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DO INFERNO DE DANTE
RESUMO
A Divina Comédia é, em bom italiano, “il capolavoro” de Dante Alighieri, ou seja, sua
maior e mais importante obra e se não dispensa apresentação, decerto, falar sobre ela
sempre pode ser da ordem da incompletude, afinal, tomando as palavras de Calvino, a obra
– sendo um clássico da língua italiana - “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”. Para a elaboração do presente trabalho, elegeu-se para análise semiótica a
quadrinização realizada pela Editora Peirópolis. Publicada em 2011, a obra conta com
textos traduzidos de três autores: Jorge Wanderley, Henriqueta Lisboa e Haroldo de
Campos. A quadrinização ficou a cargo de Piero Bagnariol, que em conjunto com seu pai,
Giuseppe Bagnariol – grande conhecedor da obra de Dante, teve o desafio de transpor a
obra de Dante para a HQ. Para o desenvolvimento de nossa análise, tomamos como
referencial teóricometodológico a semiótica greimasiana (BARROS, 2011; FIORIN, 2013)
em seu percurso gerativo de sentido. A reflexão aqui proposta divide-se em duas partes:
analisaremos o inferno de Dante no que concerne ao Plano de Expressão, isto é, como
ocorreu a quadrinização a partir do texto original. Trabalharemos o Plano da Expressão em
sua categoria visual tomando como base a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822 –
1882). Por fim, faremos o percurso gerativo de sentido na obra quadrinizada, levando em
consideração o Plano do Conteúdo da obra original.
A Divina Comédia é, em bom italiano, “il capolavoro” de Dante Alighieri, ou seja, sua
maior e mais importante obra e se não dispensa apresentação, decerto, falar sobre ela
sempre pode ser da ordem da incompletude, afinal, tomando as palavras de Calvino, a obra
– sendo um clássico da língua italiana - “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”. Faz-se necessário, contudo, pontuar alguns dados sobre a obra: Dividida em três
partes (Inferno, Purgatório e Paraíso), é escrita em forma de poema e conta com mais de 14
mil versos que, agrupados em tercetos, estão divididos em cem cantos e estima-se que tenha
sido escrita entre os anos de 1303 e 1321, quando Dante Alighiere esteve exilado. Apesar
de em seu nome estar posto “comédia”, o que pode levar ao leitor a crer que se trata de uma
história da ordem do cômico, o que se lê/vê na realidade é um protagonista, Dante, em um
longo percurso que começa com dificuldades e perigos e termina com um final feliz. A
narrativa é, em linhas gerais o relato da viagem de Dante ao Paraíso, acompanhado de
Virgílio e de sua amada Beatriz.
Para a elaboração do presente trabalho, elegeu-se a quadrinização realizada pela Editora
Peirópolis em que será realizada uma análise à luz da semiótica discursiva de linha
francesa. Publicada em 2011, a obra conta textos traduzidos de três autores: Jorge
Wanderley, Henriqueta Lisboa e Haroldo de Campos. A transposição ficou a cargo de Piero
Bagnariol que em conjunto com seu pai, Giuseppe Bagnariol – grande conhecedor da obra
de Dante, teve o desafio de transpor a obra de Dante para o formato de História em
Quadrinhos (HQ). Para desenvolver a quadrinização, Bagnariol manteve a obra dividida em
três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Também manteve os personagens principais:
Dante, personificando homem; Virgílio, simbolizando a razão; Beatriz, representando a fé.
Contudo, no processo de quadrinização e, ainda, considerando o público ao qual a obra é
direcionada, algumas adaptações são realizada e, por conseguinte, há a inclusão de novos
elementos. Destacamos aqui dois:
a) A transposição conta com um prólogo e um epílogo;
b) Ao quadrinizar, novos personagens foram inseridos: Bartolomeu e Cangrande della
Scala;
Essas inserções não são aleatórias. Tradicionalmente, a obra de Alighieri não conta com
um prólogo e com um epílogo. O experiente leitor já reconhece a obra por meio dos
primeiros tercetos “DA nossa vida, em meio da jornada,/Achei-me numa selva
tenebrosa/Tendo perdido a verdadeira estrada”. Por isso, na obra quadrinizada, o prólogo e
o epílogo estão postos nesta obra para situar o leitor. Enquanto o este é por trazer à luz
algumas informações sobre os personagens principais da obra, o prólogo, em conjunto com
a inserção de Bartolomeu e Cangrande della Scalla estão ali engendrando uma narrativa.
De tal forma que seja possível ajudar o leitor no percurso da obra. Cabe pontuar, contudo,
que estes personagens não são aleatórios, isto é, são personagens que historicamente
existiram. Inclusive, Dante dedica sua obra a Cangrande della Scalla1.
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A versão de “A Divina Comédia” disponível no seguinte link
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf ), na tradução de José Pedro Xavier
Pinheiro (1822 – 1882) conta que “Dedicando-lhe o ‘Paraíso” escrevia Dante a Cangrande della Scala: ‘O
sentido desta obra não é simples; ao contrário ela é ‘polisensa’, pois outro é o sentido literal, outro aquele das
coisas significadas”. (PINHEIRO in ALIGHIERI, s.d)
As categorias que abrimos no Plano da Expressão são, como o próprio nome diz, a
forma como o texto expressará o seu conteúdo. A título de exemplificação, em uma HQ,
por exemplo, o Plano de Expressão, a depender do que se quer analisar, fica a cargo das
cores e formas que são utilizadas para quadrinizar uma obra. Daí, podemos dizer que o
Plano de Expressão de uma HQ está dentro de uma categoria visual. Se falarmos, porém, de
uma canção, aqui considerada sua melodia, o Plano de Expressão passa a ser de uma
categoria sonora.
Já o Plano de Conteúdo, isto é, a transmissão da significação, pode ser aberto em
categorias que compõe o que se chama de percurso gerativo de sentido. O percurso se dá
em três categorias (ou níveis) são, a saber: fundamental, narrativo e discursivo. Todas as
categorias do Plano de Conteúdo possuem, conforme aponta Fiorin (2013) “um componente
sintático e um componente semântico” (p. 20). Além disso, “a sintaxe dos diferentes níveis
do percurso gerativo de sentido é de ordem relacional, ou seja, é um conjunto de regras que
rege o encadeamento das formas de conteúdo na sucessão do discurso” (FIORIN, 2013, p.
21).
O primeiro nível do percurso gerativo de sentido é o nível fundamental. É, pois, a etapa
“mais simples e abstrata” (BARROS, 2011, p.9) que compõe o percurso. Neste nível, se
determina, conforme Barros (2011) “a oposição ou as oposições semânticas a partir das
quais se constrói o sentido do texto”(p. 10). Essas oposições semânticas compreendem a
termos que tenham um traço em comum e em que será possível se estabelecer uma
diferença. São oposições semânticas no nível fundamental alguns dos seguintes termos:
vida vs morte, natureza vs cultura, masculinidade vs feminilidade, dentre outros. Já a sintaxe
do nível fundamental, conforme Fiorin (2013),
A reflexão aqui proposta será realizada em duas partes: Primeiramente, será analisado o
inferno de Dante no que concerne ao Plano de Expressão, isto é, como que ocorreu a
quadrinização a partir do texto original. Aqui, o Plano da Expressão será trabalhado em sua
categoria visual tomando como base a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822 –
1882). Para essa primeira análise, considerando a dimensão alegórica que a obra de
Alighieri nos traz, será realizado um recorte e apresentadas as principais figuras, são elas: a)
a pantera, o leão e loba, b) caronte, c) o limbo, e, por fim, d) pródigos e avarentos.. Em
seguida, far-se-á o percurso gerativo de sentido na obra quadrinizada, levando em
consideração o Plano do Conteúdo da obra original.
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Mesmo as figuras portando textos, aqui optamos por analisar o Plano de Expressão em cotejo com a
descrição da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822 – 1882).
O leão é quadrinizado de cabeça erguida e de forma feroz:
Chegamos, então, ao limbo. O lugar dos que não foram batizados, que viveram antes
de cristo, mas que tiveram vida virtuosa. É o lugar daqueles que não têm a mínima
esperança de ir ao céu. É no limbo que estão os autores clássicos, poetas ou filósofos, que
vivem em um suntuoso castelo cercado por sete muros. E é essa a representação que
Bagnariol apresenta em sua obra para representar o limbo. Mas, mais ainda, faz um gesto
singular ao marcar no castelo, em diferentes níveis, o nome desses autores clássicos. É ali
que está Aristósteles, Eneias, Homero, Sócrates e tantos outros. O que Bagnariol apresenta
de forma concisa, Dante nos permite saber em uma longa lista
Chegamos, pois, aos pródigos e avarentos. Dante busca, em cada círculo, dar sanções
aqueles que ele coloca no inferno. Os pródigos e avarentos, que estão compreendidos no
quarto círculo do inferno de Dante, são aqueles que devem completar o giro da roda da
fortuna. E a sanção que é dada por Dante a eles é carregarem, eternamente, enormes pesos
(que podem ser entendidos como a riqueza acumulada ou gasta por eles durante a vida
terrena) e chocarem-se. Nesse choque, eles trocam injúrias e voltam ao lado aposto até
chocarem-se novamente. Tais injúrias são sintetizadas na transposição da obra com os
pródigos e os avarentos em carregando grandes pedras em choque. De um lado com os
pródigos gritando “Por que guardas?”, do outro, os avarentos retrucando “Por que
desperdiças?”. É, pois, uma representação fidedigna do que Dante escreve em sua obra
Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
30 “Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”
Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
33 Por injúria o estribilho apregoando.
(ALIGHIERI, tercetos 28 – 33, Canto VII - Inferno, s.d)
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Normalmente a oposição semântica é dada com elementos mais abstratos (vida x morte; natureza x cultura).
No caso de nossa análise, consideramos, pois que a oposição medo vs coragem, uma vez que ambos partilham
de um traço em comum: o perigo. Entendemos que o medo pode decorrer da consciência de um perigo e a
coragem pode vir aparecer quase se defronta o perigo.
inicial de não-medo. Ao se defrontar com a pantera, o leão e a loba, passa para um estado
de medo. Ao encontrar Virgílio e este chamá-lo para ir com ele do Inferno ao Paraíso,
Dante passa, enfim, para o estado de coragem. Na quadrinização, podemos ver essa
passagem de estado: não-medo, quando Dante anda pela Selva Escura; medo, quando Dante
encontro a pantera, o leão e a loba; e coragem, quando Dante já está no inferno,
acompanhado de Virgílio. Podemos ainda dizer que essa oposição no nível fundamental se
aplica tanto à obra de Dante quando à quadrinização de sua obra.
No nível narrativo, então, podemos identificar que Dante é o sujeito, isto é, faltante
e que vai a busca de algo. Virgílio, seu guia, é o adjuvante, isto é, aquele que ajuda Dante a
chegar a seu objeto de valor. A pantera, o leão e a loba são os antissujeitos iniciais, isto é,
aqueles que dificultam a narrativa, como vemos na introdução ao Canto I na tradução de
José Pinheiro:
Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a
subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma
loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e
se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o
guiará ao Paraíso. Dante o segue. (ALIGHIERI, Canto I - Inferno, s.d – Grifo nosso)
Pela quadrinização, podemos ver Dante errante pela selva escura. A pantera, o leão e a loba
repelindo Dante à selva e assim, colocando-se como antissujeitos do início da narrativa. E,
por fim, Virgílio, guia de Dante. Na sequência da leitura da obra, podemos identificar que
Beatriz, sua amada, é o destinador, o responsável por dar impulso para que Dante entre na
caminhada com Virgílio:
Na quadrinização, podemos ver que quando Dante encontra Virgílio, quase que como
rodapé, aparece uma fala de Dante: “Disse-me ter sido enviado por uma dama do céu:
Beatriz”. Por fim, Deus é o objeto de valor de Dante, como vemos no final do Canto I do
Inferno e na introdução ao Canto XXXIII do Paraíso:
— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede, Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
Porque este e maior mal de mim se arrede. (ALIGHIERI, s.d – Grifo nosso)
S. Bernardo pede à Virgem Maria que conceda a Dante contemplar a Deus. O Poeta vê um
tríplice círculo no qual está revelada a Trindade divina. No círculo médio vê figurada a
efígie humana. No espírito de Dante se forma o desejo de conhecer o modo da união da
natureza divina com a humana. (ALIGHIERI, s.d – Grifo nosso)
Com relação ao objeto de valor de Dante na HQ, não é possível, identificar de imediato,
salvo se o leitor já tiver uma leitura prévia da obra de Dante.
Ainda no nível narrativo, cabe pontuar que Dante, como sujeito, sofre a manipulação da
ordem da tentação, isto é, o querer-fazer, que é quando Virgílio chama Dante para segui-lo
pelos círculos do Inferno, do Paraíso e do Purgatório. Posta a manipulação, Dante, como
sujeito, se vale da competência poder-fazer, isto é, ele pode ir com Virgílio por essa viagem
e assim a faz. Feito isso, a sanção de Dante é, enfim, a chegada ao Purgatório, sua
recompensa, que o deixa cada vez mais perto de seu objeto de valor.
Por fim, o nível narrativo, o mais completo e complexo, é no qual ocorrem os temas e
figuras. É neste nível que, como vimos acima, “as formas abstratas do nível narrativo são
revestidas de termos que lhes dão concretude” (FIORIN, 2013, p. 41). No caso de nossa
obra analisada, principalmente em sua quadrinização, vemos que é um texto da ordem do
figurativo, pois há um simulacro da realidade para representar o mundo. Esse simulacro se
dá, por exemplo, na simbolização dos personagens principais (Dante personifica o homem,
Virgílio a razão e Beatriz a fé).
REFERÊNCIAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 5 ed. São Paulo : Ática, 2011.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 15ª ed. São Paulo : Contexto, 2013.