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EDGARD OLIVA
SALVADOR-BAHIA
2006
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A GRANDE ARCA DE JESUS A MATEUS:
FOTOGRAFIAS E INSTALAÇÃO.
UM ESTUDO DO IMAGINÁRIO DE PRESÉPIOS ATUAIS NA CHAPADA
DIAMANTINA
CDU: 7:398.1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Banca Examinadora:
Agradeço aqui o apoio de diversas pessoas e instituições para que o “encontro” com
esses presépios se realizasse. O investimento financeiro foi alto, assim como o investimento
em tempo de deslocamento até a região pretendida, sem falar no árduo trabalho de
garimpagem para que os objetivos se cumprissem. Os presépios ali encontrados são
verdadeiros tesouros da cultura popular e será necessário percorrer outros 5.936 quilômetros
para se ter um conhecimento mais amplo da sua fenomenologia.
Aos colaboradores diretos, como Alex Simões, Beatriz Franco, José Mário Peixoto,
Marta Luna e Janete Catharino, pela companhia, presença e participação em viagens de
campo. A Euler Oliva, pela importante contribuição no Design gráfico dos produtos desse
projeto; a Beto Oliveira da Objetiva Foto & Filme, pelos apoios concedidos. Ao mestre Pedro
e sua família – bairro do Uruguai – pela sua colaboração na coleta de material para
concretização da instalação.
Aos amigos e a todos aqueles que apoiaram direta e indiretamente as etapas até aqui
executadas, como Padre José Pinto, pela preciosa informação sobre a obra de Celso Oliva; a
Abel Kanaú, D. Mariana, Marco Aurélio e Vera Teixeira em Igatu, pelas gostosas dormidas
em seus lares; a Justino Marinho e Dra. Sandra Moreira, por facilitarem contatos na região; ao
Professor Edson Gonçalves, Aroldo, Iara e Alina Tavares, por colaborarem com a equipe
durante a terceira etapa da pesquisa no município de Bonito; ao Sr. Herculano Oliveira por ter
me conduzido a Sra. Lícia Maciel Neves que prestou rico depoimento sobre a cultura dos
presépios e ao Sr. Joaquim Coutinho, pela sensibilidade com a cultura popular, resgatando a
arte de fazer presépios na cidade de Andaraí, Chapada Diamantina; a Erivaldo Sales Nunes e
Milton Júlio, pela santa paciência em montar tão complexo projeto enviado ao Minc.
Às empresas Objetiva Foto filme, Minas Pneus e Pousada Rosa, em Rio De Contas,
pelos importantes apoios às viagens realizadas.
Ao Instituto Goethe Inter Nationes, na direção do Sr. Peter Anders pela realização da
primeira mostra fotográfica com este tema durante o IV Mercado Cultural, 2002.
O presente trabalho descreve uma poética que tem como tema principal a investigação dos
presépios atuais na Chapada Diamantina, Estado da Bahia, com ênfase nos processos de
criação desses cenários natalinos. Com uma abordagem sócio-compreensiva, o objeto foi
investigado com base na estética do visível, tendo como princípio o imaginário do sujeito para
a ação criadora a partir da investigação oral e dos elementos presentes nos presépios
estudados. Foram utilizadas para abordagens teóricas autores como Roland Barthes, Michel
Maffesoli, Luigi Pareyson e Ítalo Calvino, que tratam a ação criadora como o modus operandi
do sujeito. Foram empregadas as técnicas da fotografia e do vídeo, assim como entrevistas
diretas e aplicação de ficha de identificação para inventário do objeto, como instrumentos de
coleta das informações necessárias à compreensão da pesquisa. O processo criativo finalizado
ou configurado em fotografia e instalação ocorre a partir dos recortes fotográficos que foram
realizados enfocando elementos, ou conjuntos de composição, que extrapolam a estrutura
religiosa, sendo, contudo, reveladores de situações sociais e da crença inseridos no contexto
do imaginário no presépio. A partir desse princípio foi gerada a instalação todos os dias, na
qual se faz uma analogia entre as figuras “mutiladas” dos presépios com as crianças de rua
dos grandes centros urbanos, simbolizadas nos bonecos encontrados ‘abandonados’ em nossas
vias urbanas.
The Present work describes the poetics that investigate representations of the Nativity
scene nowadays at Chapada Diamantina, State of Bahia, emphasizing the process of making
these Christmas sceneries. With a social-comprehensive approach, the object was investigated
based on the aesthetics of the visible, coming to the imaginary of the subject to the creative
action from oral investigations and the current elements of the studied sceneries. Theoretical
approaches of authors such as Roland Barthes, Michel Maffesoli, Luigi Pareyson and Ítalo
Calvino were adopted, for the treatment of the creative action as the modus operandi of the
subject. Techniques of photography and video were used, as well as direct interviews and
identification forms for the inventory of the objects, as means of collecting the necessary data
for this research’s comprehension. The creative process concluded or configured in
photography and installation happens from the photographical cuts I realize, focusing
elements or composition wholes that surpass the religious structure, being, nevertheless,
revealers of social and creed backgrounds inserted in the scenery’s imaginary context. The
installation Todos os Dias was based on this principle, in which I make an analogy between
the “mutilated” figures used on Nativity sceneries and the children on the streets of the big
urban centers, symbolized by the abandoned dolls found on our city’s ways.
NOTA. Com exceção da ilustração 32 que é de autoria de Beatriz Franco, as demais foram realizadas
por mim durante as etapas que estive em campo para coleta de material.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 14
Estórias e motivações 14
História e motivos 18
Princípios e conexões 24
CONCLUSÃO 115
REFERÊNCIAS 118
ANEXOS: 122
APRESENTAÇÃO
Estórias e Motivações
1
Referente àquele(a) que monta presépios. Existe, também, a denominação de “belenista”, que diz
respeito à cidade de Belém de Nazaré, local onde nasceu o menino Jesus.
14
experiência pessoal, a partir do momento em que percebi no âmbito da minha família
correntes religiosas crentes na criação divina, bem como correntes de pensamento de
cunho ateísta ou questionador da doutrina da Igreja católica.
15
Nesta sala e montado sobre uma pequena mesa do tipo porta objetos (as duas vezes que
registrei o presépio ele estava sobre a referida mesa) que ela forrava com jornal e
pintava com pigmentos ou corantes artificiais, observei, também, que havia uma forma
particular de pintar o papel jornal que forrava seu presépio. A princípio, pensei que se
tratava de uma maneira própria de Idalícia enriquecer cromaticamente seu objeto
sagrado, porém, ao conhecer outros presépios naquele pequeno povoado, percebi que o
modus operandi se repetia, parecendo, em uma primeira impressão, ser um traçado
característico daquela localidade. O traçado, ou pincelada, é constituído de um tipo de
linhas interrompidas, normalmente com uma ou duas cores, o que, pela repetição do
estilo, levou-me a questionar sobre a possibilidade de estar ali uma forma de identidade
própria daqueles presépios. Somente em Igatu e mais recentemente em Andaraí,
município ao qual pertence Igatu, eu percebi esta maneira de pintar sobre os presépios e,
reitero aqui, a importância para esta característica entre os presépios daquela
microrregião, (ver ilustrações 26 e 27).
Sobre Idalícia, tenho outras imagens; tenho largas lembranças embora nossa
convivência tenha se dado por pouco tempo, limitada às minhas viagens turísticas a
Igatu. A minha pesquisa está fundamentada na estética desses objetos, exatamente e a
partir de um dos presépios de Idalícia. Esses objetos, de uma maneira geral, narram a
vida das pessoas que os montam, trazendo como pano de fundo o referencial do
nascimento do menino Jesus. Possuem, portanto, um forte conteúdo simbólico dos
cultos religiosos e do cotidiano de cada família, com referenciais no passado e na
história pessoal de cada um deles, autores dos presépios.
16
Já no ano de 2001, mais precisamente no mês de março, fui selecionado para o
curso de especialização, lato sensu, da Oficina Cinema-História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da UFBa, recorrendo a esta temática como meus
primeiros passos para melhor compreensão do objeto. Desenvolvi o projeto de pesquisa
com o título Persistências e Sobrevivências dos Presépios: a estética da cultura
popular nas sociedades da Chapada Diamantina, cujo Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) seguiu por uma linha teórica abordando a problemática social e política
nas comunidades mais carentes, a partir do observado em campo, das entrevistas diretas
documentadas em ficha própria e da análise das imagens obtidas. Na referida pós-
graduação, e no processo por uma melhor compreensão dessa estética popular,
“encontrei-me” com Roland Barthes (1915-1980), e em um de seus livros, o clássico A
Câmera Clara (1984), no qual li a seguinte definição para a imagem fotográfica: “Em
primeiro tempo, a Fotografia, para surpreender, fotografa o notável; mas logo, por uma
inversão conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa” (BARTHES, 1984,
p.57). Foi justamente isto o que ocorreu: fotografei os primeiros presépios com
determinado objetivo, mas por uma percepção do que poderia estar além daquelas
imagens, “decretei” o objeto “notável” para que eu pudesse ir além da imagem
fotográfica. A partir daí, questionei o modus operandi daquelas construções além da
presença de tantos elementos estranhos ao plano da representação religiosa mais
tradicional, como a grande quantidade de bonecos plásticos e outros pequenos
brinquedos ali presentes. Completava esta minha curiosidade a presença das ampolas de
medicamentos. Também a maneira especial como são pintados os papéis que fazem a
forração dos presépios, a presença de conchas de moluscos somente encontrados na
costa oceânica, etc. Para mim, aqueles objetos se constituíam em algo novo, expressivo
e significativo; mereciam, portanto, um desdobramento e uma leitura mais profunda a
respeito de sua estrutura e criação a partir dos instrumentos fornecidos por aquela gente,
seus objetos e suas falas. Mereceram atenção especial para que esta pesquisa pudesse
mostrar as múltiplas formas da diversidade cultural do nosso povo, de uma gente
sofredora e de grande capacidade criativa. Para tanto, realizei entrevistas tomando
depoimentos em audiovisual para que ficassem registrados, para a história dessas
populações e para um futuro banco de dados, os referenciais de uma cultura com
identidade própria da gente do Nordeste brasileiro, com seu jeito simples de viver,
potencialmente criativo.
17
Ao dar prosseguimento às minhas investigações, fui percebendo que vários
elementos “exóticos” são introduzidos nas construções desses presépios, o que ratifica
essa identidade própria, possibilitando, a partir daí, o exercício da criatividade através
da representação nos cenários e da narrativa pessoal a partir do imaginário.
História e motivos
2
Zenilda Pina é diretora e professora de escola de Primeiro Grau na cidade de Palmeiras. Atua, também,
como pesquisadora sobre a região da Chapada Diamantina, mais especificamente sobre o município de
Palmeiras. Está no prelo o livro de sua autoria Encontro com a Villa Bella das Palmeiras, cujo conteúdo
se refere à fundação e à história da cidade e aos costumes locais.
18
fundação de Palmeiras, município localizado na Chapada Diamantina. Neste livro, a
professora Zenilda Pina relata as conquistas das terras pelos garimpeiros e posseiros,
bem como as brigas políticas entre as famílias em disputa pelas terras férteis daquela
região, à época das primeiras descobertas das lavras de pedras preciosas.
A Professora Zenilda Pina relata, ainda, as entradas por terras indígenas para a
exploração das lavras, as quais vieram a se tornar, mais tarde, áreas de garimpo. Relata,
ainda, a migração e o desaparecimento dos índios, citando, também, as inscrições
rupestres que os aborígines deixaram como registro da passagem por aquelas terras.
Segundo ela, viveram ali, até a chegada dos portugueses, os tapuias, que habitaram as
serras das Pulgas e Cariri.
19
(1975), no qual o autor narra com doses de realismo o cotidiano da vida do garimpo
nestes locais, que por vezes parecem ser inóspitos. Sua gente, seus costumes, os
excessos depois de bamburrar3, o conforto das minorias e a expectativa por mais uma
boa lavagem do cascalho na terra já conquistada e removida, levaram a batalhas e
sacrifícios de vidas. Vejamos um dos trechos em que o autor relata uma das passagens:
Com os cabarés cheios de gente dia e noite, com tropas entrando com
grandes carregamentos de mercadorias e a caixeirada suando no
balcão sem respeitar domingo nem feriado, porque volta e meia
estava um garimpeiro bamburrando e procurando em que gastar o
dinheiro, de tal sorte que tudo isso compunha aos olhos deles a
imagem de um mundo que atordoava pela exuberância, atraindo-os
como uma voragem (SALES, 1975, p.170-1).
3
Conseguir coletar uma boa quantidade de diamantes ou encontrar uma pedra de bom tamanho e
excelente qualidade.
20
mundo. Em um outro texto de Herberto Sales, o autor cita um bairro de Xique-Xique,
hoje vila de Igatu, no qual se nota a passagem histórica do homem a partir das ruínas ali
existentes, revelando ao visitante que houve vida social intensa no passado. Vejamos:
4
Citação atribuída a SALES (sem data), impressa em placa acrílica na Galeria Arte e Memória, Igatu,
Bahia.
5
Insiro o termo arca no sentido de o presépio ser um grande depósito da memória coletiva. Esta arca
transporta, através dos anos, o memorial da família, propiciando, com isso, a preservação do modus
vivendi da comunidade.
21
Ilustração 1. Mapa geográfico demarcando os municípios investigados a partir do ano de
2000, destacando a viagem de 2004/05 especialmente para coleta de dados desta pesquisa.
22
Ilustração 2. Mapa rodoviário de todas as etapas realizadas, destacando a etapa 2004/05
para fins de coleta desta pesquisa.
23
Princípios e conexões
Para dar conta deste objeto tão complexo utilizei-me de procedimentos tais como
a observação direta do objeto no seu lócus de origem, ao tempo em que realizei
documentação fotográfica e em vídeo digital. Posteriormente, as imagens capturadas
ficaram como uma referência imagética para a pesquisa prático-teórica. Para dar
embasamento teórico e buscar uma compreensão do objeto a partir do que ele oferece ao
olhar, foi estabelecida a conexão com autores e pesquisadores através de um referencial
bibliográfico, cuja abordagem nos processos criativos fez-me compreender as ações do
homem “criador” como parte do seu processo de vida, baseado na crença no divino.
24
grande possibilidade de abertura para a pesquisa no âmbito da criação plástica a partir
do observado.
6
Barthes define o studium como um primeiro elemento da fotografia, e o punctum como o segundo.
25
eu ainda não conhecia a obra de Roland Barthes. Portanto, a minha percepção foi
meramente intuitiva levando-me a um desejo imenso de conhecer melhor aquela
fenomenologia.
26
talvez pré-estabelecida – para a construção de um presépio no interior de uma caixa a
qual eu transportava como se fosse um cenário mambembe, opõe-se a uma sistemática
para o livre-arbítrio da criação. Segundo Pareyson (1993), “trata-se de fazer, sem que o
modo de fazer esteja de antemão determinado e imposto, de modo que bastaria aplicá-lo
para fazer bem” (PAREYSON, 1993, p. 59). Contudo, minha pequena interferência
levando até o sujeito o ‘espaço para construir presépio’, como disse acima – uma
demonstração da criação – tornou-se necessário para a observação da ação criadora,
dada a impossibilidade de minha presença e coabitação em data oportuna à montagem
do cenário principal na região pesquisada. A utilização dessa “metodologia” permitiu o
registro e a captura de imagens do momento da criação. Os registros fotográficos
obtidos foram mostrados na exposição realizada na Galeria Cañizares, EBA/UFBA
como resultado do material coletado. Para essas imagens denominei o espaço expositivo
como o espaço 2, ou ‘sala dos relicários’.
27
Nos capítulos seguintes, traço uma abordagem do objeto como sujeito
pertencente e identificado com a cultura popular. No capítulo II, a partir da observação
direta do objeto em estudo, das imagens capturadas e entrevistas concedidas, faço
leituras a partir do modus operandi do sujeito autor dos presépios, investigando quais os
motivos que o levam a uma dedicação especial a este ícone/símbolo da religião.
Ainda no capítulo II, realizo um inventário dos presépios com uma abordagem
em seu conteúdo imagético no qual estabeleço um diálogo entre o objeto e sua matéria
presente – a representação física do objeto – e o signo, como conteúdo deste. Também
faço observações do presépio quanto ao seu aspecto morfológico, notando que há uma
variação de formatos, materiais utilizados e ‘estilos’, que identificam regiões, criando,
com isto, traços comuns entre as comunidades mais próximas. No mesmo capítulo
trago considerações às personagens Catita e Mateus, personagens significativamente
presentes nos presépios da Chapada Diamantina, fato que no contexto do presépio é
analisado a partir dos depoimentos obtidos. Pude perceber a importância desses duplos
como elementos de grande valor simbólico no contexto da cultura popular, incluindo os
presépios, através das diversas narrativas que ouvi e que foram gravadas. Assim,
estende-se às comunidades formadas, partindo do princípio da herança cultural como
efeito transferidor das manifestações, ou seja, a manutenção da diversidade cultural
através dos séculos. Le Goff (1988) define as heranças culturais como “documentos
que testemunham esses sentimentos”. Portanto, insere o elemento cultural sob forma
icônica da representação, registro do tempo.
28
formatividade, conclui-se que a obra se forma à medida que o fazer se constitui uma
ação criadora, sem seguir regras, mas respeitando as regras que se formam no percurso
da construção da obra. Dupront (1988) define a construção dos signos humanos como
uma linha, um processo evolutivo do próprio homem, em seu tempo e espaço, que deixa
rastros para serem analisados. É o próprio homem decifrando sua escrita para
compreensão de si mesmo, numa cartografia antropológica.
No capítulo III, discorro sobre minha abordagem para chegar até o objeto da
pesquisa, com a investigação in loco em cada município no qual efetivei minha ida
objetivando a coleta de material. Aqui, o presépio é analisado como uma grande ‘arca’,
estrutura que guarda coisas e lembranças do passado. Para finalizar o capítulo III, traço
considerações a partir do observado por mim sobre o imaginário de Catita e Mateus,
personagens significativos no contexto da cultura popular, utilizando-me de referenciais
bibliográficos existentes. A presença marcante desses duplos nos folguedos populares
do norte e nordeste brasileiro como o reisado e o bumba-meu-boi levou pesquisadores
como Barroso (1996) e Cascudo (1984), este sustentado pelas pesquisas de Brandão
(1953), a pesquisarem sobre a origem das personagens, que são frutos da importação
das danças européias e da cultura afro-oriental trazidas para o Brasil através dos
portugueses. Fecho o capítulo citando Rodrigues (1997) sobre a importância da
continuidade das manifestações populares, especialmente no interior do Brasil, onde se
pode encontrar em diversas localidades uma preocupação em manter essas tradições
como forma de preservar uma cultura que teve sua origem em diferentes países e que
aqui encontrou um alimento que a mantém viva: o povo.
29
CAPÍTULO I
Para o meu processo criativo, parti do seguinte principio: ver, ler e criar.
Ver
Sim, o efeito violento do signo, foi o que senti ao entrar em contato pela
primeira vez com as iconografias que “ornamentavam” os primeiros presépios visitados
por mim na Chapada Diamantina. Em busca de uma resposta para a abrangência do
tema e o impacto visual que aquelas imagens provocam, segui uma forte intuição:
“persegui-las”, com o objetivo de que os signos ali presentes ficassem mais claros para
mim diante da representação da natividade, perante o possível significado de um
“retrato” da realidade social com a qual a maioria das pessoas que montam os presépios
convive.
31
diversificação de elementos decorativos e valores simbólicos. Contudo, houve uma
‘revelação’ e um questionamento imediato da minha parte quando passei a percebê-los
com um outro olhar, que me dirigiu para indagar sobre o que aquele conjunto de
elementos imagéticos poderia significar para mim e para eles – quem monta – e para
todos nós, os visitantes. Essas imagens se mostraram para além do que eu poderia
compreender naquele primeiro instante. Posteriormente, pude perceber o quanto são
ricas no contexto social e psicológico para uma abordagem estética, sociológica e
compreensiva. Segundo Roland Barthes (1915-1980), “a foto se torna ‘surpreendente’ a
partir do momento em que não se sabe por que ela foi tirada” (BARTHES, 1984, p. 57).
A partir desta passagem, encontrei em Barthes o ponto, ou punctum, inicial de algo que
estava por vir. E, inspirado no princípio barthesiano, adotei os presépios daquela região
do Estado da Bahia como o meu objeto de investigação para esta pesquisa.
1
Tendência a considerar todos os seres da natureza dotados de vida e capazes de agir conforme uma
finalidade (apud Buarque de Holanda).
32
ou em forma de ondas eletromagnéticas, registrando todos os detalhes do cosmo, da
vida, da natureza que nos cerca, dos homens, das cidades, das nossas casas, do nosso
mundo pessoal, da visibilidade da alma vista pela subjetividade da imagem; a cena
congelada.
Ler
A partir dessa percepção, passei a questionar-me por que dirigia meu olhar para
a iconografia dramática dos presépios. Ao redor de nós, aqui no planeta, há milhões de
situações invisíveis/visíveis que para mim representam uma realidade transportada para
33
esses cenários do nascimento. Convivemos no dia-a-dia com situações paradoxais ao
mesmo tempo que não sabemos lidar com elas para que possamos eliminá-las, ou, na
melhor das hipóteses, suavizá-las para quem as vive.
Criar
34
futuro da humanidade. Conhecer o mundo em seus diversos aspectos tornará mais fácil
o entendimento entre os povos. Será uma espécie de ‘globalização cultural’ preservando
o bem de cada comunidade. Produzir e ler imagens tornará o homem mais sábio, pois a
partir delas, alimentar-se-á o imaginário para a produção artística. O ato criativo implica
em procedimentos tais como imaginar, dobrar, cortar, colar, pregar, ampliar, olhar além
dos limites, ser coadjuvante, interpretar, representar, coabitar, participar, até manipular,
tocar, trocar, beijar – meu amigo e colega ZM beija paredes, postes e muradas em pleno
ato criativo. Vejamos.
Laboratório 1
35
Diamantina – sobre o sujeito que o instala e seu universo social? 3. Sob qual formato
deveria expressar o processo do meu olhar “documentarista” e artístico? 4. Quais as
imagens que eu deveria selecionar para a exposição e para a análise do projeto teórico?
5. Deveria fazer uma instalação que remetesse diretamente ao objeto da minha pesquisa
aliando ao memorial do processo teórico prático? E qual deveria ser o formato da
exposição? No processo prático, houve um longo caminho a ser garimpado, até que os
procedimentos se definiram.
2
A proposta do reciclado como aproveitamento de material para construção do novo é de grande interesse
da minha parte, pois, como os montadores de presépios, eu costumo guardar objetos que podem ser
reutilizadas posteriormente em algum momento do ato criativo. Neste caso, pensei nos papéis de filtro
para café que guardo há muito tempo. Em algumas casas que visitei, percebi que são muito utilizados
sobras de papéis de presente, de embrulhar produtos em geral e todo tipo de material que se pode
aproveitar no processo de construção do cenário natalino.
36
“mutações”, buscava uma relação com os símbolos sociais e religiosos da população
daquela região e por isso procurei encontrar no diálogo com o objeto a evolução e
construção do meu plano (ver ilustrações 3, 4, 5 e 6).
37
Ilustração 4. Evolução dos estudos.
Ilustração 5. Estudos para objetos. Visão frontal e lateral das peças para compor a instalação.
38
Ilustração 6. Estudo final para composição da instalação. Sala 3 da Galeria Cañizares, Escola
de Belas Artes, UFBa.
39
Ilustração 7. Planta baixa da Galeria Cañizares mostrando plano de montagem para exposição
das obras. Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.
Exposição: novembro-dezembro de 2005.
40
Com uma abordagem para o processo da criação, Luigi Pareyson (1918-1991)
deixa claro que a liberdade do criar está exatamente em construir sem o pré-estabelecer
um modus operandi do projeto a partir de regras estabelecidas, o que limitaria e, até,
prejudicaria o ato criativo para a obra em curso. O autor esclarece o pressuposto acima,
com as seguintes palavras:
A partir do exposto, faço uma relação com o objeto da minha pesquisa, na qual
observo as “mutações” que os presépios sofrem a cada ano que os revejo. Em alguns
casos, como na vila de Igatu, localidade que costumo passar com mais freqüência,
percebo, constantemente, as modificações ‘naturais’ no objeto. Estas modificações são
notadas em outros presépios revisitados, nos quais pude observar “alterações” na
estrutura do desenho cenográfico, sem comprometer, contudo, a estrutura original do
ponto de vista do motivo principal, o nascimento. Isto nos dá indícios da mutabilidade
do processo criativo e de que o modus operandi dá-se no instante da criação. Também, e
através dos depoimentos de seus autores, que dão pistas, através da narrativa ou de
algum flashback sobre o objeto do ano anterior, é notório que essas modificações são
realizadas de ano para ano, montagem a montagem. Percebo tanto na estrutura
cenográfica quanto no devir da “formatividade” que essas mudanças são necessárias a
cada nova construção, havendo, dessa maneira, uma renovação do conteúdo
cenográfico. Portanto, percebe-se que o autor do objeto não seguiu regras pré-
estabelecidas, e que não há fórmulas a seguir, e que ali está o mais puro e significativo
sentido da criação na sua arte. Com isso, ‘ele’, o construtor do presépio, atua,
intuitivamente, no âmbito da teoria da formatividade, revelando que “a operação é
41
formativa na medida em que da obra resultante se pode afirmar que está bem feita não
enquanto ‘obedeceu a regras’ mas enquanto é um ‘sucesso’, um ‘êxito’, ou seja, quando
descobriu as próprias regras ao invés de aplicar regras prefixadas” (PAREYSON, 1993,
p. 60). A obra concluída, ou não, deverá atingir o seu propósito: revelar-se a seu leitor
como “texto” possível de interpretações de uma estética pessoal, social ou fractal no
sentido macro no âmbito das sociedades contemporâneas.
Portanto, no ato de criar está implícito o ato do fazer, da tekné3, que conclui a obra
em sua formatividade, ou seja, permite ao idealizador que a partir do seu imaginário,
inicie a construção e concretização daquilo proposto. Somente o ato do fazer permite o
experimentar, uma regra natural para as experiências do devir humano. E neste sentido,
Pareyson (1993) nos dá uma direção para o ato formativo:
Sendo assim, tem-se uma completa relação entre obra e artista, ou seja, a
natureza do ato criativo favorecendo a criação (o insight), desvinculando-se das regras
canônicas como as pertencentes ao mundo original. Portanto, o artista cria e executa em
pleno momento de interpelação entre si e o objeto – diálogo –, entre as coisas que dão
3
“A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego tékhne, ‘técnica’, significando ‘toda
atividade humana submetida a regras em vista da fabricação de alguma coisa” (Cf. CHAUI, 2003, p. 275).
42
forma ao objeto, ou aos objetos, e sobre a natureza dessas coisas que transitam em
liberdade entre o plano material, existencial, e o plano imaginário do criador.
Laboratório 2
Através do meu olhar e dos recortes fotográficos que realizo, procurei trazer à
visibilidade aquilo que está “invisível” na cena. É sair da condição do óbvio em busca
de um possível significado do que representa o cenário do Natal no processo criativo e
pertencente ao imaginário do indivíduo. Além disso, percebo, através das observações
diretas dos cenários e nas imagens por mim registradas, que há entre os elementos
simbólicos e os não simbólicos à religião, uma interface que denota a realidade social
no contexto da religiosidade popular, fato significante e que expressa a face dos
esquecidos. Com BARTHES (1980), que define esta percepção como um sentido, fica
mais claro entender, à parte da estética visível, o que eu poderia interpretar a partir do
conjunto imagético apresentado ao meu olhar. Segundo Barthes (1980) este sentido,
43
simultaneamente teimoso e fugidio, proponho chamá-lo de sentido
obtuso. [...] parece-me que o terceiro sentido abre o campo do sentido
totalmente, isto é, infinitamente; admito até que este terceiro sentido
tenha uma conotação pejorativa: o sentido obtuso parece desdobrar
suas asas fora da cultura, do saber, da informação; analiticamente,
tem algo de irrisório; porque leva ao infinito da linguagem, poderá
parecer limitado à observação da razão analítica; pertence a classe
dos trocadilhos, das pilhérias, das despesas inúteis; indiferente às
categorias morais ou estéticas (o trivial, o fútil, o postiço e o
pastiche), enquadra-se na categoria do carnaval. O obtuso convém,
pois, perfeitamente (BARTHES, 1980, p. 47 – 8).
A partir deste princípio, percebe-se que o presépio não contém, apenas, uma
simples bricolagem. Ultrapassa, pois, fronteiras do óbvio ou “à sua significação plena
no sentido óbvio da imagem” (idi., 1980, p. 49); está além da instauração do cenário,
como forma, com uma significância plena do objeto. No presente, podemos perceber
através das imagens o que foi o passado; ainda, o que as torna tão significativas no
contexto da representação e como signos da cultura de massa. Portanto, as fotografias
que realizo no processo da criação dessas imagens na fonte desta pesquisa enquadram-
se no conceito do obtuso, pois, a partir da narrativa fotográfica que venho
desenvolvendo, interessa-me, sim, a captura do fator “oculto” para construção e
elaboração da minha expressão artística, a qual o objeto me permite.
44
as entrevistas diretas e para áudio. Neste caso, os objetos, as caixas contendo bonecos
encontrados nas ruas da cidade do Salvador e que apresentei na exposição são
memoriais e significados da ‘vida nossa de cada dia’, enquanto história de passageiros
urbanos em um mundo complexo, como o das grandes metrópoles, sobretudo em nossa
própria sociedade e no contexto delas.
45
Ilustração 8 Ilustração 9
Ilustração 10
46
Ilustração 11
47
bonecos novos por bonecos velhos encontrados nas calçadas e amontoados de lixos,
através da colaboração de conhecidos. Analisando-os sob a ótica do social, no meu
discurso estético os bonecos passam para uma categoria do símbolo, ou seja,
ressignificam o objeto e a minha criação no contexto social. Assim é minha leitura;
assim os bonecos quebrados encontrados nos presépios da Chapada Diamantina me
sensibilizaram, direcionando o meu processo criativo para uma abordagem sócio-
compreensiva.
Um convite à criação
4
Parafraseando Roland Barthes.
5
A oficina do operário carpinteiro está temporariamente localizada na Cidade Baixa e ao pé da ladeira do
Taboão, mais precisamente nas instalações físicas da antiga loja O Ospiton.
48
metal ouro, adotado pelo homem desde épocas mais remotas, como símbolo do poder,
embutindo nele os valores para a riqueza, religião, hierarquia, etc., significados que
continuam até a atualidade. Em seguida, foi estudado, no processo do laboratório 2, o
que deveria ser utilizado em campo como instrumento para coleta de material, ou seja,
foi testado o caixote de madeira em formato de nicho. Este instrumento se tornaria uma
nova experiência para o processo criativo no âmbito da execução dos presépios, para
aquelas pessoas que montam os presépios, concomitantemente se tornando, para esta
pesquisa, uma metodologia aplicada à coleta de material. Outro objetivo pretendido foi
realizar novo ato criativo para o cenário de Natal, pois os indivíduos selecionados já
tinham construído no calendário por eles estipulado, não me permitindo, assim, uma
proximidade com o objeto no momento exato da criação. Tive a necessidade de que um
ato de criação fosse registrado durante o momento de sua execução como parte de um
processo colaborativo.
49
aquela pessoa para execução do pequeno presépio. Não houve uma escolha por idade ou
sexo, mas pela disposição do cidadão em realizar a proposta, se percebida por mim. O
tempo em hora/trabalho para execução e permanência em determinada localidade
também foi uma condição adotada, já que não haveria possibilidade de solicitar que
todos realizassem tal ação.
A partir dessa seleção criteriosa para colher amostras nas localidades em que me
encontrava, procurei perceber o indivíduo como potencial criativo para montar seu
pequeno objeto a partir dos elementos fornecidos por mim.
Entre as pessoas que praticaram essa experiência da “troca”, pude perceber parte
do processo criativo do indivíduo, apesar de terem utilizado alguns elementos
fornecidos por mim. Quanto a esses elementos e especialmente os bonecos que atuam
como representantes humanos são róseo-claros, além da cor marrom e preta,
50
simbolizando as diversas etnias conhecidas entre a nossa população, especialmente a do
sertão nordestino. Todos os brinquedos eu adquiri em lojas de Salvador, tendo o
cuidado de escolher objetos similares aos que eu já havia encontrado nos presépios
daquela região.
A partir da experiência citada acima percebi o diálogo entre obra e o seu mentor,
ou seja, a prática e o exercício da criação sem importar-se com as regras estabelecidas,
como no modelo original, ou seja, o modelo padrão da religião. Nota-se claramente na
concepção desses presépios que há uma maneira própria de criar e que esta maneira
revela uma identidade particular da criação. A improvisação, não somente para o
momento da oficina realizada, conduz a uma estética pessoal pertinente ao devir, o devir
do imaginário e das fantasias de cada indivíduo. Neste processo criativo, podem-se
51
encontrar os diversos caminhos da natureza humana, as diversas expressões através de
uma arte bruta e que releva ao mundo a função da obra de arte que, se não perdida em
seu tempo, é resgatada de um tempo perdido. É tempo de revelar, de repensar, pois que,
se a arte serve de alerta, da mesma forma a vida pode sucumbir quando desrespeitada.
52
Ilustração 12
Manuseio do espaço para construir presépio por Edna P. de Oliveira.
Guiné/Mucugê - Bahia, janeiro de 2005.
Ilustração 13
Antonia Pereira dos Santos e menina na montagem do pequeno cenário
Utinga – Bahia, dezembro de 2004.
53
Ilustração 14
Crianças confeccionam pequeno presépio em nicho de madeira.
Utinga – Bahia, dezembro de 2004.
Ilustração 15
Final da criação do presépio em nicho de madeira.
Guiné/Mucugê – Bahia, janeiro de 2005.
54
Ilustração 16
D. Aurenive confecciona presépio em nicho de madeira.
João Correia/Mucugê - Bahia, dezembro de 2004.
Foi o contato direto com um mundo com que eu raramente pude estar presente
que me despertou para a realidade aquém da qual eu vivia. Raras vezes vivenciei
situações como esta, entretanto, isso ocorreu de forma espontânea quando decidi que
visitaria residências mais carentes no contexto social e à época das festividades
55
natalinas. A seleção das famílias que seriam abordadas se deu a partir do critério da
percepção do objeto no lócus da sua criação, ou seja, em residências de diversas
camadas sociais. Para tanto, essa seleção foi participativa, não excludente, alternando as
visitas entre residências pertencentes a indivíduos de camada social mais baixa, média e
média-alta, com predominância entre aqueles mais carentes socialmente. Com este
critério pude perceber em que maneiras, ou formatos, o objeto pôde me passar
sensações e informações.
Segundo BURKE (2000), que discorre sobre a história cultural dos povos, o
autor adota a teoria segundo a qual “não há concordância sobre o que constitui história
cultural, menos ainda sobre o que constitui cultura” (BURKE, 2000, p. 13). Afirma,
ainda, que a construção da história cultural “só pode ser definida em termos de nossa
própria história” (BURKE, 2000, p. 13). Reporto aqui que a história cultural se funde
com a memória cultural a partir do instante em que tratam da continuidade das tradições
nos grupos sociais. Para uma abordagem no contexto da criação percebe-se que a
construção dessa memória e/ou história cultural acompanha gerações, continuamente,
pelos indivíduos nas suas comunidades. Permanecem dessa forma, as imagens, no
imaginário coletivo do homem.
56
Em epígrafe do capítulo abordagens para o movimento criador, SALLES
(1998, p. 88) traz a seguinte citação de Focillon: tomando em sua mão algumas sobras
do mundo, o homem pode inventar um novo mundo que é todo dele. A arte começa pela
transmutação e continua pela metamorfose. É nesse sentido que interpelo e percebo as
transformações que os presépios engendram no contexto de uma leitura do imaginário
das comunidades visitadas. A partir dessa visibilidade pude criar, através da imagem
fotográfica e posteriormente utilizando-me da matéria bruta produzida pelo homem
contemporâneo, partindo do princípio da reciclagem de materiais pré-fabricados –
seriam, então, ready mades? –, objetos ou “janelas” fotográficas que remetem aos fatos
da atualidade, como por exemplo, “cenas” ou “quadros” que me fazem refletir sobre o
grau de violência no planeta. Na minha percepção, estas imagens realizadas por mim ou
os objetos construídos para compor a instalação todos os dias, constituem uma
narrativa, na qual me utilizo da minha criação plástica para “revelar” a problemática dos
grandes “degraus” sociais.
57
As raízes culturais levam o homem criador a buscar no seu lugar de origem os
elementos índices de sua formação cultural (saudade?) como se pode ler na expressão
“Terra, por mais distante, o errante navegante” no qual o autor Caetano Veloso faz
alusão à sua terra de origem, que em tempos de exílio ficara tão longínqua. Em outro
momento, Antonia Pereira dos Santos diz que “O céu de Bom Jesus da Lapa é o céu da
Terra”, (Utinga, Bahia, dez. de 2004), e Calvino (1990) transcreve Dante com a citação
“chove dentro da alta fantasia” trecho do título “Purgatório”. Comparando as três
citações como parte do processo criativo do homem, demonstra-se aí que o imaginário
é, sobretudo, carregado de fantasias. A “terra” ‘letrada’ e ‘forrada’ de musicalidade – a
partir da sua raiz cultural, matriz genética do artista, simbólica ao lugar da partida –,
transporta o compositor CaetanoVeloso para o seu lugar de origem, a “terra” natal,
quando estava no exílio em Londres. O céu da “Terra” que é igual ao de Bom Jesus da
Lapa, segundo a expressão verbal de Antonia P. dos Santos, tem conotação diferente,
mas não divergente. A terra-mãe, lugar de origem, nascimento e fé, símbolo/referência
da raiz biológica ou da origem divina está presente no imaginário de ambos. Para cada
um deles a Terra se manifesta visível a partir de desejos diferentes, contudo, encontra
similitudes no fato de ser a Terra elemento protetor, que faz parte do imaginário,
memorial, ponto inicial para a criação de ambos. Em Dante (apud Calvino, 1990),
podemos perceber que há uma síntese desse pensamento criador, pois a fantasia dá
“asas” à criação, fertiliza o imaginário.
Para compreender o trecho acima, faço uma analogia entre a “Terra” no presépio
e o desejo da ‘terra-mãe’, da saudade da casa materna, da manjedoura, das raízes
culturais, das quais ambos estão imbuídos. A fantasia é alimentadora para a poiesis e
para a construção do processo criativo a partir das imagens que emergem no contexto do
homem criador. Sobre o processo de criação e surgimento das imagens, Calvino (1990)
pontua que “podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte da
palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à
expressão verbal” (CALVINO, 1990, p. 99). Como se faz perceber, a “terra”, como
UNO revela-se, para ambos, de acordo com seu imaginário ou fantasia; faz parte da
memória e da história cultural de cada indivíduo.
Segundo Meira (2003), “Num país como o Brasil a relação entre as várias
realidades sociais forçosamente demanda uma visibilidade capaz de ser exercida
58
sensível, criadora e criticamente, a partir do local, da esfera íntima da vida coletiva das
comunidades” (MEIRA, 2003, p. 125). A partir desse raciocínio, no qual a iconografia
presente no objeto em estudo me faz observar uma estética da “esfera íntima da vida
coletiva das comunidades” (op. cit.), estabeleço, então, uma relação com a história que
pude escutar de alguns depoentes com relação à sua vida pessoal. Simultaneamente, o
punctum para cada recorte fotográfico a partir do meu olhar sobre o objeto leva-me a
associações para com a realidade das grandes metrópoles nas quais vivemos ou que
conhecemos.
59
Apontando nesta direção, Meira (2003) aborda com grande importância o ato de
se fotografar as coisas do cotidiano, como
60
Capítulo II
Herberto Sales
Interesso-me por esses objetos e pelo seu “entorno” e, como artista visual, venho
fotografando esses cenários de uma estética popular marcante.
62
O preparatório para cada etapa realizada deu-se com bastante empenho no
sentido de alcançar o máximo de municípios almejados, com o intuito de observar a
variedade e a singularidade dos presépios. Contatos com prefeituras locais para
obtenção de apoio foram feitos e algumas responderam positivamente, apoiando a
equipe de trabalho. No período de 2001, 2002 e 2003, viajaram comigo três
colaboradores, auxiliando-me na coleta de dados, porém, na etapa realizada para fins da
pesquisa de campo para esta dissertação viajei sozinho com o propósito de revisitar a
fonte em ambientes já vivenciados em períodos anteriores.
63
melhor percepção do objeto em estudo e de seus autores no processo da criação. Pude
perceber como se dá o princípio criativo destes objetos, já a partir da narrativa do
indivíduo, a qual me levou a compreender melhor o conteúdo do seu imaginário,
centrado na criação e elaboração do presépio baseado no mito da sua própria criação.
Projetam-se, dessa forma, os conhecimentos que são apreendidos através de gerações
ascendentes. Com isso, o cenário de natal adquire grande potencial imagético e
narrativo advindo da cultura familiar a partir do imaginário do sujeito. O presépio torna-
se, então, um cenário significativo da realidade do(a) cidadão(ã) que o criou,
observando que nele está, subjetiva e objetivamente presente, a fantasia que alimenta o
imaginário do Ser, exteriorizando-se no momento do ato da criação para aquilo a que
ele(a) se dedica com fé.
1
As personagens Catita e Mateus serão abordadas com mais relevância no capítulo III desta dissertação.
2
Termo referente a uma pequena gruta que tem recorrência na criação do presépio, e é utilizado por
muitos montadores do cenário do nascimento.
64
posteriormente narrar ao público estrangeiro àquela vivência, através da minha
fotografia, principal suporte de captura de material desta pesquisa. Será, ao longo de
todo o processo, um exercício do olhar além da figuração e de suas histórias. Na minha
concepção, volto a enfatizar aqui, os presépios são relatos pertinentes à vida de cada um
e, por que não, da vida como espelho das sociedades que a geram, que todos a
alimentam; dos sonhos a serem realizados, mas que se repetem no desejo de todos os
anos. Ademais, há cenas que parecem pedir socorro, pelas minorias, pelos
discriminados, e pelos excluídos. É este o foco da minha construção e
conseqüentemente da minha leitura visual.
3
Matéria orgânica oriunda das montanhas e encontrada sobre as rochas, os liquens, servem como forração
para os presépios, dando-lhes um aspecto natural da rocha; signos da natureza.
65
Não importa qual o tamanho do cômodo, se a sala ou se um pequeno quarto
propício à montagem. Os presépios estão lá, nos mais variados formatos – retangulares,
triangulares, circulares, mais horizontais, mais verticais; formatos que, em geral,
seguem a geometria do “canto” da casa que foi escolhido para acolher o presépio –,
podendo, portanto, fornecer ao visitante uma grande visibilidade, como um todo, diante
da diversidade de elementos ali presentes. Um outro detalhe observado é que estes
presépios estão sempre voltados para as janelas ou a porta da rua, sempre entreabertas
com o intuito de atrair o visitante. Torna-se assim uma arte pública pelo seu caráter de
visitação, exposta mesmo àqueles que estão apenas de passagem na comunidade.
Nas residências que visitei pude observar elementos que, na sua origem, não têm
uma função ou um compromisso com o sagrado, como por exemplo, lâmpadas
queimadas, brinquedos, maquetes de casas feitas com pau de picolé, ornamentações
com flores sintéticas, frascos de perfumes vazios; molduras de quadros e relógios
quebrados; brinquedos como carros, bonecos e signos da casa como saboneteiras,
garfos, pratos, colheres, pentes coloridos, prendedores de cabelos, panelas, fogão, etc.,
(ver ilustrações 19 e 20) que os diferencia dos elementos representantes da crença
católica como as iconografias de Maria e José (pais de Jesus), a manjedoura com o
menino Jesus, os três Reis Magos e os animais: boi, carneiro, galo, jumento, cachorro,
camelos, ou seja, os elementos “oficiais” para o cenário do nascimento. Ainda,
assemelha-se o cenário, ou sua geografia, aos desertos da parte oriental do planeta e que
nos remete à região da Palestina (ver ilustração 17). Portanto, na linha do presépio
popular, o que se percebe é uma grande liberdade para a ação criadora, o que, de certa
forma, leva seus mentores ao devir da criação, que resgata o passado e relata, no
presente, as histórias de cada um a partir de um imaginário sedutor. No caso dos objetos
inusitados ao contexto, pois não foram “produzidos” para o ato religioso, ou como algo
simbólico à religião, porém, naqueles cenários, assumem uma condição de sagrado,
como parte do ato criativo e do imaginário do sujeito.
66
coincidindo com a data festiva do Natal, como por exemplo, o arroz, o feijão, o milho, a
batata, etc.
Ilustração 17
Presépio tradicional de Telma M. de Quadro Costa.
Palmeiras – Bahia, janeiro de 2005.
Ilustração18
Presépio de Anita Oliveira Ramos.
Guiné, Mucugê – Bahia, janeiro de 2005.
67
Quanto às dimensões, variam em tamanhos e proporções, porém a maioria
possui medidas entre 100 cm largura x 120 cm altura x 90 cm de profundidade. Contêm
diversos planos que representam montanhas, ruas, grutas ou lapinhas, podendo, ainda,
conter maquetes de casas, igrejas, prédios escolares e outras “construções”, além de
adereços decorativos que os tornam iconograficamente ricos.
68
Ilustração 19
Presépio de D. Laura Pereira Sousa (in memoriam), ornamentado com grande
diversidade de materiais.
Andaraí - Bahia, janeiro de 2001.
Ilustração 20
Detalhe de presépio contendo contrastes de elementos.
Bonito - Bahia, dezembro de 2002.
69
Ilustração 21
Presépio de Aurenive Moreira Neves.
Mucugê – Bahia, janeiro de 2001.
70
estes agora “sacralizados”. Esse presépio é do tipo prateleira4, o que foge ao usual
quanto ao formato triangular e com suporte apoiado a partir do piso da casa. Há, ainda,
um suporte em tecido azul, localizado na sua parte superior e que representa o céu,
ornado com estrelas e anjos. Ver ilustração abaixo.
Ilustração 22
Detalhe do centro do presépio de Aurenive M. Neves, com as
figuras/elementos convergindo para o local onde está posicionado o Menino
Jesus. Observa-se, aí, a grande variedade de materiais utilizados. Dezembro de 2004.
4
Uma classificação adotada pelo autor, com base na diversificação e semelhanças entre presépios de
localidades próximas, situados na Chapada Diamantina.
71
No contexto da visibilidade, o cenário e a fantasia do sagrado
O sujeito criador quando monta seu presépio se aproxima, de uma maneira geral,
de certo ‘enredo’, para ‘narrar’ através de seus objetos a sua história de vida,
consubstancialmente enriquecida com a experiência e a convivência que a comunidade
na qual habita, favorece. Utiliza-se, para isso, de uma grande diversidade de materiais e
elementos naturais, sobre os quais o imaginativo de cada um vai construindo a história e
narrativa dos personagens presentes. Dessa maneira, cria-se o vínculo entre natureza
inanimada e natureza viva, do bem material e do bem espiritual, do real e do sonho, e,
em alguns casos, percebe-se certo “realismo” dentro do contexto da narrativa. Esta
narrativa está inserida dentro das tradições, a partir da herança cultural advinda de
gerações anteriores, daquilo que se acumulou na memória pessoal de cada um, ou seja,
dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida e do que se “trouxe” da memória dos
ascendentes.
5
CARVALHO, 1996, em sua dissertação de mestrado, cita a presença dessas bonecas de tecido e de cor
preta ou na cor branca, como representantes de dois personagens. Segundo a pesquisadora, “Catita e
Mateus são dois bonecos de tecido, geralmente um branco e outro preto ou os dois da mesma cor.
72
comumente é um casal de cor preta, podendo variar entre as duas cores, que atuam
como símbolos de uma cultura, ou melhor, de uma tradição e de uma questão
subliminar étnica e interétnica (ver ilustrações 23, 26 e 27). A presença constante desses
duplos fez-me questionar o que/quem representavam, e por que a presença deles se
repete como figuras de tamanha importância nos presépios. Sobre essas personagens,
questionei aos autores de presépios o porquê da presença daquele par de representantes
humanos nos cenários, e por que na maioria das vezes os bonecos são confeccionados
na cor negra. As explicações foram diversas, contudo, pode-se perceber que a inclusão
desses elementos remete a um caráter étnico. Em Reis de Congo, Barroso (1996), o
autor pesquisou folguedos populares, entre eles o grupo de reisado denominado Reis de
Congo, inventariando, nesse “tipo”6, a presença de
Percebe-se, a partir daí, que há uma verossimilhança dos fatos quanto à origem
das personagens como significados étnicos e quanto à sua função na cena do reisado e
do presépio. Porém, após analisar as entrevistas, constatei que as pessoas que montam
os presépios não guardam mais em suas memórias o motivo da presença, ou introdução,
do casal Catita e Mateus nos cenários, ou ainda, se possuem uma relação direta com os
folguedos populares, no caso das festividades do Natal com os grupos de reisados.
Portanto, não houve nenhuma referência oral dos depoentes de quando e por que estes
personagens passaram a fazer parte dos presépios.
Costuma predominar o casal de cores escuras.” Ainda, segundo CARVALHO, “no recôncavo da Bahia,
estes bonecos de pano eram confeccionados pelas filhas de escravas para oferecerem às sinhazinhas
menos abastadas que não podiam importar presentes da Europa à época do Natal” (CARVALHO,1996,
p.40). Observei que, em algumas localidades da Chapada Diamantina, esses bonecos de tecido ainda
persistem na tradição dos presépios como representantes de uma tradição.
6
Uma classificação utilizada pelo autor.
73
Transcrevo aqui neste subcapítulo quatro amostras de trechos referentes a
entrevistas nos quais os autores mencionam a presença do casal de bonecos. Assim, a
partir das falas de D. Alice Ferreira Braga, em Wagner, Bahia; D. Aurenive Moreira
Neves, em João Correia, distrito de Mucugê, Bahia e de D. Antônia Santana Silva em
Igatu, distrito de Andaraí, Bahia, percebe-se o quanto é importante, para essas pessoas, a
presença de tais personagens. Ver entrevistas completas em Anexos.
A partir do que fora colocado por D. Alice, pressupõe-se que o casal Catarina e
Brás7 tenha uma relação direta com a herança cultural africana, ou com as populações
de negros presentes no Brasil. Alice F. Braga possui tez de predominância branca,
entretanto não nega a herança da cultura e da etnia africana em seu presépio. Ainda, e a
partir do trecho da entrevista acima, faço a observação que há uma variação nominal
dos bonecos para Catarina e Brás, a princípio observada a partir da margem direita da
7
Trata-se do mesmo tipo de significado dos personagens Catita e Mateus.
74
estrada federal que corta a região, direção Centro-Oeste, fato que merece maiores
investigações. Em um outro momento encontro-me no outro lado da margem da estrada
que corta a Chapada Diamantina e ouço, mais uma vez, a expressão Catita e Mateus.
O diálogo com D. Aurenive sobre o casal Catita e Mateus se desenvolve com tal
desenvoltura entre a realidade misturada à ficção, que nos transporta ao plano do
imaginário como crença, evidenciado pela descrição detalhada da vida dos dois
personagens. Ela atribui ao casal de bonecos a formação de uma família com casa
mobiliada, carro para transporte dos bens materiais, a prática da cultura de subsistência
e até uma arma sobre um caminhão para a caça e a defesa. Pela primeira vez ouvi tal
história, que faz parte do imaginário pessoal daquela senhora e de cada criador de
presépio, que defini cada personagem pertencente à herança cultural daquela gente. D.
Aurenive monta seu presépio há mais de cinqüenta anos, e, naturalmente, vem
enriquecendo suas histórias com novos enredos que estão impregnados na memória da
autora, como a ‘vida’ e a permanência das personagens, em especial, Catita e Mateus
(ver ilustração 23).
75
Ilustração 23
Presépio de D. Aurenive Moreira Neves. Vê-se no canto inferior direito o casal de bonecos
que representa Catita e Mateus, além de relógios e objetos de cozinha materializando o lar do
lendário casal. Podemos ver, também, um plano geral do presépio.
João Correia/Mucugê - Bahia, dezembro de 2004.
76
assim, com as narrativas imagéticas e pessoais, tornando-se referenciais importantes no
contexto histórico dos grupos sociais.
A partir do exposto nota-se que esses presépios, por mais que estejam imbuídos
de elementos que não dizem respeito na sua origem ao significado religioso, estão
implicitamente sujeitos à crença e à herança das tradições populares. A partir dos
contatos que tive in locus para esta pesquisa, percebo, subjetiva e objetivamente, que
cada elemento introduzido traz na sua ‘alma’ um pouco do ‘espírito’ da casa e da
família que nela habita. Revela-se, por inteiro, ‘íntimo’ daquele ambiente, tornando-se
capaz de traduzir ao espectador os “indícios” de uma estrutura social vigente, da
psicologia individual e da fé de seus seguidores.
77
Ilustração 24
Detalhe de presépio com iconografia de Iemanjá e boneca “mutilada”.
Iraquara-Bahia, janeiro de 2003.
Ilustração 25
Detalhe de presépio com figura “mutilada”.
Campos São João, Palmeiras-Bahia, janeiro de 2005.
78
Continuando as entrevistas, é possível perceber na fala seguinte que há uma
migração da cultura entre os povos, e que as formas de representações chegam de fato
aos mais recônditos lugares. Entrevistando Antonia Santana Silva (Igatu/Andaraí), a
autora narra sobre a construção e motivos do seu presépio. Em certo momento, cita
Catita e Mateus.
– porque fica mais bonito, mais colorido, e, enfins, que a gente, eu acho assim, que se a
gente fazer só com as plantas num vai ficar mais bonito, né? Aí a gente coloca uns
brinquedinhos umas bonecas, eu tenho Catita, tenho Mateus, e aí pra ficar mais bonito.
Então perguntei:
79
Idalícia estão presentes na residência de Antonia, fazendo parte, hoje, do presépio de
sua herdeira.
Recordar Idalícia me faz sentir o perfume do delicioso café que ela fazia e servia
em canecos de metal. Sua casa, muito limpa, tinha o perfume das flores do campo. Sua
arte de fazer renda de bilros deixava admirado o mais leigo no assunto. Visitar o quintal
da casa de Idalícia era respirar um ar tão puro, era como atravessar do meio caótico do
cotidiano de nossas vidas para o encontro com a tranqüilidade. Aquele espaço tinha algo
de mágico, um divisor de sensações. Eu ficava admirando suas plantas, a organização
do quintal sempre florido e com a plantação de subsistência e árvores de frutas
saborosas, como a manga, por exemplo. Sua casa estava sempre pintada. O interior, as
paredes, com a cor azul, um azul cobalto, profundo, que tocava fundo em nossas
emoções. Na parte externa, ainda na cor do cimento, cinza. O imóvel se localiza na
passagem para a casa de amigos na qual eu me hospedava e através dos quais tomei
conhecimento dessa senhora humilde e cativante. Alguns finais de tarde ficávamos, eu e
meu companheiro de viagens à Chapada Diamantina, Alex Simões, ouvindo suas
estórias e vendo-a fazer rendas de bilros. A conversa rendia muitas estórias. Certa vez
consegui fixar em imagens estas cenas incomuns, imagens que são “envolvidas” por
uma luz azul de final do dia, de um tom de azul que eu defini como “o azul da Chapada
Diamantina”. Sim, percebo isso, na Chapada percebo que a luz se torna mais azul,
devido à altitude e à pureza do ar das montanhas.
Portanto, quando sua enteada, D. Antonia, me disse que “tinha uma velha que
era muito boa nisso, nessa história,...” imediatamente lembrei-me de Idalícia. Era ela,
sim, que sabia contar as mais belas histórias de Catita e Mateus, quiçá de Igatu, a velha
vila dos garimpeiros, no rico passado de Xique-Xique, hoje, para os novos visitantes,
80
simplesmente Igatu. Eles não conhecerão “Idalice”, suas estórias, seu delicioso café, seu
pé de manga, suas mãos fazendo rendas de bilros, o cão e as galinhas com os quais ela
conversava, dando-lhes até nomes próprios, inclusive às aves – que pareciam mesmo
atendê-la –; tinha mais de 80 anos de vida e certo dia, quando eu chegava para visitá-la,
estava ela com uma cobra morta dentro de casa, uma coral venenosa, que ela mesma
havia golpeado até matar. Segundo ela, o animal peçonhento habitava a casa já há
alguns dias, pois percebera atitudes estranhas nos animais domésticos, até que viu o
réptil se rastejando pelo centro da casa, quando não pensou duas vezes e o golpeou com
uma vassoura.
Idalícia não podia andar direito, tinha seus pés deformados pelas andanças no
garimpo. Contava que de tanto correr atrás de seu primeiro marido (que segundo ela
ficou louco e atirava pedras nas pessoas), necessitava segurá-lo, de forma que, com
tanta luta para dominar os impulsos do homem, quebrou várias vezes os dedos dos pés.
Estes eram tortos como pregos que resistiam a perfurar as paredes, e por isso se
curvaram para todos os lados. Mal calçava um par de sandálias; mesmo assim, a
presenteei com um par de havaianas® e mais alguns provimentos de alimentação.
Quando retornei a Igatu, ainda em 2002, fiquei sabendo da sua morte. Nunca
visitei o seu túmulo. A antiga casa ainda é o meu referencial de passagem e lembranças.
O seu tom de voz, rouco, ainda posso “ouvir” à minha proximidade; o seu tom de pele,
de uma cor preta, marrom escura, reluzia ao sol e as cicatrizes do tempo do garimpo
impressos na sua tez ainda são vivas nas minhas lembranças. Na sua antiga moradia
vive João, filho de Antonia e que cuidou da anciã até seus últimos momentos. O jovem,
já casado e pai de um filho, constitui uma nova família que habita a casa de paredes
azuis, dantes ocupada por uma velha preta, de pés tortos e contadora de estórias. Com
ela, se foi uma parte da história de Igatu. Com a família de João, começa uma nova
história para aquele espaço.
81
do Nordeste, herança de uma gente importada para trabalhar duro nas terras do novo
mundo. A princípio sem importância para os nobres da colônia de Portugal, hoje faz
parte de uma herança cultural em conseqüência da mistura de raças que aqui chegaram e
com elas as tradições de suas terras de origem. Uma herança que está ameaçada e se
dilui no espaço e no tempo, perdendo seu valor enquanto história cultural e memória de
um povo. Para as novas formas de cultura de massa, entre os jovens, registram-se as
narrativas eletrônicas. Contudo, Catita, também conhecida como Catirina ou Catarina e
Mateus, ou Brás, ainda estão presentes nos folguedos de Reis, estejam eles no Ceará, na
Bahia, em Pernambuco, nas Alagoas, Sergipe ou outro sítio geográfico do nosso país.
Serão eles, sempre, figuras marcantes do imaginário local, brincantes da tradição do
bumba-meu-boi ou do reisado, presentes na cultura popular brasileira. Nas ilustrações a
seguir detalhe do presépio de Antonia Santana, Igatu, mostrando o casal Catita e
Mateus, e o ambiente de Idalícia com a presença no presépio do referido par de
bonecos.
Ilustração 26
Presépio de Antonia Santana. Vê-se, ao
centro, o casal Catita e Mateus. Nota-se,
também, o estilo da pintura sobre a forração
do presépio.
Igatu/Andaraí - Bahia, janeiro de 2001.
82
Ilustração 27
Presépio de Idalícia dos Santos, montado sobre um pequeno móvel e
forrado com papel jornal, que é pintado com tracejados em um azul
semelhante ao da parede. Abaixo e no lado inferior direito, vê-se a
presença do casal Catita e Mateus. Ambos confeccionados em tecido.
Igatu/Andaraí - Bahia, janeiro de 1999.
83
historiador das mentalidades” (LE GOFF, 1988, p.76). Na formação do inventário, Le
Goff revela a importância da ‘captura’ do que vem a chamar, mais adiante, de
“documentos que testemunham esses sentimentos”, e que estão escritos nas mais
diferentes linguagens. Para o estudo do presépio, tridimensional por natureza, que
apresenta grande diversidade de elementos em sua elaboração, fiz uso dos instrumentos
da fotografia, do vídeo e de entrevistas gravadas em áudio como forma de captura
desses “documentos de revelação”, que se constituirão no seu inventário.
84
elaborado, que havia uma composição onde repercutia o tema da violência vigente no
planeta, inconscientemente arquivada na memória do cidadão e que ali se fez
representar (ver ilustração 28).
Ilustração 28
Detalhe de presépio contendo elementos decorativos, entre eles parte de uma arma de
brinquedo.
Iramaia - Bahia, dezembro de 2001.
85
gestos de solidariedade para com a convivência coletiva e que motiva essas pessoas a
continuarem vivendo em seu nicho social.
8
Grifo do autor.
86
É exatamente a partir desse decifrar confissões e testemunhos que os
sentimentos das pessoas emergem nos presépios. Cada peça colocada e disposta no
arranjo final tem seu grau de significância. Cada vegetal associado ao sujeito
pertencente ao nascimento tem sua importância para a genética cultural do objeto em
estudo. Cada boneco “amputado” tem seu valor e significado perante a sociedade que o
gerou e cada boneco novo que passa a pertencer ao objeto terá uma história construída,
se não uma nova narrativa para as futuras gerações.
87
O presépio de Antonia Pereira dos Santos (Utinga-Ba) é rico em elementos que
revelam essa potencialidade criadora, possibilitando que a autora exerça sua forma de
expressão com vigor, permitindo que o público visitante participe e “atue” também no
ato da criação. Seus objetos partem da forma bruta para o refinado9, característica
particular do seu cenário que, concluído, expressa seus sonhos, fantasias e desejos para
com sua comunidade (ver ilustração 29).
Ilustração 29.
Detalhe do presépio de Antonia Pereira dos Santos. Ao fundo, mesa com altar
alusivo à cidade de Bom Jesus da Lapa, segundo depoimento da autora.
Utinga - Bahia, dezembro de 2004.
9
A criação de Antonia é cercada de cuidados técnicos quanto à elaboração das figuras que ela constrói a
exemplo de pequenas maquetes de casas feitas com palitos de picolé, e/ou flores confeccionadas a partir
de garrafas plásticas.
88
A seguir, trechos da entrevista concedida por Antonia Pereira dos Santos, em
Utinga, Bahia, dezembro de 2004. Ver entrevista completa em anexos.
– D. Antonia, por que a senhora constrói seu presépio tão grande assim?
– É pra ser da forma da terra de Bom Jesus da Lapa. Com as coisas que eu tive
em um sonho, né! Então, esse ano eu cresci mais, aumentei mais o presepe, fiz a serra
grande como assim a serra de Bom Jesus da Lapa, e também esse céu que tá feito aí,
aquele ano que vocês vieram, [referia-se ao período de 2002-03 quando estive em
Utinga, pela primeira vez, juntamente com os demais integrantes da equipe de trabalho],
não tinha, mas foi no sonho que tive, um sonho assim visive, então a coisa disse pra
mim, que era pra mim fazer, pegar um papel pintar, fazer uma pintura como o céu, com
todas as coisa que eu vi no sonho. Eu fiz o,... Eu pintei o papel, fiz essa cobertura, fiz as
estrela, a chave de São Pedro, o terço da Senhora, a lua com todas as coisa que eu vi
no sonho.
89
a origem do objeto sagrado, cujo ritual de montagem não deve ser interrompido até o
fim das suas vidas. Vejamos:
– O presepe que eu faço assim dessa forma, é uma coisa assim, foi um dom que
Deus me deu, porque quando eu tinha de 5 até 8 anos de idade, eu cresci ouvindo
minha mãe dizer que tinha feito uma promessa pra meu irmão mais velho, e como eu
vivia muito doente, também, e ela queria ver eu crescer, ficar moça, se casar, ter o
maior prazer, né, então ela entregou a minha vida, minha saúde para o menino Jesus.
Ela dizia pra mim assim: eu também coloquei você nessa promessa, agora só tem uma
coisa; se você crescer gostando de, de, do presepe e achar que deve fazer, quando você
casar você vai fazer na sua casa; saiba você que o presepe agora vai ser seu, eu não
tenho mais parte na sua promessa, aí fica para sempre, porque eu fiz a promessa para
você e para meu filho mais velho, para sempre, e a sua também é a mesma coisa.
90
geografia do presépio, com ruas, morros, ladeiras, campos de aviação, seres vivos e não
vivos, o deslocamento para Anhangüera, e, sobretudo suas maquetes de imóveis que
variam de Igrejas a casas para os “moradores” da(s) sua(s) cidade(s) fictícia(s). Sobre
seu conhecimento do tema: é de origem popular, como a catequese, a igreja, a fé, e os
ensinamentos oriundos de gerações passadas. Seu objeto é cercado do motivo religioso
ao mesmo tempo em que é recheado de “contos” populares, tornando-se quase uma obra
literária. Sua narrativa é quase onírica, beira o surrealismo, mas, acredito que se define
como uma espécie de realismo fantástico para os contos sagrados.
Para enriquecer este meu diálogo com Antonia cito, ainda, Dupront (1988) cujas
palavras me ajudaram a compreender melhor esta relação do homem com a
religiosidade. O autor traduz, ainda, o meu sentimento pelas coisas da natureza e
voltadas para o equilíbrio entre vida, crença, fé e religião.
91
Esse objeto toma forma humana no mundo cristão: o que permite o
recurso à palavra, mesmo muda (DUPRONT, 1988, p. 88).
Sendo assim, cito, ainda, outro trecho em que Cascudo (1984) reforça a teoria da
oralidade, no qual ele afirma que “A literatura oral é mantida e movimentada pela
tradição. É uma força obscura e poderosa, fazendo a transmissão, pela oralidade, de
geração a geração” (CASCUDO, 1984, p. 165).
92
Sim, percebe-se este fato quando se ouve uma dessas mulheres narrando a
história de seu presépio. Cada palavra, cada gesto, cada elemento ali colocado possui
uma razão de ser. São signos que fazem parte da memória cultural de cada um desses
indivíduos. Pertencem ao “patrimônio” da família, da comunidade e quiçá, da
humanidade. Entretanto, são essas estórias que passarão para uma próxima geração,
através da oralidade, como os contos e fábulas de todas as épocas.
Ilustração 30
93
Ilustração 31
94
Ilustração 32
95
CAPÍTULO III
Bom dia ou Boa tarde. Faço minhas apresentações, e explico o motivo da visita.
Abre-se uma porta ou uma janela e percebo a dimensão do objeto. À primeira
vista o olhar é confuso, as informações são muitas, contudo, aos poucos o olho vai se
adequando a cada detalhe do cenário. Os elementos vão se identificando, definindo
forma e conteúdo; é como se ganhassem vida própria adquirindo força no contexto do
cenário, “falando” para o mundo o que eles significam. Na maioria dos casos, ou das
casas, é assim.
Era um dia ensolarado; fazia muito calor. Eu guiava o veículo por uma estrada
que, segundo informações colhidas, me levaria até a cidade de Mucugê. Entretanto, por
uma dúvida sobre qual direção seguir ao chegar numa bifurcação, tomei sentido para a
comunidade de João Correia, distrito de Mucugê, situado na divisa com o município de
Abaíra. Conforme o mapa rodoviário que eu tinha em mãos, a estrada deveria cruzar
pela comunidade de João Correia e seguir até Mucugê. O mapa estava errado. Fiz pausa
para beber uma água gelada, matar a sede, e comprar alguns suprimentos para o longo
caminho que estava por vir.
O meu colega de viagem e auxiliar de entrevistas, Alex Simões, foi mais adiante
para conhecer a localidade e uma pequena igreja da comunidade. Chegando lá, indagou
ao nativo que o guiou sobre a possibilidade de existir algum presépio naquela
comunidade. Foi informado sobre o presépio de D. Aurenive Neves, como sendo o
maior da região. O imprevisível e inesperado desvio do roteiro original da viagem
começou a revelar-se. Fui comunicado por Alex sobre a existência do presépio e dirigi-
me ao local para checar a informação. Chegando à residência onde estava o grande
presépio, fiquei surpreso com o que vi de tão grande e maravilhoso. A princípio senti-
me como se estivesse diante de uma grande mina de diamantes. Pedi licença à dona da
casa, falei dos objetivos do projeto1 e, após autorização daquela senhora, fui até o carro
apanhar a câmera fotográfica e o único filme que me restava. Quando adentrei à casa de
Aurenive Moreira Neves, eram aproximadamente 11h30min da manhã naquele dia 8 de
1
À época, o projeto era apenas de cunho independente com fins de editoração de livro temático sobre o
assunto. Hoje, embora ainda mantenha a idéia do livro, esse mesmo tema transformou-se no projeto que
foi aprovado como pesquisa acadêmica e que gerou essa dissertação de mestrado.
97
janeiro de 2001, mais precisamente. Aquele cenário mereceu o mais completo registro
fotográfico feito na primeira viagem deste projeto. Aquela estrada “errada” mereceu
momentos de reflexão sobre o que fazer com esses objetos fotografados, que destino dar
a eles, já que eu os acolhia na minha pessoalidade, criando, a partir daí, laços muito
próximos. A partir de então, a pergunta principal foi (é): como agir, interagir diante de
tanta beleza plástica, diante de tanta doação daquelas pessoas para com seu objeto
votivo, sem agredi-las, sem deturpar sua verdadeira razão? Percebi que eu estava diante
de um presépio de grande valor histórico e muito importante para com meus objetivos
fotográficos e a pesquisa que se iniciava.
O meu método de aproximação para com o(a) autor(a) dos presépios é o diálogo,
seguido de entrevista. Antes, porém, falo do que se trata e para que fins se destina a
pesquisa. Procede-se a fixação do objeto através da fotografia, maneira pela qual posso
ver, pelo visor da câmera, as “janelas”, ou a parte significativa da composição à vista
para a construção das imagens. Da referência material, os elementos em cena, para os
recortes fotográficos, são reveladores de uma realidade dura e criativa, ao mesmo tempo
lúdica, pertencente ao maravilhoso dos heróis e ao maravilhoso no religioso. Nestes
casos a câmera funciona como um “Raio-X” do cenário fotografado e a imagem
fotografada é a matéria reveladora do cotidiano e do labor criativo do cidadão. É, ainda,
o terceiro olho do fotógrafo, o suporte e memória de um passado que acabou de ser
registrado. Segundo Gombrich (1981, p. 278), “a foto não é uma réplica simples da
realidade em questão, mas sim uma transformação visual que deve ser novamente
interpretada pelo observador a fim de assegurar a informação necessária” (apud
Santaella e Nöth, 1997, p. 41). Neste caso, a leitura da imagem registrada se torna mais
que necessária para melhor interpretação do imagético presente nos presépios, bem
como dos contos populares, ou das narrativas, pertencentes a esses elementos. Juntos,
poderão relevar a ação criadora, colocando-a como instrumento sócio-compreensivo dos
presépios.
98
homenagear o nascimento do menino Jesus, porém, e a partir do ato da criação, o objeto
vai tomando forma própria, como um grande rizoma que cresce a cada necessidade de
“expansão” da sua narrativa, cuja “história”, “ilustrada” através de seus representantes,
povoa a mente e os domínios do criador. Esses representantes que são signos do
presente pertencem ao mundo visível, são formas icônicas da representação, ou seja,
segundo Goodman (1968) “representações são imagens que têm aproximadamente o
mesmo tipo de função que descrições” (apud Santaella e Nöth, 1997, p.19).
Observando-os sob esta ótica, as representações do cotidiano estão presentes através dos
signos ali instalados como extensões desse imaginário. As figuras, as plantas, os
elementos diversos do cenário, a composição e estrutura do presépio dizem respeito ao
modus vivendi do sujeito e da comunidade à qual pertence. Ainda, segundo Goodman
(1968), “quando nós observamos um símbolo, que é sempre um objeto do mundo
exterior no amplo sentido da palavra, não olhamos para ele como o próprio objeto, mas
como representante daquilo que ele representa” (apud Santaella e Nöth, 1997, p. 21). Os
elementos/objetos presentes na Lapinha ou presépio tornam-se referenciais do cotidiano,
enriquecidos pela narrativa pessoal que está imbuída de histórias com origem no
passado, como um importante “silo” do conteúdo pertencente ao imaginário coletivo.
Compõem-se em um grande patrimônio para a atualidade.
99
representação. Este motivo é enriquecido com elementos figurativos que representam o
aspecto urbano, rural e social do indivíduo criador, enriquecido pela história de cada
um. Os materiais que compõem o presépio são constituídos por iconografia adquirida no
comércio local, ou reaproveitadas do uso constante e cotidiano das crianças como
brinquedos, por exemplo, utensílios domésticos sem uso, flores artificiais, animais de
louça, iconografias gráficas em grande variedade, pedras de diversos tipos, jornais
impressos, etc. Contudo, há, também, elementos que são manufaturados pelo sujeito a
partir do pré-conhecimento da forma, como pequenas reproduções do mobiliário
doméstico, através de técnicas que foram desenvolvidas por familiares ou amigos que a
utilizavam na construção desses objetos. Reproduzem, também, representações de
imóveis como residências, igrejas, aeroportos, escolas, quadras esportivas, piscinas, etc.
O presépio se torna, a partir daí, a grande casa dos sonhos, estabelecendo, dessa forma,
um diálogo entre o mundo interior e exterior do sujeito.
Segundo Luzinete Alves Feitosa, residente na cidade de Bonito, “os três Reis
Magos ficam de costas para o menino Jesus até o dia 24 de dezembro e depois da data
do Natal vira os reis Magos para a Manjedoura, pois, estão visitando e homenageando a
chegada do deus menino” (entrevista concedida no dia 28/12/2004). Em entrevista a D.
Zenilda Silva Costa, na cidade de Mucugê, a depoente diz que “no Natal os enfeites são
pra cá (voltados para o público) e quando vira o ano vão visitar e estão voltados para
Ele. Vira à meia noite. Junto da Lapinha tem os bichos como boi, carneiro, galo, burro,
100
vaca” (entrevista concedida em 01/01/2005). Em Igatu, distrito de Andaraí, Antonia
Santana Silva relata que o presépio é disposto com os elementos de costas para as
pessoas até o dia 31 de dezembro, quando são virados e passam a ficar de frente, isto é,
com a face voltada para o público visitante do presépio. Segundo a autora, isto significa
que após o nascimento e visita do “grande público” eles iniciam a caminhada de volta, o
que faz sentido, já que as pessoas não ficam mais que algumas horas quando vão visitar
um recém-nascido. Pude observar este “movimento” das figuras dos presépios em
diversas residências, constatando a potencialidade do sujeito quanto à sua criatividade.
Sobre a movimentação das figuras não há uma padronização quanto a este
“deslocamento”, contudo está presente na grande maioria dos presépios e para aqueles
que depositam sua fé no menino Jesus.
2
Cf. entrevistas gravadas em áudio.
101
fato consome-se ali, no momento da montagem do presépio, permanecendo as
personagens na mesma posição até o final das comemorações.
A contingência de figuras nos presépios que ocupa todo o espaço físico deste,
para um conceito mais formalista, tem como função criar tensões e levar o olhar do
espectador a percorrer todo o espaço. É como um ‘caminhar’ pelos labirintos de uma
grande cidade à procura daquilo que se deseja encontrar. Os sentidos se aguçam e o
olhar, especialmente, se torna apreensivo, busca seu alvo, o desejo de encontrar, que
nem sempre o satisfaz diante de tantas opções para potencializar os diversos sentidos
humanos. O pegar se torna tentador, os cheiros das casas e de seus residentes, as
diversas perguntas, os ruídos ao redor do ambiente. Aumenta a sensação de
grandiosidade diante de tanta potencialidade humana, juntamente com o estado de
pobreza e humildade daquelas pessoas. Nos caminhos de areia dos presépios arte,
pode-se perceber o sacrifício do cidadão, todo o labor de seus mentores, todos os
desejos que fazem parte dos sonhos de cada um. Naqueles cenários as crenças se
misturam e os símbolos da diversidade religiosa se fortalecem, tornam-se híbridos,
fazendo parte de um mesmo contexto alentado pela ação não excludente de seus
“decoradores”, os belenistas. Os diversos signos se aproximam pela fé e se impõem pela
sabedoria de seus autores. Transformam-se em conteúdo único a partir do conhecimento
popular. É a imagem construída a partir do imaginário, na qual “A imagem é um
modelo da realidade” (Wittgenstein apud Santaella; Nöth, 1997, p. 29). Uma realidade
sempre presente, refletida e visível o que torna lógica a presença absoluta da “criação”.
Entende-se, a partir das palavras de Wittgenstein, que o filósofo da era moderna quer
deixar claro sobre a necessidade do pensamento como forma de gerir algo, arte, ou a
imagem que o ideal humano transforma em poesia, pertencente a uma narrativa própria
a partir do pensamento. Sendo assim, é algo visível e o mesmo pensador diz que “a
imagem lógica dos fatos é o pensamento” (apud Santella; Nöth (1997, p. 29). Tudo se
torna compreensível diante de um universo múltiplo, no qual a diversidade das figuras
predomina em todo o contexto do cenário e da data comemorativa. Quantitativamente:
quantos presentes em números exatos? Que importa se haverá infinitas possibilidades de
montagem? Veremos.
102
A Grande Arca: uma estética mutante
O Senhor disse a Noé: Entra na arca tu, e toda a tua casa, porque te
reconheci justo diante dos meus olhos, no meio dessa geração. De
todos os animais puros tomarás sete casais, machos e fêmeas, e de
todos os animais impuros tomarás um casal, macho e fêmea; das aves
do céu igualmente sete casais, machos e fêmeas, para que se conserve
a raça sobre a face da terra. [...]. Noé entra com a família e com eles
os animais selvagens de toda espécie, os répteis de toda espécie que
se arrastam sobre a terra, e tudo que voa de toda espécie, todas as
aves e tudo que tem asas (Bíblia Sagrada, 1961; Gênesis 7, 13; 7, 14).
Fazendo uma analogia com a arca de Noé como um espaço para a salvação, o
cenário do presépio em alguns casos parece ter esta função, ou seja, o ajuntamento
como fato simbólico à vida e a representações da natureza. Para esta reflexão volto a
mencionar o presépio de Aurenive Moreira Neves, em João Correia/Mucugê, que me
faz lembrar a passagem bíblica citada acima. Como se quisesse perpetuar a sua história
de vida possui em seu conjunto cênico elementos que me fazem acreditar o quão
significativa é sua presença naquela pequena comunidade. Naqueles dias festivos à data
do nascimento de Jesus, a autora resgata no seu “imenso planeta”, a história cultural da
sua comunidade através dos contos de origem dos entes passados ou, ainda, criados pela
própria autora, revelando sua capacidade de criação e reprodução da literatura oral para
a comunidade a qual habita.
103
O presépio de Aurenive M. Neves dialoga com cada visitante que dele se
aproxima, numa imensurável analogia da criação. É inevitável este diálogo com as
figuras que se aglomeram e se “movimentam” como numa grande metrópole, com “um
trânsito congestionado entre seus transeuntes”, demonstrando haver ali uma grande
variedade de formas, personagens de vasto histórico e de colorido exuberante. Estes
objetos ou figuras representantes da vida são os instrumentos que fazem daquele
presépio um cenário “vivo”, compondo uma verdadeira trama de informações, que
provocam no espectador tensões e movimentos para o olhar em toda a sua extensão.
Ímpar quanto à estrutura, parece estar presente no cotidiano do ambiente doméstico,
como um objeto permanente, tal a sua imponência. Suas dimensões ultrapassam os três
metros da parede de fundo mais uns dois metros da lateral.
104
Para outros, utiliza partes como a cabeça de uma cor vibrante unida a corpos de bonecos
de origem diferente, dando-lhes uma aparência estranha ao usual, demonstrando, mais
uma vez, que sua criatividade não tem limites. Visivelmente, as figuras parecem um
híbrido de humano com animal, meio bicho meio homem, um misto de personagem da
ficção científica e das lendas que povoam o imaginário (ver figura 33).
Outros presépios são de grande importância para este estudo, como por exemplo,
o presépio instalação de Antonia Pereira dos Santos, presente no município de Utinga –
Bahia. Imponente em sua dimensão, possui figuração própria e é ricamente elaborado
pela sua autora. Comentado em capítulo anterior, este assume a mesma importância no
contexto histórico – cultural que o presépio de Aurenive Neves, constando da presença
de elementos e personagens próprios inseridos em seu espaço criativo. Idem aos
presépios de Alice Ferreira Braga no município de Wagner, Antonia Santana da Silva
em Igatu, distrito de Andaraí, presépios tomados como amostras para esta pesquisa.
105
Ilustração 33
Detalhe de presépio de Aurenive M. Neves, mostrando figuras híbridas quanto ao
material empregado na confecção.
João Correia, Mucugê – Bahia, janeiro de 2001.
106
Personagens e cenários: sobre o imaginário de Catita e Mateus
Personagens surpresas para mim desde que eu passei a ter contatos com os
presépios da atualidade, Mateus e Catita ou Catirina3 são dois personagens recorrentes
dos festejos folclóricos brasileiros, especialmente à época natalina, como brincantes
ativos nos grupos de Reis. É sabido que os autores de reisados compõem e cantam
músicas direcionadas ao poder, pois, são representativas de “lideranças políticas”,
seguindo uma tradição que vem de território africano, daí a denominação de Reis de
Congo, segundo BARROSO (1996). De acordo com o autor, “A festa se dava em torno
do Santo Rei Baltazar, o negro entre os Reis Magos, que era relacionado ao Rei de
Congo pelos brincantes” (BARROSO, 1996, p. 22).
3
A denominação Catirina é empregada no nordeste do Brasil entre os Reis de Congo localizados do
Ceará até o estado de Alagoas, verificando-se que a partir do estado alagoano já há ocorrências das
Catitas. Na Bahia, é mais freqüente a denominação Catita.
4
Apud CASCUDO (1984, p. 29), “entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar
adiante, o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo.”
107
Catitas/Catirinas dos presépios com os brincantes das apresentações de reisados.
Entretanto, percebi que estes personagens que simbolizam o homem do campo, mais
especialmente o vaqueiro, estão presentes na maioria dos presépios investigados. Por
tradição há, sim, a presença desses personagens nos cenários de Natal, o que leva às
evidências de uma relação direta com a história cultural das festividades religiosas e dos
folguedos populares. Como foi dito em capítulo anterior, e a partir de depoimentos de
pessoas que montam os presépios no qual a presença dos personagens é uma constante,
há uma narrativa oral sobre o casal, um negro e outro branco ou os dois negros, que
povoa o imaginário de cada mentor. É importante lembrar que há indícios dessa
narrativa, passada através da oralidade para outras gerações de brincantes.
5
Nota-se que o Mateus confeccionado por Aurenive Neves possui uma espingarda apoiada no ombro.
108
pequenas bonecas de plástico ou madeira etc.), no qual reza um
irreverente “Pai Nosso”. Numa mão leva um pandeiro ou um ganzá e
na outra uma “macaca” (espécie de chicote), com a qual corre em
perseguição aos meninos e surra os personagens grotescos. Assim é o
Mateus, negro e ex-escravo, a segunda figura mais importante na
estrutura de personagens do Reisado e, certamente, a primeira na
preferência do público. ‘É a graça do Reisado’, como diz o mestre
Antônio Félix (BARROSO, 1996, p. 93).
Segundo Alice Ferreira Braga, em Wagner, ‘o presépio sem Catita e Mateus não
tem graça’. Depoimentos como esses confirmam que se trata de personagens recorrentes
e importantes para a cultura popular, especialmente por darem margens à fantasia’ e
deixarem o imaginário traçar o rumo da história. Ainda segundo Barroso (1996), “O
Mateus representa o mundo invertido. Parodia com galhofa todos os rituais, sejam
religiosos ou guerreiros do Reisado” (BARROSO, 1996, p. 93). Completa: “mais que
dionisíaco, é um personagem grotesco” (BARROSO, 1996, p. 94). Assim se
apresentam, e por isso se destacam perante os outros elementos do reisado, guardando
semelhanças pelas funções com sua aparição também no presépio.
109
Birico e Mateus, do ‘Boi Kalemba’6, são os elementos humorísticos,
encarregados de distrair o auditório com constantes discussões e
brigas espalhafatosas, permutando injúrias, declamando versos,
escorregando, caindo. Constituem a dupla da inteligência, da
improvisação chistosa, desembaraçada e com prontidão verbal
(CASCUDO, 1984, p. 380).
110
Mateus, a burrinha, a caipora e o boi, que com efeito é animal muito
ligeirinho [...] (apud CASCUDO, 1984, p. 427).
Sobre a personagem feminina, cujo prenome varia entre regiões, haja vista a
presença das diversas nomenclaturas empregadas, esta, assim como o Mateus, é uma
personagem irreverente. Vale, aqui, uma breve descrição a partir das pesquisas de
Barroso:
111
do período Medieval e o clímax do Renascimento coincidem com as descobertas dos
espanhóis e portugueses no Novo Mundo, conseqüentemente trazendo influências
européias e africanas com a importação do negro para aqui trabalhar.
112
ocorrência do popular, como por exemplo, a cena dos reisados,
dramas, bumbas-meu-boi, [...] lapinhas, pastoris, [...], demais autos e
danças dramáticas [...]. Em todas estas manifestações, arte e vida
social ainda estão profundamente associadas e o homem mantém seu
vínculo simpático com a natureza, referencial primeiro de sua
linguagem da expressividade de seus gestos e movimentos
(BARROSO, 1997, In: Greiner; Bião [org.] 1999, p. 178).
113
rituais das religiões populares, nas festas, praças e feiras do povo
(BARROSO, 1997, In: Greiner; Bião [org.] 1999, p. 180).
114
CONCLUSÃO
A minha percepção a partir das imagens que venho capturando durante este
processo levou-me a indagações a respeito do conteúdo dessas instalações natalinas, as
quais puderam rememorar a minha infância, quando visitava algumas casas que
continham presépios e podia admirar tais representações do nascimento. Entretanto, o
diferencial observado entre o passado e o presente no contexto dos elementos
dramáticos encontrados na atualidade levou-me, definitivamente, a buscar algumas
reflexões.
115
Pude acrescentar a esta pesquisa dados importantes no contexto da cultura
popular, como por exemplo, a presença nesses presépios, de duas personagens até então
desconhecidas por mim e que estão presentes nos festejos populares do Brasil.
Outro elemento que me chamou bastante atenção nos presépios daquela região é
a constante presença de bonecos de plástico ou de outros materiais que representam os
seres humanos. A estes, especialmente os bonecos quebrados e manchados, dediquei
especial ‘olhar’, pois passei a interpretá-los, na minha poética, como cenas de
decadência, e de indícios de exclusão social. Foi a partir deste ponto que busquei uma
reflexão para minha criação com as fotografias e a instalação na exposição final. Às
fotografias foi dada uma edição buscando compartilhar com o público a mesma
percepção, sensação e reflexão que tive ao tomar contato com os presépios. Além do
desejo de compartilhar essas sensações das grandes diferenças e do choque de materiais,
ao concluir meu trabalho, as fotografias também revelam um presépio arte, criado com
poucos recursos e muito bem equacionado pela criatividade do sujeito que o monta.
Nesse contexto, para melhor compreender o processo criativo desses presepistas,
elaborei uma estratégia realizada com uma caixa de madeira. Meu objetivo foi
116
estabelecer uma troca, processo durante o qual algumas pessoas já entrevistadas
puderam montar um pequeno presépio. Esta ação de troca foi documentada com
registros fotográficos e em vídeo.
Para a sala com as caixas – os nichos –, utilizei uma iluminação mais branda,
quase na penumbra, para que o espectador focasse sua atenção nas figuras. A
iluminação foi um elemento importante na composição da instalação.
Numa outra sala montei o documentário em vídeo, uma edição de 25’: 45" min.
de um total de quatro horas de depoimentos gravados. Nele estão presentes as falas de
três mulheres que montam presépios. Nessas imagens em movimento ficaram registros
mais completos dos presepistas em seu contexto de vida social, que, complementam a
compreensão dos sujeitos com os seus objetos.
117
REFERÊNCIAS.
118
BEY, Hakim. TAZ zona autônoma temporária. – São Paulo, Conrad 2001.
Bíblia Sagrada. Tradução dos originais hebraico, aramaico e grego, mediante a versão
francesa dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico
de São Paulo, 3ª edição, Editora Ave Maria Ltda, 1961.
119
FERNÁNDEZ, Aurora Polanco. Arte Povera. . Editora Nerea, S.A. 1999. 2a edição.
Madri.
FUSCO, Renato De. História da Arte Contemporânea. Tradução de Maria Jorge Vilar
de Figueiredo; revisão de texto Wanda Ramos. Editorial PRESENÇA; 1ª. Edição: –
Lisboa, 1988.
JULIA, Dominique. A Religião: História Religiosa; In: Le Goff, Jacques & Nora,
Pierre. História: Novas Abordagens. R.J.: Livraria Francisco Alves Ed., 1988.
120
MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente; tradução de Márcia C. de Sá
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121
ANEXOS
122
1. Entrevistas concedidas no período 2004-5, à época da viagem à Chapada
Diamantina para coleta de material na fonte.
Haja vista os objetivos desta pesquisa se restringirem ao escopo dos estudos das
artes visuais, a transcrição tentou respeitar, na medida do possível, as variedades
lingüísticas e as idéias dos entrevistados. Do meu ponto de vista, qualquer interferência
na fala dessas pessoas significaria uma incoerência com a natureza dessa pesquisa, que é
de valorização da cultura popular da Chapada Diamantina. Houve basicamente ajustes
ortográficos e de pontuação.
123
Aquele ano que vocês vieram não tinha, mas, foi um sonho que eu tive, um sonho assim
visível, então a coisa disse pra mim o que era pra mim fazer, pegar um papel, pintar,
fazer uma pintura como o céu, com todas as coisas que eu vi no sonho. Eu fiz o, o ...
pintei o papel, fiz essa cobertura aí, fiz as estrelas, a chave de são Pedro, o terço de
Nossa Senhora, a lua com todas as coisas que eu vi no sonho, e esse cruzeiro que tá
plantado aí na Lapa, aí nessa serra, é como se fosse o cruzeiro da Lapa de Bom Jesus;
então, no dia 6 de janeiro pros Reis ser festejado aqui. Então todo esse cruzeiro vai ser
enfeitado todo de rosas brancas, cantando a dita música que no dia do sonho eu tive.
Enfeitando o cruzeiro, cantando a música até quando terminar é uma apresentação que
eu faço durante os seis anos aqui na frente do meu presépio. Nesse dia, esse presépio é
chamado ... essa cidade do presépio é chamada Belém, aonde Jesus nasceu. Eu faço
uma apresentação com Jesus, José e Maria, então eu apresentando Jesus, nesse dia,
Maria, José e o menino Jesus, então eu consigo arrumar uma criança, um bebê recém-
nascido, apresento ele como o menino Jesus. Faço apresentação do lado de fora, no
meu terreiro1, e cada pessoa eu dou uma rosa branca, canto louvor pra Jesus, outro
louvor pra Maria; faço uma celebração nesse terreiro, depois volto aqui pra dentro da
minha casa, e faço, assim durante duas horas mais ou menos, eu faço esse festejo pra o
santo Reis. Todas as músicas que é cantada neste dia foi um dom dado por Deus que eu
aprendi em sonho, aquela visão que Deus me dava; a dita música que enfeita o
cruzeiro, ela fala de quase todas as coisas que tem no céu do presépio. Então, esse céu
que tá feito, pintado, luz branca, estrela, lua, o cruzeiro, as três Maria, o terço de
Nossa Senhora, tudo isso foi visto num sonho. Fiquei um ano com a maior confusão na
cabeça, pensando até que alguém ia achar errado, porque todos os presépios são
bonitos, mas eu achava que não deveria fazer porque alguém ia detestar.Fazer um
presépio, depois fazer uma cobertura, pintar igualmente um céu com as estrelas e todas
as coisas, mas depois eu vi que eu tinha de fazer, resolvi fazer, resolvi a fazer, e na dita
hora do sonho eu vi o refrão da música que era pra ser cantada nesse dia, pra enfeitar
o cruzeiro. Então, copiei todas as músicas, apresento o menino Jesus como o rei da
Glória, explico nesse momento uma mensagem, leio a mensagem na hora da
apresentação e, e ... é duração de duas horas, mais ou menos, aí termina tudo. No
terminar, eu rezo o terço.
1
N.E. Referindo-se à área á frente da casa.
124
– D. Antonia, a senhora falou do menino Jesus. O menino Jesus que a
senhora apresenta aqui no dia da festa de Reis é uma criança mesmo, uma criança
recém nascida.
– Uma criança recém nascida, até de zero, até assim de zero até 3 meses mais
ou menos, uma criança que pode ficar deitada nos braços né? Quetinha, sossegadinha.
Mas assim uma criança que não consegue ficar como um bebê, não dá, né? Então todos
os anos eu consigo uma criança, menino homem, um bebezinho assim de um mês, até
três, eu faço assim a apresentação com ele. Então Maria vem como o menino Jesus nos
braços, José, com aquela sacolinha nas costas né, então quando chega no mei do
terreiro, na frente da minha porta, a gente já ta tudo esperando, tudo com rosas
brancas na mão. Então naquele momento que Maria chega, ela vai, ela vai ler, ela vai
dizer uma mensagem com a gente. Depois da mensagem, aí, eu, nós começamos a
celebração perante aí no meio do terreiro aí. Depois da celebração a gente aí, ela diz
pra gente que vai seguindo até a cidade de Belém e pede que todos acompanham ela. Aí
nós todos acompanhamos ela, tudo com rosas brancas na mão, e ela com os braços
cheio de terços, rosários, pra oferecer pra gente como presente, porque ela vai ganhar
as rosas. Nós vamos presentear ela com as rosas brancas e ela vai dar à gente o terço
pra nós rezar; então na hora que ela entregar os terços pra gente, a gente entrega as
rosa branca pra ela. Ela vai presentear o presépio com as rosas branca em cada local
onde tem o presépio de, de, de menino Jesus. Então, como a cidade de Belém, é, é,
chamada aqui de Bom Jesus da Lapa, nesse dia em vez de chamar Bom Jesus da Lapa,
então aqui é a cidade de Belém, onde Jesus nasceu. Então Maria entra aqui nessa rua,
vai em todos os presépios e presenteia o presepe com as rosas brancas que todos nós
damos pra ela de presente.
– Então quer dizer que a rosa branca é um símbolo que a senhora utiliza na
...
– Na festa, no festejo de Santo Reis.
– E porque rosas brancas?
– Porque acho que rosa branca é uma coisa assim, da paz, é uma coisa assim ...
eu, eu gosto de todas as cores de rosas, agora a minha preferência mesmo é de rosas
brancas. Acho que é um símbolo mais maravilhoso, é uma rosa branca, eu acho. Dá
mais alegria, mais paz, eu acho que a rosa branca é mais bonita pro causa do festejo,
então nesse dia o presépio fica bem cheinho de rosa branca; aí tem bastante rosa
branca! Agora as rosa são feitas por mim porque eu não acho o tanto de rosa que eu
125
prefiro assim natural, nesse dia eu não encontro né? Então, eu tenho que fazer as rosas
de papel. Então, ali, aqueles jarrinhos que tá feito ali, ó, é tudo feito por mim né? Eu
faço as rosas. Então, nesse dia, cada pessoa, adultos e crianças, recebe uma rosa
branca e ficamos todos ali na frente do, do,... da porta do terreiro, esperando Maria
chegar com José e o menino Jesus, pra visitar a cidade de Belém.
– Então essa festa já é tradição na sua casa?
– É, tem três anos, aliás, tem mais de três anos. Agora que eu faço dessa forma
aí, faz três anos.
– O presépio da Senhora parece uma cidade. Aliás, ele é a representação de
uma cidade, tem até ruas e a gente pode andar por dentro do presépio, e isso é um
fato inédito; eu nunca vi um presépio em que o construtor ou que o visitante entre
e distribua rosas. Por que a senhora faz assim, o presépio com características de
cidade?
– O presepe que eu faço assim dessa forma, é uma coisa assim, foi um dom que
Deus me deu, porque quando eu tinha de 5 até 8 anos de idade, eu cresci ouvindo
minha mãe dizer que tinha feito uma promessa pra meu irmão mais velho, e como eu
vivia muito doente, também, e ela queria ver eu crescer, ficar moça, se casar, ter o
maior prazer, né? Então ela entregou a minha vida, minha saúde, para o menino Jesus.
Ela dizia pra mim assim: “eu também coloquei você nessa promessa. Agora só tem uma
coisa: se você crescer gostando de..., de...., do presepe e achar que deve fazer, quando
você casar você vai fazer na sua casa. Saiba você que o presepe agora vai ser seu, eu
não tenho mais parte na sua promessa, aí fica para sempre, porque eu fiz a promessa
para você e para meu filho mais velho, para sempre, e a sua também é a mesma coisa”.
Eu respondi para minha mãe assim: “Olha mãe, eu acho muito bonito nesse tempo, é o
tempo que eu tenho mais alegria, então, quando eu ficar moça, quando eu me casar,
vou fazer na minha casa”. Então, eu resolvi mesmo, né? Então, em 79, no dia ... em 79
eu me casei, em março de 79. Em dezembro, eu já fiz o presépio na minha casa. Então,
agora já tem uns 25 anos né? Mais ou menos, 25 anos. Eu nunca tive tristeza, é o tempo
que eu tenho mais alegria e todos os anos quando eu armo o meu presepe, antes eu vejo
ele no sonho; eu vejo o formato dele assim, numa visão assim, até acordada, como eu
devo fazer. Fica tudo na mente assim como eu devo fazer o presepe, até aquelas grutas
que eu faço ali (aponta) pra pôr aqueles santos, fica na mente como é pra ser feita, se
eu fazer alguma coisa assim que não me agrada né? Eu, eu desmancho, faço do jeito
pra me agradar, e peço sempre a Deus assim: que ele me ajude, que eu sempre face,
126
faça um presepe que me agrada e agrada a Ele também. Então, todas as vezes que eu
faço, eu gosto, eu acho bonito, não quero dizer que o meu é mais bonito que todos, né?
Às vezes as pessoas falam, mas eu não falo, porque eu mesmo não vou, eu não vou
elogiar mais do que os outros, porque todos os presépios são lindos, nem que coloque
só um pezinho de árvore ... Então, todos os anos eu evoluí muito mais. Eu compro mais
coisas, ganho presentes, e é feito da forma que eu sonho, que eu penso que eu vejo
aquela visão visível. E essa cruz aí, foi como eu falei nestante: essa cruz era pra ser
feita desde 2000, mas eu tive uma dúvida que eu achava que era bobagem fazer tanta
coisa, aí eu achei que não, depois eu resolvi então, dito não que foi 2003, 2002, foi
desde 2002 que eu coloquei essa cruz aí, mas essa cruz é feita é colocada as rosa no dia
6 de janeiro, agora, antes, eu já coloco aquela cruz ali (aponta para a cruz), é o
cruzeiro da Lapa; essa outra parte aqui, eu considero assim, é a romaria de Nossa
Senhora de Anhangüera, quase toda...
– Qual parte?
– Essa parte aqui que tá com essa outra cruz toda, toda essa cruz aqui toda
enfeitada de flores de todas as cores, né? Então, aqui é a romaria de Nossa Senhora de
Anhangüera; desde quando eu comecei ir em Anhangüera, eu acho, acho, as coisa
muito linda lá, então eu olho assim, eu digo assim, meu Deus, eu queria, eu queria ter
um dom de fazer, de fazer uma parte de um presepe parecido com Anhangüera.
– Onde é Anhangüera, D. Antonia?
– É na fazenda Malhada Nova, a entrada dela é no..., no..., no portão de Bonfim
de Feira, perto de Feira de Santana, certo? Então eu sou acostumada a fazer viagem
para Anhangüera, aí eu armo assim aquela lotação aqueles 40 e tantos romeiro,
sempre vou, né? Aí eu fui inventar de fazer uma parte assim parecida né? Então, aqui
tem uma aparência assim com Anhangüera. Então, essa parte aqui que eu dividi, eu fiz
assim: ali naquela parte ali, é aquelas casa do pessoal parente de Pedro, parentes de
Pedro, família de Pedro. Aqui é a igreja, a capela de Nossa Senhora de Anhangüera.
Essas bonequinha que tão aí é os romeiro que tá visitando a cruz, tão rezando, fazendo
oração; os carro estacionado. Aquela casa ali que fica na frente da cruz, eu quero dizer
a casa de Pedro. Esse dividimento ali onde tem aquele tanque ali, ali é um tanque ao
lado da cruz. Então, tudo isso tem lá, né? Mas falta mais coisa que eu não fiz né? Mas
no ano que vem vou fazer todo formatinho, da forma que eu quero, que sei que foi
Nossa Senhora que consentiu, que eu pedi, que se ela visse que não fosse errado, me
desse o dom da sabedoria, queria saber fazer uma forma que parecia com a romaria de
127
nossa Senhora de Anhangüera. Então foi concedido, porque se não fosse eu achava que
eu não deveria continuar e eu continuo sempre, sempre pra vê, né? Tudo que tá feito
aqui é tudo assim aquele dom dado por Deus, até as músicas religiosa né? Cantada no
dia que é, que é, no dia assim da apresentação, tudo foi eu que fiz.
– Quem canta as músicas?
– Eu canto as música junto com todo mundo; dou as cópias pras pessoas e todo
mundo me ajuda.
– Então, a senhora compõe as músicas? Você pode cantar uma para eu
ouvir agora?
– eu posso cantar só, eu posso cantar só o refrão da música que eu enfeito o
cruzeiro. É assim:
– A música é mais grande né? Ela tem mais refrão, mas eu cantei os dois. Tá
bom? Se quiser que eu canto mais, eu continuo né, mas tem mais.
– É porque ela aparece aqui nesse cruzeiro, o..., a ... aqui é o cruzeiro onde ela
aparece, tem uma pilastrazinha, só que eu não queria assim, só que eu vou fazer, vou
arrumar uma pedra, assim, bem quadradinha, forrar como eu forrei, fazer a pilastra
onde ela fica em pé na hora que aparece. Aliás, quem vê ela é Pedro, ele é o vidente
né? Então o cruzeiro é enfeitado de flor, desse jeito aí, bonito dessa forma, aqui nos pés
do cruzeiro é cheio de flor, é muito bonito, e as pessoas que vêm fazer oração fica tudo
de frente à cruz, orando pedindo as graças à Nossa Senhora e esse lado aqui fica a
capela de Nossa Senhora, o pessoal também vai fazer a mesma visita quando sai do
128
cruzeiro, vem praqui, só que a aparição de Nossa Senhora é ali mesmo, não é dentro da
igreja, é ali mesmo n? Toda festa que tem lá é... é na frente do cruzeiro.
– Como é essas coisas que eu fiz de plástico, né? A garrafa de guaraná eu cortei
e fiz aquela árvore, né? (aponta); Fiz aquela árvore, e esses jarrinhos que tá aí, eu fiz
assim como o pezinho de capim, coloquei assim na tampa, no fundo da garrafa, fiz
assim como um jarrinho, quer dizer, tudo enfeite, né? E as coisinha de palito de picolé
é como eu tava explicando nestante eu dou o formato de cidade com ela né? Essas
bonequinhas de papelão, eu compro papelão pra fazer as bonequinhas porque eu tenho
várias bonecas de plástico aqui. Mas, então, pra fazer assim, vários romeiros, pra
apresentar assim como são vários romeiros, tem que ter mais. Então fiz as bonequinhas
de... de papelão; cortei o papelão, fiz as bonequinhas, e coloco bastante na frente da
cruz, ali naquela escada, do... do, que sobe pra, pro santuário de Bom Jesus da Lapa,
n?, Então uma parte das bonequinhas fica aqui, aqui em frente da cruz de Nossa
Senhora de Anhangüera, a outra parte fica ali na esplanada de Bom Jesus da Lapa.
– Isso é inventado por minha mente mesmo, da cabeça, isso é um dom assim
dado por Deus mesmo, aí eu penso de fazer uma coisa assim rapidinho, eu já faço,
essa, essa, ... esses outros jarrinhos de plástico aqui, aqueles vidro de desodorante. Aí
eu peguei, achei que dava pra fazer alguma coisa de enfeite pra o presepe, arrumei
vários vidro de desodorante, fiz jarrinhos também; daí é um enfeite, né?
– Olha, eu acho assim: pra mim presepe... qualquer enfeite assim é bonito pra
um presepe. Agora, essas lâmpadas aqui, eu ia usar elas assim: eu ia fazer uns
coelhinhos, pegar uns papel, pegar um papel, um papel um pouquinho durinho como
129
assim, assim um... vamos dizer, um papelão mais fino, n? E cortar assim um modelo
assim como uma sainha, fazer uns olhinhos, umas orelhas assim como um coelhinho; eu
faço essas coisa, né? Mas como não tive tempo, esse ano foi muito trabalho pra mim, eu
coloquei as lâmpada queimada aí no meio, só que aí não tá enfeitando nada, mas daqui
pra findar o dia 20 de janeiro, eu vou fazer tudo isso, pra enfeitar mais o presépio,
fazer mesmo!
– Então quer dizer que seu presépio, ele ... vai crescendo, né?
– É, a cada ano ele vai evoluindo mais. E sobre falar em 20 de janeiro, esse
presepe eu desarmava antes do dia 20 de janeiro. Eu desarmava no dia 8, no dia 10,
mas depois eu fiz uma promessa com São Sebastião, se ele me concedesse uma graça
pra mim, que eu estava precisando muito e tava difícil mesmo; primeiramente eu pedi a
Deus né? E então fiz a promessa com São Sebastião. Então, se a graça fosse concedida,
eu fazeria todos os anos festejo dele aqui no presépio. Então, depois, eu consegui o que
eu queria, né? Foi uma graça tão fácil pra mim conseguir, era difícil pra mim, mas pra
Ele foi fácil, pra Deus mais ainda né? Eu consegui, então todos os anos, dia 20 de
janeiro, eu rezo um terço aqui de São Sebastião, às vezes eu faço “uns comes e bebes”
pras pessoas né? É muito bonito. E, São Sebastião, ele também foi um apóstolo que ele
visitou também o menino Jesus, ele foi o único que visitou; eu não sabia dessa parte aí,
mais alguém que já lê, que lê bastante a sagrada escritura, já me explicou isso, teve
uma mulher aqui que falou isso, então tá bom, então eu não tou fazendo nada de
errado, então o meu presepe eu só desarmo depois do dia 20, é depois do dia 20, eu, eu,
armei esse ano no dia 15 de dezembro, ele vai ficar mais de um mês, né? Então, no dia
20 eu termino de armar, de fazer tudo que tinha de fazer; terminei no dia 20 de
dezembro. Então, nos dias 21 ou 22 de janeiro é que vou desarmar, depois que
comemorar são Sebastião.
– Tem várias.
130
– Oh, porque aqui é uma cidade, uma cidade, e em uma cidade não tem só um
presepe. Então aqui, ó, essa manjedoura aqui, já é... eu já... eu falo aqui que é
Paratinga; aqui é no caminho de Bom Jesus da Lapa (aponta para outro cenário) aqui é
Paratinga, tem a Igreja de Santo Antonio de Pádua e aqui o presepe na frente da igreja
(aponta para o conjunto religioso), então ali também, ali é outra manjedoura, ali já é
Anhangüera, então em Anhangüera também tem presepe, né? Nossa Senhora de
Anhangüera, lá também tem um presepe. Já fiz outro presepe ali, ali na gruta de Nossa
Senhora da Soledade, em Bom Jesus da Lapa, também tem mais outro, porque tenho
certeza também que em Bom Jesus da Lapa tem muito presepe, né? Naquela outra rua
ali, de Bom Jesus da Lapa, outro presepe. Então, em quase todas as ruas em Bom Jesus
da Lapa, eu acredito que tem um presepe. O povo religioso né? Gosta da festa mesmo,
e aprecia tudo que é bom. Tudo que pertence a Deus, que é bom, acho que a gente deve
acompanhar, né?
– D. Aurenive, mais uma vez eu fico muito emocionado com o seu presépio,
é o presépio mais bonito que já vi na região, ele realmente passa para nós um
sentimento muito grande de amor e devoção que a senhora tem. Eu gostaria que a
senhora falasse um pouco do seu presépio aqui neste depoimento.
– Oh, meu filho, o meu presépio é desde pequena que eu faço ele, tou viveno, tou
fazeno até quando Deus me chamar, aí agora entregar pros... pros que quiser fazer, né?
Mas eu tenho essa divoção que Deus me deu e com fé em Deus eu cumpro e não quero
deixar, se Deus quiser!
– A senhora deve ter no seu presépio aí várias estórias sobre cada coisinha
dessa aí que entra no seu presépio, cada brinquedinho, cada frasco, cada boneco
feito pela senhora, cada animal também feito pela senhora. A senhora poderia
contar um pouquinho da história de um desses elementos?
– Tem o engenho que eu fiz que é acostumado nós moer. Eu fiz o engenho. Tem
a casa de farinha que eu fiz, tem muitas coisa, tem a igreja que eu também fiz; tem
131
muitas coisa aqui que eu faço, o que eu puder fazer, que eu sei fazer, eu faço, pra não
comprar tudo.
– Tem umas dez caixas, tudo guardado. E todo ano é preciso reformar a
vestimenta das boneca, dos trem, consertar tudo que dum ano pra o outro fica tão feio
que preciso a gente tornar ter o trabaio de fazer aquilo.
– Quer dizer que a senhora veste as bonecas, todas às vezes, todo ano muda
a vestimenta da boneca. E a senhora faz tudo isso?
– Começa quando?
– Ah, e toda vez que quando eles tá perto, aí agora eu começo a fazer, já
começo a trabaiá que eu sozinha não deixo ninguém fazer, que muitos faz, mas não faz
do meu gosto, e eu vou, vou fazeno divagar.
O filho Regi: Aí ela ... chama uma pessoa né? aí ela mesmo, ela sozinha que tem
obrigação de fazer, que ela faz tudo direitinho. Outro vai fazer, fica feio, e ela tem o
jeito de fazer.
– Isso aí é prazer que é bebida que nós tem na roça (risos), tem no mundo né?
(risos).
2
Vasilha.
132
– Pra festa. É por que lá é a lapinha né? Então é o negócio que vai pra ver,
visitar o Deus menino; tem a casa de Catita, tem o engenho, tem, tem no presépio, tem,
onde lá, na cidade onde Deus menino nasceu, tem isso tudo. Tem a procissão, tem tudo
isso. Tem os toureiro, a gente vai e faz. Agora a lapinha mesmo é a de lá que é a
lapinha reservada a Deus menino, tééé....
(O filho Regi): O senhor tá vendo o carro lá carregado, pra moer, fazer moer a
cana, fazer a rapadura, não é, d. Nive?
– D. Nive, tem ali, também, uns garfinhos, ali em cima, bem coloridos,
porque a senhora coloca os garfinhos?
– É pra, pra, os brinquedo das boneca, quando fugia pra casa de Catita, Catita
dá comida (risos), dá comida.
– E quem é Catita?
– Catita, é, é, é, Catita e Mateus, né? Quem começa o presépio com eles dois.
Nunca teve um presépio pra não ter eles, Catita mais Mateus.
– Por quê?
– Sem, sem dúvida que é uma ciência, não é? Que tem no mundo que desde eu
pequenininha que eu vejo Catita e Mateus no presepe que eu tinha uma tia e um
cumpadre que fazia presepe de pequeno também, e, quando eu comecei eles me dava os
resto dos brinquedo deles pra mim até que Deus me ajudou que eu pude comprar, né?
Quando eu pude comprar eu fui comprano, comprano e guardano. Uns quebra, outros
fica bom e os que vai quebrano a gente vai jogano pro mato e comprano outros novo,
mais ... sempre Catita e Mateus daí foi do começo do meu presepe, nunca, Deus ajudou
que eles piorou.
– E Catita e Mateus, são sempre de pano?
– É. Sempre de pano.
– Por que de pano?
– Nunca teve eles de ... de massa, de ... de ... toda vida foi de pano, porque no
começo do mundo não tinha, existia, esse negócio desses brinquedo de hoje, né? Era,
tudo era boneca de pano, era tudo, era tudo feito por mão de gente, hoje tá usando tudo
de mangaba, de, de lousa, de tudo; mas de primeiro não tinha não, era só pano.
– As pessoas nas casas faziam os bonecos ..
133
– É ... é ... os bonecos ... é ...
– Outros objetos interessantes que a senhora coloca são os relógios. Por que
a senhora coloca relógios no seu presépio?
– Na casa de Catita, né? Pra dizer que tem as horas pra ela. Aí é tudo...
– Então quer dizer que esse lado direito aqui é a casa de Catita?
– É, tem a muié pilano arroz, tem a rua..., tem rendeira fazeno a renda, tem, tem
o curral de gado, tudo é dela, isso aí pertence a ela, tem os fogão a gás, de lenha...
– Tem tudo?
– Tem tudo. Na casa dela não falta nada.
– E aquela casa suspensa ali, onde tem as bonecas?
– É dela.
– É dela, também?
– É dela também.
– Estou vendo que Mateus tem um dinheiro no bolso!
– Eh, eh, eh (mais risos), sempre eu deito um dinheiro no bolso dele.
– Parece um dólar americano!
– Eh, eh, eh ,(continuam os risos)
– É dinheiro americano ali?
– Não, é dinheiro, é dinheiro desse que perdeu.
– Hum real?
– Não, 500 reais.
– É de quê?
– Daqueles antigo. Esse ano eu deitei e os meninos panharam, porque os
menino pega e panha, panha, e eu sempre, eu deito dinheiro no bolso dele, porque é de
divoção deitar o dinheiro no bolso...
– Então Mateus tem sempre dinheiro no bolso?
– Tem, nunca é inté promessa que a pessoa faz, é valido(sic). Ali tem uma véia
que falou que teve um home aí embaixo, tinha aquele... disse que andava nas esmola
sem poder fazer roupa, sem nada, aí que pegou com Catita mais Mateus se Deus
ajudasse que eles conseguisse vestir direito, que ele dava uma roupa a Catita mais
Mateus, quando que Deus ajudou disse que ele plantou roça e continuou manteno a
vida deles sem precisar. Aí foram dar roupa Catita mais Mateus, todo ano, disse que
dava a roupa de Catita mais Mateus. Por isso que eu falo, é porque é do começo do
mundo Catita mais Mateus, é desde do começo. Enquanto Deus quiser me dano saúde e
134
vida pra mim fazer ele, eu faço. Não deixo não. Mas, agora, eu, eu, faleceno, não sei
quem vai tomar conta, porque tem muitos neto e neta, mas, não tem um que gosta de
fazer! Fica aí na paz de Deus.
– Eu percebo no seu presépio, alguns animais que parecem que são ... que
têm penas de verdade, que têm lã de verdade. Onde a senhora consegue esses
bonequinhos, esses bichinhos?
– Eu faço. Faz ele de pano com, e agora forro por cima, de algodão, quando é o
bode, quando é o galo, a ... a ... eu coloco a pena ...
– Pena mesmo?
– É pena mesmo de galo, os cocá, tudo aí eu que faço.
– Tem um indiozinho ali também, né? Vestido com penas.
– É esse daí foi comprado.
– Foi comprado, o índio?
– Foi.
– E aqueles homenzinhos lá em cima que parecem ter caras de macacos? Lá
com pelo, né? Com ...
– Aí foi comprado, dois aí foi eu quem fiz, por causa dos outros que eu vejo, eu
vou e faço.
– Então, a senhora é também uma ... é uma pessoa que constrói seus objetos
do presépio, não é? D. Aurenive, estou vendo ali uma arma, um revólver no seu
presépio, em cima de um caminhão com uma criança bem ao lado. Por que a
senhora coloca uma arma, um brinquedo ali de ...
– A arma é, é de Mateus; o menino vai aí e amonta no carro (risos), mas a arma
é de Mateus; Mateus tem tudo, tem arma, tem ... tem ... tudo quanto é coisa, ele tem ...
tem a espingarda ali,de cano, tem faca, facão...
– Então Mateus seria um caçador? Ele pode ser o caçador?
– Pode ser, porque ele dava conta de ... acho de ... de ficar ao redor de ... de
menino Deus, pra ninguém não ... não mexer com menino Deus.
Regi: – Hum, hum. O mestre Canito e Charutão que era o toureiro agora o dono
era, era Lingüiça. Ela viu fazeno eles, fazeno na rua e ela foi e então transformou o
135
circo. E aí ela continuou fazeno. Aí fez a armação toda e quando acabou ela fez o
Charutão, mestre Canito e o Zé Lingüiça, tudo de cera; e tem um boi também de cera.
– É, a mandaçaia, a não ser a mandaçaia não tem a cera que presta para isso,
não. E aí ela transformou.
– Quer dizer que ela faz esses personagens todos em cera, ela mesmo que
moldou?
– É, foi ela mesmo quem fez todos três que tá aí, esse boi ali de cera. Quer ver o
boi pr’ocê vê? É tudo de cera, aí ela transformou e fez. Já aquele dali, ela fez de ... de
madeira e ... e tem de pano.
(Aurenive) – Vai ser virado tudo, os brinquedo pra cá e agora os reis vai
chegar na porta de Deus menino. Amanhã eles vai cantar Os Reis pra Deus menino.
– Então, quer dizer que amanhã (era véspera de Ano Novo) a senhora entra
no presépio e desmonta tudo?
– É. Agora é os reis que vai chegar na, na beira de Deus menino, amanhã ...
amanhã cedo se Deus quiser.
136
ENTREVISTA 3, Antonia Santana da Silva, Igatu/Andaraí – Bahia, 1º de
janeiro de 2005.
– Eu faço assim porque, aí fica mais, ... eu acho que fica mais arrumadinho, o
presépio, aí a gente põe em caixa de madeira, em caixa de papelão, e depois a gente
forra tudo de jornal e usa tinta a óleo pra, pra pintar assim de várias cores, de várias
cores pra ficar colorido, e aí a gente vai no mato, pega planta nativa e enfeita o
presépio. Tem as planta também que a gente usa em casa, aí, pra ficar mais bonito,
mais atraente, e é uma tradição que já vem dos mais velho e aí os mais novo vai
passando de vó, de mãe, pai, filho e aí vai seguino a tradição. E há já muito tempo que
eu comecei a armar presepe e foi, foi em 80, parece que em 85 que eu comecei a armar,
aí, daí pra cá não parei mais, aí que meus filho gosta, aí eu cheguei e fiquei armano, e
eu pretendo essa tradição eu levar adiante até, quando eu não agüentar mais fazer, aí
os filho e neto vai fazeno, porque eu adoro e acho muito bonito e enfins, que a gente faz
porque acha bonito, e é também uma coisa que representa a ... o nascimento de Cristo,
o ... a lapinha. Tanto que a gente tem Deus menino ali; no dia de Natal a gente deita
Deus menino, aí, 12 horas, aí no Ano Novo a gente pega e renova o presepe todo,
coloca outras planta e aí já levanta Deus menino, aí ela já ta em pé, e aí ele vai até o
dia 10, 15 de janeiro, aí a gente desmancha a lapinha.
– É.
– É, tem ora que eu desmonto depois do dia 10, que eu gosto de deixar assim em
casa, deixo por, q’eu acho bonito, mas depois que os reiseiro passa a gente já pode
desmanchar, depois do dia 7.
137
– A senhora tem vários brinquedinhos no presépio, não é?
– Têm vários.
– Separados, então?
– Tem. Aí a gente coloca os bichos, a gente rança um negoço que dá nas pedras
que chama casca, aí a gente rança que é esse negoço aqui ó, isso aqui ó, que é casca,
esse aqui é lodo, esse lodo aqui a gente pega no mato, esse aqui é musgo, crote,
girassol, esse negoço ali é barba de velho, esse negoço aí que, que, a gente panha, pega
tudo no mato pra fazer enfeite do presépio.
– É porque o musgo é uma planta amarela e a casca é uma coisa que dá pela
natureza, ela dá grudada assim na pedra que pra arrancar aí a gente usa uma faquinha
pra arrancar ela que, aqui, ó, como ela é ó.Tá vendo? Isso aqui a gente dá o nome de
casca.
– E o musgo é qual?
138
– O musgo é esse aqui, ó. Essa planta aqui.
– Aqui é lodo. O lodo a gente se pega ele no mato aí, ó, e tipo que ele fica que a
gente olha assim ele é um negoço que é dado mesmo na natureza. A gente chega lá e
tira pra ... pra enfeitar o presépio, enfim, e aqui é planta que a gente usa em casa
mesmo, que eu planto em casa. Essa planta aqui ó, se dá o nome de árvore de Natal;
essa aqui a gente chama de, de espada de Ogum, que essa planta é cultivada no quintal.
– É. Com jornal que, aqui quando passa eu ranco as folha e guardo, depois,
quando chega no ano seguinte aí eu vou, forro de novo, pinto e a areia a gente pega
num lugar que chama “requeijão”, que é um, um lugar que tem aqui em cima, aí a
gente vai pegar areia pra poder colocar no presépio.
139
– D. Antonia, por que tem ... estou vendo aí que tem umas ampolas de
injeção, é ... de medicamentos. Por que a senhora coloca isso no presépio?3
– Ali é a família de Catita, né? Ali ... ali a gente coloca fruta, coloca muitas
coisas, né? Remédio, se os filho adoecer, o remédio já tá ali ... ali é ... é ... a ... a ...
segurança da família.
– Quer dizer que o remédio já fica de prontidão, né?
– Já fica de prontidão. Qualquer coisa o remédio já tá ali.
– E a senhora sabe contar um pouquinho a história de Catita e Mateus,
quem são Catita e Mateus? Na verdade, no fundo, no fundo, quem são eles?
– Menino! Olhe, eu não sei. Tinha uma velha aqui que era muito boa nisso,
nessa história, né?
– Quem era?
– Idalice, uma que morava lá em cima.
– Eu conheci, eu conheci.
– Ela que era boa pra contar a história. Agora, já eu, eu só não sei...
– E o que você ouviu falar dela? Você sabia, sabe de alguma coisa que ela
contou?
– Ah, ela dizia assim, é que às vezes né? No Natal ela colocava Catita, aí a
gente ia visitar o presépio, e: ai sinhá d’Alice: cadê Mateus? “Ah minha fia, Mateus
sofreu um acidente e Catita tá ali toda, tá chorando e Mateus tá todo esbagaçado, aí ele
tá no hospital, quando ele melhorar, talvez no Ano Novo ele chega”. Aí a gente quando
dá o Ano Novo: e aí sinhá d’Alice? “Mateus já chegou aqui, minha fia, com uma
quantidade de fi4 e Catita pegou ele e meteu o rei5, olha ele aqui” – e botava Catita no
canto e já fazia outra casa lá separada para Mateus. “Ele agora arrumou outra muié e
Catita não quer mais saber dele, aí só os filho”, e dividia a família um tanto pra um
lado, um tanto pra Mateus e outro pra Catita, e aí a gente chegava lá e ficava fazeno
várias perguntas aí ela contava assim essas histórias e a gente ficava dano risada,
então o presépio dela era o presépio que tinha mais história, e eu lembro assim de
alguma coisa que ela falava, mas não sei é, eu não sei mais.
3
No presépio de D. Idalice, em Igatu, detectei as primeiras ampolas de medicamento injetável no cenário.
4
Filho
5
Meter o rei significa dar uma surra em alguém.
140
– Mas quem são eles mesmo, quem significam ou representam, a senhora
não sabe, não tem idéia?
– Menino, não, não, não tenho idéia, não.
– Eles são de pano não é?
– É. Esse, essa Catita aqui e Mateus, é eles, têm mais de trinta anos.
– Eles foram de Idalice?
– Foram da mãe dela, da mãe dela, e aí depois a mãe dela morreu e aí ela ficou
fazeno o presépio; depois ela já tava velhinha, aí ela disse: “ah, eu não vou fazer mais
que eu não agüento”. Aí eu disse pra ela: ah então eu vou fazer eu já tenho o presépio,
aí ela chegou e me deu, mas, mas, esses daí desde quando eu me entendo por gente eu
já conhecia eles, há muito ...
– Da casa de Idalice!
–Sim, da casa de Idalice. Sim, que esses foram o dela. E aí a gente tem que
preservar, né? Eu tenho muito cuidado com essas coisa, alguns brinquedinho aí foi do
presépio dela, e aí eu guardo com muito carinho, foi uma lembrança dela, que eu era
uma pessoa que gostava muito, aí a pessoa tem que preservar, né?
– D. Alice, é a segunda vez que eu venho aqui na sua casa para visitar a sua
lapinha. Estive aqui no ano de 2002 e fiquei impressionado com o tamanho da sua
lapinha, com as figuras que a senhora coloca, e hoje eu volto e vejo que a lapinha
está quase no mesmo formato, mas, tem outras figuras, outras personagens que
entraram na lapinha. A senhora poderia falar um pouco dessas entradas de outros
personagens que entram na lapinha?
– O meu causo é este: eu arrumei algumas coisas independência que não teve
aqui na lapinha, aquela rede, que tinha, não teve porque a que tinha queimou e eu tirei,
joguei fora, mas tem as outra coisas que coloquei, as planta, tem planta aqui que não
tinha daquela vez e eu coloquei, como ... veja aquela: tem uns pés mesmo que não tinha
aqui, eu coloquei este ano; e as coisa que tinha de brincadeira, tem esses bichinhos
141
aqui, que não tinha; tem, xover6, aquele não tinha; o porquinho não tinha e algumas
coisas aqui que não tinha, aquela lagoa lá dos bichinho beber água, que vai tudo beber
água não tinha, coloquei essa semana; e ... não tem quase nada de novidade, as
novidade que tem é pouquinha.
– É ... mas eu estou vendo ali, por exemplo, aranha, parece uma aranha
caranguejeira?
– É, tem aranha, tem besouro, aquele grande lá, tem mosca, tem sapinho ...
– E por que a senhora coloca esses bichos assim tão diferentes no seu
presépio?
– É, volta tudo, volta tudo de lá pra cá, porque aqui eles tão indo.
– Porque eles já foram lá fazer a visita ao meu menino Jesus, e voltou agora
quando é do dia 31 para o dia 1º eles estão voltano, voltano pra casa, estão seguindo
viagem pra cá.
6
Deixa eu ver.
142
– É.
– É porque aí, é por causa que a gente tinha guardado, não é, aí depois que
tirar o dinheiro, muito bonitinho, sem quebrar, – porque tem gente que quebra –, o
porquinho mesmo eu não deixei quebrar, e o cocazinho que era do menino meu, ele
veio do sertão, que ajuntava dinheiro, aí me deu o cocazinho aí eu cheguei e coloquei,
e, a todo mundo que chega me dá uma coisinha e eu coloco aí, de buzo7 a tudo que os
menino trás pra mim; tem buzinho aí que veio de Salvador que um sobrinho meu
trouxe, e eu coloco eles tudo tem o prazer de chegar e me dá qualquer brincadeira, e eu
coloco aí.
– Sempre na lapinha. Agora essas coisa que eu coloco agora, torno guardar
tudo pro ano que vem, torno colocar tudo outra vez.
– Guarda tudo?
– Guardo tudo.
– Não.
– Não. Aquelas duas bonecas pretas, eu era menina, quase menina, menina
nova, quando a minha tia fez aquelas bonecas duas boneca preta.
143
– Catarina e Brás.
– E quem foram Catarina e Brás?
– Catarina e Brás porque eles freqüentaram, foram visitar o menino Deus
quando nasceu, aí eles ficou seno da lapinha porque eles freqüentaram meu menino
Jesus quando nasceu; aí eles ficaram na lapinha. Pode dizer que é os dono da lapinha.
Fora meu santo lá, é eles quem faz mais graça na lapinha, é eles dois.
– Eles são sempre de cor preta, Catarina e Brás?
– É, todos dois preto.
– Então, eu vi na casa de D. Minelvina, também, Catarina e Brás, de cor
negra, né?
– Eles são preto; Catarina e Brás, eles são preto, são nagô e eles freqüenta a
lapinha. Todas as lapinha que você chega tem Catarina e Brás. Na lapinha que não tem
Catarina e Brás não tem graça; onde chega tem eles dois.
– É verdade. Nagô quer dizer o quê?
– É desses lugar, ... nagô de Salvador, que veste essas rouponas, [aponta para
as baianas presentes no presépio], ó lá, que bota aquelas corrente no pescoço, ta lá ó...
– Então, eles têm essa relação com a raça negra?
– É, é ... com a raça negra ... e tem meu Cosme e Damião também, que fica
naquela frente e todo ano tenho que colocar aqui, na frente, em deferência tem, ...
quando você veio não tinha aquela dali ...
– Qual é?
– A Santa Bárbara, eu não tinha, Santa Luzia eu não tinha, coloquei esse ano,
inclusive coloquei eles onte. E mais algumas coisa que coloquei aí que não tinha, que
esse ano eu tenho. Tem muito bichinho aqui; tem os dois que você procurou esse
negócio aqui, eu tenho, foi desse ano também, não, do ano passado, o ano passado já
tinha eles dois, esses bichinho aqui. E aqui eu coloco porque tem os netinho que é
danado e quando vai chegando aqui embaixo, pego uma lagartixa que tem aí, coloco
aqui, cê só vê o grito, ninguém malina aqui. Ninguém, porque na hora que malina é só
apresentar e logo, logo, jogo nos pé e o moleque sai, sai picado (risos) que é bom por
isso aí ...
– Esses bichos protegem ...
– É, protege a lapinha. Q’eu armo minha lapinha e não gosto, onte mesmo botei
um, o moleque trouxe um carrinho colocou ali, e onte foi pegar sem minha ordem e
derrubou os bichinhos. Hoje falei pra o pai: olha, no dia que Wellinton chegar aqui eu
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vou bater nele, malinando na minha lapinha. Segundo a depoente, o pai: “pode bater,
pode dar tapa, porque o moleque já tá grande demais”, já tá grande, eu não gosto, tudo
que arma o presépio aí, menino não malina não, porque eu não gosto. Não gosto de
forma nenhuma.
– D. Alice, eu estou vendo ali que tem uma fila de soldados, né?
– Tem, é.
– Soldados ...
– É, soldado.
– Lembram guerras.
–É. Eles vão pra guerra.
– E também na lapinha tem, tem esses soldados que vão pra guerra?
– Tem, tem, todos eles vai tudo, vai visitar o menino Jesus, já vieram da guerra
e agora vão visitar o meu menino Jesus, vai tudo. E agora quando for dia 1º, pode vir
aqui que tá tudo virado pra cá, oh, tudo voltando, tudo, é os guerreiro, tudo, é tudo tá
voltando.
– E a senhora deixa essa lapinha até quando?
– Até o dia 7 de ... como esse ano eu atrasei, porque eu armo no dia 20, deixei
pra armar no dia 22, deixo pra desarmar pro dia 8 ou dia 9.
– Tem uma quantidade de dias certa?
– Tem, tem quantidade certa.
– Por quê?
– Porque eu armo no dia 20 de dezembro e desarmo no dia 8 ou 9 de janeiro. É
pra mais de quinze dias, né?
– Mais ou menos.
– É, quinze dias. Porque eu armava presepe, que eu acho que te falei, como uma
brincadeira que eu tive desde pequenininha, que o povo fazia assim, armava os
presepe, o que jogava no mato, os trem, e aí agora eu voltava ia apanhar e fazia, no
canto. Na casa que a gente morava, de primeiro era muito grande e tinha o ponto de
venda, lá eu fazia o meu presepe e colocava um bocado de coisa, botava areia, ficava a
vida todinha, eu brincando com essas brincadeira, pequena. Aí, quando fui cresceno,
fiquei na idade de cinco ano, eu falei pra minha mãe: digo, ô minha mãe, eu armo o
meu presepe pra eu brincar e agora eu vou ficar armano. Ela: “onde é que você tem o
santo menina?” nós tinha sim, um Bom Jesus da Lapa, nós tinha. Eu digo: esse eu não
coloco, não. Eu coloco aí, só boto aí o seu Bom Jesus da Lapa, a senhora me dá? Aí ela
145
me dava, eu colocava assim, o quadro era grande, aí quando foi, eu ia para a igreja
dos crente, lá eles me deram os cartãozinho com o menino Jesus, com Nossa Senhora,
São José e o menino Jesus. Aí eu fiz o meu presepe, pequenininho, só se tu vê! Desse
tamanhozinho, lá no canto, coloquei meu menino Jesus no cartão assim, aí os reiseiro
vieram e cantaram. Quando os reiseiro cantou, aí eu me entusiasmei, ali, eu digo, não,
mãe, eu vou ficar armano meu presepe. Mãe: “menina, isso é complicança, vai ser
complicança pra você, você não pode pegar esse peso”. Eu digo: eu vou mãe, eu vou
pegar, eu vou fazer meu presepe. Ele era tão grande que a minha fia vinha e fazia pra
mim, e de caixão, fazia, botava os caixão assim, e fazia, enchia tudo de planta, quando
os reiseiro chegava era aquele esntusiasmo, cantava, e eu ficava naquele entusiasmo;
no primeiro dia que recebi o meu reis foi de joelho, e de joelho eu recebo até hoje. Aí
eu fui cresceno. Na idade de 15 ano tinha um rapaz aqui, e nós não conhecia dessas
doença né? Aí chegou e pediu a minha mãe pra lavar uma roupa dele. Aí mãe disse: “ô
Louro, seu Louro, eu não tenho tempo de lavar pro que eu tou costurando, mas o senhor
traz que Alicinha lava”. Ele trouxe a roupa. Eu fui pra o rio e lavei uma calça e uma
camisa, quando cheguei fui sentindo uma dor aqui. Digo: mãe, minha mão tá doeno, ó
como tá isso aqui! Já tava umas manchinha roxa aqui, assim. Ela disse: “é porque a
mão fina machucou”. Ah menino, com 15 dia esse couro saiu todo, arrancou todo, ficou
somente nos osso, aquela coisa mais feia do mundo. Aí chegou uns turco, e toda vida só
chegava turco e cigano, eu digo eu vou lá nos turco. Mãe: “não vai pro sol!”. Botei a
mão na tipóia e fui. Até essa data eu não tinha coragem, de forma nenhuma, de ir no
hospital. Quando eu cheguei lá, conversando mais a turca, ela foi assim olhando pra
mim e disse: “baiana bonita, o que é que você tem nessa mão? Ai, ai, quando eu tirei a
mão e mostrei a ela, ela: “vixe que guarda sua mão, guarda! E cuida pra você não ficar,
ou morrer ou ficar aleijada, você tão bonita e ficar aleijada, minha baiana! Você vai
cuidar de você.” Aí eu me assombrei, cheguei em casa, falei pra minha mãe. Digo: oh
mãe, a turca disse que eu vou ficar aleijada se eu não tomar uma providência e ir no
médico! Mãe disse: “já lhe falei, você não quer ir! Aí nesse dia mesmo eu fui. Aí tinha
um médico aqui com o nome de Dr. Armindo, assim, muito bom, esse médico tava no
hospital. Aí eu cheguei, ele disse: “que tu veio fazer menina?” Aí eu mostrei a mão.
“Vixe, menina, aonde tu achou essa doença? Aí eu falei pra ele que tinha sido daquela
roupa que eu tinha lavado, e a minha mãe disse que foi machucado, que a mão fina
machucou. Ele disse:”Não minha filha, de quem foi a roupa?” Aí eu falei: de Louro
vida triste. Ele disse: “Ave Maria! Louro tá arrancando os pedaço a doença de Louro é
146
braba, que escapou de você morrer menina! Aí ele me levou, aí mãe fez uma promessa a
menino Jesus e assim já era em dezembro, e já tava quase d’eu viajar pra pegar enfeite
pra minha lapinha. Aí quando ela pediu a menino Jesus: se eu não ficasse com defeito,
sarasse, não ficasse com defeito na minha mão, e que eu armava por brincadeira, ia
ficar armano para sempre, enquanto vida tivesse. Tu credita que os médico rasgou
minha mão aqui, ó, rasgou e espremeu sem nestesia, que não pegava anestesia,
espremeu, quando espremeu a imundiça pulou lá, tinha caído na cara dele, aí ele
espremeu e fez o curativo; tu credita no menino Deus, primeiramente no meu menino
Jesus, com quinze dias já eu tava sãzinha dessa mão. Fui três vezes no hospital e fiquei
sã da minha mão; não ficou com defeite nenhum, sei que no dia 20 eu já fui armar meu
presépio. Fui na serra, peguei os enfeite e no dia 20 armei meu presépio; tanto é que no
20 que armo ele, mas esse ano eu atrasei porque muita gente dentro de casa, eu digo
vou deixar pra armar meu presepe no dia 21 até 22. quando foi no dia 22 eu armei, mas
senti diferença em mim, eu senti deferença em mim, fiquei nervosa, só não fiz foi cair,
mas fiquei nervosa ficano com aquela falta de paciência assim, aí pedi a eles, falei com
eles, assim porque tinha muita gente, deixava sair pra fora, pra eu poder armar, mas eu
armei, e aí também graças a Deus não senti mais nada, e tou aí ó, com minhas duas
mãos, e fico armano meu presepe enquanto vida eu tiver eu tou armano meu presepe,
meu menino Jesus tá ali atrás, ó, ele só vai sair no dia 31 de madrugada para o dia 1º .
– Então, quer dizer que a data 20 de dezembro é uma data muito
importante pra senhora?
– É muito importante pra mim.
– É uma data simbólica a sua cura!
– A minha cura.
– A partir daí, então, a senhora só arma o presépio no dia 20 por causa
desse acontecimento da senhora ter ficado curada, não é?
– porque se fosse brincadeira como eu vinha armando, por brincadeira, com 7
anos eu abandonava, não tinha nada, mas eu agora se eu for viaj..., eu já falei aqui
olha, tu não vê, eu armo meu presépio. Deus o livre guarde, se chegar morrer um, eu
tenho que fazer a forma, tenho que colocar meu menino Deus, porque não posso deixar
de armar.
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– O seu é de devoção?
– Na base de Deus, fui curada com aquela fé, porque disse que a fé quem cura,
né? A minha mãe ajoelhou e pediu a Ele, e eu sarei Graças a Deus. Também no dia de
armar esse presepe ninguém me contraria, eu levantei esse ano; o meu menino me
ajudou a fazer isso aí porque a planta era pouco dura, e eu tou com problema nessas
mão, fiquei rui dessas mão, aí fiquei quase sem força pra pegar as coisa tudo, aí ele fez
o morro; ele disse: “bom, mãe eu vou, já fiz e agora a senhora faz o resto que a
senhora sabe” , e agora joguei aqui as planta e fui colocar os bichinho. Mas, nesse dia
ninguém fala comigo, ninguém me contrareia, ninguém me diz nada; também todo
mundo, no tempo de meu marido, meu marido tinha o maior prazer, no dia que era o
dia de armar o presepe, era de uma alegria dentro de casa, desde o tempo dele, e tou
nessa inté hoje. E quando for pegar pra armar e desarmar, eu digo: ô gente vocês não
têm coração porque é uma alegria tão grande que a gente tem quando tá com o presepe
armado dentro de casa.
– Não, aí agora não tem mais festa; só tem festa de Cosme e Damião, (risos)
todo ano, eu faço cariru de dois filhos que tenho em São Paulo.
– Faço, cariru.
– Não. Eles nasceu no dia 13 de abril, aí eu digo assim: ah, eu não vou fazer
negócio de cariru, não vou fazer que eu não pedi dois meninos, dois gêmeos na minha
família, e minha família tem. Agora mesmo minha neta tem dois pequenininhos, dois
gêmeos, já tá com dois ano.
– Então a senhora faz caruru por eles serem gêmeos, não é? Cosme e
Damião!
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2. Fichas de entrevistas abertas aplicadas aos indivíduos selecionados para compreensão
do objeto desta pesquisa e autorização assinada pelo sujeito entrevistado para
publicação do material coletado.
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