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Para evitar

traições
Diferente de qual- lan, tradutor e professor de Lite- O berço principal do primeiro
ratura e Língua Latina da Univer- grupo é, segundo ele, a Universi-
quer outra língua, o sidade Federal de Santa Catarina dade de São Paulo (USP), através
latim não possui mais (UFSC).“Não basta o conheci- do Curso de Pós-Graduação em
mento da língua. O tradutor tem Letras Clássicas. Desde que foi
autores nativos vivos. que conhecer a matéria que traduz criado, no início da década de 70,
e ter a habilidade de expressar o o curso tem formado tradutores
Por isso, a sua tradu- texto original, com arte, com legi- que continuam preenchendo as
ção exige, além de bilidade, tentando reproduzir to- prateleiras de bibliotecas com ver-
dos os valores estéticos e de con- sões em português de César, Cíce-
conhecimento, muito teúdo que estão presentes”. ro, Plínio, Plauto etc.
cuidado A grande diferença entre um Uma característica dos tradu-
tradutor de alemão, por exemplo, tores acadêmicos é, como explica
POR MARIANA HILGERT e um de latim, é que, enquanto o Queriquelli, “buscar ao máxi-
idioma germânico sofre transfor- mo uma equivalência na língua-

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ouco adiantaria ter obras mações por estar vivo e em mo- alvo das características formais
de Plauto e Cícero em vimento, a língua dos romanos e contextuais do texto na língua
mãos se não pudéssemos não se modifica mais. Isso também fonte”. Por isso, nas obras tradu-
compreendê-las. E pouco se com- significa que não surgirão mais au- zidas por este tipo de tradutor,
preenderia do mundo de hoje se tores latinos com o tempo. Já se os textos são complexos e
não fossem estas obras. É justa- sabe o que precisa ser traduzido. oferecem, normalmente,
mente esta a função do tradutor: O problema é saber como e quem notas de ro-
permitir que a comunicação entre irá fazê-lo. dapé,
culturas e povos, mesmo que sécu- Durante a 2ª Jornada de Pes-
los de história os separem, acon- quisa Literatura Traduzida, rea-
teça. lizada em 2005, na UFSC, Luiz
A necessidade de profissionais Henrique Queriquelli analisou o
nesta área surgiu com o Renasci- perfil dos tradutores brasileiros
mento (1300-1650), período de de latim, que, segundo ele, é
transformações marcantes na ci- bastante heterogêneo, es-
vilização europeia, como a reva- pecialmente por causa
lorização das línguas nacionais. O da lacuna de estudos
latim, apesar de ainda continuar da língua latina
sendo usado por alguns autores no país. Den-
( ), começa a ser visto tro desse
como um idioma estrangeiro e vai grupo, os
perdendo seu espaço. que mais
Com o tempo, a tradução passa se desta-
a ser uma tarefa que exige não só cam são
competência, mas, também, muito os acadê-
domínio da realidade sobre a qual micos e os
se traduz, como afirma Mauri Fur- literatos.
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comentando o porquê de certas res acadêmicos. É o estilo do tex- possibilidade da formação de tra-
traduções. to traduzido que distingue os dois dutores”, comenta, criticando a
Além de integrar o corpo docen- grupos. Analisando a tradução da medida do Ministério de Educação
te da Universidade de São Paulo obra , de Petrônio, feita e Cultura, que deixou, às universi-
(USP), Zélia de Almeida Cardoso é pelo dramaturgo e escritor Paulo dades, a decisão de adotar, ou não,
reconhecida por Queriquelli como Leminski, Queriquelli aponta as o Latim dentro dos currículos de
uma profissional que se encaixa marcas de liberdade desse autor. Letras.
no perfil acadêmico. Tradutora de O próprio Leminski admite, ao fim No caso da UFSC, há estudan-
obras como ( ), de sua obra, que “entre trair Petrô- tes no quinto semestre de latim
de Sêneca, Cardoso conhece bem nio e trair os vivos, escolhi trair os – embora seja obrigatório, somen-
as dificuldades daqueles que tra- dois, único modo de não trair nin- te, até o terceiro.
PORPor
JOSÉver queDEexis-
ERNESTO VARGAS
balham com o latim como a língua guém”. te um interesse, Furlan
MARIA Haposta noOURA
ELENA DE M

de partida. “Não é fácil, realmente, Apesar do pouco incentivo dado potencial dos alunos. “Eu tento
traduzir bem um texto latino, pe- à área, muito já foi feito pela tradu- estimulá-los. Eu já estou cultivan-
netrar em seu sentido profundo, ção dos clássicos latinos no Brasil. do uns futuros tradutores e tenho
descobrir-lhe as nuanças, compre- “A gente pode ter uma postura de a certeza de que algum desses vai
endê-lo, enfim, e transformá-lo em se orgulhar”, revela Furlan. “Mas a acabar se envolvendo a ponto de
outro texto, de outra língua, sem gente não pode se acomodar”. Para traduzir. De um grupo grande que
danificar suas especificidades”, ob- ele, o estudo do latim nas univer- começa, acaba ficando uns pou-
serva. sidades ainda é uma grande por- cos que vão em frente. E são esses
As dificuldades do outro grupo, ta para a formação de tradutores. poucos que vão acabar traduzindo,
os literatos, não diferem muito da- “Quando o MEC elimina a obriga- retraduzindo e melhorando as tra-
quelas enfrentadas pelos traduto- toriedade, ele elimina, também, a duções”.

A tradição do latim na escrita

Muitos autores continuaram fazendo uso do latim, mesmo quando as línguas orais já eram outras. Confira

Dante Alighieri (1265-1321): escreveu, em latim, , primeiro livro a tratar do vínculo entre
os idiomas românicos. , por sua vez, foi toda escrita em toscano.

Erasmo de Roterdã (1467-1536): assinando como Desiderius Erasmus Roterodamus,


o autor redigiu toda sua obra no idioma dos antigos romanos.

Nicolau Copérnico (1473-1543): revolucionou os estudos astronômicos com a teoria


do movimento duplo dos planetas sobre si e ao redor do sol. Muitas de suas criações,
deixou em latim.

René Descartes (1596-1650): os primeiros livros do filósofo e matemático foram redigidos


em latim.

Jean Jaurès (1859-1914): a tese do político francês, defendida na Sorbonne no fim do século XIX,
foi toda em latim.

Jacques Derrida (1930-2004): ao ser recebido como na Universidade de Oxford, o


filósofo francês teve de escrever seu discurso em latim.

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