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A FORÇA DO MARACÁ: a resistência

indígena ao medo

“Acima do medo, coragem” foi uma fala bastante difundida entre os Pankararu da
aldeia Bem-querer de Cima, em Pernambuco, durante o mês de outubro de 2018. Após
trinta anos lutando pelo reconhecimento e retirada das famílias não-indígenas que
ocuparam o território sagrado, o avanço nas negociações parecia ter chegado ao fim.
No dia 29 de outubro, um dia após a vitória de Jair Bolsonaro para presidente, a
situação teve uma reviravolta. O contexto de vitória do candidato conservador mostrou
que a situação de conflito no território indígena pernambucano só estava começando.
Uma escola e um Posto de Saúde da Família foram incendiados.

A situação parece isolada, mas a expansão dos conflitos pelo Brasil demonstra que as
reações à vitória do candidato não são localizadas. Caarapó, Miranda e Dourados, no
Mato Grosso do Sul (MS), locais com foco de tensões entre indígenas e fazendeiros,
também teve ataques aos nativos que lutam pela garantia do direito originário ao
território tradicionalmente ocupado. Todas as ações criminosas contra os índios, pelo
país, acentuaram o sentimento de instabilidade nas aldeias. Temor, medo e
preocupação são sentimentos não só entre os índios mas também atingem os aliados
defensores deles. Movimentos indígena, indigenista e academia preparam-se para
emplacar estratégias de resistência para superação do contexto de ataques.
Essa reportagem especial traz os posicionamentos de quatro importantes atores dentro
do movimento de defesa e reconhecimento das diversidades brasileiras. O texto traz os
posicionamentos em relação ao atual contexto de ataque aos direitos daqueles que
lutam por sua identidade étnica e dos atores da sociedade civil organizada que se
vinculam como aliados à causa.

MOVIMENTO INDÍGENA: resistência ao medo

Aos 72 anos, José Barbosa dos


Santos participou de todo o debate
em torno da Constituinte. O vice-
cacique do povo Xukuru do
Ororubá viu os indígenas serem
reconhecidos como sujeitos de
direitos com a implantação da
Constituição Cidadã, em 1988.
Agora, com a ascensão de um
movimento conservador de extrema
direita e a chegada de seu
representante no executivo, o
progressismo comemorado pela liderança pode estar em perigo.

Zé de Santa, como é conhecimento dentro do povo, participou de quinze


Acampamentos Terra Livre - eventos que reúnem indígenas em Brasília para
reivindicar o cumprimento de leis e acordos - e viu o
decrescimento na demarcação dos territórios
indígenas. De acordo com levantamento da jornalista
Sheyla Miranda, em matéria para o Manual de Atual
da Editora Abril, no governo de Fernando Henrique
Cardoso foram 145 Terras Indígenas (TI)
homologadas; no de Lula, 87; Com Dilma, 15; Por fim,
no Governo de Temer, apenas 2 TI.

Diante desse contexto de retrocesso para o


reconhecimento do direito territorial, a liderança
caracteriza como preocupante o cenário político que
será posto em prática em 2019. A demarcação das
terras que são espaços para reprodução física e
simbólica dos povos pode ficar ainda pior. Para Zé de
Santa, a dúvida paira sobre o futuro daqueles que
ainda virão. “Como vai ser o futuro dos que ainda virão daqui pra frente, não só a
juventude mas também os adultos, os velhos, aquelas crianças que estão nascendo?
Os planos políticos que estão sendo desenhados contra os direitos humanos, da
sociedade como um todo, e contra os direitos dos povos que têm uma cultura diferente
no Brasil -- povos indígenas, negros e quilombolas, sem terra, sem teto, pescadores e
ribeirinhos -- são preocupantes”, acentua o Xukuru.

Com relação ao seu povo, Zé de Santa está apreensivo com o exercício da liberdade
das práticas socioculturais. O medo é que o mesmo contexto de 1980, período em que
os indígenas Xukuru eram negados a praticar sua cultura, volte a se instaurar e que
essa negação seja juridicamente legítima. “O principal receio com relação aos Xukurus
é exercício do direito à cultura específica e diferenciada. Infelizmente, com o desenho
que está sendo formado de proibir o exercício do direito à cultura diferenciada própria
de cada se mostra como uma grande preocupação para todos, para os mais velhos e
as lideranças”, continuou

Todo essa preocupação tem um pano de fundo. Sem a garantia das práticas, os
Xukuru temem a dispersão do povo como aconteceu durante a repressão pelos
posseiros e fazendeiros no território, no século passado. O exercício da cultura é
elemento constitutivo da identidade e do ser Xukuru.

Zé de Santa confirma que o movimento indígena está preocupado com outras


instâncias de mobilização e que atuam diretamente com os nativos. Fora dos territórios,
os vínculos com os aliados da universidade, pesquisadores e pesquisadoras, que se
debruçam sobre a temática podem sofrer grande impacto.

ACADEMIA: resistência ao medo

As Instituições de Ensino Superior


absorveram todos os ataques
contras as populações indígenas.
Após a Comissão Parlamentar de
Inquérito do CIMI, FUNAI e INCRA e
a criminalização de ativistas,
indigenistas e pesquisadores da
temática, esses últimos tiveram a
liberdade de cátedra afetada. As
reações têm sido para erguer os
direitos conquistados e lutar para o
cumprimentos destes -- contra os
retrocessos.

Pesquisador há 30 anos, o professor


titular de História da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE)
Edson Silva, 56 anos, vê com
perplexidade e temor o quadro apresentado. Para as pesquisas, ele acredita ser um
“cenário de ameaças ao pensamento acadêmico”, declara o professor.

O pesquisador acredita que a principal ameaça vem de um setor específico - a


bancada ruralista. Além de ser um grupo que agrava os conflitos agrários e a violência
contra as populações indígenas, também é um coletivo forte dentro do Estado. A
bancada é aliada aos interesses dos que emplacam propostas contra a liberdade de
cátedra dos pesquisadores. Segundo o professor,
ganhos da academia e movimentos sociais, como
a Lei 11.645, que torna obrigatório o ensino da
temática afro-brasileira e indígena, estão em jogo
na tentativa de invisibilizar a presença indígena
nas diversas áreas do conhecimento acadêmico e
escolar. “Passados 10 anos da Lei 11.645/2008,
observamos que, apesar dos pequenos avanços,
com a produção de material, o investimento na
formação e capacitação dos professores, o
impacto depois do golpe de Temer foi a
desmobilização nesse pequeno avanço, uma vez
que temática indígena a partir da citada lei foi
relegada a um segundo plano” ressalta Edson.

Reconhecendo as perspectivas não tão


animadoras, Edson acredita que o caminho é
“garantir a mobilização dos professores, da área
do ensino, dos indígenas pra reivindicar para que a temática indígena seja discutida em
nossa sociedade, para superação de estigmas, preconceitos e discriminação contra os
índios”.

Além disso, 62 projetos de lei (PLs) estão sendo debatidos no Congresso Nacional e
nas câmaras legislativas de 12 estados da Federação vinculados à Escola Sem
Partido. Para além do ataque aos estudos de gênero, o projeto visa ampliar seu poder
de influenciar e combater os assuntos específicos de história e sociologia, áreas onde a
temática indígena é debatida.

Edson defende que ataques à educação e à atuação dos acadêmicos junto aos
movimentos sociais possam fazer unir os pesquisadores que apresentam
posicionamentos acadêmicos distintos. Para ele, esse contexto se mostra como “um
desafio para reinventarmos nosso lugar na academia e para contribuir com o
pensamento social brasileiro”.

União, superação de arestas e atuação em bloco é uma das estratégias possível, para
Edson, “contra qualquer ameaça que, porventura, venha atingir ou restringir a
liberdade de cátedra, publicações e execuções das as pesquisas, os estudos,
orientações”. O pesquisador é enfático ao defender a formação política para atuação
junto a outros atores não acadêmicos, como povos indígenas. “Os pesquisadores têm
um papel fundamental na formação para o reconhecimento de direitos, na formação
dos nossos alunos e alunas”. A promoção de leituras, estudos, seminários, congressos
e eventos que venham aprofundar e debater temas que pesquisamos pode ser uma
saída “para apoiar a mobilização e organização junto aos povos indígenas e aos
movimentos sociais no Brasil, no Nordeste e, especificamente, em Pernambuco”,
finaliza o professor.

INDIGENISMO: resistência contra o medo

José da Cunha Júnior, 62 anos, mora em Recife desde 1989. Desde essa época, o
baiano nascido em Cachoeira trabalha no Conselho Indigenista Missionário. Zé Karajá,
como é conhecido dentro do movimento indigenista, há três voltou a atuar no CIMI.

Durante esses anos, Zé Karajá formou duas dimensões da vida que agora se
entrecruzam no movimento. A dimensão pessoal e institucional caminham juntas e
estão em jogo no atual contexto político, para o indigenista.

Karajá diz que o secretariado do CIMI,


em Brasília, está “muito assustado”. O
setor é responsável por acompanhar
toda a tramitação de projetos na
câmara e as decisões do judiciário. O
indigenista acrescenta que o
sentimento parece porque as decisões
estão sendo tomadas ignorando a
legislação existente. “Se com essa
legislação existe agressividade, nos
preocupa o que irá acontecer sem
essa legislação”, comenta apreensivo
ao tratar do parecer da AGU, o Marco
Temporal.

O Parecer Antidemarcação da
Advocacia Geral a União (AGU),
publicado em julho de 2017,
transforma em regra a tese político-
jurídica do marco temporal. Isso quer
dizer que as terras indígenas só
podem ser demarcadas se estivessem
sob posse das comunidades indígenas
na data de 5 de outubro de 1988, data
de promulgação da Constituição. Karajá expressa o susto que o parecer da AGU
institui e defende que o entendimento não tem força jurídica. “Estão inviabilizando a
demarcação de terras indígenas e estão querendo levantar uma referência que nos
assusta muito”, exclama. Ele continua destacando o absurdo que posicionamentos
como esse do poder executivo pode implicar no reconhecimento das Terras Indígenas:
“são povos que durante 488 anos estiveram correndo das agressões e se exige que
naquela data eles estivessem no mesmo lugar que seus ancestrais. Tanto isso é
violento, do ponto de vista de negação da história e da migração dos povos”.

Além do parecer da AGU, outros 33 projetos estão em tramitação no Congresso


Nacional atingem diretamente o direito territorial dos povos originários brasileiros. O
dado é do Relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) de 2017. O documento,
entitulado “congresso anti-indígena”, aponta que das 33 proposições, 21 são de
deputados e senadores, dos quais dez pertence a bancada ruralista.

Todos os ataques aos direitos originários dos


indígenas destroem a aposta que esses
fizeram no Estado Constitucional de Direito.
Durante a Constituinte, os povos originários
compreenderam que fazem parte de um
estado-nação e que esse, por sua vez, tem
normas e que a construção dessas normas
se deu ouvindo essas populações. Assim, os
nativos reconheceram, também, que
qualquer mudança dessas normas devem ser
feitas ouvindo as populações.

Karajá vê o judiciário como espaço de


resistência para os indígenas. “Eles vão
brigar muito para que essa leis sejam
preservadas”, declara ao destacar a omissão
do Estado frente a acordos internacionais
assinados, como a negação da Convenção
sobre os Povos Indígenas e Tribais, de 1989.
Também conhecida como convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT),
o acordo ratifica os artigos 231 e 232 da Constituição Brasileira. A assinatura do
documento traz importantes avanços no reconhecimento dos direitos indígenas
coletivos, entre eles o reconhecimento que os povos indígenas têm uma relação
especial com a terra, base de sua sobrevivência cultural e econômica.

Apesar do pessimismo frente à atuação do Estado, Zé Karajá acredita que os


indígenas vão fazer os arranjos possíveis como fizeram há 518 anos, para se
manterem como são, não só fisicamente, como culturalmente. Para ele, a cosmovisão
de mundo permanecerá a mesma. Karajá acrescenta que não só organizações
indigenistas mas também dos povos do campo -- campesinos, quilombolas, ribeirinhos,
pescadores e etc --, serão atores críticos ao avanço do capitalismo sobre as riquezas
do Brasil e sobre a qualidade de vida dessas populações.

Após 26 anos de ditadura, houve um debate imenso em torno da constituinte. Os índios


tiveram espaço, foram ouvidos e negociaram bastante, principalmente com os militares
e com os setores do agronegócio, principalmente as mineradoras. O maior ganho foi
conseguir um consenso naquela época. Karajá vê todo contexto de diálogo indo por
água abaixo, a partir da negação da história do Brasil, numa perspectiva de exploração
agressiva dos recursos naturais não explorados e de exploração do povo. “Dá uma
tristeza muito grande dessa realidade, mas eu confio muito nas novas gerações. Acho
que ela vai fazer seu papel por um país democrático e justo”, finaliza o indigenista

JUVENTUDE: resistência ao medo


Marcinha Olegário da Silva Oliveira,
22 anos, pertence ao povo Xukuru
do Ororubá. Participou, desde
criança, da mobilização da juventude
do seu povo e retomada do território.
Hoje, estuda pedagogia, é
educadora infantil na aldeia
Canabrava, faz parte do coletivo de
mulheres e do coletivo Poyá
Limolaigo. A última é organização
que pensa o protagonismo da
juventude dentro do povo Xukuru do
Ororubá. A jovem, que também é
mãe, atua no povo pensando a juventude como continuidade da luta, sempre formando
gerações na etnia para fortalecimento do povo.

Desde quando passou pelo martírio do contexto eleitoral, como ela mesmo qualifica,
sua preocupação esteve direcionada às pessoas que colocaram Bolsonaro no poder.
“Minha preocupação não é ele no poder, mas as pessoas [que o elegeram]. A partir do
momento que várias pessoas elegem uma pessoa como ele, quer dizer que várias
pessoas pensam como ele - ou que querem o que ele quer, porque nem todos tiveram
lavagem cerebral, óbvio!”, enfatizou a indígena

Preocupada com o futuro do Brasil para a sua geração, a jovem Xukuru confia nos
pares da sua idade para enfrentar a situação de instabilidade para os indígenas. “Ele
pode ter ganhado, mas nós não nos entregaremos derrotados. Nós vamos unir as
forças. Vai ter luta até o último índio, até o último pobre, até o último negro”, frisou
Marcinha.
Confiante no poder da informação, Marcinha vê
como estratégia a união “das mulheres, dos negros e
daquelas pessoas que são minorias mas sempre
lutaram”. Ela continua falando do domínio da
informação para enfrentar o momento: “eu acredito
que o modo de unir as forças é ter conhecimento dos
seus direitos e lutar por eles, para que não tenha
retrocesso”.

Sistematizando uma forma de atuação da juventude


frente aos possíveis ataques que virão em 2019,
Marcinha declara “nós não vamos mandar um
soldado pra guerra se ele não sabe o motivo, o
porquê e pelo que ele vai lutar. A conscientização
pode ser feita pelo levantamento de quais propostas são retrocessos para a nossa
mobilização, da terra, da tradição”. Só assim é possível pensar as estratégias: “é
mobilização na rua, é embate, é ir a Brasília? Essa organização ajuda a pensar no que
vamos fazer. O passo é mobilizar, conversar, pensar, pra depois disso ver o que nós
vamos enfrentar realmente”.
O momento de reflexão para a juventude indígena organizada está direcionada
para a preocupação com a cuidado com a terra e a continuidade na defesa de uma
bandeira que seus
antepassados levantam. A
jovem viu vários parentes do
seu povo morrer pela terra,
inclusive sua liderança. Falar
sobre a terra mexe com os
sentimentos, mas ela não
consegue parar de pensar
nos irmãos indígenas que
ainda não tem o processo de
reconhecimento da terra
concluído. “Terra não se
negocia”, para Marcinha, “é
nossa mãe e não objeto de
comércio”.
O direcionando para uso da terra com fins comerciais e insustentáveis gera receio
dentro do grupo que Marcinha faz parte. Apesar disso, temer nunca foi um sentimento
que passou pela jovem. Aliás, ela mesmo declara “se lutar é preciso, resistir, ainda
mais” e nessa situação atual não seria diferente. A busca pelo reconhecimento da
diferença e a mobilização para enfrentar o medo e os ataques são motes que garantem
a identidade étnica do povo sustentada. É nesse sentido que Marcinha acredita no
avanço dos povos, como Xicão Xukuru falava, e ela mesmo reforça: “avançaremos”.

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