Você está na página 1de 18

ESCOLA SUPERIROR DE SAÚDE DA CRUZ VERMELHA PORTUGUESA

9º Curso de Licenciatura em Enfermagem


Ciências da Enfermagem
- Fundamentos de Enfermagem I

FICHA DE LEITURA:

“PROMOVER A VIDA”

Docente:
Profª. Maria de Jesus Maceiras

Discentes:
Adriana Aranha nº 1748
Cláudia Baptista nº 1758
Marisa Matos nº 1782
Pablo Macedo nº 1783

ANO LECTIVO 2007/08


COLLIÈRE, Marie-Françoise, Promover a vida, s. ed. Lisboa:
Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989, 1º capítulo, 118 páginas
ISBN 972-95420-0-7-7
 Introdução
A profissão de enfermagem encontra-se ligada ao conceito
de cuidar, prestar cuidados aos outros e assim contribuir para a
continuidade da sociedade. Existem três pólos a considerar sobre
enfermagem: Cuidados, Profissão e Enfermeira.

2
COLLIÈRE, Marie-Françoise, Promover a vida, s. ed. Lisboa:
Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989, 1º capítulo, 118 páginas
ISBN 972-95420-0-7-7
 Origem das
práticas de
A prática de cuidar é a história mais antiga de sempre. Com
cuidados, sua
o surgir do Homem, surgiu também a necessidade de cuidar, de influencia na
prática de
prestar cuidados ao outro com o intuito de sobrevivência do grupo
enfermagem
social, lutando contra a morte. Prestar cuidados, durante muitos
anos, não foi considerada uma profissão pois englobava qualquer
pessoa que prestasse cuidados a outra.

A história dos cuidados concentrava-se em dois pontos: o


BEM que se relacionava com as forças benéficas (alimentação,
vestuário, abrigo, entre outras) e o MAL, as forças maléficas (o que
causava mau estar, morte, doença).

Os cuidados de manutenção tinham como função manter e


garantir a sobrevivência da vida, enquanto que os cuidados de
restauração tinham como objectivo fazer recuar a morte tratando a
doença. Este trabalho era exercido pelo shaman, pelos padres e
mais tarde pelos médicos, pois existia uma necessidade de realizar
uma distinção do que era bom e do que era mau, identificando o
mal, reduzindo-o e tratando-o, o que levou ao aparecimento da
clínica e posteriormente do hospital.

As práticas de cuidados competiam às mulheres, símbolos


de fecundidade e aos homens competia o trabalho de fazer recuar a
morte e todos os trabalhos que despendessem de muito esforço
físico.

A prestação de cuidados encontrava-se fortemente ligada à


figura feminina e à sua evolução enquanto profissional, podendo
ser identificadas através de: identificação da prática de cuidados
com a mulher; identificação da prática de cuidados com a mulher

3
consagrada; e a identificação da prática de cuidados com a “mulher  Origem das
práticas de
enfermeira” enquanto auxiliar do médico.
cuidados, sua
influencia na
prática de
enfermagem

4
COLLIÈRE, Marie-Françoise, Promover a vida, s. ed. Lisboa:
Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989, 1º capítulo, 118 páginas
ISBN 972-95420-0-7-7
 Identificação
da prática de
Parcella Paula e Fabíola, importantes damas romanas, são
cuidados com
exemplos de mulheres que, ao converterem a sua religião para o a mulher
cristianismo, converteram também os seus palácios e outras infra
estruturas que possuíam em hospitais e asilos, sendo Fabíola
“consagrada a mãe da prática dos cuidados transmitidos pelas
mulheres” (Colliére, 1999, pág.40). Estas mulheres eram
merecedoras de veneração por parte de todos, dado que cuidavam
dos mais necessitados, sendo dotadas de enorme generosidade e,
segundo muitos, de um dom natural. Não mais relevante era
também o facto de, ambas serem da alta sociedade, condição
necessária para o exercício da actividade de cuidar, e para a
atribuição às mesmas das qualidades mencionadas anteriormente.

Desde tempos muito remotos que é à mulher que cabe a


tarefa de “tomar conta”, ao garantir as funções vitais dos que a
rodeiam desde a tribo/aldeia à sua família. Enquanto os homens
caçavam, ás mulheres cabia a função de cuidar das crianças e a da
colheita de vegetais e diversas plantas, produzindo preparações (o
primeiro passo para a origem da farmacoterapia). Exerceram assim
século após século “uma medicina sem diploma” (Colliére, 1999,
pág.40), transmitindo os conhecimentos de mãe para filha.

Denominada como aquela que “dá a vida e anuncia a


morte”(Colliére, 1999, pág.39), os cuidados que a mulher exercia
centravam-se no nascimento e na morte. Sendo o corpo da mulher
expressão da fecundidade, ao dar à luz, esta sente na pele uma das
maiores manifestações de vida. Com um recém-nascido ao seu
encargo, a mulher tinha assim o “requisito” essencial para se iniciar
no campo da prestação de cuidados pois, “Para tratar é preciso ter
dado a vida” (Colliére, 1999, pág.42)

5
 Identificação
da prática de
A formação dos laços básicos era então atribuída ao toque
cuidados com
das mãos, estimulando o prazer e o relaxamento do corpo a cuidar, a mulher
e também à utilização de elementos simbólicos como a água. Factos
como estes influenciaram sem dúvida o desenvolvimento do culto
do corpo até aos dias de hoje: a lavagem (purificação), a massagem
(terapia e relaxamento) entre outros, sempre aliados aos sentidos
humanos e ao uso de óleos e plantas amaciadoras. Embora as
vantagens, devido ao não conhecimento dos seus poderes
terapêuticos, este tipo de cuidados foi excluído do conjunto das
práticas de cuidados.

Acompanhando de uma forma ou de outra fases da vida


como o parto, as mulheres estavam também presentes na morte,
ocupando-se dos rituais funerários.

As mulheres aprendiam assim com elas mesmas,


particularmente com a mulher mais velha (a parteira), sábia, a única
socialmente reconhecida e por isso digna de devoção e respeito. Por
ser a mais velha, era aquela que já havia cumprido o ciclo biológico
completo: havia tido filhos e entrara na menopausa.

Com o surgimento das religiosas, as práticas habitualmente


realizadas apenas pela mulher mais velha, passaram a poder ser
postas em prática também por mulheres jovens, assim como
estéreis e solteiras, coisa antes impensável. Era agora dada a
possibilidade à mulher, de poder cuidar sem ter sofrido as
dificuldades na pele. Aliada a esta mudança e à necessidade de
evitar o mal, além dos cuidados curativos, as mulheres passaram a
desenvolver também os cuidados preventivos, já existentes como
que inatamente em relação ás crianças.

Dado o elevado poder destas mulheres em relação ao


destino das pessoas, começaram a constituir para a Igreja uma

6
ameaça ao poder espiritual (pois consideravam o corpo  Identificação
da prática de
indissociável do espírito), o que fez com que fossem apelidadas de
cuidados com
bruxas e feiticeiras que mereciam ser punidas. Destas ideias surgiu a mulher
então o início da “caça ás bruxas”, praticada durante séculos, após
sucessivas tentativas de repressão dos seus conhecimentos.

Os cuidados prestados pelas mulheres não tinham naquela


época uma remuneração monetária como na actualidade.
Assentavam antes numa economia de subsistência, em que as
mesmas eram recompensadas em espécie, com serviços ou
pequenos presentes, existindo uma relação de necessidade recíproca
entre a prestadora de cuidados e quem os recebia.

Ao longo dos tempos verificou-se uma ascendente


desvalorização económica da prática de cuidados realizada pelas
mulheres, desvalorizando-se assim uma das que se diz ser a mais
importante qualidade feminina: a aptidão inata para cuidar.

7
COLLIÈRE, Marie-Françoise, Promover a vida, s. ed. Lisboa:
Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989, 1º capítulo, 118 páginas
ISBN 972-95420-0-7-7
 Identificação
As práticas elaboradas pelas mulheres em torno da da prática dos
cuidados com
agricultura e do corpo não se podiam dissociar de símbolos e dos
a mulher
rituais feitos através dos ciclos naturais, para garantir os laços do consagrada
homem com o universo.

Desde o aparecimento do cristianismo, os deuses antigos


foram sendo pouco a pouco comparados a demónios, refugiando-se
o seu culto essencialmente nos campos, tornando-se pagão. No
cristianismo, desde o século IX, a igreja iniciou a “sua luta” contra
as mulheres que prestavam cultos politeístas, afirmando que eram
servidoras de Satanás e que nada se sobrepunha à religião
monoteísta.

O medo de ser mulher não era uma invenção do


Cristianismo. Desde o início deste que o pensamento pauliniano
opõe a alma ao corpo, sendo o corpo a prisão da alma, logo um
obstáculo para o caminho do divino.

Assim sendo, a nova concepção tinha como principais


atitudes o desprezo pela carne, ou seja o desprezo da sexualidade e
a existência de uma sociedade patriarcal estruturada pelos homens,
onde as mulheres eram o símbolo e o lugar da sexualidade. A Igreja
exaltava a virgindade e a castidade condenando a mulher, uma vez
que ela é considerada símbolo de fornicação, pecado ou a
encarnação do próprio Satanás. O desinteresse pelo corpo vai por
em causa todas as práticas tradicionais que se uniam na unidade
corpo espírito, sendo que a Igreja passou a deter o poder de decidir
o que era bom ou mau para a alma e corpo, e por consequência os
conhecimentos a utilizar nas práticas da higiene dos tratamentos.

8
A partir da idade média, desenvolveu-se um “novo”  Identificação
da prática dos
conhecimento médico, inicialmente sob a autoria da Igreja e mais
cuidados com
tarde controlado por esta. Essa nova prática era exclusiva dos a mulher
consagrada
homens (inicialmente monges, depois padres e clérigos, e de
seguida monges médicos) e só no século XIII é que apareceram as
primeiras faculdades de medicina frequentadas só por homens,
sujeitos ao celibato.

As mulheres continuaram a ser perseguidas pelo facto de


serem mulheres, de terem adquirido conhecimentos pela própria
experiência, e de deterem muito antes dos monges o saber das
terapêuticas de algumas plantas.

A mulher, segundo o direito romano, não tinha qualquer


direito jurídico reconhecido, tendo de se sujeitar ao poder paternal.
Várias mulheres para escaparem ao casamento optavam pela
virgindade como forma de emancipação filial, o que deu origem a
várias mártires. As mulheres virgens e as viúvas iriam dedicar o seu
tempo aos pobres e infelizes, tornando-se a sua actividade pouco a
pouco numa função social. A escolha da virgindade fez delas
virgens consagradas, santas, fazendo a escolha de vida suprema de
servir a Deus e ás suas obras.

O seu vestuário marcava a sua identidade pois, todas


vestiam trajes semelhantes, brancos, fabricados pela comunidade e
sem ornamentos. Deste modo foi definida a conduta a adoptar pela
mulher, a da desvalorização da pessoa e a recusa do corpo, e
mesmo os princípios de higiene foram alterados posteriormente,
sendo estes ensinados às enfermeiras até às últimas décadas por
médicos e directoras. Deviam estar sempre entregues à oração,
leitura ou trabalho, sendo esta clausura desfavorável para quem
tinha que prestar cuidados ao domicílio. As sua relações com os
homens estavam igualmente reguladas, sendo permitidas se estes se
tratassem de superiores ou desfavorecidos a cuidar.

9
 Identificação
da prática dos
As várias peregrinações e cruzadas que ocorreram no
cuidados com
passado inspiraram a formação de vários hospitais militares. a mulher
consagrada

Até a laicização da sociedade, a instrução das raparigas era


influenciada por condutas dos comportamentos socialmente aceites,
sendo que a função hospitalar estava muito ligada à vida
conventual, embora mais tarde surja um grupo de mulheres, as
Béguines, que sem professar os votos prestavam cuidados a
humildes e pobres. A partir de 1633, Vicente de Paulo decidiu que
as suas filhas não seriam religiosas e não fariam uma profissão
solene, mas sim votos privados e anuais, escapando à clausura,
constituindo as Filhas da Caridade.

Chegado o século XIX, as religiosas que prestavam


cuidados eram uma minoria, sendo a função do ensino largamente
predominante à função hospitalar e cuidados ao domicílio. Mais
tarde a ausência de pessoal laico nos hospitais, bem como a
formação tardia, deixam à religiosa hospitalar a gestão e a
vigilância da maioria dos serviços hospitalares até à 2ª Guerra
mundial, surgindo as primeiras enfermeiras liberais nos anos 50, as
mesmas que nos anos 70 vão dar o primeiro impulso aos centros de
cuidados.

Antes da ascensão do modelo religioso, a relação com o


corpo era simultaneamente de prazer e de desprazer. A vida
quotidiana vivia em harmonia com o ritmo das estações, bem como
no saber utilizar a moderação e evitar os excessos, o que supunha
um grande conhecimento da natureza. No entanto o cuidado do
corpo era possível, pois era considerado um suporte para os
cuidados espirituais (prioridade e único motivo segundo a Igreja),
que ajudaria a salvar a alma e também preparar o doente para uma
boa morte.

10
Com o aparecimento das novas tecnologias, o instrumento  Identificação
da prática dos
veio substituir a palavra, havendo uma distância entre o corpo que
cuidados com
tratava e o que era tratado, continuando os cuidados a ser a mulher
consagrada
desvalorizados e entregues a um pessoal considerado subalterno, na
realidade humilde.

Algumas mulheres de posição elevada destacam-se como


chefes nos conventos. Apoiadas na oração e no seu comportamento
exemplar, a sua vida tinha dois objectivos: obedecer e servir,
seguindo os ensinamentos de Santo Agostinho que dizia que Ӄ da
ordem natural entre os humanos que as mulheres sirvam os homens
(…) porque é justo que o inferior sirva o superior.” (Colliére, 1999
cit., pag.68)

Das prestadoras de cuidadas as noviças, que eram


consideradas mais incapazes, eram destinadas ao cuidado dos
doentes, sendo-lhes permitido fazer estudos de enfermagem. Foi
necessário esperar pela criação de escolas de enfermeiras nos
primórdios do século XIX, para que as práticas de cuidados fossem
fomentadas de conhecimentos, que serão procurados nos
conhecimentos médicos, e também dentro de uma margem e limite
precisos.

Para verificar o valor económico dos cuidados prestados


pelas mulheres consagradas, temos de distinguir as vantagens
trazidas à instituição e a avaliação económica destas prestações.

Apesar da passagem da economia de subsistência à


economia de produção, ao Renascimento, as práticas de cuidados
pelas mulheres consagradas não eram avaliadas financeiramente,
uma vez que serviam a Deus e aos que precisavam.

A pobreza servia às congregações que prestavam cuidados


para enriquecer de duas maneiras: as pessoas que se esforçavam

11
para socorrer os pobres, levavam as instituições a receber doações,  Identificação
da prática dos
assim o hospital beneficiava de vantagens económicas. Por outro
cuidados com
lado, a mão-de-obra era completamente gratuita, à qual era a mulher
consagrada
necessário apenas providenciar vestuário, alimento e dormida. As
mulheres consagradas eram o eixo de um sistema económico
altamente rentável pois, para servir os pobres, elas ofereciam
gratuitamente e durante toda a vida os seus serviços, enquanto que
graças a esses serviços o dinheiro entrava por outras vias, sem que
existisse qualquer avaliação de qualidade aos serviços prestados.

Não existia uma estimativa do trabalho, duração, número de


doentes e cuidados efectuados, não havendo preço, pois a
recompensa não era considerada deste mundo. O sistema socio-
económico permitia manter assim a independência entre a acção da
educação e o controlo social.

Os cuidados irão manter-se até quase aos nossos dias com


um valor económico flutuante entre o uso e o dom gratuito,
travando o reconhecimento social do serviço da enfermagem.

COLLIÈRE, Marie-Françoise, Promover a vida, s. ed. Lisboa:


Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989, 1º capítulo, 118 páginas
ISBN 972-95420-0-7-7
 Identificação da
prática de
No final do séc. XIX e início do séc. XX a enfermeira

12
era vista como uma fada “benfazeja”, sempre presente junto dos cuidados com a
[mulher] –
que sofriam, trazendo apoio e consolação, e como a auxiliar do
enfermeira→auxi
médico, com menor experiência e sem possuir conhecimentos liar do médico
semelhantes aos deste.

Foi devido à dessacralização progressiva do poder


político que se viu surgir a personagem da enfermeira,
imprimindo a sua imagem à prática dos cuidados até aos dias de
hoje. A enfermeira passou a pertencer à ordem social mas sem
um domínio específico de conhecimento, tendo a vocação de
servir até ao desenvolvimento da medicina.

A enfermeira, a responsável pelas tarefas de rotina bem


como os cuidados médicos mais usuais, tinha o papel de
detectar os sinais precoces da doença, procurando na própria
fonte as informações sobre as condições de existência do
indivíduo. A criação de várias escolas de enfermagem
contribuiu para que várias mulheres que queriam prestar
cuidados, o pudessem fazer a partir de então.

A prática de enfermagem elaborava-se através de duas


fontes, existindo uma dupla filiação: a conventual e a médica.

A filiação conventual era o conceito de serviço, o


objecto de finalidade dos cuidados, e passava não só pelo
serviço aos enfermos como também o serviço aos médicos e à
própria instituição. Servir os doentes era o que dava sentido à
prática da enfermagem, mas para cumprir tal missão era
necessária uma vocação, um apelo para servir, ser firme e
decidida, terna e paciente e alegre e meiga.
 Identificação da
prática de
cuidados com a
A filiação médica consistia no aplicar correctamente os [mulher] –
enfermeira→auxi
cuidados prescritos pelo médico, pois eram eles que liar do médico

13
determinavam e ordenava, a actividade dos enfermeiros, sendo
que, com o passar dos tempos, foi necessário instrui-los em três
ciências que até então apenas eram leccionadas aos médicos,
tais como, a anatomia, a medicina e a cirurgia. A enfermeira
passou não só a ter os trabalhos de prestar os cuidados básicos,
que à muito eram prestados pelas suas “irmãs mais velhas”,
como também passou a ter os trabalhos prestados pelos
médicos, aos quais nem sempre tinham tempo para se submeter.
A missão da enfermeira era assim tanto de ordem moral, como
de ordem técnica.

Não era fácil determinar o valor social da prática da


enfermagem proveniente da dupla filiação conventual e médica.
A pertença ao duplo modelo veio abrir dois campos de exercício
diferentes: o exercício nos hospitais e o exercício fora do
hospital. No primeiro, a enfermeira era levada a servir muito
mais o médico enquanto que na segunda esta tinha um papel
diferenciado, tornando-se assistente e não auxiliar do médico. O
peso de tamanha ideologia tornava difícil a estimativa e o
reconhecimento social que oscilava entre um valor
sobrestimado e uma desvalorização, ou seja, de um lado os
cuidados tinham o preço de uma vida humana, e era necessário
consagrar as enfermeiras, enquanto que por outro lado não
podiam ser senão depreciados, porque a enfermeira não fazia
mais do que o seu dever. Tal modo de estimativa social da
prática de enfermagem tinha incidências sociais.

A aluna de enfermagem e a própria enfermeira tinham


de responder a um conjunto de qualidades morais inspiradas nas  Identificação da
regras conventuais. Eram também estes valores morais e prática de
cuidados com a
religiosos que tornaram suspeitos todos os conhecimentos [mulher] –
indispensáveis aos cuidados, e apenas os conhecimentos enfermeira→auxi
liar do médico

14
traduzidos pelo médico podiam entrar nas escolas. Enquanto
que a formação e o exercício das enfermeiras hospitalares iriam
ficar durante muito tempo profundamente marcados por esta
influência, a formação e o exercício profissional das
enfermeiras visitadoras, e depois das assistentes sociais, faria
prova de libertação progressiva desses valores, devido à
necessidade de acesso a novas e diferentes fontes de
conhecimentos.

Os doentes, tratados a maior parte das vezes como


crianças, conheciam a repercussão deste modo de avaliação, e
eram ao mesmo tempo objecto de amor que compensa a
renúncia à própria vida das enfermeiras hospitalares, e de alívio
na sua miséria moral, social e económica, no caso das
enfermeiras visitadoras. A impregnação dos valores morais
levou o pessoal de enfermagem a fazer o discernimento do bom
ou do mau doente, dependendo se o doente é disponível e ouve
o que lhe diz a enfermeira. Estes valores morais e religiosos
apenas contribuíram para forjar uma imagem social da
enfermeira, baseada na dedicação e na disponibilidade.

No caso da enfermeira vista como a auxiliar do médico,


esta também conheceu a valorização e a desvalorização. A
enfermagem garantia a resposta às necessidades vitais e nem
mesmo assim se reconhecia o carácter fundamental destes
cuidados, nem a sua necessidade, embora estes tenham vindo a
contribuir para assegurar um brilho social aos médicos e
participar num ritual feito de honra e deferência. Mas é devido a
este estatuto de auxiliar, que a enfermeira vai buscar uma forma  Identificação da
de valorização social diferente. A prática de enfermagem prática de
cuidados com a
construiu-se em França em referência à prescrição médica, e a [mulher] –
partir daí as enfermeiras tiveram acesso ao conhecimento, coisa enfermeira→auxi
liar do médico

15
que não era considerada desejável e necessária. O facto de ser
auxiliar do médico realça a sua imagem, torna-a mais
vulnerável por não se valorizar numa função que lhe seja
própria.

A procura do desenvolvimento profissional orientava-se


para a hipertecnicidade. Essa procura de competência técnica
estimulava na enfermeira o desejo de valorização como
profissional e como mulher. Isto teve como efeito a
desvalorização dos serviços de cuidados que não tinham que
exigir essa hipertecnicidade.

O reconhecimento do valor económico dos cuidados


manteve o seu carácter gratuito até a Segunda Guerra Mundial,
e durante anos a prática de enfermagem escapou a toda a
legislação do trabalho. O custo económico destes cuidados
começou por fim a ser estimado em custo monetário devido a
dois factores: o exercício liberal da prática profissional e o
início do salariato.

Inspirando-se na prática liberal da medicina e


dependendo directamente da prescrição médica, foi aos
cuidados que as enfermeiras ligaram um valor indiciário de
preço. Estava-se de facto perante o reconhecimento de uma acto
médico, mas sem qualquer conteúdo de enfermagem definido,
que é reconhecido e valorizado financeiramente como tal. Nos
dias de hoje, as enfermeiras não fazem estimativas financeiras
do custo de cada serviço e não se sentem como parte
interessada.

COLLIÈRE, Marie-Françoise, Promover a vida, s. ed. Lisboa:


Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989, 1º capítulo, 118 páginas
ISBN 972-95420-0-7-7

16
 Prevalência
dos papeis
Não podemos separar o papel social desempenhado da
como modo
prática de cuidados. A prática induz o papel e o papel determina a de
identificação
prática.
das práticas
de cuidados
Os trabalhos realizados pelas mulheres não foram alvo de
escrita e por esse mesmo motivo as práticas das mesmas só
poderiam ser transmitidos a novas gerações através da verbalização
das práticas.

Ao longo dos tempos, a prática de cuidados veio a tentar


marcar lugar no mundo profissional sendo que, relativamente ás
consagrado, o seu “papel de enfermeiras” dividia-se em outros dois
papéis: o moral e o técnico.

Sendo o hospital “o lugar privilegiado de aprendizagem”


(Colliére, 1999, pag.108), o regime de internato foi desde o início
uma norma básica, bem como o controlo das actividades extra
horário, devido à crença de que, com apenas vinte anos, havia
susceptibilidade ás mulheres de terem comportamentos ditos
mundanos. O “papel da enfermeira” sobrepunha-se assim ao campo
pessoal, sendo esta seleccionada não só tendo em conta as suas
aptidões cognitivas.

Devido à restrição do espaço físico, as mulheres adquiriam


assim uma visão limitada, que era a pretendida em relação aos
doentes, no sentido de se focarem nos cuidados sem questionar o
que quer que fosse. Era no hospital que as consagradas
aperfeiçoavam o seu papel moral e técnico. Este tipo de formação
em hospitais, passou também a ser aplicado à enfermeira visitadora,
de forma ter contacto directo com o sofrimento humano no seu
máximo, a apreender modos de actuar tanto perante os doentes e
 Prevalência
suas famílias (moral profissional), mas também para com os dos papeis
médicos, com os quais a enfermeira deveria ser submissa. como modo

17
de
identificação
“Exigindo” estatuto profissional, as instituições formativas
das práticas
destas mulheres denominaram-se até ao passado século não pela de cuidados
actividade exercida por estas, mas sim pelo seu papel (conceito que
prevalece praticamente até aos nossos dias). Somente no decreto de
31 de Maio de 1978 é que é pela primeira vez é dada relevância à
natureza das funções do Enfermeiro.

Formaram-se também grupos representativos como a União


Católica dos Serviços de Saúde e dos Serviços Sociais (1922), que
se centravam em melhorar a saúde pública e em resolver questões
direccionadas com a formação em vez de, mais uma vez, serem
especificadas as funções dos enfermeiros,

Aquando da sua prestação de cuidados (mais tarde, cuidados


de enfermagem), as consagradas somente faziam registo relativo à
entrada e saída de doentes, ás crianças abandonadas etc., o que não
constituíam registos suficientemente relevantes para que existisse já
uma literatura de enfermagem, sendo que esta só surge aquando da
formação das escolas. Esta literatura era formada por manuais, que
reuniam os conhecimentos necessários ao desenvolvimento do
papel técnico (sendo inicialmente escritos somente por médicos e
mais tarde também por enfermeiras monitoras) e por boletins, que
se focavam principalmente no desenvolvimento do papel moral, e
nas condições de formação (ambos escritos por enfermeiras).
Existiam também revistas profissionais que tratavam do papel
técnico, divulgando conteúdos acerca de grandes patologias, muito
úteis para as visitadoras, as primeiras que, mais tarde, viriam a
reivindicar remunerações mais justas.

18

Você também pode gostar