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Análise de obras literárias

A rosa do povo

Carlos Drummond de Andrade

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SumÁrio

1. Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7

2. Estilo literário da época............................................................ 9

3. O AUTOR.................................................................................................. 12

4. A OBRA..................................................................................................... 15

5. Exercícios............................................................................................ 43
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A rosa do povo

Carlos Drummond de Andrade


A rosa do povo

1. Contexto social e HISTÓRICO

Na história do Brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 a


1930, aproximadamente, é chamado de República Velha, “a política do café com
leite”, porque ocupava a Presidência da República ora um governo mineiro, ora
um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira e à pecuária. A
manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção e
a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao Estado o papel
de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das oscilações do
mercado. Exemplo típico dessa política foi o chamado Acordo de Taubaté, em
1906, segundo o qual São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se comprometiam
a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível
dos preços.
A sociedade brasileira, no início do século XX, sofreu transformações gra-
ças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região
Centro-Sul do país. Entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de
industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos
foi marginalizada , e estes se deslocaram para a periferia e para os morros; a cultura
canavieira do Nordeste entrou em declínio, pois não tinha como competir com o
apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.
No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam
no Brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-Sul, com sua consequente
industrialização, e, de outro, o atraso das regiões Norte e Nordeste. E um terceiro
fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais com seus
arranjos políticos não representam os novos estratos socioeconômicos. O resul-
tado disso foi o surgimento de um quadro caótico que teve seu término com a
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chamada Revolução de 1930 e o Estado Novo de Getúlio Vargas.


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Na Bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará,


o fenômeno do jagunço e a política do Padre Cícero; os movimentos operários,
em São Paulo; a criação do Partido Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice
na Coluna Prestes, combatida por Arthur Bernardes e Washington Luís. É claro
que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, pa-
recendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. Entretanto, no conjunto,
revelaram a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves dese-
quilíbrios. A queda da Bolsa de Nova Iorque em 1929 e o movimento tenentista
colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930,
dando início ao chamado Estado Novo ou Era Vargas.
Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a essas
transformações. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, sobretudo, artistas e intelec-
tuais, em contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o Fu-
turismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, o Expressionismo e o Cubismo, prepararam
um evento, a chamada Semana de Arte Moderna, com o intuito de romper com a
mentalidade conservadora, representada na literatura pelos poetas parnasianos
e, na política, pelas oligarquias rurais.
De modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 1920 para
combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valorização
do irracionalismo. Mário de Andrade, com a sua poética do “desvairismo” (pu-
blicada no “Prefácio Interessantíssimo”, de Pauliceia desvairada), Manuel Bandeira,
com sua teoria do “alumbramento” (a poesia como uma revelação, isto é, como
epifania), e toda a obra de Oswald de Andrade são três bons exemplos de atitude
artística e intelectual que procurou subverter a ordem existente.
Manuel Bandeira publicou em 1930 seu quarto livro de poesia, cujo título re-
velou o intuito de romper definitivamente com a norma poética: Libertinagem.
A década de 1930 marcou a ascensão dos grandes ditadores da primeira
metade do século: Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália e, no Brasil, o governo
de Getúlio Vargas.
Na literatura, o período entre 1930 e 1945 foi o momento do posicionamen-
to ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da
primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida,
sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. Foi o momento do romance
regionalista de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e da poesia
que se ergueu para defender a dignidade humana, como foi o caso de A rosa do
povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945.
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2. Estilo literário da época

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O Modernismo Brasileiro
O Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. Em janeiro de 1917,
a pintora paulista Anita Malfatti realizou, em São Paulo, uma exposição de pintu-
ra, na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo
alemão, apresentou também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros. A
exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros.
Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era Paranoia ou Mistificação?,
negando valor artístico aos quadros. A exposição agradou, entretanto, a Mário
de Andrade e a Oswald de Andrade.
Mas, oficialmente, o movimento modernista brasileiro teve como marco
inicial a Semana de Arte Moderna de 1922. Em fevereiro desse ano, por sugestão
do pintor Di Cavalcanti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia
e outros, juntamente com escritores mais jovens do Rio de Janeiro, como Ronald
de Carvalho, Renato de Almeida e alguns mais, promoveu, no Teatro Municipal
de São Paulo, a chamada Semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e
escultura, concertos, conferências e declamações.
De modo geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do
movimento ou primeira fase modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão
dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos
de elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação dos diversos ismos
europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper com as normas
acadêmicas, como o Expressionismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Futurismo e o
Surrealismo, já citados anteriormente.
A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso me-
trificado e rimado, presença exageradamente constante na poesia parnasiana.
Aderiu à linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor
e à ironia. Os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do
que é dito e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos
formais.
Na fase mais combativa do Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa
sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmen-
tados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência
do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja uni-
ficação exigiu do leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma
vez que dispensava a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das
consoantes) e a criação de neologismos passaram a integrar a linguagem da
prosa. O melhor exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de
João Miramar, de Oswald de Andrade.
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De 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos Drummond de


Andrade, a 1945, ano da morte de Mário de Andrade, temos o que se convencio-
nou chamar de segunda fase do Modernismo. As grandes experiências técnicas
com a linguagem cederam importância aos temas sociais. Surgiu uma literatura
que procurava denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na
prosa. Aí encontram-se os romances de Graciliano Ramos, como Vidas secas (1938),
São Bernardo (1934), de Jorge Amado, Capitães da areia (1937), Terras do sem-fim
(1942), entre outros.
De 1945 em diante, temos a chamada terceira fase modernista. Alguns
estudiosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade,
e 1964, ano do golpe militar. A linguagem é empregada como instrumento da
busca do ser, sobretudo em João Guimarães Rosa, Sagarana (1946), e Clarice
Lispector, Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora
da estrela (1977).
É importante ressaltar que a obra poética de Carlos Drummond de Andrade
atravessa as três fases do Modernismo.

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3. O AUTOR

Carlos Drummond de Andrade


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
Gauche – pronuncia-se “gôch”, palavra francesa cujo significado literal é
esquerdo; no poema, significa inapto, desajeitado.
Carlos Drummond de Andrade era mineiro de Itabira do Mato Dentro, nas-
cido em 1902, nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e de D. Julieta
Augusta Drummond de Andrade. Expulso do colégio ao findar o ano letivo de
1919, em consequência de incidente com o professor de Português, passou a resi-
dir em Belo Horizonte, onde fez estudos de farmácia. Dedicou-se ao jornalismo e
entrou em contato com o Modernismo paulista, integrando o grupo fundador de
A Revista, órgão que divulgava as ideias modernistas em Minas Gerais.
Em 1926, sem interesse pela profissão de farmacêutico e sem aptidão para
a vida de fazendeiro, lecionou Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano
de Itabira. Ainda em 1926, retornou a Belo Horizonte como redator e depois
redator-chefe do Diário de Minas. Em 1928, a Revista de Antropofagia publicou seu
poema “No meio do caminho”, provocando escândalo nos meios acadêmicos
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mais conservadores.
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Carlos Drummond de Andrade

Em 1934, deixou Belo Horizonte e foi para o Rio de Janeiro (onde viveu até
o fim da vida, em 1987) como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema,
ministro da Educação e da Saúde Pública.
Poeta, contista, cronista e ensaísta, Carlos Drummond soube usar com pre-
cisão a linguagem, sempre de forma elegante e correta, com riqueza vocabular.
Os temas e os motivos de sua obra são sempre cotidianos, observando de perto
os homens e as sutilezas e brutalidades da vida.
Em 1962, em sua Antologia poética, o poeta dividiu sua poesia em nove
áreas temáticas:
1) o indivíduo: “um eu todo retorcido”;
2) a terra natal: “uma província: esta”;
3) a família: “a família que me dei”;
4) amigos: “cantar de amigos”;
5) choque social: “na praça de convites”;
6) o conhecimento amoroso: “amar-amaro”;
7) a própria poesia: “poesia contemplada”;
8) exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas”;
9) uma visão, ou tentativa de, da existência: “tentativa de exploração e de inter-
pretação do estar-no-mundo”.

OBRAS
Poesia
1930 – Alguma poesia
1934 – Brejo das almas
1940 – Sentimento do mundo
1942 – Poesias
1945 – A rosa do povo
1948 – Poesia até agora
1951 – Claro enigma
1952 – Viola de bolso
1954 – Fazendeiro do ar & Poesia até agora
1955 – Viola de bolso novamente encordoada
1959 – Poemas
1959 – A vida passada a limpo
1962 – Lição das coisas
1967 – Versiprosa
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1968 – Boitempo & A falta que ama


1973 – Menino antigo – Boitempo II
1973 – As impurezas do branco
1975 – Amor, amores
1977 – A visita
1978 – O marginal Colorindo Gato
1978 – Discurso da primavera & Algumas sombras
1979 – Esquecer para lembrar – Boitempo III
1980 – A paixão medida
1982 – Carmina drummondiana
1984 – Corpo
1985 – Amar, sinal estranho
1985 – Amar se aprende amando
1988 – Poesia errante
1992 – O amor natural
1996 – Farewell
Prosa
1944 – Confissões de minas
1951 – Contos de aprendiz
1952 – Passeios na ilha
1957 – Fala, amendoeira
1962 – A bolsa e a vida (crônicas e poemas)
1970 – Cadeira de balanço (crônicas e poemas)
1970 – Caminhos de João Brandão
1978 – O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso
1978 – Os dias lindos
1979 – De notícias e não notícias faz-se a crônica
1979 – Historinhas
1981 – Contos plausíveis
1984 – Boca de luar
1985 – O observatório escritório
1986 – Tempo vida poesia
1987 – O avesso das coisas
1987 – Moça deitada na grama
1983 – O elefante
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1985 – História de dois amores (com ilustrações de Ziraldo)


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4. A OBRA

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Os 55 poemas que compõem A rosa do povo foram escritos entre 1943 e


1945, portanto em plena Segunda Guerra Mundial. O livro apresenta um ade-
são consciente do poeta aos problemas da realidade exterior, não sendo raras
referências a episódios do cotidiano, quando não a acontecimentos marcantes da
década de 1940. Três temas são significativos na obra: a sociedade, a existência
e a própria poesia.
Os poemas em versos livres convivem com os poemas em versos metrifi-
cados, e a linguagem é sempre elegante e correta, de grande precisão vocabular.
Precisão, aliás, que surge como resultado de uma permanente luta com as pala-
vras, no anseio de encontrar o gesto necessário para converter a palavra comum
em palavra poética.
Em A rosa do povo, a poesia emerge como um instrumento de resistência
ante as perplexidades do sujeito em face de um mundo que agonizava diante da
guerra. Instrumento de resistência e de esperança, daí o título do livro. A rosa
como metáfora da esperança de construção de um mundo mais justo.
A relação do eu com o mundo exterior ocorre, principalmente, por meio
da sucessão de imagens contraditórias e complementares, como dia x noite, flor
x sentimento de náusea. Avulta no primeiro plano da consciência a busca de um
sentido para a vida, que se traduz no enfrentamento das forças opressoras, sejam
elas herdadas do núcleo familiar ou oriundas da ordem política. Não raramente,
entretanto, o sentimento de angústia perpassa os poemas, seja através de um
humor desencantado, seja através do antilirismo, duas características marcantes
da poesia do autor. A angústia é produto de uma consciência que se debate em
vão contra as forças da realidade. A consciência reclama, em face do mundo, os
seus direitos, e daí emerge a força da negatividade que oprime o sujeito.
Mas a poesia é resistência. A construção do discurso poético é uma tenta-
tiva de construção de um entendimento e de um sentido para a vida. Por isso, o
fazer poético é trabalho essencial, pois é por meio dele e da sua matéria-prima
– a palavra – que o poeta atinge a serenidade e a compreensão necessárias para
a continuidade da crença na edificação de um mundo melhor.
Os dois primeiros poemas do livro abordam exatamente o tema do fazer
poético:

Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
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são puras, largas, autênticas, indevassáveis.


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Uma pedra no meio do caminho


ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra


e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
Por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,


cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começá-la.
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Saber que há tudo. E mover-se em meio


a milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí o meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta


ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto


ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos, na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,


e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel...Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.

Logo na primeira estrofe do poema, temos a rejeição dos modelos con-


vencionais de construção poética. Modelos que limitam, tolhem a liberdade do
poeta e mesmo esterilizam a possibilidade de significados novos. Daí o poeta
afirmar que não fará um rima convencional, como rimar a palavra “sono” com
a palavra “outono”. Ao afirmar que rimará a palavra “sono” “com a palavra
carne / ou qualquer outra, que todas me convêm”, o poeta apresenta ao leitor a
sua técnica de composição poética: relacionar as palavras umas com as outras e
fazer brotar dessa relação o sentido poético. O poeta precisa saber transformar
o lugar comum em um lugar poético.
Na segunda estrofe, o poeta se refere aos poetas contemporâneos que
admira e afirma que eles “não são jornais “, isto é, eles não são superficiais ou
espalhafatosos, tomando do cotidiano apenas o elemento superficial, “nem des-
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lizar de lancha entre camélias:”, ou seja, eles não se prendem a um romantismo


idealizador e superficial, eles empregam a poesia como instrumento para o
estabelecimento de um mundo melhor.
A terceira estrofe corrobora a segunda, pois o poeta lança-se ao tema social,
à realidade, e seus poemas assumem o compromisso com os semelhantes: “É
qualquer homem / ao meio-dia / em qualquer praça”.
A partir da quarta estrofe, o poeta assume publicamente seu compromisso
com a realidade e com o povo, afirmando ser o “Poeta do finito e da matéria.”,
aderindo à vida material dos homens.
No poema seguinte, o tema do fazer poético permanece num dos poemas
mais belos da literatura contemporânea:

Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.


O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
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não indagues. Não percas tempo em mentir.


Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas marzucas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.


Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
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Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Os 58 versos do poema debatem o tema do fazer poético e podem ser divi-


didos em duas etapas: na primeira, por meio de negativas, o poeta fala sobre o
que não se deve fazer na poesia: os acontecimentos, emoções, a vida pessoal , o
corpo. Na segunda etapa, por meio de afirmativas, o poeta define a essência do
fazer poético: aprender a lidar com as palavras, pois elas são a matéria essencial
da poesia. Plenas de sons e sentidos, a difícil tarefa do poeta é saber arranjá-las
de tal forma que elas possam comunicar algo novo. Tarefa difícil, porque as
palavras podem, conforme o talento do poeta, recusar-se a deixar o seu estado
denotativo, permanecendo em seu “estado de dicionário”.
“No importante poema A flor e a náusea, a condição individual e a condi-
ção social pesam sobre a personalidade e fazem-na sentir-se responsável pelo
mundo mal feito, enquanto ligada a uma classe opressora. O ideal surge como
força de redenção e, sob a forma tradicional de uma flor, rompe as camadas que
aprisionam. Apesar da distorsão do ser, dos obstáculos do mundo, da incomu-
nicabilidade, a poesia se arremessa para a frente numa conquista, confundida na
mesma metáfora da revolução (...). Essa função redentora da poesia, associada
a uma concepção socialista, ocorre em sua obra a partir de 1935 e avulta a partir
de 1942, como participação e empenho político. Era o tempo da luta contra o
fascismo, da guerra da Espanha e, a seguir, da Guerra Mundial – conjunto de
circunstâncias que favorecem em todo o mundo o incremento da literatura par-
ticipante. (...)”

A flor e a náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

O poeta carrega consigo os valores de sua classe social. Caminha, angus-


tiado, por uma rua onde as mercadorias adquiriram mais importância que as
pessoas, e a tristeza o observa. Pensa em se revoltar contra a ordem instituída,
mas não tem armas para lutar.
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Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

O relógio da cidade não marca as horas, mas o andamento da história. O


tempo de justiça não chegou e, por isso, o tempo e o poeta estão inconclusos,
incompletos, “fundem-se no mesmo impasse”.

Em vão me tento explicar, os muros surdos.


Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

O poeta continua a caminhar pela cidade e sente que é impossível se co-


municar com as pessoas. As palavras não trazem solução para os problemas; o
sol apenas consola, mas não cura os doentes.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.


Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para a casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Na sua jornada pela cidade adentro, o poeta percebe que os homens cami-
nham mecanicamente e que eles conhecem apenas a realidade dos jornais. O poeta
sente vontade de vomitar toda a sua náusea, sua liberdade, sua incapacidade de
estender a mão ao seu semelhante.

Crimes da terra, como perdoá-los?


Tomei parte em muitos, outros escondi.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
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Os ferozes leiteiros do mal.


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O poeta, em sua angústia, compreende que a literatura é um crime; crime


porque aprisiona o poeta em sua subjetividade, não permitindo sua aproximação
do outro, por isso a literatura é a sua “ração diária de erro”.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.


Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

A angústia e a náusea levam o poeta ao desejo de suicídio; o sentimento


de ódio surge de forma irracional, a partir de uma lembrança de 1918, quando o
chamaram de anarquista; o ódio, entretanto, é visto como uma salvação.

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

O nascimento de uma flor feia, desbotada e desconhecida, pois nem está


catalogada, simboliza o surgimento de algo novo na vida do poeta, capaz de
vencer o tédio, o nojo e o ódio.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Num gesto incomum, o poeta senta-se na rua da capital do país às cinco


horas da tarde e acaricia a nova forma de vida que surge, no formato de uma
flor. Uma tempestade se anuncia, possivelmente virá para desfazer todo o mun-
do “torto” em que as pessoas vivem. Finalmente, a flor vence o asfalto; surge a
esperança de uma vida melhor. De uma vida sem guerras, sem alienações e sem
o desgosto por saber-se vivo.
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A rosa do povo

As quinze estrofes que compõem o poema “O medo” contêm versos irregu-


lares, além de versos em redondilha maior (7 sílabas métricas). No poema, cujo
tema é o medo, que funciona como uma espécie de símbolo da ordem opressora
daquela época, a palavra medo vai se espalhando pelos versos, pelo corpo do po-
ema, num movimento contínuo, paralisando e esterilizando as ações humanas.

O medo
A Antonio Candido
Porque há para todos nós um problema sério...
Este problema é o medo.
Antonio Candido. Plataforma de uma geração
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo


Cheiramos flores de medo
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens


e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
Nos dissimula e nos berça.
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25
Carlos Drummond de Andrade

Fiquei com medo de ti,


Meu companheiro moreno.
De nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.


Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,


vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,


lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,


duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,


com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
Tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema: outras vidas.

26
A rosa do povo

Tenhamos o maior pavor.


Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,


recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade,


depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

A primeira estrofe já introduz o tema do medo; as possibilidades na vida


são limitadas e o nosso destino, incompleto. Na segunda estrofe, a educação
pelo medo faz surgir um mundo cujas bases é o próprio medo. Nas estrofes
seguintes, o medo vai paralisando as pessoas, impedindo-as de agir. Na sétima
estrofe, surge o desejo de rebelião. Mas o desejo é barrado pelo medo e o sen-
timento de revolta se cala. Nas estrofes finais, o medo é absorvido de tal forma
pelo sujeito que parece se converter numa segunda natureza, sendo transmitido
para os descendentes.
É importante lembrar, aqui, que as forças opressoras, na obra de Carlos
Drummond de Andrade, são oriundas da realidade interior e da realidade
exterior. No mundo interior, o código moral da família impregna o sujeito,
configurando-se num princípio opressor, porque consiste em fazer o sujeito
restringir a sua vontade em nome das vontades alheias e adiar ou moderar a
satisfação de alguns prazeres imediatos, tendo em vista o cumprimento de ob-
jetivos recomendáveis a longo prazo. Na realidade exterior, as forças opressoras
são oriundas de uma política ditatorial que impede o sujeito de vivenciar sua
liberdade. Por isso, na obra do poeta, o esforço para transcender o medo que
paralisa é duplo: é preciso vencer o medo interior e é preciso vencer as forças
externas que limitam o homem.
No poema “Passagem da noite”, o medo recebe o nome de noite, que surge
como o símbolo das forças opressoras que estancam o desejo de liberdade.
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27
Carlos Drummond de Andrade

Passagem da noite
É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?


E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente noite.

Mas salve, olhar de alegria!


E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.

28
A rosa do povo

Obrigado, coisas fiéis!


Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

O poema está dividido em dois segmentos: no primeiro, formado pelas


duas primeiras estrofes, predomina a imagem da noite como força opressora
que leva o sujeito ao conformismo, fazendo-o sentir-se incapaz de modificar
o quadro das circunstâncias em que vive. No segundo bloco, que é formado
pela terceira e última estrofe, a conjunção adversativa mas dá início ao verso,
contrapondo o dia que surge à imagem da noite. O dia surge como esperança,
como crença na possibilidade de uma vida melhor, como força que enaltece e
dignifica a existência.
É bastante comum em A rosa do povo a transição da náusea e do sentimento
de impotência diante da realidade para o sentimento de esperança e de trans-
formação consciente da realidade. No poema “Áporo”, como um soneto em
redondilha menor (versos com 5 sílabas métricas), a passagem da náusea para a
esperança surge numa imagem curiosa:

Áporo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,


em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto Vocabulário
(oh razão, mistério) Áporo = orquídea; problema de difícil
presto se desata: solução; inseto
em verde, sozinha, Presto = rápido
antieuclidiana, Antieuclidiana = ilógico, fora da lógica
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uma orquídea forma-se convencional


29
Carlos Drummond de Andrade

Um inseto cava a terra, nos primeiros oito versos, sem encontrar saída.
Nos seis últimos versos, o labirinto em que o inseto se encontra é desfeito pelo
nascimento de uma orquídea. O poema pode ser todo uma metáfora da situação
do país na década de 1940, época do chamado Estado Novo; o nascimento da
orquídea seria a imagem da esperança, de transformações sociais.
É lícito associar o esforço do inseto ao esforço do poeta, que, tolhido pelo
sentimento de culpa e pela sensação de náusea, percebe na imagem da orquídea
a presença de elemento novo capaz de suscitar esperança e crença no surgimento
de um mundo melhor.
Para alguns estudiosos da obra drummondiana, “Áporo” é uma metáfora
da criação poética. A palavra poética, presa nos subterrâneos da subjetividade,
acaba por fim se libertando e se realizando no ato da escrita. (* Sobre os aspectos
“subterrâneos” da escrita, Machado de Assis escreveu um curioso conto, que está
em Várias histórias, intitulado “O Cônego, ou a metafísica do estilo”).

Versos à boca da noite


Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?


Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? Sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?
Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.
Lá onde não chegou a minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,
30
A rosa do povo

e tanta indecisão entre dois mares,


entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona do desejo


selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
Se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia de passado


visitar-me na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,


do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.
Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, e onde, quando?
seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,


voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-Riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!


Que riqueza! Sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
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num todo sábio, posto que sensível:


31
Carlos Drummond de Andrade

uma ordem, uma luz, uma alegria


baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,


um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelos.

Em dezesseis estrofes de quatro versos, com um verso final, o poeta


desenvolve “uma meditação da idade madura sobre a insatisfação do indi-
víduo consigo mesmo, a nostalgia de um outro eu que não pode ser e a per-
plexidade que leva a explorar o arsenal da memória, a fim de elaborar com
ela uma expressão que, sendo uma espécie de vida alternativa, justificasse a
existência falhada, criando uma ordem fácil, uma regularidade que ela não
conheceu.”
O poeta procura, então, aceitar, com alguma serenidade, o peso negativo
das etapas vencidas:

Passagem do ano
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.

O poeta opõe o tempo da vida individual ao tempo da vida da humanidade.


Assim, é a vida dele que se aproxima do fim, não a da humanidade.

Beijarás bocas, rasgarás papéis,


farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo na solidão.
32
A rosa do povo

Enjaulado em sua solidão, o poeta apresenta os artifícios com que os ho-


mens tentam apagar a consciência de seu destino.

O último dia do tempo


não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam os homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu e teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

A única solução possível para os problemas da existência parece ser a


aceitação das imposições da vida.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Não adianta querer enganar a consciência para escapar dos desígnios da


vida, seja por meio das drogas, da filosofia ou da literatura. Tudo é inútil.

As coisas são limpas, ordenadas.


O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
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33
Carlos Drummond de Andrade

A boca está comendo vida.


A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

A vida prossegue por conta própria, indiferente ao destino pessoal do poeta.


A vida se espalha pelas coisas e pelas pessoas como algo oleoso, como um novo
dia, uma nova manhã que tudo clareia com a sua luz; prossegue para além do
indivíduo. O fim de uma vida não é o fim da vida.
No belo poema “Consolo na praia”, o sofrimento imposto pelas perdas na
vida encontra amparo na resignação, na aceitação do destino pessoal ou no fato de
que continuaremos a ter vida, sentimentos, algum consolo próximo ou o sono.

Consolo na Praia
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.


O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.


Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,


em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.


À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
34
A rosa do povo

Tudo somado, devias


precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

O poema “Caso do vestido” é composto de 73 dísticos (estrofes com dois


versos) em redondilha maior (sete sílabas métricas) e apresenta uma estrutura
dramática, teatral, pois contém personagens, diálogos e um enredo progressivo
com clímax e desfecho.

Caso do vestido
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido


de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?


Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.


Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, esse vestido


tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai


palavras de minha boca.

As filhas desejam saber da mãe o porquê de um vestido dependurado na


parede. A mãe teme contar, pois o marido está por perto.

Era uma dona de longe,


vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,


se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,


se fechou, se devorou.

Chorou no prato de carne,


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bebeu, gritou, me bateu,


35
Carlos Drummond de Andrade

me deixou com vosso berço,


foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.


Em vão o pai implorou,
dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,


lamberia seu sapato.

O marido se apaixonou por uma “dona de longe”, mas ela não lhe dava
atenção.
Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,


a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência


e fosse dormir com ele...

O marido pediu para a esposa que pedisse a essa “dona” que fosse dormir
com ele. Ao recordar-se desse fato, a mãe chora.

Nossa mãe, por que chorais?


Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai


chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos


pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei


aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse


de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,


me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele


se a senhora fizer gosto,
36
A rosa do povo

só para lhe satisfazer,


não por mim, não quero homem.

A “dona de longe” ofende o orgulho da esposa.

Olhei para vosso pai,


os olhos dele pediam.
Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,


de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia


as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,


me curvei... disse que sim.
Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,


passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,


não comia, não falava,

tive uma febre terçã,


mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,


fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,


costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,


meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro


pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.


O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba


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me aparece já sem nada,


37
Carlos Drummond de Andrade

pobre, desfeita, mofina,


com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,


não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.


Mas te dou este vestido,
última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,


da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,


ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado


confessou que só gostava
de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,


no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,


me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,


rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:


vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa


que recorda meu malfeito

de ofender dona casada


pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido


e me dai vosso perdão.
38
A rosa do povo

Olhei para a cara dela,


quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,


quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha


delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados


com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,


boca não disse palavra.
Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho


e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.


Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido


e disse apenas: Mulher,
põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,


era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado


e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,


um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,


vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço


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vosso pai subindo a escada.


39
Carlos Drummond de Andrade

A partir de um episódio aparentemente banal, um caso de adultério, o poeta


constrói uma atmosfera dramática, dando ao “caso do vestido”, relatado pela mãe
às filhas, uma dimensão que extrapola os limites do cotidiano. Enquanto o marido
sucumbe a uma paixão, a mulher encontra forças para criar os filhos e manter-se
viva em meio às dificuldades material e moral que a envolvem. Sua capacidade
de aceitar o seu destino e a sua paixão a conduzem da extrema humilhação ao
sublime perdão, revelando toda a força que subsiste na alma feminina.

A atitude da mãe em receber o vestido da “dona de longe” e colocá-lo na


parede revela a habilidade da mulher em deixar sempre ao alcance da consciên-
cia do marido a evidência da traição, encontrando, dessa forma, uma vingança
daquilo que sofrera durante a ausência do marido adúltero.
O poema “Morte do leiteiro” narra a história de um leiteiro que é tomado
por ladrão e é assassinado na madrugada. É interessante lembrar aqui que, antiga-
mente, havia o leiteiro e o padeiro que toda madrugada deixavam o pão e o leite
na porta das casas. No poema, o clima de medo em que vivem os moradores leva
um senhor a acordar na madrugada e a confundir o leiteiro com um bandido.

Morte do leiteiro
A Cyro Novaes
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro


de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

40
A rosa do povo

Na mão a garrafa branca


não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico


(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
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Ladrão? se pega com tiro.


41
Carlos Drummond de Andrade

Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono


de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

A última estrofe do poema contém uma das mais belas imagens da literatura
brasileira. O branco do leite encontrando-se com o sangue do leiteiro unem-se e
formam um tom rosado que é identificado com a aurora, com o dia que nasce.
42
A rosa do povo

Em A rosa do povo, há uma série de poemas em que o jogo entre a opressão


e o desejo de liberdade aparece materializado na imagem de cidades, como ocor-
re em “Carta a Stalingrado”, “Com o russo em Berlim”, “Visão 1944”, “Cidade
prevista”, “Mas viveremos” e “Telegrama de Moscou”. Comparados aos demais
poemas do livro, eles são esteticamente inferiores. Mas é importante compreendê-
los à luz do momento histórico em que foram compostos. No caso de “Carta a
Stalingrado”, por exemplo, é interessante saber que, nessa cidade, teve início a
capitulação do exército nazista, entre agosto de 1942 e janeiro de 1943. O povo
russo surgia como herói da liberdade e a cidade, como símbolo de resistência e
luta contra as forças opressoras.

CarTa a Stalingrado
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem
enquanto outros, vingadores, se elevam.
...........................................................................................................................................

Comentário da crítica
Há livros que agradam, há livros que desagradam e há livros necessários. A rosa
do povo é um livro necessário. Mas necessário para quê? Ele é necessário para que todos
possam entender que aquilo a que chamamos de eu vive em permanente conflito com o
que chamamos mundo. O desejo de transformar o mundo é também uma esperança de
promover a modificação do próprio ser.
Numa época de apego tão forte ao consumo, quando pensamos que viver e consumir
são sinônimos, uma reflexão sobre o sentido da vida é necessária. Na época em que escreveu
A rosa do povo, Carlos Drummond de Andrade não ficou omisso em relação aos problemas
que assolavam o homem: em seu ofício de poeta, ele conferiu às suas palavras o calor neces-
sário para que elas traduzissem a sua indignação ante a guerra e as políticas opressoras.
Num país como o Brasil, onde a distância entre os mais ricos e os mais pobres
aumenta em qualquer governo, seja ele de esquerda ou de direita, aqueles que usufruem
do privilégio de estudar têm a missão de sair dos limites do próprio ego, de refletir e de
participar da transformação de uma sociedade que prima pelas injustiças que destituem
o ser humano da sua humanidade.
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43
Carlos Drummond de Andrade

5. Exercícios
1.
Leia com atenção os dois fragmentos a seguir,
extraídos do poema de Carlos Drummond de
Andrade cujo título, “Procura da poesia”, tam-
bém indica o tema. Compare-os e explique como
o tema é desenvolvido em cada um deles.

Fragmento 1
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Fragmento 2
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

2.
............................................................................................................................
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
................................................................................................................................
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
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A rosa do povo

Esse é um fragmento do poema “A flor e a náusea”, do livro A rosa do povo, de


Carlos Drummond de Andrade.
a) O que o nascimento da flor representa?
b) Que relação se poderia estabelecer entre este poema e o momento histórico
em que foi elaborado?
3.
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Nos versos acima, extraídos de “Consideração do poema”, do livro A rosa do


povo, de Carlos Drummond de Andrade, o tema predominante é:
a) o sentimento de revolta social.
b) a metalinguagem.
c) a insuficiência do eu diante da linguagem poética.
d) a renúncia aos valores morais herdados da família.
e) a descrença na realidade exterior.
4.
É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
AOL-11

45
Carlos Drummond de Andrade

E que adianta uma lâmpada?


E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente noite.

Mas salve, olhar de alegria!


E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,

as cores, posse das ruas.


Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

a) O poema anterior pode ser dividido em duas partes. Quais são elas e qual
palavra as caracteriza?
b) O que expressa o poeta em cada uma delas?

46
A rosa do povo

Texto para as questões 5 e 6


5.
Nosso tempo

I
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,


viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.


As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.


Onde te ocultas, precária síntese,
Penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.


As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.


Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
AOL-11

................................................................................
47
Carlos Drummond de Andrade

O fragmento de poema anterior pertence ao livro A rosa do povo, de Carlos Drum-


mond de Andrade. Relacionando-o com os demais poemas do livro, é correto
afirmar que:
a) prende-se ao tema da subjetividade, não estabelecendo nenhum vínculo com
a temática social.
b) prende-se à temática social, não deixando transparecer nenhuma carga emo-
tiva.
c) trata-se do tema do próprio fazer poético, um dos temas centrais da obra.
d) nele, como em outros poemas, o desejo de transformar o mundo é também
um desejo de promover a modificação do próprio ser.
e) nele, como em outros poemas, estão presentes a ironia e o humor do au-
tor, que, pessimista, não vê nenhuma condição de melhora na vida dos
homens.
6.
Considerando que os poemas foram escritos entre 1943 e 1945, dê uma interpre-
tação para a palavra “partido”, presente no dístico inicial do poema.
7.
Acordo para a morte
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

Os versos acima iniciam um conhecido poema de A rosa do povo. Nele, é narrado


o último dia de vida de um homem que vai viajar e não sabe que vai morrer.
Trata-se do poema:
a) “Morte no avião”.
b) “Morte do leiteiro”.
c) “Caso do vestido”.
d) “Consolo na praia”.
e) “Versos à boca da noite”.

48
A rosa do povo

GABARITO
1. O tema do poema é o fazer poético. No b) Na primeira parte, a palavra “noite” é em-
fragmento 1, por meio de negativas, o poeta pregada como símbolo das forças opressoras
expõe o que não é matéria de poesia; no que forçam o sujeito a acreditar-se incapaz
fragmento 2, por meio de afirmativas, o poeta de modificar a realidade exterior; na segun-
define o fazer poético como sendo a explo- da parte, a palavra “dia” surge como metá-
ração dos sons e dos sentidos da palavra, ou fora da esperança, da sucessão das trevas
seja, fazer poesia é essencialmente lidar com que aprisionam e pela luz que liberta.
palavras. 5. D
2. 6. A palavra “partido” pode se referir a partido
a) O nascimento da flor representa a esperança político, ou melhor, a um certo compro-
de regeneração de um mundo marcado pelo misso ideológico, já que os versos foram
asco e pelo ódio. escritos durante os tempos da Segunda
b) Publicado em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, o que obrigava as pessoas
Guerra Mundial, a imagem da flor no poema a assumirem uma posição diante da guerra.
(assim como a imagem da rosa que dá título A palavra “partido”, no segundo verso do
ao livro) representa a esperança contra os dístico (“tempo de homens partidos”), pode
horrores da guerra e a crença no surgimento significar que os homens estão partidos, isto
de um mundo melhor. é, mutilados pela guerra e pela cidade opres-
3. B sora, que mutila corpos e consciências.
7. A
4.
a) A primeira parte é formada pelas duas pri-
meiras estrofes e apresenta a palavra “noite”
como núcleo da ideia central; a segunda
parte tem início com a terceira estrofe e
apresenta o “dia” como núcleo.
AOL-11

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Carlos Drummond de Andrade

50

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