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A QUADRINIZAÇÃO DE “A DIVINA COMÉDIA”: UMA ANÁLISE SEMIÓTICA

DO INFERNO DE DANTE

Michel Marques de Faria

Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

RESUMO

A Divina Comédia é, em bom italiano, “il capolavoro” de Dante Alighieri, ou seja, sua
maior e mais importante obra e se não dispensa apresentação, decerto, falar sobre ela
sempre pode ser da ordem da incompletude, afinal, tomando as palavras de Calvino, a obra
– sendo um clássico da língua italiana - “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”. Para a elaboração do presente trabalho, elegeu-se para análise semiótica a
quadrinização realizada pela Editora Peirópolis. Publicada em 2011, a obra conta com
textos traduzidos de três autores: Jorge Wanderley, Henriqueta Lisboa e Haroldo de
Campos. A quadrinização ficou a cargo de Piero Bagnariol, que em conjunto com seu pai,
Giuseppe Bagnariol – grande conhecedor da obra de Dante, teve o desafio de transpor a
obra de Dante para a HQ. Para o desenvolvimento de nossa análise, tomamos como
referencial teóricometodológico a semiótica greimasiana (BARROS, 2011; FIORIN, 2013)
em seu percurso gerativo de sentido. A reflexão aqui proposta divide-se em duas partes:
analisaremos o inferno de Dante no que concerne ao Plano de Expressão, isto é, como
ocorreu a quadrinização a partir do texto original. Trabalharemos o Plano da Expressão em
sua categoria visual tomando como base a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822 –
1882). Por fim, faremos o percurso gerativo de sentido na obra quadrinizada, levando em
consideração o Plano do Conteúdo da obra original.

PALAVRAS-CHAVE: Dante Alighieri; Divina Comédia; História em Quadrinhos

“Clássico é um livro que nunca terminou de


dizer aquilo que tinha para dizer.”
Italo Calvino

PALAVRAS INICIAIS SOBRE A OBRA

A Divina Comédia é, em bom italiano, “il capolavoro” de Dante Alighieri, ou seja, sua
maior e mais importante obra e se não dispensa apresentação, decerto, falar sobre ela
sempre pode ser da ordem da incompletude, afinal, tomando as palavras de Calvino, a obra
– sendo um clássico da língua italiana - “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”. Faz-se necessário, contudo, pontuar alguns dados sobre a obra: Dividida em três
partes (Inferno, Purgatório e Paraíso), é escrita em forma de poema e conta com mais de 14
mil versos que, agrupados em tercetos, estão divididos em cem cantos e estima-se que tenha
sido escrita entre os anos de 1303 e 1321, quando Dante Alighiere esteve exilado. Apesar
de em seu nome estar posto “comédia”, o que pode levar ao leitor a crer que se trata de uma
história da ordem do cômico, o que se lê/vê na realidade é um protagonista, Dante, em um
longo percurso que começa com dificuldades e perigos e termina com um final feliz. A
narrativa é, em linhas gerais o relato da viagem de Dante ao Paraíso, acompanhado de
Virgílio e de sua amada Beatriz.
Para a elaboração do presente trabalho, elegeu-se a quadrinização realizada pela Editora
Peirópolis em que será realizada uma análise à luz da semiótica discursiva de linha
francesa. Publicada em 2011, a obra conta textos traduzidos de três autores: Jorge
Wanderley, Henriqueta Lisboa e Haroldo de Campos. A transposição ficou a cargo de Piero
Bagnariol que em conjunto com seu pai, Giuseppe Bagnariol – grande conhecedor da obra
de Dante, teve o desafio de transpor a obra de Dante para o formato de História em
Quadrinhos (HQ). Para desenvolver a quadrinização, Bagnariol manteve a obra dividida em
três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Também manteve os personagens principais:
Dante, personificando homem; Virgílio, simbolizando a razão; Beatriz, representando a fé.
Contudo, no processo de quadrinização e, ainda, considerando o público ao qual a obra é
direcionada, algumas adaptações são realizada e, por conseguinte, há a inclusão de novos
elementos. Destacamos aqui dois:
a) A transposição conta com um prólogo e um epílogo;
b) Ao quadrinizar, novos personagens foram inseridos: Bartolomeu e Cangrande della
Scala;
Essas inserções não são aleatórias. Tradicionalmente, a obra de Alighieri não conta com
um prólogo e com um epílogo. O experiente leitor já reconhece a obra por meio dos
primeiros tercetos “DA nossa vida, em meio da jornada,/Achei-me numa selva
tenebrosa/Tendo perdido a verdadeira estrada”. Por isso, na obra quadrinizada, o prólogo e
o epílogo estão postos nesta obra para situar o leitor. Enquanto o este é por trazer à luz
algumas informações sobre os personagens principais da obra, o prólogo, em conjunto com
a inserção de Bartolomeu e Cangrande della Scalla estão ali engendrando uma narrativa.
De tal forma que seja possível ajudar o leitor no percurso da obra. Cabe pontuar, contudo,
que estes personagens não são aleatórios, isto é, são personagens que historicamente
existiram. Inclusive, Dante dedica sua obra a Cangrande della Scalla1.

O APARATO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA ANÁLISE: A SEMIÓTICA


GREIMASIANA.

A partir da década de 1960, os estudos linguísticos – por uma virada estruturalista,


passam a considerar, em suas teorias, a língua e sua relação com o social, isto é, fatores que
são exteriores ao sistema linguístico. É a partir dessa década que surgem as teorias do
discurso tais como a Análise do Discurso e a Semiótica. No presente artigo, a semiótica
discursiva francesa (ou ainda greimasiana) será tomada como aparato teórico-metodológico
para realizar a análise da quadrinização da obra de Alighieri. Desta teoria, consideramos o
percurso gerativo de sentido, em seus três níveis (fundamental, narrativo e discursivo)
conforme proposto por Greimas, bem como a noção de Plano de Expressão e Plano de
Conteúdo, teorizada por Hjelmslev, deslocadas para a teoria semiótica, de tal forma que
seja possível empreender os gestos de análise.
Com relação ao Plano de Expressão e Plano de Conteúdo, Hjelmslev (1975) postula
enquanto o primeiro é relativo a como a língua (enquanto sistema), por meio de sons e
formas, vai escolher transmitir a significação, o segundo, é relativo a como a língua
(tomada como processo) vai transmitir essa significação. Postas, pois, essas definições,
deslocamos tais conceitos para dentro do quadro teórico-metodológico da semiótica e, a
partir de tais deslocamentos, temos a possibilidade abrir tanto o Plano de Expressão quanto
o Plano de Conteúdo em categorias.

1
A versão de “A Divina Comédia” disponível no seguinte link
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf ), na tradução de José Pedro Xavier
Pinheiro (1822 – 1882) conta que “Dedicando-lhe o ‘Paraíso” escrevia Dante a Cangrande della Scala: ‘O
sentido desta obra não é simples; ao contrário ela é ‘polisensa’, pois outro é o sentido literal, outro aquele das
coisas significadas”. (PINHEIRO in ALIGHIERI, s.d)
As categorias que abrimos no Plano da Expressão são, como o próprio nome diz, a
forma como o texto expressará o seu conteúdo. A título de exemplificação, em uma HQ,
por exemplo, o Plano de Expressão, a depender do que se quer analisar, fica a cargo das
cores e formas que são utilizadas para quadrinizar uma obra. Daí, podemos dizer que o
Plano de Expressão de uma HQ está dentro de uma categoria visual. Se falarmos, porém, de
uma canção, aqui considerada sua melodia, o Plano de Expressão passa a ser de uma
categoria sonora.
Já o Plano de Conteúdo, isto é, a transmissão da significação, pode ser aberto em
categorias que compõe o que se chama de percurso gerativo de sentido. O percurso se dá
em três categorias (ou níveis) são, a saber: fundamental, narrativo e discursivo. Todas as
categorias do Plano de Conteúdo possuem, conforme aponta Fiorin (2013) “um componente
sintático e um componente semântico” (p. 20). Além disso, “a sintaxe dos diferentes níveis
do percurso gerativo de sentido é de ordem relacional, ou seja, é um conjunto de regras que
rege o encadeamento das formas de conteúdo na sucessão do discurso” (FIORIN, 2013, p.
21).
O primeiro nível do percurso gerativo de sentido é o nível fundamental. É, pois, a etapa
“mais simples e abstrata” (BARROS, 2011, p.9) que compõe o percurso. Neste nível, se
determina, conforme Barros (2011) “a oposição ou as oposições semânticas a partir das
quais se constrói o sentido do texto”(p. 10). Essas oposições semânticas compreendem a
termos que tenham um traço em comum e em que será possível se estabelecer uma
diferença. São oposições semânticas no nível fundamental alguns dos seguintes termos:
vida vs morte, natureza vs cultura, masculinidade vs feminilidade, dentre outros. Já a sintaxe
do nível fundamental, conforme Fiorin (2013),

abrange duas operações: a negação e a asserção. Na sucessividade de um texto,


ocorrem essas duas operações, o que significa que, dada uma categoria tal que a
versus b, podem aparecer as seguintes relações: a) afirmação de a, negação de a,
afirmação de b; b) afirmação b, negação de b, afirmação de a; (p. 23).

No segundo nível, o narrativo, há “os elementos das oposições semânticas


fundamentais” que “são assumidos como valores por um sujeito e circulam entre sujeitos,
graças à ação também dos sujeitos” (BARROS, idem, p.11). É no nível narrativo que há o
percurso das narrativas canônicas, em que

há um “impulso” inicial’, isto é ‘o estímulo que põe em marcha o plano do


sujeito, dá-se o nome de destinador (D) – que pode ser “alguém” ou “algo”,
exterior ou interior ao próprio sujeito da busca. Na perseguição do seu objeto-
valor (O), o sujeito (S) tanto poderá ser auxiliado por um (ou mais) adjuvante
(Ad) quanto poderá precisar vencer obstáculos interpostos ao seu plano por (pelo
menos) um antissujeito (AS); esses actantes narrativos podem, da mesma forma
que o destinador, ser “algo” ou “alguém”. (ALT, p.38, 2015)

Há na sintaxe do nível narrativo, conforme aponta Fiorin (2013) dois tipos de


enunciados: a) os enunciados de estados, que estabelecem uma relação de disjunção ou
conjunção entre um sujeito e um objeto; e b) os enunciados de fazer, que são os que
mostram as transformações. Além disso, sendo os textos narrativas complexa que se
estruturam em uma sequência canônica, há quatro fases que a compreendem, segundo
Fiorin (2013): a manipulação (tentação, intimidação, sedução e provocação), a competência
(que compreende a realização, por parte do sujeito, da transformação central da narrativa), a
performance (que é quando se dá a transformação, isto é, a mudança de um estado a outro)
e a sanção (que é quando ocorre a contestação de que o bem se realizou).
Por fim, temos o último nível do percurso gerativo que é, de acordo com Barros
(2011), “o das estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da
enunciação” (p. 9). É no nível discursivo, segundo Fiorin (2013), que “as formas abstratas
do nível narrativo são revestidas de termos que lhes dão concretude. Assim, a conjunção
com a riqueza aparecerá no nível discursivo como roubo de joias, entrada na posse de uma
herança[...]” (p. 41). É no nível discursivo, então, que “as oposições fundamentais,
assumidas como valores narrativos, desenvolvem-se sob a forma de temas e, em muitos
textos, concretizam-se por meio de figuras” (BARROS, 2011, p.11).
Expostos aqui o quadro teórico no qual insere-se o presente trabalho, empreende-se,
agora, a análise da obra.
O INFERNO DE DANTE QUADRINIZADO

A reflexão aqui proposta será realizada em duas partes: Primeiramente, será analisado o
inferno de Dante no que concerne ao Plano de Expressão, isto é, como que ocorreu a
quadrinização a partir do texto original. Aqui, o Plano da Expressão será trabalhado em sua
categoria visual tomando como base a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822 –
1882). Para essa primeira análise, considerando a dimensão alegórica que a obra de
Alighieri nos traz, será realizado um recorte e apresentadas as principais figuras, são elas: a)
a pantera, o leão e loba, b) caronte, c) o limbo, e, por fim, d) pródigos e avarentos.. Em
seguida, far-se-á o percurso gerativo de sentido na obra quadrinizada, levando em
consideração o Plano do Conteúdo da obra original.

a) O INFERNO PELO PLANO DA EXPRESSÃO


Para dar vida à HQ, Bagnariol, nosso quadrinista, precisou acrescentar – como já
mencionamos anteriormente - um “prólogo” à obra para situar o leitor. Neste prólogo, nos
são apresentados: a) Dante, nosso personagem principal; e b) Bartolomeu e Cangrande della
Scala, que serão responsáveis para que Dante comece a contar a história de sua viagem do
Inferno ao Paraíso. Ainda no prólogo da obra quadrinizada, aparecem “a pantera, o leão e a
loba” que farão com que Dante desvie de seu percurso e encontro Virgílio.
Esses animais, quando quadrinizados, são representados conforme a descrição deles na
obra, a saber2:
A pantera é quadrinizada com olhar para o leitor da obra, visto que ela estava parada e
impedia a passagem de Dante:
Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
Tendo a pele por malhas cambiante.
Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
Que atrás por vezes eu tornar quisera.
(ALIGHIERI, tercetos 31-36, Canto I -
Inferno, s.d)

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Mesmo as figuras portando textos, aqui optamos por analisar o Plano de Expressão em cotejo com a
descrição da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822 – 1882).
O leão é quadrinizado de cabeça erguida e de forma feroz:

A hora amena e a quadra doce e mansa.


De um leão de repente surge o aspecto,
Que ao meu peito o pavor de novo lança.
Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
Tremer parece o ar ao seu conspeto.
(ALIGHIERI, tercetos 43-48, Canto I -
Inferno, s.d)
A loba é quadrinizada em posição de ataque, pois é ávida e causa pavor a Dante:

Eis surge loba, que de magra espanta;


De ambições todas parecia cheia;
Foi causa a muitos de miséria tanta!
Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
Que a mente à altura não subir receia.
(ALIGHIERI, tercetos 49 – 54, Canto I -
Inferno, s.d)

Avançando nas análises, chegamos a Caronte, o barqueiro do inferno. Aqui, o


quadrinista lança mão de um dos recursos mais ricos da transposição de uma obra para a
História em Quadrinhos e apresenta o barqueiro em três quadros que, imitando o
movimento de uma câmera, vão paulatinamente aproximando-se até focarem os olhos de
Caronte. Todavia, não é ao acaso que esse recurso é lançado na obra. Ao recorrermos ao
texto de Alighieri, vemos que ele escreve
Eis vejo a nós em barca se acercando,
De cãs coberto um velho — “Ó condenados,
84 Ai de vós! — alta grita levantando.
“O céu nunca vereis, desesperados:
Por mim à treva eterna, na outra riva,
87 Sereis ao fogo, ao gelo transportados.
(ALIGHIERI, tercetos 82 – 87, Canto III -
Inferno, s.d)

Chegamos, então, ao limbo. O lugar dos que não foram batizados, que viveram antes
de cristo, mas que tiveram vida virtuosa. É o lugar daqueles que não têm a mínima
esperança de ir ao céu. É no limbo que estão os autores clássicos, poetas ou filósofos, que
vivem em um suntuoso castelo cercado por sete muros. E é essa a representação que
Bagnariol apresenta em sua obra para representar o limbo. Mas, mais ainda, faz um gesto
singular ao marcar no castelo, em diferentes níveis, o nome desses autores clássicos. É ali
que está Aristósteles, Eneias, Homero, Sócrates e tantos outros. O que Bagnariol apresenta
de forma concisa, Dante nos permite saber em uma longa lista

Chegamos junto a um fúlgido castelo


Sete vezes de muro alto cercado:
108 Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.
(...)
No verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias sombras: inda me extasia
120 O prazer com que vê-los exultava.
Eletra vi de heróis na companhia,
Enéias com Heitor e guarnecido
123 Grifanhos olhos César nos volvia.
Pentesiléia vi e o rosto ardido
De Camila, e sentado o rei Latino
126 Junto a Lavinia estava enternecido.
Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado
(...)
O Mestre vejo dos que mais se acimam
132 Em saber, de filósofos cercado.
Todos com honra e acatamento o estimam.
Aqui Platão e Sócrates estavam,
135 Que na grandeza mais se lhe aproximam.
Demócrito, o atomista, acompanhavam
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.
138 Empédocle e Diógenes falavam,
Dióscoris, o que a natura outrora
Sábio estudara, Orfeu, Túlio eloqüente,
141 Sêneca, o douto, que a moral explora,
Lívio, Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu, Galeno e o Avicena;
144 Averróis, nos comentos sapiente.
(ALIGHIERI, tercetos 106 – 144, Canto IV - Inferno, s.d)

Chegamos, pois, aos pródigos e avarentos. Dante busca, em cada círculo, dar sanções
aqueles que ele coloca no inferno. Os pródigos e avarentos, que estão compreendidos no
quarto círculo do inferno de Dante, são aqueles que devem completar o giro da roda da
fortuna. E a sanção que é dada por Dante a eles é carregarem, eternamente, enormes pesos
(que podem ser entendidos como a riqueza acumulada ou gasta por eles durante a vida
terrena) e chocarem-se. Nesse choque, eles trocam injúrias e voltam ao lado aposto até
chocarem-se novamente. Tais injúrias são sintetizadas na transposição da obra com os
pródigos e os avarentos em carregando grandes pedras em choque. De um lado com os
pródigos gritando “Por que guardas?”, do outro, os avarentos retrucando “Por que
desperdiças?”. É, pois, uma representação fidedigna do que Dante escreve em sua obra
Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
30 “Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”
Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
33 Por injúria o estribilho apregoando.
(ALIGHIERI, tercetos 28 – 33, Canto VII - Inferno, s.d)

Cumpre destacar que um procedimento de suma importância na quadrinização é que “as


falas, normalmente construídas a partir de um travessão, deslocam-se para balões que
possuem diferentes saliências semânticas, característica própria da HQs” (GONÇALVES &
REMENCHE, 2015), conforme vemos ao decorrer da obra, em que “Quando ao vale eu já
ia baquear-me/Alguém fraco de voz diviso perto,/ Que após largo silêncio quer falar-me”
(ALIGHIERI, tercetos 61-63, Canto I) foram deslocados para o canto superior esquerdo na
obra quadrinizada e é o momento em que Dante encontra Virgílio.
Por fim, no Plano da Expressão, há uma questão que o Bagnariol lançou mão para dar
vida à obra: As cores que representam o inferno. Conforme apontam Gonçalves &
Remenche (2015), “há uma progressão na relação das cores partindo das mais escuras como
o chumbo, o preto, o cinza, o vermelho escuro dando saliência a formas monstruosas e
deformadas” (p. 23), conforme as figuras 5 e 6.

b) O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO


Entramos no componente final de nossa análise, isto é, o percurso gerativo de sentido.
Com relação a esse método de análise, cremos, pois, que tanto a obra A Divina Comédia,
quanto a quadrinização são, no nível fundamental, representadas pelas oposições
semânticas medo vs coragem3. Dante, nosso personagem principal, está em um estado

3
Normalmente a oposição semântica é dada com elementos mais abstratos (vida x morte; natureza x cultura).
No caso de nossa análise, consideramos, pois que a oposição medo vs coragem, uma vez que ambos partilham
de um traço em comum: o perigo. Entendemos que o medo pode decorrer da consciência de um perigo e a
coragem pode vir aparecer quase se defronta o perigo.
inicial de não-medo. Ao se defrontar com a pantera, o leão e a loba, passa para um estado
de medo. Ao encontrar Virgílio e este chamá-lo para ir com ele do Inferno ao Paraíso,
Dante passa, enfim, para o estado de coragem. Na quadrinização, podemos ver essa
passagem de estado: não-medo, quando Dante anda pela Selva Escura; medo, quando Dante
encontro a pantera, o leão e a loba; e coragem, quando Dante já está no inferno,
acompanhado de Virgílio. Podemos ainda dizer que essa oposição no nível fundamental se
aplica tanto à obra de Dante quando à quadrinização de sua obra.
No nível narrativo, então, podemos identificar que Dante é o sujeito, isto é, faltante
e que vai a busca de algo. Virgílio, seu guia, é o adjuvante, isto é, aquele que ajuda Dante a
chegar a seu objeto de valor. A pantera, o leão e a loba são os antissujeitos iniciais, isto é,
aqueles que dificultam a narrativa, como vemos na introdução ao Canto I na tradução de
José Pinheiro:
Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a
subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma
loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e
se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o
guiará ao Paraíso. Dante o segue. (ALIGHIERI, Canto I - Inferno, s.d – Grifo nosso)

Pela quadrinização, podemos ver Dante errante pela selva escura. A pantera, o leão e a loba
repelindo Dante à selva e assim, colocando-se como antissujeitos do início da narrativa. E,
por fim, Virgílio, guia de Dante. Na sequência da leitura da obra, podemos identificar que
Beatriz, sua amada, é o destinador, o responsável por dar impulso para que Dante entre na
caminhada com Virgílio:

Depois da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, dúvida de aventurar-se


na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o mandava, e que havia
quem se interessava pela sua salvação, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no
difícil caminho. (ALIGHIERI, Canto II - Inferno, s.d – Grifo nosso)

Na quadrinização, podemos ver que quando Dante encontra Virgílio, quase que como
rodapé, aparece uma fala de Dante: “Disse-me ter sido enviado por uma dama do céu:
Beatriz”. Por fim, Deus é o objeto de valor de Dante, como vemos no final do Canto I do
Inferno e na introdução ao Canto XXXIII do Paraíso:
— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede, Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
Porque este e maior mal de mim se arrede. (ALIGHIERI, s.d – Grifo nosso)
S. Bernardo pede à Virgem Maria que conceda a Dante contemplar a Deus. O Poeta vê um
tríplice círculo no qual está revelada a Trindade divina. No círculo médio vê figurada a
efígie humana. No espírito de Dante se forma o desejo de conhecer o modo da união da
natureza divina com a humana. (ALIGHIERI, s.d – Grifo nosso)

Com relação ao objeto de valor de Dante na HQ, não é possível, identificar de imediato,
salvo se o leitor já tiver uma leitura prévia da obra de Dante.
Ainda no nível narrativo, cabe pontuar que Dante, como sujeito, sofre a manipulação da
ordem da tentação, isto é, o querer-fazer, que é quando Virgílio chama Dante para segui-lo
pelos círculos do Inferno, do Paraíso e do Purgatório. Posta a manipulação, Dante, como
sujeito, se vale da competência poder-fazer, isto é, ele pode ir com Virgílio por essa viagem
e assim a faz. Feito isso, a sanção de Dante é, enfim, a chegada ao Purgatório, sua
recompensa, que o deixa cada vez mais perto de seu objeto de valor.
Por fim, o nível narrativo, o mais completo e complexo, é no qual ocorrem os temas e
figuras. É neste nível que, como vimos acima, “as formas abstratas do nível narrativo são
revestidas de termos que lhes dão concretude” (FIORIN, 2013, p. 41). No caso de nossa
obra analisada, principalmente em sua quadrinização, vemos que é um texto da ordem do
figurativo, pois há um simulacro da realidade para representar o mundo. Esse simulacro se
dá, por exemplo, na simbolização dos personagens principais (Dante personifica o homem,
Virgílio a razão e Beatriz a fé).

À GUISA DE UMA CONCLUSÃO: DAQUILO QUE CONSTITUI A OBRA

A transposição de um clássico da literatura para a HQ permite ao ilustrador trabalhar


com a imagem de tal forma que possa reproduzir a cena que muitas vezes fica no
imaginário do leitor. Essa reprodução ora tende a ser mais fidedigna, ora tende a ser mais
sintética. Destarte, após as leituras realizadas e expostas, retomamos aqui nossa epígrafe
que nos permitirá, de alguma forma, concluir nossa análise. Considerando, pois, a
complexidade da narrativa que é “A Divina Comédia”, há de se concordar com Calvino de
que “Clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Se o
sentido do texto sempre pode ser outro (o que não implica que pode ser qualquer um), fica
claro que a cada leitura da obra de Dante e de quadrinização novas leituras, também
possíveis, hão de surgir. O trabalho aqui apresentado, foi uma breve reflexão tomando
como aparato teórico-metodológico a semiótica discursiva de linha francesa.

REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. s.d. Disponível em:<


http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf>.

ALT, João Carlos de Morais. SEMIÓTICA E QUADRINHOS: modulações do sentido


nas HQs canônicas e abstratas. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Instituto
de Letras, Universidade Federal Fluminense, 2015.

BAGNARIOL, Piero. A Divina Comédia : de Dante Alighieri em quadrinhos. São Paulo


: Peirópolis, 2011.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 5 ed. São Paulo : Ática, 2011.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 15ª ed. São Paulo : Contexto, 2013.

GONÇALVES, Adalgisa Aparecida de Oliveira & REMENCHE, Maria de Lourdes Rossi.


A DIVINA COMÉDIA EM HQ : UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA. Revista Raído
[on-line]. nº 20. Dourados : UFGD, 2015. Disponível em:<
http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/view/4148>.

HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo : Editora


Perspectiva, 1975.

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