
matematicamente demons- Conjecturas e Refutações (POPPER
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1982 p. 125-246) a propósito das racteriza o instrumento evocado


diferentes apreciações que podem pelo instrumentalismo é sua ex-
ser feitas sobre a ciência de Gali- terioridade, independência e se-
leu, embora digam respeito à ci- cundariedade frente ao objeto a
ência em geral. A concepção de que ele, portanto, simplesmente
instrumento que parece ter levado se sub-mete. Para o instrumenta-
Popper a usar precisamente esse lismo, o logos devém, assim, um
nome para designar uma tal ma- servo invertebrado das evidências
neira de compreender a ciência é empíricas: pode ser usado e abu-
a de um meio de cálculo que, en- sado, vergado do jeito que for,
quanto hipotético, é literalmente desde que produza cálculos que
sub-posto: posto embaixo e depois concordem com as observações.
— isto é, como um sustentáculo Uma crítica desse desrespeito
ad hoc — dos fenômenos observa- para com o logos pode ser lida
dos. Um instrumento, na acep- numa importante passagem da
ção instrumentalista, é algo pro- Carta-Prefácio do próprio Copér-
duzido ‘sob encomenda’ para fun- nico ao Papa Paulo III, para a edi-
cionar, para salvar os phainomena, ção do De Revolutionibus, e que
custe isso o que custar ao logos. fora substituída, à revelia de Co-
Assim como um homem venal e pérnico, pelo prefácio apócrifo de
sem princípios, tal instrumento Osiander:
não tem, por assim dizer, escrú-
pulos próprios: faz qualquer ne- Assim, não quero escon-
gócio teórico para sustentar os da- der de vossa Santidade
dos observacionais, numa perfeita que nada mais me mo-
inversão dos excessos dos pitagó- veu a pensar a respeito
ricos, que faziam qualquer negó- de uma outra maneira de
cio para salvar sua teoria (como calcular (alia ratione sub-
forjar, sob encomenda da teoria, ducendorum) os movimen-
realidades inobserváveis). Os úni- tos das esferas do mundo
cos princípios a que o instrumen- senão que entendi (intel-
talista obedece são justamente os lexi) que os próprios Ma-
princípios da matemática (como temáticos não são consis-
dizia Osiander). Mas tais prin- tentes consigo próprios
cípios não passam disso mesmo, (sibi ipsis non constare) ao
ou seja, de princípios da matemá- investigá-los [sc. tais mo-
tica, sem nenhuma conexão com vimentos]. (. . .) Também a
os princípios que presidem a pró- forma do mundo (mundi
pria natureza. Portanto, o que ca- formam) e a exata sime-
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tria de suas partes (par- rompam a dignidade daquele pri-


tium eius certam symme- meiro. Enquanto, por exemplo,
triam) é a coisa principal o instrumentalismo reduz as te-
(rem præcipuam) que eles orias a meros instrumentos não
não conseguiram encon- estaria Galileu pensando seus ins-
trar nem inferir (invenire, trumentos como teorias em estado
vel ... colligere) (. . .). Ao concreto e operante? Procurare-
contrário, aconteceu-lhes mos, a seguir, responder afirmati-
como se alguém tomasse vamente a essa questão, buscando
(sumeret), de diversos lu- justificar tal resposta através de
gares (à diversis locis), pés, passagens textuais de Galileu so-
cabeça, e outros mem- bre o uso de alguns instrumentos
bros, pintados (depicta) científicos que ele próprio confec-
até mesmo de maneira cionou, a saber: o compasso geomé-
perfeita (optime quidem), trico militar, a balança hidrostática
mas sem comparação com e o telescópio.
um corpo único (sed non
unius corporis comparati-
one), de modo algum corres-
3.1 - O Compasso Geométrico-
pondendo reciprocamente
Militar
entre si (nullatenus invi-
cem sibi respondentibus), Comecemos pelo Compasso geomé-
de sorte a compor com trico e militar. Tratava-se de algo
eles (ex illis componeretur) que “no seu tempo correspondia
mais um monstro do que mais ou menos à régua de cálculo
um homem (monstrum po- ou à minicalculadora” (THUIL-
tius quàm homo). (COPÉR- LER, 1986, p. 139), ou, nas pa-
NICO 2008 pp. 262-263). lavras do próprio Galileu, um ins-
trumento que “em pouquíssimos
Mas, além desse “servil instrumen- dias ensina tudo aquilo que da ge-
to”, meramente acoplado à Na- ometria e da aritmética, para uso
tureza mesmo que ao preço do civil e militar, não sem longuís-
esquartejamento da organicidade simos estudos pelas vias ordiná-
do logos, parece-nos haver em Ga- rias, se recebe” (GALILEU, 1649,
lileu, um pensamento do instru- p. 369). Pode-se com ele, por
mento ativo, no qual se constata exemplo, aplicar de diversas ma-
uma verdadeira unidade entre o neiras as regras de três; transpor
logos e as operações técnicas de em proporção figuras semelhan-
cálculo, sem que estas últimas cor- tes; realizar divisões iguais e de-
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siguais no círculo; extrair as raí- pensada de modo que pudesse


zes quadrada e cúbica; estabelecer ser aprendida por aqueles que,
proporções entre pesos de diver- como os militares no campo de
sos materiais; fazer medidas trigo- batalha, “estando em tantos ou-
nométricas com a vista, e inúme- tros misteres ocupados e distraí-
ras outras operazioni que são ex- dos, não podem exercitar nestes
plicadas no manual de instruções aquela assídua paciência, que aí
que ensina o uso do instrumento. seria necessária” (idem, ibidem).
E, de fato, o que é mais relevante Mas leiamos também, por outro
para o nosso tema é justamente a lado, as seguintes palavras de Ga-
existência desse manual — talvez lileu:
um dos primeiros no gênero — e
as considerações que, nele, Gali- Lamento somente, be-
leu faz a seu respeito e a respeito nigno leitor, que, por mais
do instrumento. que eu tenha engenhado
Não é, pois, de pouca relevância em explicar as seguintes
que, neste manual de instruções, coisas com toda a clareza
Galileu se refira ao próprio ma- e facilidade possível, to-
nual e ao sentido de fazê-lo acom- davia, a quem as terá de
panhar o instrumento: só com isso extrair dos escritos, perma-
Galileu já nos dá indícios de que necerão envoltas em al-
em tal instrumento encarna-se um guma obscuridade, per-
certo saber — o qual não se li- dendo por isso muito da-
mita ao mero manuseio da peça quela graça que, ao vê-
particular, mas, como dito acima, las operar atualmente e ao
“insegna tutto quello che dalla geo- aprendê-las de viva voz, as
metria e dall’aritmetica [. . . ] si ri- torna maravilhosas: esta
ceve” . Eis o que promete, no pre- é, porém, uma daquelas
fácio do manual, a i discreti let- matérias que não supor-
tori: “poder, seja qual for a pes- tam ser descritas com cla-
soa, resolver em instantes as mais reza e facilidade e enten-
difíceis operações de aritmética; didas se, antes de viva voz
das frequentemente acontecem” não se as auscultam e no ato
(idem, ibidem). mesmo não se veem exerci-
Se, por um lado, o compasso tar. E esta teria sido po-
é um instrumento de cálculo, a derosa causa, que me te-
necessidade da presença de seu ria feito abster-me de im-
manual, por outro, diz respeito à primir esta obra...” (GA-
própria aquisição da geometria, LILEU, 1649, p. 370 —
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itálicos nossos). 3.2 - A Balança Hidrostática

Em La Bilancetta, Galileu (1986,


pp. 105-107) pretende resolver,
com exatidão, o famoso problema
da coroa de Hieron, que aqui des-
crevemos através das palavras de
Devemos, portanto, com tais pala-
Pierre Lucie:
vras reforçar a ideia de que a com-
preensão que Galileu tem de seu
Compasso Geométrico e Militar é Cerca de 250 a.c., Hie-
tal que, nem o instrumento pode ron, rei de Siracusa, en-
ser usado e atingir seus propósi- comendou uma coroa de
tos sem o manual e toda a geome- ouro a seu ourives. En-
tria — a ser ensinada — que ele tregue a coroa, Hieron
contém, nem o manual será sufici- desconfiou que o ourives
ente a quem não dispuser do ins- o tinha roubado, mistu-
trumento para vê-lo “operar atual- rando prata ao ouro. Cha-
mente”. A matemática, aqui, não mou então Arquimedes
vêm de fora. Muito pelo contrário: e o encarregou de apu-
existe de modo concreto como que rar a possível fraude. Ar-
nas inscrições das linhas feitas no quimedes, de fato, confir-
metal desse compasso; a geome- mou o roubo, mas o len-
tria aí presente não é a dos astrô- dário “Heureka!!” é pra-
nomos gregos instrumentalistas, ticamente tudo o que co-
mas sim a de uma tradição que, nhecemos do processo uti-
assim como se passa nos pitagóri- lizado pelo célebre ma-
cos, considera que os princípios temático para resolver o
da matemática eram princípios problema (LUCIE, 1986,
verdadeiros do comportamento p. 96).
das coisas. Nessa tradição insere-
se também Arquimedes, nominal-
mente citado por Galileu no ma- Nesse pequenino texto sobre a
nual do compasso como seu inspi- construção da balança hidrostá-
rador. E com tal referência a Ar- tica, Galileu afirma que, até seus
quimedes, passamos diretamente dias, não se sabia exatamente
ao contexto da tradição em que se como teria procedido Arquime-
inscreve aquele outro instrumento des para descobrir o furto do ou-
de Galileu: a balança hidrostática. rives e a quantidade exata de ouro
subtraída e substituída por prata.
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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTÍFICOS EM GALILEU

Galileu frisa que — a despeito des] haviam entendido de sua so-


da informação histórica muito di- lução do problema”. Era pre-
fundida de que Arquimedes te- ciso, antes, elaborar um instru-
ria posto a coroa na água depois mento3 . Contando com um ins-
de haver mergulhado separada- trumento, Galileu pôde acrescen-
mente ouro puro e prata pura, tar, em seu texto, à expressão “por
deduzindo, através das propor- meio da água”, a expressão “de
ções de água deslocada em cada modo rigoroso”.
caso, a composição da liga de que É conhecido de toda a tradição
a coroa se compunha — isto se- interpretativa focada na revolução
ria, no entanto, “coisa muito gros- científica dos séculos XVI e XVII
seira e longe da perfeição” se tiver- o texto de Aristóteles, na Ética a
mos em conta “as mui engenhosas Nicômaco, em que ele diz que “a
invenções” de Arquimedes (GA- precisão não deve ser procurada
LILEU, 1986, p. 105). Pierre Lu- igualmente em todas as discus-
cie mostra, em seu artigo sobre La sões, como não deve ser procu-
Bilancetta (LUCIE, 1986, p. 95), rada, por exemplo, na demiurgia”
que o paradigma arquimediano (ARISTÓTELES, 1948, 1094b e
permanece em Galileu como base ss). Ora, tomando a falta de ri-
para a geometrização de proble- gor e precisão do procedimento
mas físicos, de maneira que a refe- vulgarmente considerado o de Ar-
rência às “invenções engenhosas” quimedes no caso da coroa de Hi-
de Arquimedes, feita pelo próprio eron como sendo a principal mo-
Galileu, poderia ser um exem- tivação para a construção de sua
plo relevante da maneira especí- balança hidrostática, Galileu está
fica pela qual este paradigma ope- rompendo com essa tradição aris-
rava em seu pensamento: para totélica que separa poiésis (produ-
conseguir “a precisão requerida ção, saber fazer com que algo ve-
nas coisas matemáticas” (GALI- nha a ser) e epistéme (ciência, co-
LEU, 1986, p. 105) não bastaria, nhecimento do necessário). Des-
no caso, simplesmente “utilizar tarte, Galileu — como no caso do
a água” — que era “o pouco que compasso geométrico e militar —
[os contemporâneos de Arquime- sugerindo novamente que a exati-

3 Cf. Clavelin (1986 p. 39), onde se demonstra que, se é verdade que Galileu não dispunha de todos os conceitos
e pressupostos dos quais depende o método experimental moderno, não é menos verdade, porém, que nele há “um
método determinado — ou, se preferirmos, uma visão coerente e estável das condições que uma teoria ou modelo
explicativo devem satisfazer para serem considerados verdadeiros, intrinsecamente conformes à realidade”. De
nossa parte, pretendemos apenas propor que a construção do instrumento parece ser um dos pontos centrais desse
método.

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dão do procedimento depende de tical, para cima, igual ao peso do


um uso apropriado dos elementos líquido deslocado, de modo que o
materiais e de uma consequente peso do corpo imerso é igual ao
produção de instrumentos, mas seu peso no ar menos o peso, no
também, em contrapartida, de um ar, do volume de fluido que esse
conhecimento teórico, nos conta corpo deslocou. Galileu, assim,
que reviu “cuidadosamente os tra- nos propõe:
tados de Arquimedes” (GALILEU,
1986, p. 105), e, assim, adverte
suspendamos, então, um
que “o método [para resolver o
metal em uma excelente
problema] procede por meio de
balança e, no outro braço,
uma balança cuja construção e uso
um contrapeso de mesmo
serão expostos depois que se te-
peso no ar que o metal.
nha explicado o que é necessário
Se agora mergulharmos o
para entender o assunto” (idem su-
metal na água, deixando o
pra, itálicos nossos). E o que é ne-
contrapeso no ar, teremos
cessário saber é, primeiramente, o
de aproximar este último
Princípio de Arquimedes ou lei do
do fulcro [o ponto fixo en-
empuxo:
tre os braços da balança],
a fim de continuar equi-
um sólido mais pesado librando o metal (GALI-
que um fluido, quando LEU, 1986, p. 106).
posto nele, desce para o
fundo do fluido; e o só- Explica-se, também, que o peso
lido pesado no fluido será específico do metal será tantas ve-
mais leve que seu ver- zes maior que o da água deslocada
dadeiro peso [no ar] [de quantas vezes a distância inicial
uma quantidade igual ao] entre o contrapeso e o fulcro for
peso do fluido deslocado maior que essa distância no equi-
(ARQUIMEDES. Sobre os líbrio hidrostático (que é quando
corpos flutuantes, Livro I, aproximamos o contrapeso do ful-
proposição 7 apud LU- cro a fim de manter os braços da
CIE, 1986, p. 98 - itálico balança na horizontal). Trata-se
nosso). agora do chamado princípio da ala-
vanca, ou seja, nas palavras do
próprio Galileu em Le mechaniche:
Numa linguagem atual: todo
corpo mergulhado em um fluido
sofre a ação de um empuxo ver- pesos desiguais, suspen-
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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTÍFICOS EM GALILEU

sos em distâncias desi- “ser leve” não é uma qualidade do


guais, pesarão igualmente corpo tomado em si mesmo. Não
quando essas distâncias há, pois, aquilo que Arquimedes
estiverem [em relação ao chamava de “o verdadeiro peso”
fulcro] em proporção in- de um corpo. Ora, isso é o contrá-
versa à de seus pesos rio do que supunha a física aris-
(GALILEU. Le mechaniche. totélica, para a qual materiais in-
Opere, v. 2, 161, apud Lu- trinsecamente pesados, como se-
cie, 1986, p. 99). ria a terra, possuem seu lugar na-
tural embaixo, e por isso tendem
Desse modo, combinando a lei do a descer, enquanto materiais in-
empuxo e o princípio da alavanca, trinsecamente leves, como seria o
é possível, pois, calcular, a partir fogo, possuem seu lugar natural
das diversas posições do contra- em cima e por isso tendem sempre
peso nos diversos equilíbrios hi- a subir. O sistema aristotélico, ao
drostáticos, os pesos específicos, supor corpos naturalmente leves
em relação à água, do ouro, da ou pesados, pressupunha uma or-
prata, e da liga composta dos dois dem cósmica, com seus lugares fi-
na coroa, bem como a exata pro- xados “em cima” e “embaixo” , se-
porção desses primeiros nesta úl- parando regiões qualitativamente
tima. distintas no espaço. Assim, além
Algumas implicações desses da já comentada recusa galileana
dois princípios nos são particu- da epistemologia aristotélica, que
larmente sugestivas. A lei do em- separava ciência e demiurgia, epis-
puxo, como nota Lucie, “convence téme e poiésis, essa pequena ba-
Galileu de que não há corpos pe- lança hidrostática, através de um
sados em si ou corpos leves em problema que parecia ser mera-
si” (LUCIE, 1986, p. 98), mas mente técnico (a coroa de Hieron),
sim, dizendo em termos contem- permite que Galileu, a partir do
porâneos, corpos que, dispondo- sentido especulativo que ele ex-
se como corpos imersos ou como traiu do princípio de Arquimedes,
meios de imersão, encontram-se recuse, juntamente com a episte-
em diferentes relações de densi- mologia de Aristóteles, também
dade; relações estas que variam sua cosmologia, composta de dife-
conforme o caso, de modo que, rentes lugares naturais para obje-
mudada a relação com o meio re- tos feitos de diferentes materiais.
ferencial, um mesmo corpo pode Mas esse sentido especula-
“flutuar” ou “afundar”. Con- tivo do princípio de Arquimedes
sequentemente, “ser pesado” ou ajuda, além disso, a compreender

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melhor a própria epistemologia alguma sua qualidade intrínseca,


galileana. Com efeito, não se trata nem está em nós, como se fosse
de dizer que o “ser pesado” e o mera aparência subjetiva: o mo-
“ser leve” sejam considerados por vimento e a gravidade são reais
Galileu como qualidades secundá- e não fenomênicos, mas não são
rias, que são aspectos que parecem realidades absolutas. Isso mostra,
pertencer aos objetos mas são, na com efeito, que a separação entre
realidade, os efeitos que o objeto qualidades primárias matemati-
produz em um sujeito percipiente, camente apreensíveis e qualida-
como as cores, os odores, os sabo- des secundárias sensíveis não é
res, etc., que não estão nas pró- suficiente para atribuir a Galileu
prias coisas mais do que a dor ou uma ontologia de caráter platô-
a cócega estão na agulha que nos nico, que afirmaria o real como
fere ou na pluma que nos toca (Cf. essências absolutas, ocultas por
GALILEU, 2013). Entre as quali- trás das aparências. As qualida-
dades primárias de um corpo, isto des primárias nos parecem, an-
é, entre as coisas que são necessa- tes, algo que seria imanente ao
riamente pensadas ao ser conce- mundo justamente na medida em
bida uma substância corpórea em que existem no interior de um sis-
geral, encontra-se, por exemplo, tema de relações. Em linguagem
o “mover-se” e o “estar parado” anacrônica diríamos, talvez, que
(idem, ibidem), os quais sabemos, segundo as articulações entre a
por outro lado, que, para Gali- epistemologia e a ontologia de Ga-
leu, também não eram proprie- lileu, não conhecemos tais essên-
dades absolutas, mas estados que cias, mas sim estruturas:
se determinam num sistema de re-
lações4 . Também nos parece ser [Galileu] mantém-se den-
este o estatuto do pesado e do leve. tro da perspectiva rea-
No caso da gravidade dos corpos, lista, pois a estrutura do
assim como no estatuto do movi- universo é dada objetiva-
mento, temos algo que nem está mente e cabe ao homem
objetivamente na coisa tomada em apenas desvendar parte
si mesma e isoladamente, como dessa estrutura. Esse des-

4 Abstemo-nos de explicar a superação galileana da oposição ontológica afirmada por Aristóteles entre movi-
mento e repouso, bem como toda a concepção de Galileu sobre as condições de operatividade (mecânica e/ou
ótica) do movimento, pois julgamos que isso excederia demasiadamente nosso tema. Limitamo-nos a sugerir que
a retirada do movimento e da gravidade da condição de realidades isoladas mas, por outro lado, sua qualificação
como qualidades primárias, isto é, como propriedades reais, tende a indicar que a própria natureza, para Galileu,
é precisamente um sistema de relações: seu relativismo não é uma negação da realidade dos eventos naturais por
ele visados.

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vendamento se faz através mos também, ainda nesse regis-


de demonstrações neces- tro alegórico, que a própria con-
sárias cujo o protótipo é figuração de uma balança sugere,
precisamente a Geometria de modo privilegiado, a noção de
(NASCIMENTO, 1986, p. estrutura que empregamos acima
58, itálicos nossos). para indicar a concepção de co-
nhecimento envolvida nos instru-
Ao mostrar que “ser pesado” e mentos galileanos: é apenas na re-
“ser leve” é algo derivado de um lação entre dois objetos colocados
sistema de relações e, mais ainda, nos pratos da balança que tais ob-
ao mostrá-lo justamente produ- jetos se definem reciprocamente
zindo esse sistema sob a forma de quanto àquilo que se procura me-
um instrumento material real e dir, isto é, no caso, os pesos. Os
indicando a possibilidade de, com objetos não podem, pois, ser to-
ele, calcular tais relações, Galileu mados separadamente ou fora do
nos permite pensar os instrumen- instrumento capaz de coordená-
tos não como algo que o homem los: o instrumento, como esta-
usa como um reles meio de repre- mos tentando sugerir, deve ser,
sentar a natureza distante. Em vez pois, a própria existência mate-
de um sustentáculo matemático rial de uma lei ou princípio pelo
extrínseco, acoplado desde fora à qual a natureza age. Acrescen-
natureza, os instrumentos científi- tamos, ademais, que, etimologi-
cos galileanos parecem ser, antes, camente, tanto a palavra instru-
partes da natureza. mento quanto a palavra estrutura
Assim, aproveitando uma se- derivam do mesmo verbo, struo,
gunda consideração especulativa cujo sentido não é outro senão
dos princípios empregados na bi- o de: arranjar, dispor ordenada-
lancetta, poderíamos fazer um uso mente (e.g. as tropas militares
alegórico do princípio da alavanca ou as palavras numa frase), mas
para responder, por exemplo, a também construir, produzir, ou
Descartes, que o ponto fixo arqui- ainda arquitetar, maquinar, pla-
mediano procurado nas Medita- nejar. Ora, neste único verbo já
ções, o fundamento para a ciên- se conjugam a mutabilidade das
cia e que ele julgava encontrar ações e gerações e a estabilidade
apenas no cogito, Galileu o en- da consistência interna; o aspecto
contra na possibilidade de fixar, poiético da construção e o epistê-
sob a forma de um instrumento, mico da ordem e da inteligibili-
as relações matemáticas operan- dade.
tes no seio da natureza. Diría- Vale lembrarmos também, a tí-

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tulo de breve exemplo, algumas das coisas se não fosse feita essa
passagens dos Discorsi circunja- aplicação — a qual há de ser, por-
centes à demonstração do prin- tanto, coisa muito diferente da
cípio do movimento uniforme- aplicação instrumentalista que não
mente acelerado: depois que Sim- se comprometia com o valor de
plício, o aristotélico, diz que “teria verdade das teorias (Cf. NASCI-
sido oportuno apresentar neste lu- MENTO, 1996). E se nos dois ca-
gar alguma experiência...”, Salvi- sos — por exemplo, em Osiander
ati, o galileano, responde: e em Galileu — as teorias mesmas
podem ser de algum modo chama-
das de instrumentos, a profunda
Vós, como verdadeiro diferença entre suas concepções
cientista, fazeis pedido de conhecimento deve residir pre-
muito razoável, [. . .] e as- cisamente no que se pode conside-
sim convém nas ciências rar como instrumento nos dois ca-
que aplicam às conclusões sos: em Osiander trata-se de meros
naturais as demonstrações instrumentos de cálculo, em Gali-
matemáticas, [. . . e] confir- leu, trata-se de uma máquina teó-
mam com experiências sen- rica de conclusões verdadeiras, que
síveis os seus princípios que se prolonga em máquinas men-
são o fundamento de toda tais, tais como, no caso dos Dis-
a estrutura subsequente. corsi, o dispositivo do plano incli-
(GALILEU, 1988, p. 174 nado, mas também, como preten-
e ss - itálicos nossos). demos haver mostrado aqui, em
máquinas materiais, tais como a
E a própria teoria galileana — ex- bilancetta e o compasso geomé-
posta previamente sob a forma trico e militar.
de definições, axiomas, teoremas,
proposições etc. — é, então, des-
crita como uma “. . . imensa má- 3.3 - O Telescópio
quina de infinitas conclusões...”
(idem, ibidem). Ora, das citações Resta, portanto, que nos encami-
supra decorre que os princípios, nhemos ao telescópio. Tentar en-
que, por um lado, já haviam sido contrar, nesse instrumento par-
formulados de acordo com toda ticularmente, os traços da união
a parte teórica precedente da ter- entre especulação filosófica e pro-
ceira jornada dos Discorsi, seriam, dução técnica que viemos apon-
por outro lado, inconfirmáveis e tando nos demais, será algo bas-
virtualmente externos à natureza tante significativo, visto que, dife-
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rentemente do compasso e da ba- Há cerca de dez meses


lança, ligados diretamente à tra- chegou aos meus ouvi-
dição pitagórica e arquimediana, dos a notícia que certo
o telescópio foi construído de um belga tinha construído um
modo bastante peculiar, envol- pequeno telescópio por
vendo controvérsias desde a época meio do qual objetos vi-
mesma de Galileu. A controvér- síveis, embora muito dis-
sia histórica diz respeito ao fato tantes dos olhos do ob-
de que Galileu não foi o inventor servador, eram vistos cla-
da ideia do telescópio, tendo sa- ramente como se estives-
bido de sua existência por meio sem perto. Desse efeito,
de relatos de amigos numa via- verdadeiramente notável,
gem a Veneza, em 1609, mas ha- várias experiências foram
vendo, segundo alguns de seus relatadas, às quais algu-
contemporâneos, feito do telescó- mas pessoas davam cré-
pio um “filho” seu. Já uma ou- dito enquanto outras recu-
tra controvérsia, epistemológica, savam. Uns poucos dias
diz respeito à questão de saber mais tarde a notícia me foi
se Galileu produziu o telescópio confirmada [. . .] o que me
procedendo dentro dos cânones motivou a dedicar-me sin-
racionalistas, isto é, partindo de ceramente à investigação
premissas teóricas gerais e de- do meio pelo qual eu po-
las deduzindo necessariamente dia chegar à invenção de
consequências particulares, ou um instrumento similar,
valendo-se de um procedimento o que consegui pouco de-
eminentemente empírico, ou seja, pois baseando-me na dou-
por tentativa e erro. Nossa lei- trina das refrações (GA-
tura, que pretende mostrar, não a LILEU, Sidereus Nuncius,
perfeita conformidade da produ- apud ÉVORA, 1994, p. 37,
ção deste instrumento com as de- itálicos nossos).
mais, mas sim uma mesma com-
preensão geral sobre a relação en- Todavia, Fátima Évora (1994,
tre racionalidade e técnica, procu- Caps. 2 e 3) mostra-nos que —
rará justamente coordenar as duas a julgar, seja pelos procedimentos
controvérsias, a histórica e a epis- apresentados pelo próprio Gali-
temológica. leu, seja pelas teorias óticas a que
Em Sidereus Nuncius, Galileu Galileu poderia ter tido acesso —
escreve: a afirmação de que o instrumento
foi produzido com bases na dou-
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trina da refração deve ser tomada ambos? É para tentar responder


como deveras problemática5 . A a essas perguntas que atentamos
argumentação teórica minuciosa e às controvérsias históricas sobre a
a ampla investigação documental autoria do instrumento.
de Fátima Évora nos é completa- Respondendo em Il Saggiatore
mente persuasiva e sua conclusão à acusação de plágio feita por
se nos impõe de modo inelutável: Sarsi, Galileu escreve que, visto
que já avisara, no Sidereus Nun-
cius, ter sabido da existência do
A descoberta de Galileu
telescópio antecipadamente, res-
do telescópio nem foi obra
taria somente explicar que espécie
do acaso, nem simples re-
de auxílio podia lhe ter represen-
produção de um disposi-
tado esse conhecimento prévio.
tivo cuja as partes e dis-
Reconhecendo que sem essa in-
posições se conhecia pre-
formação talvez não houvesse se
viamente. Porém também
quer pensado no assunto e ten-
não foi feita a partir de
tado construir o aparelho, Galileu,
um raciocínio lógico de-
no entanto, adverte:
dutivo [. . .]. Galileu conse-
guiu o progresso graças a
tentativa e erro” (ÉVORA,
1994, p. 81). . . . que tal notícia tenha
facilitado invenção, não
creio; e digo mais, que en-
Resta-nos, porém, refletir um contrar a solução de um
pouco sobre o que poderiam signi- problema marcado e no-
ficar para nosso cientista-filósofo meado é obra de muito
essas investidas concretas e tate- maior engenho do que
antes que ele realizou — certa- aquela necessária para
mente sem seguir nenhum a pri- encontrar a [solução] de
ori, ou melhor, nenhum a priori um problema ainda não
particular sobre ótica e produção de pensado nem nomeado,
imagens através de lentes. O que se- pois neste caso pode haver
ria afinal isso que se encontra en- grandíssima influência do
tre o raciocínio lógico dedutivo e acaso, mas naquele é tudo
puro acaso, sem se confundir com obra do argumento (dis-

5 “. . . os estudos existentes no século XVI e começo do século XVII sobre a formação de imagens em lentes ou
sistemas de lentes não ofereciam bases para a construção do telescópio, com exceção, talvez, do Ad Vitellionem
Paralipomena, quibus Astronomia pars Optica Traditur, de Kepler (1604, Frankfurt), o qual Galileu, até outubro
de 1610, não havia conseguido ler” (ÉVORA, 1994, p. 43).

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corso) (GALILEU, Sidereus ideias, que julgamos encontrar no


Nuncius, apud ÉVORA, II Saggiatore, quando, no Side-
1994, p. 44-45 - itálicos reus Nuncius, Galileu dizia que,
nossos). dedicou-se sinceramente à inves-
tigação e que só o fez depois que a
notícia foi confirmada e não en-
O que temos aqui? Mais uma ale- quanto algumas pessoas davam
gação da qual devemos suspeitar? crédito é experiência mas outras
Talvez não. Afinal, o que Galileu não. Talvez nessa sinceridade algo
nos diz é que a certeza da existên- insuspeitado se encontre: não es-
cia do instrumento afasta o acaso tando as fontes de Galileu a in-
e torna a situação um problema ventar ficções fabulosas sobre um
para o engenho do cientista. Não maravilhoso instrumento, a exis-
era uma hipótese a ser testada tência do telescópio passa a ser,
empiricamente: era uma certeza pois, de direito, matéria da ciên-
que a construção do telescópio era cia; e o procedimento tateante, o
possível; afinal, ela era um fato, correr sucessivo das tentativas de
ela era real . . . e o que é real deve alguém que, no entanto, sabe com
poder ser demonstrado com base certeza que é realizável seu pro-
na ciência6 . Este seria o a priori de jeto, bem poderia constituir uma
Galileu, um a priori geral que nada das conotações da expressão dis-
tem de platônico, de idealista ou corso. Se a existência do telescó-
de solipsista, porque, muito pelo pio não era uma fantasia como os
contrário, diz respeito à inteligibi- eventos narrados nas obras dos li-
lidade dos eventos empíricos con- teratos, então a empreitada de Ga-
siderados em seu âmbito próprio. lileu para produzir o instrumento,
Não poderia ser essa uma ex- ainda que de modo tateante, era
plicação mais justa para com o tarefa a exigir-lhe engenho e argu-
ilustre filósofo e matemático do mento; e ao senhor Sarsi, que lhe
que a que supõe que estaria men- acusava de plágio, também nesse
tindo para garantir a legitimidade contexto Galileu poderia dizer: Sr.
científica do seu equipamento ao Sarsi, a coisa não é assim! Porque
dizer que fundava-se na doutrina um telescópio existia, tentativa e
da refração? Ora, já poderíamos, erro para encontrá-lo já não era
com efeito, perceber estas mesmas

6 Não se deve entender aqui o contrário do que já disséramos, a saber, que Galileu recusa o conhecimento de
essências: “O que é acessível ao conhecimento científico são os acidentes, as propriedades ou sintomas. Estes, à
medida que revelam o real, são os acidentes primários, isto é, o que pode ser tratado geometricamente” (NASCI-
MENTO, 1986, p. 57). É preciso simplesmente que não esqueçamos que estes acidentes são “acidentes primários e
reais” (Galileu, 2013, p. 13).

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vaguear inutilmente num escuro encarna-se no seu tatear e no ins-


labirinto. trumento assim encontrado: a ci-
ência não está fundada nos livros
escritos pelos homens nem no elu-
cubrar subjetivo, está fundada nas
Conclusão
coisas7 . Assim, é possível a um
cientista, “após haver cuidadosa-
(...) A filosofia está escrita
mente revisto o que Arquimedes
neste grandíssimo livro
demonstra em seus tratados” (GA-
que aí está aberto continu-
LILEU, 1986 p. 105) ir em direção
amente diante dos olhos
da natureza e produzir uma ba-
(isto é, o universo), mas
lança hidrostática; mas também,
não se pode entendê-lo se
em contrapartida, sabendo que
primeiro não se aprende
existe um telescópio, colocar-se a
a entender a língua e co-
produzi-lo, consciente de que está
nhecer os caracteres nos
lidando, na prática, com a dou-
quais está escrito. Ele
trina da refração — a ser escrita,
está escrito em língua ma-
talvez com mais perfeição do que,
temática, e os caracteres
no momento, podia sê-lo por suas
são triângulos, círculos e
mãos, num outro tratado pelas
outras figuras geométri-
mãos de um outro cientista.
cas, meios sem os quais é
Já se pode, portanto, compre-
humanamente impossível
ender quão significativa é esta
entender-lhe sequer uma
caracterização dos instrumentos
palavra; sem estes trata-
para a mudança na concepção ge-
se de um inútil vaguear
ral acerca da ciência. Por tudo
por um obscuro labirinto
que dissemos, parece não estar-
(. . .) (GALILEU, Il Saggia-
mos muito enganados se reco-
tore §6 apud MOSCHETTI,
nhecermos em tais instrumentos
2013, p. 56)
a síntese entre a instrumentação
Quando Galileu diz, na supraci- — que valoriza o trabalho em-
tada frase do parágrafo 6 de Il Sag- pírico e a tentativa de dar conta
giatore (Cf. MOSCHETTI, 2013), dos fenômenos particulares — e
que o universo está escrito em lín- a postura ativa do homem diante
gua matemática, revela que o logos da natureza, que valoriza o re-

7 Confira-se também, em Moschetti, 2013, pp. 92ss, especialmente o trecho: “A famosa frase de Galileu parece
enunciar um princípio não apenas metodológico mas também ontológico: assim deve ser a física porque a maté-
ria é ela mesma estruturada geometricamente”. Tal leitura confirma, por assim dizer, o que nós, aqui, estamos
apresentando quase como uma “revanche” moderna da ontologia pitagórica.

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torno ao próprio intelecto para en- se, aqueles experimentos descri-


contrar os princípios do conheci- tos nos livros de Galileu, a meros
mento. Os princípios da matemá- expedientes de pensamento. As-
tica são os princípios da natureza; sim, se, por um lado, não acei-
qualquer transcendência de estilo tamos completamente a tese de
platônico é aqui excluída. Koyré — de que Galileu não fez
Para salientar apenas uma das concretamente seus experimentos
implicações dessa investigação — por julgá-la, não como sendo
para a compreensão do pensa- falsa, mas como sendo difícil de
mento de Galileu e da própria ser demonstrada, por outro lado,
Revolução científica dos séculos queremos crer que mesmo que
XVI e XVII, cabe salientar que ela Galileu tenha efetivamente feito
incide diretamente na — já um experimentos, algo da concepção
tanto envelhecida — polêmica en- básica de Koyré — ao menos na-
tre Alexandre Koyré e Stillman quilo que concerne ao caráter es-
Drake, reportada e resumida por sencial da postura ativa da ciência
THUIILER (1994), no capítulo galileana — pode ser mantido se
cujo título enuncia a pergunta atentarmos à maneira pela qual
ao redor da qual polemizaram os os instrumentos são pensados por
dois primeiros comentadores: “fez Galileu. Se não é certo que expe-
Galileu experiências?”. A resposta rimentos existiram, não se pode
de Koyré é negativa, ao passo que dizer o mesmo dos instrumen-
a de Drake é afirmativa. Drake, tos. Assim, repetindo a questão
analisando, por exemplo, anota- que se encontra no título do ca-
ções manuscritas de Galileu, tenta pítulo de Thuillier — “fez Gali-
demonstrar que elas seriam me- leu experiências?” — poderemos
dições de dados concretos reco- arriscar uma conclusão dizendo:
lhidos em efetivos experimentos não sabemos, mas sabemos que,
(THUIILER, 1994, p. 130). Koyré, em sua oficina, ele construiu re-
sublinhando, entre outras coisas, almente inúmeros instrumentos,
a impossibilidade de medições su- como o compasso geométrico mi-
ficientemente precisas, bem como litar, a balança hidrostática e o te-
um possível fundo platônico para lescópio. E tais instrumentos são,
o estabelecimento das teorias ga- eles próprios, as concretizações
lileanas, procura provar que esse materiais de certas leis da natu-
estabelecimento em nada depen- reza, legíveis apenas matematica-
deu de experimentos concretos, mente. Não se tratam de arma-
os quais, portanto, poderiam não duras extrínsecas ou armadilhas
haver sequer existido, reduzindo- para capturar e aprisionar os da-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

dos observacionais em uma reles viços) sem potência para questio-


“regra de cálculo”, mas uma real nar o poder teológico-político que,
articulação inteligível no seio da por não haver sido superado mas
natureza sensível. tão somente recalcado, calamito-
Ora, não é pouco o que fica samente retorna com tal reedição
posto em jogo: trata-se, naquele do programa instrumentalista —
momento histórico de fundação é imperioso, portanto, diferenciar
de um novo modo de pensar, “de a despotencializadora instrumen-
uma determinada imagem da ci- talização da ciência, limitada a
ência, uma determinada maneira salvar as aparências, de sua de-
de interpretar o trabalho científico” sejável instrumentação. Esta úl-
(THUIILER, 1994, p. 117). Hoje, tima, com seus instrumentos si-
em 2019 — quando a política ci- multaneamente corporais e inte-
entífica brasileira exibe uma ima- lectuais, recoloca um brado que,
gem da ciência que a recoloca na pensávamos, havia sofrido sua ob-
servil posição de técnica solucio- solescência junto com as promes-
nadora de problemas práticos (es- sas não cumpridas do iluminismo,
pecialmente daqueles necessários mas que mostra hoje sua renovada
à indústria e ao mercado de ser- importância: Sapere Aude!

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Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

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