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“O HAICAI É UM EXERCÍCIO DE CONCISÃO E SOBRIEDADE.

Não é porque você gosta de escrever


poemas curtos que eles devem se enquadrar obrigatoriamente no esquema do haicai.
Se as 17 sílabas do haicai não são suficientes para a sua expressão, não tenha medo de
assumir: "eu não escrevo haicai””
-Site na internet

Haiku sobre o ano de 2029


As coisas eram mais simples.
Nós amávamos nossos pais incondicionalmente e, quando morriam, deixávamos flores
em suas lápides nos dias especiais do ano. No natal todos se reuniam e aproveitavam o tempo
juntos, compravam presentes e falavam sobre tudo. Os tios inconvenientes bebiam além da
conta e eram a maior das minhas preocupações, já que a casa a sediar a ceia era sempre a da
minha mãe e quem limpava era eu.
Mas era feliz, todos éramos. Pelo menos comparando-me com o que sou hoje, pobre e
solitário, vejo meus tempos de garoto como um sonho, uma coisa que não aconteceu de fato
ou que não pertence mais ao nosso mundo. Odeio o garoto que me fez ser o que sou, mimado
e inconsequente. A ele o mundo reduzia-se a bombinhas de festa junina e beijos de garotas.
Fútil, sem idéia nenhuma na cabeça, vagava pelas ruas até tarde e mal via os pais. Os
sentimentos me afloram à noite, pois é quando mais sinto falta deles. Daí escrevo, invento uma
história de um lugar longe daqui.
Ontem a noite inventei uma história sobre um homem, no Japão, que tinha uma
empresa de parentes, isto é, vendia atores que se passavam por parentes, amigos ou colegas de
trabalho por um determinado número de horas.
Hoje esse homem acordou na minha cabeça e não consigo fazê-lo sair. De repente seu
nome me veio, como numa visão. Tomohiro Narisawa, nome esse que não usava em seu
trabalho. A sua idéia incialmente era ajudar uma senhora a adotar uma criança, já que lá no
Japão esse tipo de coisa é proibido caso você não tenha uma família tradicional, pelo menos
assim ouvi. Nunca fui ao Japão, mas nos dias de hoje tudo está ao nosso alcance. O Japão está
no nosso quintal, por isso é que essa história que inventei me assusta tanto. Como pude inventar
algo assim? Um corpo estranho em mim, um sentimento vindo sei lá de onde. Talvez eu esteja
delirando, não como direito há uns dias e as memórias se embaraçam na minha mente, talvez
eu tenha lido sobre isso num jornal ou num anúncio na internet. Olho para o meu velho presépio,
sem os reis magos e com alguns animais a menos e me desanimo. Nunca vou achar algum lugar
que venda as peças que preciso para reposição, talvez em algum relicário eu encontre um
presépio inteiramente novo, mas o que faço com o antigo? Jogo Cristo fora? Não. Não sou capaz
desse tipo de atrocidade.
Tomohiro não era cristão, mas tinha sim alguma espiritualidade. O pai era um bêbado
qualquer, de identidade apagada pelo vício e a mãe, preocupada com a segurança do filho
decidiu que iria fugir de casa com o neném. A tentativa de fuga fez o homem ficar agressivo e
começar a arremessar tudo o que via pela frente nela. Ela então começou a correr, levando o
filho no colo e descendo as escadas do prédio em alta velocidade. O marido foi atrás, mas pela
tontura da bebida acabou tropeçando em um dos degraus e rolando escada abaixo. Foi ali o seu
fim. Seu corpo não foi embalsamado, como é tradição no Japão, e seu nome foi para sempre
esquecido.
A mãe aos poucos perdeu tudo o que tinha e decidiu deixar o filho num orfanato. Lá
cresceu sozinho, viveu sozinho e os únicos amigos que tinha eram os velhos bichos de pelúcia
do sótão. Era uma vida ruim, mas uma vida que o garoto se acostumara. Entretanto, com a alta
do preço do metro quadrado do centro de Tokyo, o orfanato teve que ser fechado para dar lugar
a um prédio de quarenta e nove andares, nenhum para o menino.
Foi então levado a uma cidade no interior e informado que a chance de ser adotado era
de 12% e que tinha muita sorte por ter nascido homem, já que os meninos são muito mais
requisitados como filhos herdeiros do que as meninas.
Entrando em contato com essa informação, Tomohiro começou a pensar no que depois
viria a ser seu negócio de sucesso. Já tinha quase dezoito anos e logo estaria livre para viver
inteiramente sozinho, sem parentes ou dinheiro. Precisaria encontrar um trabalho mesmo com
a pouca escolaridade que tinha. Seria impossível, ainda mais em Tokyo. Tokyo é a maior cidade
do mundo, nela voam carros e, em vez de pessoas, máquinas de plástico são contratadas para
os trabalhos mais mundanos, recebendo em troca apenas energia elétrica.
Meu tio sempre falava que eu devia escolher uma carreira que me sustentasse, já que
era muito melhor sofrer por oito horas no dia e aproveitar o resto do que se divertir com um
trabalho e não ter o que comer.
“Trabalho não é pra divertir, é pra sustentar. Afinal, Deus nos condenou ao trabalho e
não nos presenteou com ele.” Ele gostava de falar de Deus e dessas coisas para que não se
sentisse sozinho nos seus pensamentos. Verdade é que meu tio tinha algumas ideias muito
antiquadas, o que fez minha tia separar dele depois duma briga feita que eu tive que presenciar.
-Não, não vai trabalhar! Eu já sustento tudo o que você precisa, mulher! Vai trabalhar
pra quê?
-Por que eu quero autonomia, Geraldo!
-Autonomia é pra ficar dando volta por aí. Tá querendo me trair, só se for!
-A Daiane trabalha e o Ricardo não acha ruim- Meu pai, Ricardo, não sabia o que falar
quando ouviu seu nome. Estávamos todos na ceia de natal, a última que passamos juntos.
-É porque o Ricardo é um fracassado! Um pobretão que vive me pedindo esmola...
E a briga continuou. Meu pai se levantou e foi embora, me puxando pelo braço. Foi a
última vez que vi o tio Geraldo e apesar das opiniões fortes sempre o amei muito. Todo
aniversário ele me dava presentes maravilhosos ou um envelope com muito dinheiro, quando
não sabia o que comprar.
-O sr. Narisawa gostaria de qual serviço da Celestia?
-Ofertas de emprego em Tokyo.
-Desculpe, não entendi, repita novamente perto do microfone.
-Ofertas de emprego em Tokyo.
-Isso é o que encontrei com “Ofertas de emprego em Tokyo” na internet:
ATOR PROFISSIONAL PARA SERIADO, COM DISPOSIÇÃO PARA HUMILHAÇÕES E
BRINCADEIRAS ¥100000
PSICÓLOGO COM EXPERIÊNCIA DISPOSTO A ORIENTAR I.A. E NÃO HUMANOS ¥450000
ADVOGADO HUMANO DE CAUSAS TRABALHISTAS ¥900000
- O sr. Narisawa gostaria de qual serviço da Celestia?

-Ofertas de emprego em Tokyo sem experiência prévia.


-Isso é o que encontrei com “Ofertas de emprego em Tokyo sem experiência prévia”
PRECISO DE HOMEM HUMANO QUE SE PASSE POR MEU MARIDO PARA ADOÇÃO DE
CRIANÇA ¥50000
Tomohiro então, interessado na proposta, tomou um ônibus da pensão onde estava
morando até a casa da mulher. Chegando lá viu uma moça pálida, magra e nervosa. Perguntou-
a se estava bem e ela apenas respondeu que gostaria de resolver tudo o mais rápido possível.
-Por que quer adotar um filho, se é sozinha?
-Por isso. Porque sou sozinha e sinto falta de alguma coisa. Já tentei me relacionar com
homens ou até mulheres, mas não sinto amor por ninguém.
-E não amará o seu filho?
-Não sei ainda. Cuidar de alguém é mais do que só amar. Eu não quero que você
pergunte mais nada, apenas faça o que eu pedi e eu te darei o dinheiro.
E nada mais disse. Eu sei como é aceitar esse tipo de serviço, por não ter nada. Meu pai,
quando morreu, só me deixou dívidas. Minha mãe não queria saber e se fingiu de louca, mas sei
que apenas não queria mais nada com a realidade. Ela também é um gasto, no asilo. E lembro
de novo do dinheiro do meu tio, que me cairia bem. Talvez se ele não tivesse filhos alguma parte
sobrasse para mim, ou quem sabe eu lhe peça, quando o arroz se esgotar na dispensa.
Quando se sentia sozinho Tomohiro bebia. Tomava qualquer coisa que conseguisse
encontrar pelos cantos escuros da cidade, como antes dele fez o pai. Na pensão não era
permitido beber então em algumas noites ele simplesmente não voltava, dormia em lugar
nenhum. Ninguém se dava conta, por lá eram todos desconhecidos. Nessas noites Tomohiro se
perguntava se alguém lembrava dele. Seja a mãe, os colegas do orfanato ou aquela moça que
um dia cogitou adota-lo, mas não o fez pelas características que constavam em sua prancheta.
“quieto e frio”.
-Qual nome eu uso lá?
-Hm... Hirota? Sr. Hirota!
-E não preciso mostrar minha identidade?
-Não, eles farão de tudo para que nós adotemos uma criança, então não vão criar
empecilhos bobos como esse...
-E não te deixariam adotar se estivesse sozinha?
-Tradição é tradição. Nem sozinha nem com uma I.A., para o bem da criança.
-Não me fez bem nenhum morar numa casa dessas.
-Você era órfão?
-Sim, e ninguém veio.
Entraram no estabelecimento e a moça foi escolher o que queria. Ele ficou na sala da
administração, assinando papelada. Inventou uma assinatura, com o maior cuidado para essa
não se parecer com a sua, mas no Japão as tecnologias de reconhecimento facial são tão
eficientes que esse tipo de coisa já era obsoleta.
-Quanto ela te pagou?- perguntou a velha senhora, responsável pelo orfanato.
-Ela quem?
-A moça que te trouxe aqui. Quanto pagou para você se fingir marido dela?
-Minha esposa? Senhora, isso é um insulto a mim e a ela! Se nosso desejo não fosse tão
consistente em adotar um filho eu...
-Eu não vou contar para ninguém. Serei demitida mês que vem, substituída por um robô
bonitinho e ético. Pouco me importa o que vai ser daqui, só gostaria de saber quanto o senhor
cobra.
-Para ajudar a adoção?
-Para qualquer serviço desse tipo, preciso também de um ator disposto a me ajudar.
-...Nesse caso, acho que posso ajudar.
-Claro que pode. Pelo menos um pouco de sorte!
E explicou a ele o novo objetivo. A moça era casada a alguns anos e sua esposa
recentemente estava tendo um comportamento estranho. Era seca nas respostas e vivia se
escondendo, com o celular na mão e os fones no máximo volume. As duas mal conversavam e
quando a agente social queria discutir a relação era prontamente ignorada.
Ele, portanto, precisava criar um perfil virtual. Não com o rosto dele, mas com um rosto
feminino que fosse atraente para sua esposa. Queria que Tomohiro tentasse testar a fidelidade
da moça apenas pela internet. Ele, sem ter como negar, aceitou.
-Mas talvez demore para você se aproximar dela.
-Querido, acho que encontrei a ideal!
-Já vou, amor!
-Peça para “sua esposa” assinar aqui e me telefone quando conseguir entrar em contato
com ela. Te pagarei por dia, quantos dias forem necessários.
-Tem esse dinheiro todo?
-Eu arranjo. Para mim isso é mais importante do que o que tenho no banco.
-E por que você mesma não cria uma conta falsa para falar com ela?
-Ela me reconheceria, conheci ela assim.
Saiu com a mulher, a criança e os ¥50000 na carteira virtual. Ela se despediu com muita
pressa e ele nunca mais teve nenhum contato com o que era, minutos atrás, sua família. A
sensação de vazio logo se preencheria com algumas contas pagas e um almoço melhor. No
caminho de volta pensou na mãe, quem sabe na internet fosse capaz de encontrá-la. Ou, com
dinheiro suficiente, contratar um detetive.
Não sentia ódio por ela, nem ressentimento. Também não sentia saudade, ou a
necessidade de ter uma família. Só queria tirar sua dúvida, resolver o mistério que o perseguiu
por toda a vida. Afinal, as cuidadoras do orfanato lhe diziam com gosto.
-Sua mãe é que te deixou aqui!
-O sr. Narisawa gostaria de qual serviço da Celestia?
-Criar conta em site de relacionamento.
-Qual nome de usuário o sr. Narisawa gostaria?
-Sayuri
-Esse nome não está disponível.
-Sayuri333123134142112312412657685447- e continuou dizendo números até a
atendente virtual informar o limite de caracteres.
-Nome inválido.
-Sayuri314574.
-Qual foto você gostaria de usar.
-Pesquisar “fotos de mulheres do Japão”
-Isso é o que encontrei em “fotos de mulheres do Japão”.
Tentando achar alguma que não fosse de cunho pornográfico, Tomohiro pensou se as
pessoas das fotos realmente existiam. A conclusão mais óbvia era que sim, é claro. Mas por
outro lado as coisas não pareciam reais, as fotos eram de câmeras profissionais e em ambientes
controlados. A pornografia também parecia efeito de computador. Tomohiro nunca se
apaixonou e sentia prazer sempre no mesmo horário do dia, na mesma quantidade e
intensidade e logo depois se limpava da mesma forma e tomava sempre um banho curto e todos
na pensão faziam o mesmo.
Estava prestes a fazer algo que não sabia. Precisaria flertar com uma desconhecida que
já era casada. O alívio era não precisar se passar por si mesmo, tendo outra personalidade esse
tipo de coisa não seria um problema tão grave. É preciso se apagar completamente para
executar o trabalho de Tomohiro Narisawa.
Hoje no correio me chegou um convite. Estranhei, já que pelo correio nunca mais recebi
nada além das contas. Meu tio irá se casar com uma mocinha com a metade de sua idade, que
conheceu pela internet. Meu tio que todo aniversário me dava um envelope com notas gordas
e me levava para passear no seu carro importado. Meu tio que brincava comigo e me defendia
quando meu pai era muito duro. Meu tio Geraldo que se divorciou pouco tempo depois da briga
que teve com meu pai, chamando-o de pobretão. Há quanto tempo não o vejo!
Ele costumava me contar histórias bíblicas ou de sua juventude. Algumas vezes
misturava as duas e eu me divertia muito. Meu avô ouvia tudo enquanto tentava dormir na
poltrona, não falava pois perdera a voz anos antes.
Meu pai ficava na varanda conversando com a minha mãe e minha avó. Falavam sobre
a vida que eles mesmo viveram. A viagem que fizeram em família a Paris, a que tio Geraldo não
foi por que tinha sido alistado para o exército. Tio Geraldo, na verdade, era um pouco azarado.
Tinha muito dinheiro, é verdade, mas vivia tendo esses azares cotidianos. Uma vez
perdeu o voo para Nova Iorque, chegou bufando em casa. Minha mãe tentou consola-lo de
alguma forma, mas ele dizia que só se consolaria se o avião caísse.
-Só assim pra ter sido sorte!
E eu imaginava o avião caindo, dentro dele uma mãe leva o filho para viajar pela primeira
vez. Antes do voo os dois tiveram pouco contato, o menino era instável e parou por dois anos
no reformatório. Eram pobres, mais pobres do que eu, e o dinheiro da viagem foi economizado
durante anos. O menino se anima um pouco, sorri para a mãe e ela preenche seu coração de
lágrimas. O avião cai e meu tio se alivia.
Tio Geraldo vai se casar por amor. Claro, ele diz que foi amor verdadeiro e pouco depois
emenda a conversa numa história bíblica, Judas troca Cristo por trinta moedas de prata. Com o
dinheiro comprou a corda em que se enforcou, minha mãe me ligou do asilo.
Não prestei atenção no que ela disse. Em pouco tempo me torno o mesmo idiota que
era quando novo. Mas não consigo prestar atenção em nada com Tomohiro Narisawa
martelando minha mente. O que ele é? Um nome que li no jornal? Um pobre coitado, como eu.
O que faz aqui?
Como assim?
O que está procurando, aqui no chat?
Conversar, eu acho.
Legal. Eu gosto de conversar.
Tá...
Sobre o que você gosta de conversar?
Qual é sua lembrança mais antiga?
Tomohiro não sabia. Fechou o celular e imaginou qual seria a primeira lembrança da
mulher que fingia ser no chat online. Talvez uma infância normal, na cidade. Ou uma vida mais
calma, na ilha de Utajima, perdendo os dias vendo as ondas quebrarem nos rochedos.
Eu não me lembro
Como assim?
Não lembro, tudo se mistura. Eu assistia muita televisão quando criança, daí não sei se
o que eu via era real ou era filme.
Eu também tenho esse sentimento! Uh, é horrível.
Verdade
Seu nome é Sayuri mesmo?
Sim, por que?
É bonito
Uma folha cai duma árvore, em algum lugar. Uma árvore de verdade, não aquelas de
natal de plástico que meu pai comprava. Ninguém filmou a folha caindo e eu só sei que isso
aconteceu por estatística: uma folha cai a cada onze segundos no mundo. Gosto de falar dessas
coisas, quando posso, já que normalmente tenho que me preocupar com problemas mais sérios
que a queda das folhas ou japoneses inventados. Nos últimos dias tenho me sentido um pouco
para baixo. Envio meu currículo por correio eletrônico e automaticamente uma I.A. me descarta.
Se fosse uma pessoa de verdade o resultado provavelmente seria o mesmo, mas ao menos eu
teria o conforto de ter sido acidentalmente ignorado. Aqui não, todos são lidos, avaliados e
eliminados.
O homem de aluguel monta um site com seu contato e seus serviços. Vê que o dinheiro
ganho pode ser o começo de algo muito maior. Sabendo de seus limites humanos, estipula um
máximo de cinco personalidades diferentes e abre vagas de emprego para quem, como ele, não
tiver muito de si sobrando.
Com o pouco dinheiro que lhe resta paga um anúncio virtual e em poucos minutos
recebe uma ligação.
-Você é humano mesmo?
-Sou.
-Eu estou pesquisando isso há meses e só encontro...
-Sei bem senhora, sei como é.
-Por que está fazendo isso, sr.?
-Por dinheiro, principalmente.
-O que diriam seus pais?
-Estão mortos.
Folhas caem, nascem outras. O mundo era natural. Dez anos atrás folhas caíam no
outono. O adubo era natural, orgânico. Hoje em dia uma árvore pode viver para sempre, se tiver
adubo todos os meses. Meu tio deu um bonsai à minha mãe, também há uns dez anos atrás. Ela
o guardou até enlouquecer e depois disso coube a mim cuidar. Teria vivido mais se eu não
esquecesse de regá-lo.
-Mas você conviveu com seu pai?
-Não. Sou órfão.
-Que tragédia! Lamento saber disso, mas acredito que por não ter a experiência nisso
seus serviços não...
- Um órfão é uma peça de reposição, um substituto. Eu não sei como é ter um pai, mas
serei um pai, se é o que precisa. Assim como se fosse adotado seria herdeiro, não filho. Sou mão
de obra comum.
-Não quero um pai rígido, quero uma companhia para a minha filha. Ela é muito sensível
e venho dizendo que seu pai é um viajante muito ocupado, embaixador do governo em outro
país.
-E ela acredita?
-Ultimamente não. Quer de qualquer forma ver fotos dele, mas digo que seu trabalho
não permite que haja fotos suas com ninguém, é secreto.
-E onde está o sujeito?
-Preso, acusado de traição nacional, trabalhava mesmo no governo.
-A sra. deve notar que nessa situação o meu serviço não tem necessariamente um final.
Claro, podemos arranjar uma morte mais clara para o pai da sua filha, mas enquanto isso eu
preciso ser constantemente o pai dela. Não há espaço para outro ator, é o que digo.
-Eu entendo... eu posso pagar, não é problema! Estou desesperada.
Tomohiro não sabia o que vestir para o seu primeiro dia como pai, passava uma
confiança que estava longe de ter. Não era bom com palavras e sequer conseguia conversar pela
internet com uma moça. Ser pai de uma desconhecida era loucura.
Mas queria achar a mãe, onde quer que ela estivesse. Queria pagar o aluguel de um
apartamento só dele e quem sabe ter um gato, um de verdade. Teria todo o tempo do mundo
para ver as folhas caindo e esse tipo de coisa. Teria o tempo que eu não tenho.
Tempo na verdade tenho, mas não devia. Meu ócio é involuntário e improdutivo até
como descanso. Não paro de pensar em como tudo vai de mal a pior. Sequer tenho terno para
ir ao casamento do meu tio. Devia visitar minha mãe, mesmo sabendo que ela não quer me ver,
me ligou apenas para perguntar do meu pai, ainda uso o número dele e ela não compreendeu a
sua morte. Devia ir, é o certo a fazer, é o mínimo que faço depois dos anos que ela investiu em
mim. Tenho com ela uma dívida imensurável. Com meu pai não, por ele é que escorri a maldita
carreira que me desemprega, com ele aprendi somente as coisas doces da vida e quando as
amargas vieram não soube o que fazer. Geraldo me convidou ao casamento, mas não atende
minhas ligações.
Você já se apaixonou?

Por uma mulher ou por um homem?
Um homem, uma vez. Uma mulher, outra vez. Não tenho só uma vida.
????
Calma, eu quero dizer que já mudei muito. Eu me apaixonei sim, mas a definição de se
apaixonar para mim agora é diferente do que era quando me apaixonei.
Você é estranha.
Obrigado?
Não, de verdade. Eu estou achando que você é só um programa de computador.
Talvez eu seja. 0010001010
Idiota
Isso sou, com certeza.
O que é se apaixonar, para você atualmente?
O que é, Tomohiro? Para ela, para você ou para mim? O que são trinta moedas de prata?
Judas se senta ao lado de Cristo e beija sua mão. Ele retribui lavando os pés de todos. A paixão
é o amor sem moedas de prata. O amor é fácil de vender, mas é caro. Casamentos e bodas de
prata, espadas de prata e baterias de níquel. O sofrimento não tem preço, esse é o que
perdemos.
Tomohiro é pago, muitas vezes, para evitar sofrimento. Foi contratado para ir a uma
reunião de “pedido oficial de desculpas”, que é uma tradição japonesa quando um funcionário
apresenta má conduta ou comete alguma irregularidade. Normalmente o sujeito precisa ir, na
frente de todos os chefes da empresa, de joelhos e se curvando até que receba o perdão de seus
mestres. Além de humilhante, a cerimônia demora. Assim, os casos mais comuns de contratos
dele eram de assalariados desejando alguém que se humilhe em seu lugar.
E a humilhação, ainda que por algo que ele não tinha feito, lhe afetava emocionalmente.
Era como ser condenado por um crime que não cometeu. Para isso recorria à bebida e os lapsos
de memória. Toda noite se apagava, mas todo dia precisava se reescrever. Acordava dolorido,
com a cabeça latejando e o estômago embrulhado. As mensagens no celular se empilhavam e o
aparelho tremia freneticamente.
-O sr. Narisawa tem dezoito mensagens não lidas.
O que você quis dizer com eu te amo? Eu nem te conheço direito!// você tá bêbada? Por
que me falou que não bebia??//o que aconteceu, Sayuri?// o que é que a sua mãe tem a ver com
tudo isso, você me disse que ela morava com seu pai no interior// Por que as mentiras?//
Chega. É possível, muito possível, perceber quando as coisas vão longe demais. É
possível saber quando eu não estou bem de cabeça e imagino coisas que não existem.
Entretanto, tive dificuldade nesse momento de perceber que não vivia a cena que acabei de
descrever. Ao meu celular não chegam mensagens, não me vendo por não quererem me
comprar. Será que sou tão desprezível assim? Pena de si é sinal de loucura. Mas não enlouqueci
por completo, longe disso. Só não tenho estado muito bem, natural para um desocupado como
eu. Se eu saísse de casa as coisas seriam diferentes, arranjaria amigos de verdade e quem sabe
até emprego. Mas não saio, meu lugar é aqui.
Trabalho noite e dia num planeta que não existe. Sinto agora uma imensa dificuldade de
lembrar se é minha mãe que está no hospício ou se sou eu. As coisas antes eram mais simples,
folha verde, mar azul, sol amarelo. Quem é que pagaria minha mensalidade? Não, não
enlouqueci. Estou no meu apartamento e não passo bem, isso é certo. Um apartamento
desconhecido é como um novo planeta. Uma mãe e sua filha esperam em seu planeta a vinda
do alienígena Tomohiro Narisawa.
-Quem é na porta?
-Sou eu.
Ela finge-se surpresa e emocionada. A menina está confusa, pois a mãe não disse quem
vinha. A mulher abre a porta e Tomohiro, maldito nome que se repete a cada linha, entra
discreto e calmo.
-Mika, venha conhecer seu pai!
-Meu...
-Sim, filha. Sou eu.
A garota não tem palavras. Um filho abraça os pais muitas vezes na vida, mas poucas
são de verdade. Normalmente são casos de carência do filho ou dos pais ou até abraços trocados
por presentes e mimos. Um abraço verdadeiro é sem palavras, sem pensamentos ou até ruídos.
É uma pausa no tempo, uma xilogravura japonesa.
E é para ambos, sempre, que o abraço causa impacto. Depois de um abraço verdadeiro
um elo é criado, elo esse que não era nada profissional para o rapaz. Afinal, rompendo o contrato
ele não seria mais nada para ninguém da família. Não poderia ser.
Uma família não deveria acabar assim, aos pedaços e sem sequer adeus. Quando os
tempos eram outros as pessoas tinham um maior cuidado com esse tipo de responsabilidade. Li
num livro, quando criança, que até as raposas conseguem ter amigos verdadeiros, com abraços
verdadeiros. Não sei se essa baboseira toda de “verdadeiro” existe mesmo, talvez seja só para
a gente passar a vida toda procurando coisas inventadas, para não se queixar tanto e não atrasar
a conta de luz.
Já é a segunda, na próxima me cortam tudo. Comprei velas, para prevenir. O gás tenho
de sobra, mas cozinho muito mal. Pensei em pagar uma diarista que soubesse fazer ao menos
arroz com feijão. Os preços são altos, com essa nova burocracia é quase impossível contratar
alguém como fazia meu avô, que tinha empregada todos os dias. Uma daquelas máquinas seria
bom, muito bom. Mas ainda são caras por aqui, de certo que tio Geraldo tem uma. Trabalha
vinte e quatro horas por dia, uma máquina que limpa a casa e uma esposa de mentira. Talvez a
menina sequer exista e tio Geraldo esteja fazendo ciúmes na ex-mulher, é a cara dele.
No Japão a raposa é um animal sagrado. Não todas as raposas, mas algumas com
espíritos evoluídos e vontades próprias. Uma delas tomou forma humana e se infiltrou na corte
do rei da China, fazendo com que ele ordenasse a decapitação de cem homens.
-Você gostava dos Estados Unidos?
-Gostava... É com certeza melhor do que o Equador, mas grande parte do tempo eu
fiquei no porta-aviões e não conheci o país direito. Mas fui ao Havaí, lá é lindo!
-O Havaí?! Onde tem a Moana?
-Quem é essa?
-A do desenho pai!
-É! Lá mesmo, eu... acabei não encontrando com ela, mas ela é super famosa.
-Ela não existe! É só um desenho do Havaí...
E o que existe para uma menina de dez anos? As lendas urbanas, as raposas, os espíritos,
os apóstolos. Tudo perde o brilho e em seu lugar entram as marcas de roupa e os adesivos no
caderno. Tomohiro perdeu as outras fases da filha, lhe resta entender a história pela metade.
Pensa em como ele era nessa idade, mas vê que isso não ajuda muito. Com dez anos os maiores
no orfanato batiam nele toda vez que descia a escada, então não descia.
E o seu mundo era só uma folha verde.
A mãe, por mensagem, disse que estava muito satisfeita com seus serviços e que a filha
não parava de falar no pai. Concluiu que as visitas precisariam ser diárias e até o horário de
dormir da menina, para que ela achasse que seu pai estava no trabalho. Uma demanda dessas
impediria Narisawa de gastar as tardes se embriagando, longe de si. Precisaria se portar
firmemente como o Coronel Kenji Watanabe. Eram nomes demais, pessoas demais para
interpretar. Aos poucos todas iam se parecendo, tomando a mesma forma. O que era um
problema em sua área.
Me desculpe por noite passada, eu bebi demais. Disse que te amo da boca pra fora, nós
mal nos conhecemos. Sobre a minha família não quero falar, eles vivem no interior e é isso. Se
não quiser me responder tudo bem, beijo.
Eu não devia te responder, sua mentirosa. Mas acho que você precisa de ajuda.
Você também.
Como é?
Eu sei que você é casada. Vi na internet.
Mas como você descobriu isso?
Você também usa um nome falso. Você também mente.
... Eu só precisava me distrair um pouco, não ia trair minha esposa. Só queria me sentir
amada.
Ela deve te amar também.
Ela ama, mas ela tem tanto medo de assumir isso que esconde até de mim.
Talvez você devesse dizer para ela que a ama.
As coisas não são tão simples, você sabe.
Não sei. Para ser sincera ninguém nunca me amou.
-O sr. Narisawa gostaria de qual serviço da Celestia?
-Desinstalar conta no site de relacionamento.
-Deseja desinstalar a conta de Sayuri314574?
-Sim.
Uma pessoa a menos. Agora não precisava mais aprender a se apaixonar, o que era para
ter sido muito mais positivo do que ele de fato sentiu. Na tevê e na internet Tomohiro via todo
mundo falando sobre os malefícios de relacionamentos tóxicos e a importância do amor próprio
e da independência emocional. Mas gostava de pensar que tinha com quem falar no fim do dia.
Quem sabe contar do trabalho que inventou ter ou de coisas simples, ondas batendo na praia.
O dinheiro que gastei durante a vida foi quase unicamente para que alguém gostasse de
mim. Queria impressionar uma garota na faculdade e comprei roupas de marca, um relógio e fiz
uma limpeza dental. Ela mudou de turno no semestre seguinte e meu relógio foi roubado.
Juntando as moedas consigo alugar um terno remendado para ir ao casamento e lá
todos irão me olhar torto, como se tivesse entrado no lugar errado. Mais ninguém da família vai,
terei que conversar com qualquer um, porque meu tio vai estar rodeado de amigos, pagos com
festas e canapês.
Seria mais fácil paga-los em dinheiro, reduz o desperdício de comida e roupas que não
servem. Eu não sirvo para ninguém. Devia visitar a minha mãe, ao menos isso sou capaz. Mas
tenho medo, medo de se virar contra mim, de não lembrar quem sou. A doença que ela tem é
rara, hoje todas as doenças são raras.
O remédio foi descoberto por um médico norte-americano após vinte anos de pesquisa.
Pelos cálculos que fez, cada caixa custaria por volta de dois milhões de dólares. O preço abaixaria
se mais pessoas ficassem doentes ou comprassem as caixas por bondade ou tendência. Outro
que tem a doença é o principal general japonês, cujo nome é secreto.
Um dos efeitos é a perda de memória e, pior ainda, a perda da cronologia. Os fatos se
embaralham, minha mãe fala do dia em que conheceu meu pai e o general pede
incessantemente a presença de Kenji Watanabe, Coronel preso por traição da pátria.
Seu substituto abraça a filha e recebe da mãe trinta moedas de prata. Hoje o encontro
foi melhor ainda, a garota contou de como foi na escola e Tomohiro inventou sobre o trabalho,
diz que terá férias em breve e adora o desenho que a menina fez dos dois, com corpos de palito.
Batem na porta. É do governo, um homem de terno preto pergunta por Watanabe. A
esposa, que não sabe o que falar, diz que ele está. Se dissesse o contrário ia tudo por água
abaixo, o apartamento era pequeno e as paredes eram finas. Como o meu, mas aqui não há
ninguém para ouvir nada.
Tomohiro ouvia e um calafrio lhe correu a espinha. Nada disso estava no contrato e sabia
das consequências do trabalho do homem que fingia ser. Mas não poderia falar nada, o
apartamento era pequeno e as paredes eram finas. No meu, vozes me visitam todos os dias. Não
enlouqueci, as ouço apenas por vontade de tê-las de verdade.
-Mãe?
-Filho?
-Sou eu!
-Você tá igualzinho ao seu pai...
-Como você tá?
-Tô bem! Reguei as plantas e já almocei.
O que pergunto depois disso? O que acha de nunca mais ter me visto? Eu não fiz de
propósito, apenas não consigo ir. Nos dias que acordo disposto tenho algo a fazer e esses dias
são raríssimos. Meu tio se casa hoje. Terei que ir, não tenho dinheiro para contratar alguém em
meu lugar. Quem tem o faz, uma mulher traiu o marido e precisa de alguém para fingir ser seu
amante. O objetivo é, como sempre, amenizar as coisas. Seu amante é um homem nervoso,
muito forte e capaz de destruir qualquer um que o contrarie.
O marido está contrariado e quer conversar. Para a conversa Tomohiro é contratado,
seu jeito esguio seria muito mais amistoso e talvez a honra do homem se restaurasse depois de
alguns gritos. Era o que cabia ao homem alugado, o amor até o necessário e também o ódio.
Essas coisas hoje em dia só existem por demanda. As histórias acabam sem final quando a
audiência cai.
Com esse dinheiro talvez pudesse largar o papel de pai e o de coronel. Afinal, nada
entendia de mísseis e tropas terrestres. Não entendia também como ser pai e dar amor a
alguém, mas isso na verdade não sei se sou eu ou o homem que inventei. Escrevo demais, até
ficar chato. Escrevo para ninguém ler, para dizer que escrevi e para preencher as gavetas.
Tomohiro nunca escreveria para isso, beberia a última gota de uísque do mundo antes
de escrever sobre mim. E ele me conhece, pensa em mim como penso nele. Ele liga todas as
noites para centros de estatística e contagem de nomes e checa o nome de sua mãe, deixado
no bilhete junto a ele na casa de adoção. A encontrou doze vezes em lugares diferentes. Por isso
a viagem é cara, pois as pessoas têm nomes iguais e na verdade se repetem. Não existem oito
bilhões de seres diferentes, Deus não é tão criativo assim.
Não sabe nada dela e precisa que ela se lembre do filho que deixou, sem nome algum.
Quem o batizou foi a funcionária do orfanato, enquanto via algum esporte na tv juntou nomes
das figuras e formou Tomohiro Narisawa. A mãe tem outro sobrenome, não quis passar a ele.
Ela não quer ser encontrada, tem vergonha do que fez e passa os dias ocupada, trabalhando no
campo ou dentro de casa, para não lembrar do passado. E tem sucesso, arranjou outro marido
e mais três filhos.
Mas para o garoto ela é ainda a sua mãe.
O que é um filho sem sua mãe? Jesus não teria sofrido tanto se não soubesse que Maria
assistia tudo, impotente. Minha avó gostava mais de meu pai do que de tio Geraldo, assim o fez
sério e ressentido. Por isso não o culpo, no fundo ele é bondoso e apenas queria impressionar
os pais. Sem eles é um ser vazio, impressionando espíritos.
Mesmo sem conhece-la, Tomohiro viu a mãe em vários lugares: nos filmes, livros,
escrituras, canções e até nos seus conhecidos. Por todo lado via a sua mãe e se via nos outros.
Ela mudava de forma e de personalidade, ora era rígida, ora era doce, mas era sempre disposta
a dar abraços verdadeiros e lhe desejar boa noite.
O menino só dormia quando os outros deixavam. No orfanato, eram poucos brinquedos.
As crianças não saíam e ficavam agitadas, mesmo com os gritos para que dormissem. Era esse o
boa noite, um apagar de luzes e palmatória. Uma última gota do uísque e um aviso no celular.
ESTEJA AQUI AMANHÃ SEM FALTA.
Não pode responder agora, também não pode beber e o uísque é só imaginativo. Está
num carro preto ao redor de homens com ternos pretos. Os vidros são a prova de bala e em
pouco tempo está na sede do governo. Todos o olham com estranheza, sabendo de sua
diferença física com o verdadeiro coronel.
O único que não sabe disso é o general, doente e incontestável. Para todos é um alívio
que o sr. Narisawa esteja atuando como Kenji Watanabe, já que liberar da prisão esse perigoso
homem seria um desastre para o Japão. Tudo no Japão é complexo e os haikus agora tem no
mínimo vinte páginas.
Tokyo é a maior cidade do mundo. No centro militar uma bomba de hidrogênio carrega
newtons suficiente para dizimar os Estados Unidos da América ou a China. Em Washington há
uma igual e em Pequim há dezessete. Efeitos instantâneos escritos como poesia.
-Kenji! Esperava por você!
-...Olá!- percebe que não sabe o nome do general.
-Por onde andou? Estou a semana toda te procurando...
-Tive que passar um tempo com a família, o sr. sabe que minha filha anda um pouco
para baixo.
-Ah, sim. A família é importante. Mas preciso te contar algo com urgência. Vamos para
minha sala...
Os agentes do governo se entreolham. Querem evitar que um desconhecido fique a sós
com o general, mas nenhuma de suas ações podem contrariar a dele. Mesmo louco, ainda tem
a patente maior.
-Os relatórios da guerra não vão bem. – tira uma pilha de papéis de cem anos atrás e
coloca sobre a mesa- acredito que em pouco tempo seremos atacados pelos americanos.
-Senhor... essa guerra já terminou!
-Não seja tão confiante, meu caro Kenji. Sei que temos vantagem em territórios
próximos, mas na Europa as coisas não estão bem para.
-Para quem?
-Para os... Meu deus o que estou dizendo?
-Senhor, você está falando da segunda guerra mundial?
-Sim! Que besteira a minha! Eram histórias do meu avô... ele era general antes de ser
preso e morto pelos americanos.
-Lamento saber disso.
-Não lamente, preciso que você assine esse documento aqui. Não mostrei para mais
ninguém, já que fingi para todos que estou maluco.
-Por que o senhor fingiu?
-Para não acharem estranho eu convidar um qualquer a se passar pelo crápula do Kenji
Watanabe.
-Escute, eu sou apenas um ator...
-Não me importa, disso todos sabem. Em certa medida eu também sou, a diferença é
que posso assinar papéis. E Kenji também.
-Sobre o que é isso?
-Não lhe interessa, assine logo.
-E se eu não assinar?
-Vai preso, finjo que lembrei do rosto de Watanabe e no mínimo fica até o resto da vida
numa cela. Nunca te darei sossego.
-Como sabia sobre mim?
-Hoje em dia ninguém consegue esconder nada. Uma rápida pesquisa achou suas
conversas por telefone com a ex-mulher do coronel. Você não tem nada com isso, garoto.
Apenas assine o documento e volte para sua família, até o dia da menina descobrir a verdade.
Então é só ir embora, fingir-se de desconhecido e esperar ser contratado de novo. Você tem
sorte, ao menos te pagam para isso!
Tinta preta e papel branco. Letras em forma de onda. Símbolos atômicos e um botão
vermelho. A hora está por vir, os últimos dias de outono. O inverno nuclear é propício à poesia,
nele homens de neve serão carvão e tudo terá nova forma. Os motivos não existem além da
mente do general, que também não existe. As tragédias são tantas que não nos importamos
mais. Anulamos esse tipo de coisa há dez, vinte anos atrás. O sapato aperta, mas já estou no
taxi. A igreja é maravilhosa, mas não reconheço estátua de nenhum santo. Talvez sejam santos
novos ou algo assim. Meu tio está num canto, arrumando a gravata e a garota ainda não chegou.
-Meu sobrinho! Há quanto que não lhe vejo!
-O bom filho a casa torna...
-Claro que sim! Vem cá me dar um abraço! Está homem já.
-Não mais que o senhor...
-Bobagem! Onde está a esposa?
-Ainda não é tempo, tio Geraldo. Estou aproveitando um pouco dos meus anos solteiros.
-Faz bem, depois disso é só porrada! E sua mãe, veio também?
-Não, ela está um pouco fraca de saúde e decidiu ficar.
-Está morando sozinha? Ou contigo?
-Na verdade ela mora numa casa de repouso, com várias pessoas e cuidadores...
-A mãe num asilo?! Nessa idade! A mulher não passa dos setenta! Que barbaridade!
-Escolha dela, eu insisti pelo contrário, mas...
-Não tem mas! Isso não se faz, sobrinho. Sabe o quanto gosto de você, mas isso não se
faz. Pelo menos a visita?
-Sim, é claro que sim.
Uma bomba me aniquila. Geraldo, o homem canalha cuja vida fácil lhe coloca em pé de
julgar todos. Colocava meu pai na lama com a maior facilidade por que era como eu. Minha mãe
não responde minhas ligações e não consigo ir até lá. Ela não lembra de mim, como eu poderia
ir? Ela não lembra de mim, nem por um instante. Melhor seria pagar alguém no meu lugar.
-...Mas também tenho tido muito trabalho, é difícil achar horários.
-Faz o quê?- seu tom muda, está de novo interessado em minha conversa
-Eu trabalho com tudo que posso, escrevo, edito textos. Pago as despesas de minha mãe
sozinho e ela diz que é muito mais feliz lá do que morando na casa que dividia com meu pai.
-Bom, garoto, se você achou melhor assim eu lavo minhas mãos... No fundo estive por
fora esse tempo todo e não sei opinar direito no assunto.
-E o noivado?
-Vai bem! Me sinto um novo homem, desapegado as coisas. Ela me preenche
completamente, gosta de tudo o que eu faço e vai a todo lugar que a levo. E não reclama do que
a dou de presente, como fazia a...
Levou ao pé da letra a ideia de reconstruir seu templo em três dias. Meu tio é um homem
prático de valores antigos. Valores antigos cumpridos com métodos modernos. A verdade é que
o objetivo por si só é maior do que as vontades que levam ao objetivo. Folhas só caem para o
inverno, nunca mais à toa. Das coisas antigas, dos provérbios e versículos só resta a historinha.
Seguindo-a se é bom, não é preciso mais saber do que ela se trata. Para quê se demorar tanto,
o mundo não dura mais que onze dias. As histórias acabaram.
Tomohiro aceita o novo contrato sem ler. Está transtornado e trabalhar é melhor do que
se embriagar, além de dar efeito semelhante.
Eu achei sua identidade também. Minha esposa me contou e passou o seu número.
Queria dizer que você é uma pessoa horrível. Sem caráter nenhum, que mexe com as emoções
dos outros por... dinheiro! Está feliz agora? Nos separou e me deixou apaixonada por alguém
que nem existe! Está feliz? Eu te odeio! Ela também te odeia, sem você estávamos bem//
VENHA AMANHÃ SE QUISER VER O LANÇAMENTO.
Folhas no chão. Entra no apartamento. Cada vez um lugar novo, nenhum lhe é familiar.
Não se sente confortável em nenhum lugar no mundo. Talvez no abraço da mãe. Meu sapato
aperta e ninguém se sentou a minha mesa. Quero ir embora, mas a noiva não chega. Chegou o
esposo traído que quer conversar, veio armado.
Tomohiro está irritado e diz que ele não tratou-a bem. Diz que se casou para a família
não lhe incomodar e que no fundo gostaria de viver sozinho, numa ilha imaginária. Diz que o
homem vive nessa ilha mesmo sem saber e que ao seu redor há chamas, o Sol está ao lado da
terra, mas ele não percebe, pois não vive mais aqui. Diz que seu mundo acabará e que é sua
culpa, por ter traído a esposa e feito tudo o que fez nos últimos tempos. Atua excepcionalmente
bem e faz o homem ficar muito nervoso. Ele saca a arma e dispara oito vezes. Estouram
champagne. José leva o filho a sua tumba e ninguém me cumprimenta. Devo ir, não sei por que
vim. Ainda vou visitar minha mãe, ainda que para ela eu não seja rosto nenhum. Pelo menos
posso fazer isso e não sou mais uma história que morre dentro de mim. Histórias instantâneas
sem pé nem cabeça, textos complexos sobre coisas simples. Haikus de vinte páginas.
Folha, prata e fogo.

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