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Pascal Bonitzer
O sucesso do cinema está ligado, desde as origens, a isso que ele reproduz o
movimento e a vida. Ou melhor, a isso ao qual ele foi feito. Fumaças, tremor das
folhagens, nuvens, águas correntes, todos esses temas de interlúdio são como que o
núcleo do cinema, se quiser, o seu aspecto mais bobo, mas seu “grão” próprio. O grão
da imagem cinematográfica é um grão fino, atmosférico, expoente em sua coexistência
à luz de diferentes texturas da pele, dos tecidos, da pedra, dos pêlos animais, das cascas,
o polido dos metais, as fumaças, etc. Esta coexistência imediata de matérias e de
essências diversas é a raiz de seu poder, isso ao que chamam impressão de realidade. A
imagem é transparente, a película registra o jogo das luzes e das sombras, o trabalho não
se faz na caixa de gravação, mas antes ou diante (a luz) e depois (o laboratório). A
realidade pode sofrer truques a posteriori, mas ela está lá a priori e é ela a quem se
imprime e faz a impressão.
É totalmente diferente como funciona o vídeo. A fita magnética opaca não tem
nada a ver com a película transparente e sensível. O vídeo não opera truques na
realidade ótica. Ele opera num outro domínio. Ele é, de saída, manual, ou melhor,
“digital”. A imagem é, imediatamente, suscetível de se decompor ao infinito; ela engata
quase naturalmente sobre um tratamento não figurativo. A imagem não tem grão
uniforme. Ela se compõe de pontos à partir de cada um dos quais é possível, graças ao
tratamento numérico, ao efeito Squezze Zoom ou Quantel1, de desfazê-la, de
anamorfoseá-la e metamorfoseá-la.
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no fundo do oceano, mas pode-se falar, num jogo dessa ordem, de superfície e de
fundo? A imagem é liberada da perspectiva. Os corpos são liberados de todas as
emoções, de todas as inibições. O espaço é, imediatamente, de jogo colorido (vídeo em
preto e branco não tem sentido, senão como truque especial de cinema), eufórico, leve e
indiferente, psicodelia suave.
Não há ator de vídeo. O ator é a imagem ela própria; a imagem que faz a
histérica ou a esquizofrênica, que se metamorfoseia e que pulula.
O cinema leva à sério a metamorfose, tanto quanto no que Elias Canetti chama a
“enantiomorfose”, a ação de desvelar, de restabelecer à uma identidade primeira toda
uma série de figuras enganosas. Lang e Hitchcock: postiços, espelhos sem aço, falsas
identidades, “inverossímeis verdades”, máscaras diversas.
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Os videofilmes são suportáveis apenas curtos. Eles saturam em seguida a
atenção.
O suporte película é talvez, como disse George Lucas, apenas “um estúpido
material típico do século dezenove”.2 O suporte magnético é, sem dúvida, um material
sofisticado, confiável, digno do século vinte.
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George Lucas, entrevista, in Cahiers du cinéma nº 328, outubro 1981.