Você está na página 1de 5

02/04/2020 O gás ou a comida

pandemia na quebrada

O GÁS OU A COMIDA
Na periferia de São Paulo, com epidemia de Covid-19, preço do botijão vai a R$ 150 (um quarto do
auxílio prometido pelo governo), renda cai e contas continuam chegando
LUANA ALMEIDA
01abr2020_19h55

Ferro-velho sem clientes na comunidade Pantanal – Foto: Luana Almeida

M
anter o aluguel em dia, pagar o dobro pelo botijão de gás e ainda
trazer comida para casa – tudo isso com renda menor ou sem
renda alguma, graças à retração econômica provocada pela
epidemia do novo coronavírus. Em seu terceiro relato para a piauí sobre
os impactos da Covid-19 na periferia de São Paulo, a produtora cultural
Luana Almeida, de 24 anos, fala do desespero de famílias para receber
ajuda do governo ou de instituições. Há uma semana, foi anunciado um
repasse de R$ 600 aos mais vulneráveis. O projeto foi aprovado no
Congresso com velocidade, e o presidente Jair Bolsonaro sancionou a
medida nesta quarta-feira, dia 1º, mas ainda não informou quando a
população passará efetivamente a receber o benefício. Fala-se no dia 10
ou 16 de abril. Luana Almeida mora na União de Vila Nova, bairro no
https://piaui.folha.uol.com.br/o-gas-ou-comida/ 1/5
02/04/2020 O gás ou a comida

distrito da Vila Jacuí, no extremo Leste de São Paulo, distante 30 km do


centro da capital.A região, conhecida como Pantanal por causa dos
constantes alagamentos, tem um Cras, Centro de Referência de
Assistência Social da prefeitura, local a que a população recorre para ter
informações sobre como receber ajuda.

Em depoimento a Thais Bilenky

Os dias passaram, a tendência da Covid-19 é aumentar. A gente ainda


não chegou ao pico desesperador, e entendi que esse era um dos motivos
pelos quais as pessoas estavam levando numa boa, achando que estava
tudo bem. A gente está falando de algo que acontece em cima e na
periferia isso espirra, chega, né? Se acontecer aqui, não chega lá em cima,
mas se acontecer lá em cima, ôôô…. certeza que chega aqui.

Os proprietários de imóveis continuam querendo receber o aluguel. As


pessoas não têm dinheiro para pagar, porque foram dispensadas dos seus
trabalhos. Numa comunidade como a Vila, os comerciantes são os donos
dos próprios negócios. Vão comprar mercadoria, negociar preço, vender
para cliente… não são as grandes redes. Tem os que trabalham na
garagem de casa, mas os que pagam aluguel precisam vender e, mesmo
na quarentena, com menos frequência, as pessoas ainda estão saindo e
dando prioridade para comprar perto de casa, e não em uma super-rede
fora da Vila, onde vão ficar mais expostas.

De outro lado vem o quê? A inflação no preço das coisas aqui. O botijão
de gás, gente, pelo amor de Jah… Tenho o mesmo botijão desde que me
mudei, em junho, então está acabando. Antes disso tudo, já estava
pensando que ia comprar um botijão ou deixar um dinheiro separado.
Entrei na minha rede, o assunto do momento era o gás a R$ 150. Gente,
R$ 150 o botijão? Na promoção estava 120 reais. O valor “real” é R$ 65.
Mano, no desespero, o povo precisa comer, então começa aquele ciclo:
desenterra o dinheiro do gás, ou paga o aluguel, ou compra comida?

https://piaui.folha.uol.com.br/o-gas-ou-comida/ 2/5
02/04/2020 O gás ou a comida

Essa é a hora em que, ainda que a pessoa tenha vergonha, não dá mais. A
gente está falando de uma causa muito maior. A gente não está falando
de uma pessoa que precisa de ajuda na Vila, a gente está falando de
milhares de famílias que só esperam alguém de algum movimento social
se manifestar. Dependem disso sempre que acontece algo terrível, porque
nem na enchente os donos deixaram passar o aluguel…

Para você ver que mais uma vez a gente se torna refém de benefícios, de
uma ajuda com cesta básica, uma ajuda com produto de limpeza. Toda
vez que acontece, a gente espera de alguém maior, de grandes
instituições, do governo diretamente. Numa hora dessas, eu entendo que
era para ele estar chegando… Mas tudo bem.

Aí sai essa lei aí, da ajuda dos R$ 600. Se esse benefício sair, acredito que
vai contemplar muita gente que já tem cadastro no Cras por conta do
Bolsa Família, que não necessariamente recebe, mas tem o cadastro lá, às
vezes foi bloqueado, mas sabe todos os procedimentos. Então, na hora
que falar que está liberado, quem é a favor, quem não é a favor, morreu.
As pessoas precisam receber. Muitas estão só esperando por isso, e a
maioria está com muita dúvida se terá direito.

Eles [governo] vêm e me lançam essa que vai ser liberado, e aí não tem
mais informação. As pessoas começam a pensar nisso para ontem, as
pessoas que estão aqui passando pelo que estão passando, elas não
podem esperar. Por quê? Porque a gente vive num país capitalista e tudo
é pago. Isso é muito fácil de entender. Aliás, não é fácil. Se fosse, a gente
não estaria falando sobre isso para pessoas que nem sequer imaginam
que isso aconteça.

Mas cadê esse dinheiro, quando vai ser liberado, quem tem direito e
quem não tem? Minha mãe perguntou porque uma tia queria saber. Uma
tia me perguntou porque a vizinha queria saber. Essa tia tem o Bolsa
Família e soube que ela pode escolher entre um valor e outro e ficar com
o maior. Antes as pessoas achavam que eram só os MEI
(microempreendedor individual) que receberiam, agora sabem que
também autônomos sem registro em carteira podem. É muita informação
picada.

https://piaui.folha.uol.com.br/o-gas-ou-comida/ 3/5
02/04/2020 O gás ou a comida

Na padaria, no mercadinho, poderia ter um lambe [cartaz] lá, uma


comunicação, informação de precaução, dos benefícios. Para que as
pessoas que precisam não deixem passar.

Perguntei à Joana, a agente de saúde daqui do prédio, maravilhosa, quem


são as pessoas das áreas de risco, porque elas têm vergonha, é muito
íntimo. Aí ela foi ver com outras agentes para começarmos a levantar os
nomes dos que estão no perrengue. A Amanda, produtora aqui da Vila,
está articulada com esses movimentos de cesta básica e está trabalhando
no Galpão ZL, ajudando na distribuição pela Fundação Tide Setubal para
as famílias das crianças que estão na creche, que fechou. A agente de
saúde falou de uma mãe com bebês gêmeos e um menininho maior.
Consegui uma cesta básica com a Amanda e deixei na casa dela.

Tem muito mais pessoas. Se vier cesta básica, massa. Se vier recurso
financeiro, as pessoas já sabem como agir, o que fazer, quem tem direito,
mas ninguém sabe quando vai sair. Essa é a principal dúvida. A gente
não está falando de necessidades agora?

Pessoas pobres não têm tempo para investimento. Aí fica o comerciante


sem poder melhorar as condições de preço, e a senhorinha que precisa
comprar, mas não está chegando dinheiro para que ela consiga pagar.
Minha amiga Andressa, para o comércio dela, conseguiu comprar gás na
distribuidora por R$ 85. As pessoas já entenderam que a R$ 150 não vai
rolar. A R$ 120 também não vai rolar. Vendeu tudo, não tem mais
nenhum botijão.

Ou se dá poder de compra para quem realmente precisa, tanto


comerciantes como consumidores, ou a fome na periferia vai ser muito
mais escancarada do que esperam. Não imaginam o que é. Não
entenderam ainda.

Minhas primas deram um salve para a gente começar a guardar as


reciclagens que a gente tem em casa para separar para uma senhorinha
que sempre pega aqui no prédio. Ela é idosa, precisa do dinheiro e só
vive disso. Para a gente separar e entregar para ela, que mora numa
travessa aqui na frente. É desse tipo de pessoa que a gente está falando.

https://piaui.folha.uol.com.br/o-gas-ou-comida/ 4/5
02/04/2020 O gás ou a comida

Você acha que essa pessoa não está só esperando alguém dizer pra ir lá
sacar esse dinheiro?

https://piaui.folha.uol.com.br/o-gas-ou-comida/ 5/5

Você também pode gostar