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* Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em filosofia pela USP.
E-mail: cnrz1972@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4935-629X.
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tos exigidos pela teoria mas ja- coincidir com os fenômenos pre-
mais observados (ou até mesmo sentes e predizer os fenômenos fu-
jamais observáveis!). Contra isso, turos. Logo, fazê-lo não é condi-
o sensato Aristóteles propõe: em ção suficiente para afirmar a ver-
caso de discrepância entre a te- dade da teoria, embora não fazê-
oria e os fenômenos, “conservar lo seja suficiente para afirmar sua
os fenômenos!” (sozein ta phaino- falsidade.
mena), isto é, literalmente, “salvar É nesse mesmo espírito que o
as aparências”, num uso do verbo luterano Andreas Osiander — que
“salvar” que significa mais pro- supervisionara a publicação do De
priamente manter, guardar, con- Revolutionibus Orbium Coelestium,
servar. Ora, muitos astrôno- de Copérnico, em 1543 — tentara
mos gregos — de Eudoxo e Ca- possivelmente proteger o autor,
lipo, no século IV a.C. a Ptolo- adicionando a esta obra um pre-
meu, no século II d.C. — leva- fácio apócrifo com um programa
ram às últimas consequências esse instrumentalista, de matriz pro-
preceito aristotélico. Diante de testante, que constituíra, quase
alguns fenômenos astronômicos um século antes, um precedente
tradicionalmente desafiadores, tal até mais radical que o da inquisi-
como o chamado movimento re- ção romana:
trógrado aparente dos planetas1 ,
esses astrônomos propuseram ar-
tifícios geométricos2 , artifícios que Com efeito, é próprio do as-
eles nunca pretenderam que des- trônomo compor, por meio
crevessem a real estrutura do uni- de uma observação diligente
verso, mas que, ainda assim, eram e habilidosa, o registro dos
eficazes justamente em “salvar as movimentos celestes. E, em
aparências”. Ou seja, uma teoria seguida, inventar e ima-
assumidamente falsa — no sen- ginar as causas dos mes-
tido de jamais haver pretendido mos, ou melhor, já que
que esses círculos matemáticos em não se podem alcançar de
que os planetas eram colocados modo algum as verdadeiras,
durante o cálculo existissem na re- quaisquer hipóteses que,
alidade — pode perfeitamente re- uma vez supostas, per-
produzir os fenômenos passados, mitam que esses mesmos
1 O movimento retrógrado corresponde ao fato de que, em dado momento de sua trajetória anual, os planetas
parecem ‘andar para trás’, para depois retomarem o sentido original
2 Por exemplo: o artifício do epiciclo e deferente consistia em colocar o planeta orbitando não diretamente ao
redor da Terra mas ao redor de um ponto que, este sim, orbitava ao redor da Terra.
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3 Cf. Clavelin (1986 p. 39), onde se demonstra que, se é verdade que Galileu não dispunha de todos os conceitos
e pressupostos dos quais depende o método experimental moderno, não é menos verdade, porém, que nele há “um
método determinado — ou, se preferirmos, uma visão coerente e estável das condições que uma teoria ou modelo
explicativo devem satisfazer para serem considerados verdadeiros, intrinsecamente conformes à realidade”. De
nossa parte, pretendemos apenas propor que a construção do instrumento parece ser um dos pontos centrais desse
método.
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4 Abstemo-nos de explicar a superação galileana da oposição ontológica afirmada por Aristóteles entre movi-
mento e repouso, bem como toda a concepção de Galileu sobre as condições de operatividade (mecânica e/ou
ótica) do movimento, pois julgamos que isso excederia demasiadamente nosso tema. Limitamo-nos a sugerir que
a retirada do movimento e da gravidade da condição de realidades isoladas mas, por outro lado, sua qualificação
como qualidades primárias, isto é, como propriedades reais, tende a indicar que a própria natureza, para Galileu,
é precisamente um sistema de relações: seu relativismo não é uma negação da realidade dos eventos naturais por
ele visados.
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tulo de breve exemplo, algumas das coisas se não fosse feita essa
passagens dos Discorsi circunja- aplicação — a qual há de ser, por-
centes à demonstração do prin- tanto, coisa muito diferente da
cípio do movimento uniforme- aplicação instrumentalista que não
mente acelerado: depois que Sim- se comprometia com o valor de
plício, o aristotélico, diz que “teria verdade das teorias (Cf. NASCI-
sido oportuno apresentar neste lu- MENTO, 1996). E se nos dois ca-
gar alguma experiência...”, Salvi- sos — por exemplo, em Osiander
ati, o galileano, responde: e em Galileu — as teorias mesmas
podem ser de algum modo chama-
das de instrumentos, a profunda
Vós, como verdadeiro diferença entre suas concepções
cientista, fazeis pedido de conhecimento deve residir pre-
muito razoável, [. . .] e as- cisamente no que se pode conside-
sim convém nas ciências rar como instrumento nos dois ca-
que aplicam às conclusões sos: em Osiander trata-se de meros
naturais as demonstrações instrumentos de cálculo, em Gali-
matemáticas, [. . . e] confir- leu, trata-se de uma máquina teó-
mam com experiências sen- rica de conclusões verdadeiras, que
síveis os seus princípios que se prolonga em máquinas men-
são o fundamento de toda tais, tais como, no caso dos Dis-
a estrutura subsequente. corsi, o dispositivo do plano incli-
(GALILEU, 1988, p. 174 nado, mas também, como preten-
e ss - itálicos nossos). demos haver mostrado aqui, em
máquinas materiais, tais como a
E a própria teoria galileana — ex- bilancetta e o compasso geomé-
posta previamente sob a forma trico e militar.
de definições, axiomas, teoremas,
proposições etc. — é, então, des-
crita como uma “. . . imensa má- 3.3 - O Telescópio
quina de infinitas conclusões...”
(idem, ibidem). Ora, das citações Resta, portanto, que nos encami-
supra decorre que os princípios, nhemos ao telescópio. Tentar en-
que, por um lado, já haviam sido contrar, nesse instrumento par-
formulados de acordo com toda ticularmente, os traços da união
a parte teórica precedente da ter- entre especulação filosófica e pro-
ceira jornada dos Discorsi, seriam, dução técnica que viemos apon-
por outro lado, inconfirmáveis e tando nos demais, será algo bas-
virtualmente externos à natureza tante significativo, visto que, dife-
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5 “. . . os estudos existentes no século XVI e começo do século XVII sobre a formação de imagens em lentes ou
sistemas de lentes não ofereciam bases para a construção do telescópio, com exceção, talvez, do Ad Vitellionem
Paralipomena, quibus Astronomia pars Optica Traditur, de Kepler (1604, Frankfurt), o qual Galileu, até outubro
de 1610, não havia conseguido ler” (ÉVORA, 1994, p. 43).
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6 Não se deve entender aqui o contrário do que já disséramos, a saber, que Galileu recusa o conhecimento de
essências: “O que é acessível ao conhecimento científico são os acidentes, as propriedades ou sintomas. Estes, à
medida que revelam o real, são os acidentes primários, isto é, o que pode ser tratado geometricamente” (NASCI-
MENTO, 1986, p. 57). É preciso simplesmente que não esqueçamos que estes acidentes são “acidentes primários e
reais” (Galileu, 2013, p. 13).
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7 Confira-se também, em Moschetti, 2013, pp. 92ss, especialmente o trecho: “A famosa frase de Galileu parece
enunciar um princípio não apenas metodológico mas também ontológico: assim deve ser a física porque a maté-
ria é ela mesma estruturada geometricamente”. Tal leitura confirma, por assim dizer, o que nós, aqui, estamos
apresentando quase como uma “revanche” moderna da ontologia pitagórica.
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Referências
Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019
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