Você está na página 1de 21

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

Autoridade, poder e violência: um estudo sobre


humanização em saúde
Fo
Journal: Interface - Comunicação, Saúde, Educação

Manuscript ID ICSE-2019-0838
rR
Manuscript Type: Dossier

Humanização da Assistência, Desumanização, Trabalho em Saúde,


Keyword:
Serviços de Saúde, Violência
ev
iew
On
ly

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 1 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 Autoridade, poder e violência: um estudo sobre humanização em saúde
4
5
6 Este artigo é resultado da dissertação “Saúde Coletiva e Filosofia: contribuições
7 de Hannah Arendt para o debate de humanização” que teve como seu objetivo
8
9 a análise do conceito de humanização dentro da produção do campo da Saúde
10
11 Coletiva. De metodologia qualitativa, o empírico foi constituído de documentos
12
13
oficiais acerca da humanização e revisão da produção bibliográfica de artigos
14 selecionados em revistas científicas. Como quadro para análise, tomou-se a
15
16 bibliografia que examina o histórico das transformações sociais pelas quais
17
18 passou a atividade médica até a configuração mais atual dos serviços de saúde,
19
bem como as reflexões ético-políticas em torno aos conceitos de violência e
20
21 poder desenvolvidas por Arendt. Tal abordagem permitiu reconhecer distinções
Fo

22
23 conceituais na configuração do poder médico nos serviços de saúde, o que
24
propiciou novas possibilidades de aproximação do tema humanização, ainda
rR

25
26 pouco explorados no campo da Saúde Coletiva.
27
28
ev

29 Palavras-Chave: Humanização da Assistência, Desumanização, Trabalho em


30
Saúde, Serviços de Saúde, Violência, Poder, Ciências Humanas.
31
iew

32
33
34
35 Authority, power and violence: a study on humanization in health
36
On

37 This article is the result of the dissertation “Collective Health and Philosophy:
38
39 Hannah Arendt's contributions to the humanization debate”, whose main
40
objective was the analysis of the concept of humanization within the production
ly

41
42 of the Collective Health field. The methodology used was qualitative, and the
43
44 empirical consisted of official documents about the humanization and review of
45
46 bibliographic production in scientific journals. As a reference framework, we took
47 the bibliography that examines the historical context of the social transformations
48
49 through which medical activity went through in Modernity until now, as well as
50
51 ethical-political reflections on the concepts of violence and power developed by
52
53
Hannah Arendt. Such approach allowed to recognize necessary conceptual
54 distinctions in the configuration of medical power in services, which provided new
55
56 possibilities of approach of the humanization theme, still not much explored in the
57
58 field of Collective Health.
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 2 of 20

1
2
3 Keywords: Humanization of Assistance, Dehumanization, Health work, Health
4
5 service, Violence, Power, Humanities.
6
7
8
9
10 Autoridad, poder y violencia: un estudio sobre humanización en salud
11
12
Este artículo es resultado de la disertación “Salud colectiva y filosofía: las
13 contribuciones de Hannah Arendt al debate sobre la humanización”, que tenía
14
15 como objetivo el análisis del concepto de humanización en la producción del
16
17 campo de la Salud colectiva. Se utilizó metodología cualitativa, y la parte
18 empírica consistió en documentos oficiales así como la revisión de la
19
20 producción bibliográfica de artículos seleccionados. Como marco de
21
Fo

22 referencia, utilizamos la bibliografía que examina el contexto de las


23
24 transformaciones sociales a través de las cuales pasó la actividad médica en la
rR

25 modernidad, así como reflexiones sobre los conceptos de violencia y poder


26
27 desarrollados por Arendt. Este permitió reconocer las distinciones
28
ev

29 conceptuales en la configuración del poder médico en los servicios, lo que


30
proporcionó nuevas posibilidades de enfoque del tema de la humanización, aún
31
iew

32 poco explorado en el campo de la Salud Colectiva.


33
34
35
36
On

37 Palabras clave: Humanización de la asistencia, deshumanización, trabajo en


38
39 salud, servicios de salud, violencia, poder, Humanidades.
40
ly

41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 3 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 A saúde atravessa um momento especialmente propício à reflexão. As
4
5 indagações da presente pesquisa surgem do incômodo suscitado naqueles que
6
7 se detêm sobre os debates atuais acerca da humanização em saúde com um
8
olhar atento: a população brasileira passa por experiências de violência quando
9
10 procura serviços de saúde. A violência dentro dos serviços tem se tornado algo
11
12 tão cotidiano que a humanização nasce como demanda social pelo respeito aos
13
14 direitos da população e como política pública que busca atuar sobre essa
15 violência.
16
17
18 A violência sofrida pelos usuários quando buscam os serviços de saúde é
19
um problema sério e está longe de ser pontual: essa questão se coloca em todos
20
21 os níveis de atenção à saúde, em instituições públicas e privadas e atinge todo
Fo

22
23 território nacional. É um fenômeno tão marcante que pesquisas do Ministério da
24
Saúde mostram altos índices de reclamações em relação a maus tratos e falta
rR

25
26 de compreensão das demandas e das expectativas dos usuários nos serviços
27
28 de saúde. Como reconheceu o próprio Ministério da Saúde, essas questões
ev

29
30 chamam mais a atenção dos usuários do que a falta de médicos, a infraestrutura
31
iew

32
dos serviços, a quantidade de hospitais e a falta de medicamentos1.
33
34 Nesse contexto, os movimentos sociais organizados levantam a bandeira
35
36 da humanização, ou seja, lutam para que os direitos dos pacientes e usuários
On

37 sejam assegurados, pela garantia de sua integridade física e psíquica e o fim da


38
39 violência nas instituições de saúde.
40
ly

41
42
Até os anos 2000, o termo humanização designa a luta dos usuários pelo
43 respeito aos seus direitos em contextos específicos. O movimento social pelo
44
45 fechamento dos manicômios e pela reforma psiquiátrica dos anos 1970 lutou
46
47 contra a realidade profundamente violenta em que vivem os usuários dos
48 serviços de saúde mental.
49
50
51 A presença de violência nas práticas de saúde também vem sendo
52
53
denunciada pelo movimento feminista desde a década de 1970. Essa bandeira
54 é particularmente levantada em relação aos direitos reprodutivos das mulheres;
55
56 em relação aos bebês internados em UTI; e, também, na busca pela melhoria da
57
58 qualidade de atenção aos usuários nos serviços de saúde2,3.
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 4 of 20

1
2
3 Nas lutas sociais, a humanização é um mote que sintetiza e aglutina.
4
5 ‘Humanização’ torna as demandas dos movimentos sociais autoexplicativas. No
6
7 momento em que se diz ‘humanização do parto’ de imediato o pensamento é
8
remetido às violências que as mulheres sofrem durante o parto, bem como
9
10 ‘humanização da saúde mental’ rememora as condições precárias dos
11
12 manicômios.
13
14 Método
15
16 O presente estudo é uma contribuição teórico-conceitual cuja base
17
18 empírica é a análise documental. Os documentos têm duas naturezas distintas:
19
de um lado, documentos oficiais do Ministério da Saúde sobre humanização e,
20
21 por outro lado, estudos e pesquisas empíricas que foram publicados e são aqui
Fo

22
23 considerados como produções textuais significativas no tema da humanização
24
em saúde, com o auxílio de uma revisão da produção sobre o tema na Saúde
rR

25
26 Coletiva. Na qualidade de uma primeira revisão com vistas a esse exame
27
28 conceitual, buscamos configurá-la como levantamento do ‘estado da arte’ dos
ev

29
30 estudos sobre humanização.
31
iew

32 Para tal, realizou-se um levantamento dos documentos oficiais no site do


33
34 Ministério da Saúde, e outro levantamento de artigos e teses, doravante
35
36 denominados ‘publicações científicas’, nas bases de dados LILACS e no
On

37 SCIELO-Brasil, nas quais se buscou a produção bibliográfica da Saúde Coletiva


38
39 com a palavra-chave “serviço de saúde” em cruzamento com os termos
40
“violência”, “humanização” e “desumanização”; e a palavra-chave “trabalho em
ly

41
42
43
saúde” igualmente com os termos “violência”, “humanização” e
44 “desumanização”. Além desses, buscou-se o termo “encontro clínico” em
45
46 separado.
47
48 Essas publicações foram selecionadas segundo os seguintes critérios:
49
50 com o termo “violência” escolhemos artigos que privilegiassem uma abordagem
51
52 da relação do profissional de saúde com o usuário e das relações entre os
53
54
profissionais de saúde: buscamos as produções que versam sobre situações de
55 violência envolvendo profissionais, e não aquelas em que usuários possam ter
56
57 sofrido na comunidade ou as produções que estudam situações nas quais os
58
59 usuários são violentos com os profissionais. Com os termos “humanização” e
60
“desumanização” procuramos aquelas publicações que pensassem as práticas

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 5 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 nos serviços e não a formação de profissionais. Sob o termo “encontro clínico”
4
5 procuramos publicações que enfocassem o encontro entre profissionais e
6
7 pacientes – ou usuários dos serviços de saúde – como prática e não como
8
matéria de ensino de futuros profissionais de saúde. Por fim, eliminamos as
9
10 duplicações em cada unitermo.
11
12
13
A leitura dos documentos oficiais e das publicações foi embasada na
14 hermenêutica tal qual a entende Hans-Georg Gadamer4. Para o autor, não existe
15
16 a produção de um conhecimento universal e atemporal, a verdade em si mesma,
17
18 pois o conhecimento carrega sempre a âncora da linguagem que o transmite, e
19
esta tem inseparável ligação com a tradição: o uso das palavras
20
21 necessariamente ressoa os significados que tiveram no passado, mesmo sendo
Fo

22
23 operativas no presente com novos conteúdos. Dessa maneira, o próprio racional
24
só pode ser entendido a partir dos parâmetros da tradição e nunca fora deles,
rR

25
26 como se habitasse um lócus neutro. O sujeito que observa é histórico e
27
28 contextual, impossibilitado de uma apreensão neutra e direta do mundo. Todo
ev

29
30 conhecimento é interpretação e é impossível apreender-se os objetos do mundo
31
iew

32
como eles são - novos contextos geram, necessariamente, novas interpretações.
33 A hermenêutica filosófica não visa buscar repetições constantes, verificáveis e
34
35 previsíveis do empirismo, mas justamente o seu contrário: aquilo que é único,
36
aquilo que é experimentado fora do comum. Assim, para Gadamer4,
On

37
38
conhecemos o mundo não através de um método, mas através de um horizonte,
39
40 já que a aquisição de linguagem e o processo de aculturação constituem uma
ly

41
42 perspectiva do mundo através da qual o enxergamos.
43
44 Nosso objetivo na presente pesquisa não é definir o que é a humanização
45
46 e nos contrapor a todas as outras interpretações, mas, em primeiro lugar,
47
48 possibilitar uma certa organização para um debate no qual humanização tem
49
sentidos múltiplos e variados e, em segundo lugar, objetiva-se contribuir para
50
51 esse mesmo debate com uma nova interpretação sobre o tema.
52
53
54
Resultados
55
56 Os documentos oficiais
57
58 O Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar
59
60 (PNHAH) foi o primeiro programa governamental da Secretaria da Assistência à

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 6 of 20

1
2
3 Saúde, do Ministério da Saúde, com duração entre os anos 2000 a 2002. Ele
4
5 antecede e lança os pilares da constituição da Política Nacional de Humanização
6
7 (PNH) de 2003. Uma análise pormenorizada desses documentos encontra-se
8
em Azeredo2, com base em que apresentamos as principais conclusões, como
9
10 segue.
11
12
13
Embora a PNHAH trate de questões hospitalares e a PNH proponha uma
14 mudança geral em todos os níveis de atenção do sistema de saúde, seus textos
15
16 são bastante semelhantes. Os documentos destacam os avanços no sistema de
17
18 saúde nas últimas décadas, todavia destacam os desafios contemporâneos:
19
fragmentação do processo de trabalho, dificuldade de interação entre equipes,
20
21 despreparo para lidar com a dimensão subjetiva, poucos dispositivos de
Fo

22
23 cogestão e desrespeito aos direitos dos usuários.
24
rR

25 O programa e a política apresentam uma multiplicidade de sentidos para


26
27 humanização. Esta é entendida como proposta de modificação das relações
28
ev

29 entre os atores, opondo humanização aos maus tratos sofridos pelos usuários
30
nos serviços através do diagnóstico de que a formação dos profissionais é
31
iew

32 precária. A humanização também aparece como melhorias nas condições de


33
34 trabalho dos profissionais. Outro significado atribuído à humanização é o
35
36 fomento a autonomia e a inclusão dos usuários e profissionais nos processos
On

37 decisórios.
38
39
40 Embora aponte importantes referências para a humanização, como a
ly

41
42
corresponsabilidade, autonomia ou protagonismo, os textos não explicitam como
43 e porque essas ideias dizem respeito à humanização, quais concepções e atos
44
45 práticos a elas correspondem, reforçando apreensões genéricas e polissêmicas.
46
47 Acaba-se por produzir a união de vários agentes de práticas de saúde em torno
48 a noções imprecisas que se desdobram em práticas que são, muitas vezes,
49
50 distintas entre si.
51
52
53
Desse modo, as generalidades no tratamento das práticas que são
54 apontadas como as que seriam humanizadas incorrem no perigo da
55
56 ideologização, ou seja, a tomada desse pensamento mais como uma ideologia
57
58 do que uma análise interpretativa da realidade. De outro lado, existe o risco dos
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 7 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 termos se tornarem meros lemas ou jargões sem um domínio claro de seu
4
5 sentido.
6
7 E, adicionalmente, ainda chama a atenção o fato de que o diagnóstico
8
9 sobre o funcionamento atual do SUS, nos documentos mencionados, não traga
10
11 nenhuma hipótese histórica que explique como chegamos nos problemas do
12
13
presente.
14
15 As publicações científicas
16
17 Do conjunto de publicações levantadas, 98 foram selecionadas para
18
19 análise final2. O primeiro exame realizado buscou classificá-las segundo a
20
21 abordagem para a problematização da humanização. A literatura acerca do tema
Fo

22
23
indica a existência de uma multiplicidade de dimensões que seriam consideradas
24 as substantivas da humanização e, assim, engendram também uma
rR

25
26 multiplicidade de definições acerca da humanização. Dessa forma,
27
28 categorizamos a humanização em quatro diferentes abordagens: 1. Crítica do
ev

29
tecnicismo contemporâneo na área da saúde; 2. Transformação da relação
30
31 estabelecida entre profissional e usuário; 3. Mudança na gestão do trabalho; 4.
iew

32
33 Projeto de educação permanente para os profissionais.
34
35 Agrupamos essas quatro abordagens em duas situações polares em
36
On

37 relação ao seu recorte da prática de saúde: as duas primeiras constituíram


38
39 situações da relação entre profissionais e usuários e as duas últimas situações
40
de gestão. As publicações foram discriminadas levando-se em conta se abordam
ly

41
42 a humanização através do exame da hierarquia do trabalho, da organização do
43
44 serviço e do trabalho parcelado ou se abordam a humanização a partir do interior
45
46 do processo de trabalho, através da interação entre o profissional e usuário.
47
48 Dentre elas destacam-se: uma produção crescendo ao longo do tempo;
49
50 estudos centrados em discutir a gestão e abordando sobretudo os profissionais;
51
estudos centrados nos aportes teóricos das representações sociais; e volume
52
53 que se pode considerar até acanhado de produção de dados primários. Chama
54
55 a atenção, assim, o fato de que para uma problemática recém-admitida no
56
57 campo da Saúde Coletiva e demandando, por isso mesmo, elaboração
58 conceitual original, exista tão pouca diversidade de estudos ou de referenciais
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 8 of 20

1
2
3 teóricos utilizados, ao mesmo tempo em que apresentam sentidos diversos para
4
5 humanização que não dialogam entre si.
6
7 Essa produção bibliográfica também é aqui examinada da perspectiva
8
9 teórica, em termos da exploração da noção de ‘cuidado’ subjacente ao estudo
10
11 publicado, e em termos da conceituação de ‘humanização’. Tal exame buscou
12
13
tanto a definição desses termos ao longo da publicação, quanto a utilização
14 dessas noções na relação epistemológica entre os tópicos ‘introdução’,
15
16 ‘metodologia’, ‘análise/interpretação’ e ‘discussão’ dos dados. Esse exame
17
18 tomou por base a formulação teórica sobre o cuidado em saúde feita por Ayres5
19
e a formulação teórica sobre a relação epistemológica entre engajamento ético-
20
21 político e produção de conhecimento científico feita por Schraiber6 e aplicada em
Fo

22
23 exame da produção bibliográfica da Saúde Coletiva quanto ao uso do conceito
24
de Gênero por Araújo et al7.
rR

25
26
27 Relativamente ao ‘cuidado’, Ayres5 aponta duas dimensões articuladas:
28
ev

29 a do êxito técnico, que diz respeito a relações meios e fins da intervenção


30
delimitada pela biomedicina, e a do sucesso prático, que diz respeito a relações
31
iew

32 intersubjetivas que valorizam a perspectiva de cuidado trazida pelo usuário,


33
34 como parte de seu entendimento de adoecimento e recuperação, e nesse
35
36 sentido, intervenções compartilhadas na relação profissional-usuário. Assim,
On

37 pode-se examinar as publicações quanto à presença ou não da problematização


38
39 do cuidado a ser prestado na perspectiva da humanização de ambas as
40
dimensões, com clara ênfase na valorização do sucesso prático, o qual resituaria
ly

41
42
43
o usuário como sujeito participante da própria intervenção assistencial. Contudo,
44 o observado foi que o sucesso prático surge tematizado apenas em 34 das
45
46 publicações.
47
48 Já relativamente ao engajamento ético-político articulado à produção do
49
50 conhecimento, os dois estudos citados vão apontar para a importância de serem
51
52 valorizadas nas pesquisas questões trazidas por movimentos sociais em prol da
53
54
melhoria da atenção aos indivíduos e às populações. Não obstante, a articulação
55 com a produção do conhecimento científico exigiria um passo adicional, no
56
57 sentido de se incorporar, adicionalmente às perspectivas dos movimentos
58
59 sociais, a construção conceitual de explicações/compreensões como parte das
60
determinações sociais e culturais dos adoecimentos e dos cuidados. É nesse

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 9 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 sentido que Araújo et al.7 examinam o uso do termo ‘gênero’ como um lema
4
5 ativista e também como um conceito que explica histórica e socialmente as
6
7 desigualdades sociais entre homens e mulheres.
8
9 Humanização, enquanto objeto de estudo, traz, assim, uma primeira
10
11 dificuldade inicial, dado que nomeia ao mesmo tempo um ‘mote’ dos movimentos
12
13
sociais em luta pelos seus direitos e uma política pública de intervenção estatal
14 em serviços de saúde. Consequentemente, as publicações acerca da
15
16 humanização têm se caracterizado pela diversidade de desenhos de pesquisa e
17
18 pela pluralidade de definições: a humanização aparece como oposição à
19
violência por parte dos autores; como luta por direitos negados dentro dos
20
21 serviços de saúde; como atributo desejável e negligenciado por parte dos
Fo

22
23 profissionais e como luta por melhores condições de trabalho.
24
rR

25 Para tratar especificamente da dimensão conceitual nas publicações


26
27 selecionadas, foram discriminadas, então, duas categorias. Primeiramente,
28
ev

29 separamos os artigos que tratam da humanização dentro do horizonte político-


30
pragmático dos movimentos sociais que cunharam o termo: são publicações
31
iew

32 preocupadas em apresentar/denunciar/problematizar o trabalho em saúde


33
34 através da perspectiva da humanização, aderindo aos motes dos movimentos
35
36 sociais. Dada a característica pragmática do campo da Saúde Coletiva8 e a sua
On

37 íntima relação com os movimentos sociais, esse tipo de publicação é bastante


38
39 comum, compondo 65% das publicações selecionadas.
40
ly

41
42
Em segundo lugar, categorizamos como ‘conceitual’ aquelas publicações
43 que se prestam à análise da humanização através de algum quadro teórico
44
45 previamente definido através da qual se interprete a humanização. Ou seja, uma
46
47 explicação de social e de humano de que se utilizam os estudos, e, através dela,
48 compõem suas interpretações da humanização em saúde. Menos comuns, essa
49
50 categoria representa 35% da produção selecionada.
51
52
53
A humanização aparece como um movimento crescente, tanto do ponto
54 de vista dos diferentes sentidos que o termo pode assumir, quanto na
55
56 diversidade de propostas de intervenção. Dentro desta diversidade de frentes de
57
58 humanização, podemos elencar a busca por um certo ideal, na qualidade de
59
fundamento comum entre elas, que representa “[...] uma síntese de aspirações
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 10 of 20

1
2
3 genéricas por uma perfeição moral das ações e relações entre os sujeitos
4
5 humanos envolvidos”9. Cada publicação se detém sobre um conjunto específico
6
7 de questões práticas, às vezes teóricas, comportamentais e históricas, com o
8
objetivo de criticar o instituído ou propor uma nova dimensão humanizadora.
9
10
11 Essas pesquisas se detêm sobre temas bastante distantes prática e
12
13
teoricamente entre si, tais como: a melhora ou a mudança da relação
14 profissional-usuário, a crítica do modelo biomédico de atenção à saúde, novas
15
16 propostas de participação popular e mudanças nas estruturas gerenciais dos
17
18 serviços, propostas de mudança ou críticas aos modelos de ensino na saúde,
19
entre outras e variadas proposiçõesa. Mesmo dentro de cada uma dessas
20
21 temáticas, observa-se uma profusão de diferentes intenções que trabalham com
Fo

22
23 concepções de mundo completamente diversas, resultando em propostas
24
humanizadoras de natureza totalmente distintas, por vezes contraditórias, que
rR

25
26 parecem só coincidir na bandeira da humanização.
27
28
ev

29 Quanto à concentração da abordagem das representações sociais na


30
produção selecionada, cabe comentar a leitura de Moscovici10, para quem a
31
iew

32 representação social se refere ao posicionamento da consciência subjetiva nos


33
34 espaços sociais, no sentido de formar percepções por parte dos indivíduos.
35
36 Assim, a representação de um determinado objeto social passa por um processo
On

37 de formação através do encadeamento de fenômenos interativos, fruto dos


38
39 processos sociais do cotidiano. Desse modo, busca-se, com base na teoria de
40
Èmile Durkheim, correlacionar explicações do senso comum com ideologias e
ly

41
42
43
teorias científicas.
44
45 Embora a produção de artigos selecionados descreva, por meio de
46
47 entrevistas, grupos focais e questionários, qual a opinião dos entrevistados sobre
48 o que é a humanização ou como ela deve ser implementada, esses artigos não
49
50 avançam na análise das razões dessas percepções, como elas se relacionam
51
52 com a realidade e com a teoria que embasaria seus estudos, demandando que
53
54
apresentassem uma discussão sobre os conceitos de social e de humano
55 adotados em seus referenciais. Em razão disto não saem do senso comum dos
56
57 problemas de saúde, limitando-se a apresentar fatos e interpretações visitadas
58
59
60 a O rol de publicações correspondente a cada tema encontra-se em Azeredo2

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 11 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 e revisitadas no campo. Nesse sentido, grande parte das publicações
4
5 examinadas intitulam seus estudos com variações do nome “percepções dos
6
7 trabalhadores sobre humanização” e não entram na questão de qual teoria ou
8
ideologia estão sendo refletidas ou contidas na fala dos profissionais. Estes
9
10 artigos formam um compêndio homogeneizado e repetitivo acerca da
11
12 humanização. Nele, temos aqueles que mostram que os profissionais acreditam
13
14 que eles mesmos precisam mudar de atitude, outros nos quais os profissionais
15 expõem a impossibilidade do atendimento humanizado dadas às condições de
16
17 trabalho, e os que apontam a falta de valorização do “humano” nos serviços e na
18
19 sociedadeb .
20
21 Isso se deve à forma pela qual está estruturada a produção de
Fo

22
23 conhecimento em Medicina e na Saúde Pública de forma geral, cujo caráter
24
pragmático volta-se mais aos processos práticos de intervenção sobre esferas
rR

25
26 consideradas não-humanizadas das práticas de saúde do que uma busca por
27
28 compreender o que seria a humanização dessas práticasc.
ev

29
30
Poder, Violência e autoridade nas publicações selecionadas
31
iew

32
33 Poder, violência e autoridade aparecem como conceitos correlacionados
34
35 entre si. Parte significativa dos pesquisadores defende que poder e autoridade
36 seriam a mesma coisa, condicionando ambos ao fenômeno da violência.
On

37
38 Violência, seria, nestes referentes, um ‘excesso’ de poder ou um ‘abuso’ de
39
40 autoridade.
ly

41
42 A autoridade profissional surge como aquela que usurparia a fala e o
43
44 saber do usuário; e como justificativa para o controle, submissão e obediência.
45
46 Autoridade é vista como um atributo negativo que deveria ser, de toda forma,
47 evitada, pois seria o fundamento de uma relação violenta por parte dos próprios
48
49 profissionais.
50
51
O ‘poder’ aparece nas publicações selecionadas com um uso bastante
52
53 semelhante ao de autoridade, muitas vezes, inclusive, como termos sinônimos.
54
55 O poder também é tratado como se fosse entrelaçado com a violência, de forma
56
57
58 bO rol de publicações correspondente a cada uma dessas visões encontra-se em Azeredo2
59 cA preocupação exclusivamente tecnológica das pesquisas em saúde leva ao que Ayres5 e Schraiber6
60
denominaram ‘rarefação teórica’.

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 12 of 20

1
2
3 que o exercício da violência seria intrínseco ao poder: Ter, deter ou exercer o
4
5 poder aparece como um atributo negativo, como se o caminho natural fosse
6
7 tornar-se violência.
8
9 Na dimensão das práticas de saúde, o poder é visto como ocultação, pelos
10
11 profissionais, de informações acerca dos procedimentos e do estado de saúde
12
13
dos pacientes, bem como a desqualificação dos saberes do usuário acerca do
14 seu corpo e de sua experiência no adoecer, cujo objetivo seria tornar ainda mais
15
16 desigual a relação entre os dois entes.
17
18 O poder é também visto como o caminho que leva à imposição da vontade
19
20 dos profissionais sobre os corpos dos usuários; toda forma de cerceamento de
21
Fo

22 liberdade, inclusive o fundamento da decisão sobre a vida e a morte.


23
24 As publicações selecionadas do campo da Saúde Coletiva encontram a
rR

25
26 origem do problema da violência nos serviços de saúde na assimetria de poder
27
28 entre profissionais e usuários. Assim, a diminuição do poder e da autoridade dos
ev

29
profissionais corresponderia ao respeito aos corpos, aos direitos e vontades dos
30
31 usuários e por esse caminho o fim da violência. Nesse contexto, ‘deter o poder’
iew

32
33 significa colocar o usuário em uma posição de submissão, de desconhecimento
34
35 que visa a sustentação da assimetria.
36
On

37 Parece-nos que estamos diante não apenas de compreensões dos


38
39 conceitos de poder, violência e autoridade que anulam quaisquer distinções
40
entre si, mas também da ausência de distinção entre o plano da ação técnica e
ly

41
42 aquele da ação moral que estão articulados na prática cotidiana, como apontou
43
44 Schraiber11,12 a propósito do trabalho médico. O fato de que a técnica dependa
45
46 da relação médico-paciente e que elementos morais, assim como ético-políticos
47 e sociais, estejam implicados nessa relação – a ponto de a técnica em medicina
48
49 poder ser caracterizada como uma técnica moral dependente11 –, não significa
50
51 que a autoridade e a intervenção do profissional devam ser confundidas com
52
53
uma ação de ordem moral. Mas tal proximidade da técnica com a relação
54 interpessoal, que foi historicamente construída na fase da medicina liberal11,
55
56 muitas vezes faz o médico passar da intervenção técnica à ação moral como se
57
58 fosse um contínuo de mesma autoridade.
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 13 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 Um exemplo disto é o modo como alguns profissionais se posicionam
4
5 diante da sensível questão do aborto, com deslocamento fácil da autoridade
6
7 técnica para uma de cunho moral e da intervenção técnica para o
8
aconselhamento moral13. Nesse caso, trata-se de uma autoridade técnico-
9
10 científica que invade normatizando a experiência de vida do paciente. Invalida,
11
12 assim, o saber sobre adoecimentos ou tratamentos e cuidados de si, que
13
14 decorrem dessa experiência de vida, qual seja, o ‘saber prático’d do paciente5 ou
15 a sua competência própria no lidar com a sua enfermidade15. No entanto, á no
16
17 encontro clínico dois tipos de assimetria: a do profissional relativamente à sua
18
19 maior autoridade no uso do saber técnico-científico e a do paciente relativamente
20
21
às competências práticas para seguir o modo social de andar a vida em sendo
Fo

22 portador de adoecimentos. Ocorre que quando na esfera da técnica o


23
24 profissional valoriza a autoridade do paciente consegue-se um equilíbrio entre
rR

25
26 as distintas autoridades em jogo, o que pode sugerir uma simetria. De outro lado,
27
o que está acontecendo no cotidiano dos serviços nos dias de hoje é que a
28
ev

29 autoridade do paciente tem sido anulada, parecendo ocorrer nessa anulação um


30
31 abuso de poder da outra autoridade, ainda que não seja exatamente um abuso
iew

32
33 de poder, mas uma violência, um não reconhecimento do outro como sujeito.
34
35 Objetivando distinguir esses conceitos, buscamos referências na análise
36
histórico-interpretativa de Hannah Arendt16, para quem reconhecer e seguir uma
On

37
38
autoridade ou agir na condição de mando-obediência não são equivalentes.
39
40 Arendt também afirma a existência de uma profunda crise da autoridade no
ly

41
42 mundo moderno, que culmina nos regimes autoritários do século XX. A
43
44 autoridade é entendida pela autora como um tipo de relação assimétrica entre
45 dois indivíduos. Essa assimetria não se pauta na violência, pelo contrário, já que
46
47 todo uso da violência representa o fracasso da autoridade16. Essa relação
48
49 assimétrica também não está pautada no convencimento, já que isso só poderia
50
51
acontecer em uma relação entre iguais. A autoridade, então, se pauta no próprio
52
53
54
55
56 dNote-se aqui que este termo saber prático não quer fazer referência ao conhecimento técnico que
57
rege a intervenção, mas a um saber-fazer decorrente de juízo do tipo prático, uma sabedoria quanto ao
58
que fazer baseado na experiência vivida e não decorrente de um juízo técnico-cientifico, como é o saber
59
operante das técnicas em geral e da intervenção médica em particular. Para maior aprofundamento
60
veja-se Ricoeur14

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 14 of 20

1
2
3 reconhecimento da condição desigual da relação dos dois polos, legitimando a
4
5 hierarquia na relação.
6
7 A autoridade, em Arendt, está ligada ao conceito de tradição, sendo esta
8
9 constituída pelos postulados do passado que ajudam os homens do presente
10
11 nos momentos de decisões, crises, dificuldades e mudanças. Os alicerces da
12
13
tradição são corroídos na Modernidade a partir do novo lugar da ciência e da
14 tecnologia na sociedade. Esse fio que liga o passado ao futuro foi rompido pela
15
16 ciência moderna com o surgimento do imperativo cartesiano da dúvida
17
18 hiperbólica, que põe em cheque toda forma de autoridade, de hierarquia e de
19
herança do passado sobre o presente.
20
21
Fo

22 Seguindo o estudo realizado por Schraiber12 com médicos de São Paulo,


23
24 a tradição em medicina está ancorada no ideário do trabalho liberal, ou seja,
rR

25 naquele trabalho em que o produtor detém o controle sobre os meios de


26
27 produção, o fluxo da clientela e a organização e jornada de seu trabalho. O
28
ev

29 imaginário social da tradição em medicina é do médico que carregava uma


30
pequena maleta e ia até casa dos seus pacientes portando pouco mais que seu
31
iew

32 estetoscópio, conhecia a casa, os familiares, o trabalho e os costumes de seu


33
34 cliente. Munido de pouca tecnologia, como exames, instrumentos e
35
36 medicamentos, esse profissional fundamentava suas decisões clínicas tanto nos
On

37 elementos anátomo-fisio-patológicos da transposição do corpo abstrato da


38
39 ciência para o caso concreto, quanto nas dinâmicas de vida, trabalho, costumes
40
e condições sociais de seus pacientes. Entram em jogo as possibilidades
ly

41
42
43
econômicas, as disposições materiais, os efeitos colaterais na vida do paciente
44 e os possíveis efeitos iatrogênicos. E será nesse contexto que se criam os
45
46 vínculos de confiança entre médicos e pacientes, que representam o
47
48 reconhecimento e legitimação da relação hierárquica de autoridade.
49
50 A autoridade médica se ancorou na história da profissão através da
51
52 eficácia de sua prática e da qualidade de seus vínculos de confiança, que
53
54
permitiam ao médico diagnosticar, propor terapêuticas e seguir a evolução de
55 seus pacientes. Os vínculos de confiança são o que liga a relação atual ao
56
57 passado de cuidado da tradição médica. É através dele que a autoridade pode
58
59 se estabelecer já que, como coloca Arendt16, o que conecta os dois polos da
60
relação é o próprio reconhecimento que esta só existe através de uma

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 15 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 assimetria, ou seja, a legitimidade da autoridade se assenta no lugar estável e
4
5 determinado que ambos reconhecem. A relação entre médico e paciente nunca
6
7 pode ser uma relação entre iguais principalmente porque a assimetria é o motivo
8
do estabelecimento da relação. Através da confiança que o paciente tem no
9
10 médico e em seus saberes que a autoridade pode se estabelecer como “mais
11
12 que um conselho e menos que uma ordem”11 (p. 165). Esses vínculos se
13
14 esgarçam na medicina tecnológica iniciando o processo que diminui a autoridade
15 médica ao invés de aumentá-la - ao contrário do que defendem as publicações
16
17 selecionadas do campo da Saúde Coletiva.
18
19
A crise da tradição do trabalho médico será o rebaixamento de todas as
20
21 antigas formas de saber – do paciente sobre seu corpo e sua doença, do médico
Fo

22
23 sobre tudo aquilo que envolve o seu paciente para além do corpo e da doença e
24
da própria experiência do médico – em relação ao conhecimento da ciência. Por
rR

25
26 meio do rebaixamento cria-se a crise dos vínculos de confiança e, então, da
27
28 relação entre médicos e pacientes, situação em que os médicos ainda esperam
ev

29
30 o reconhecimento da autoridade, que, todavia, já não mais ocorre.
31
iew

32 Na medicina tecnológica, a ciência se tornará o grande crivo do trabalho


33
34 médico, através de suas renovadas técnicas, e dos mais diversos tipos de novas
35
36 tecnologias. Essa maquinaria será responsável por empurrar a classe médica ao
On

37 assalariamento com a posterior perda do controle sobre o fluxo de clientes e


38
39 sobre os meios de produção de seu trabalho.
40
ly

41
42
Sem poder apelar para a gama de saberes não-científicos – da sua
43 experiência pregressa e dos médicos a sua volta, assim como dos saberes dos
44
45 pacientes acerca do seu corpo e do seu adoecimento – e tendo perdido o
46
47 controle sobre os meios de produção e o fluxo da clientela, ao médico só resta a
48 confiança nos aparatos tecnológicos, rompendo, assim, nos termos de Arendt16,
49
50 o fio que liga o passado ao futuro.
51
52
53
O empresariamento do trabalho em saúde transforma a relação, no
54 sentido que o cidadão não procura mais o médico que lhe foi indicado, consulta-
55
56 se com ele e, através de uma avaliação da qualidade do vínculo, escolhe se
57
58 permanece com ele ou não. Agora, o cidadão procura o médico que está nas
59
listas do plano de saúde, na UBS da sua região ou que está de plantão no
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 16 of 20

1
2
3 hospital. Da parte do profissional, ocorre fenômeno semelhante: como seu
4
5 cliente não o acessa de maneira direta, o médico só tem acesso aos pacientes
6
7 através do hospital, do Estado ou do plano da saúde.
8
9 Assim, a relação entre médico e paciente passa a ser sobredeterminada
10
11 por um ente externo. As instituições passam a determinar como essa relação
12
13
ocorrerá, qual será o valor pago e recebido pelo serviço, o local e o tempo das
14 consultas, quais os instrumentos, tecnologias e medicamentos disponíveis. A
15
16 precarização dessa relação leva a despersonificação dos entes envolvidos. O
17
18 médico é só o nome que consta na lista do convênio e o paciente se torna um
19
número na fila do atendimento.
20
21
Fo

22 Mas essa transformação é de algum modo percebida por médicos e


23
24 pacientes na ideia de que, embora a medicina vá muito bem nos seus avanços
rR

25 tecnológicos, a esfera relacional vai muito mal12,17. Com o esgarçamento do


26
27 vínculo e a entrada de um ente intermediário entre os polos da relação, a
28
ev

29 autoridade se esvazia. Essa nova relação se inverte e a empresa que se


30
encontrava na posição de intermediário passa a ocupar o lugar de autoridade,
31
iew

32 enquanto o profissional torna-se o intermediário ao acesso às tecnologias.


33
34 Contemporaneamente, esse profissional aparece para a população como
35
36 recurso que, por vezes, burocratiza e atrapalha o seu acesso à tecnologia ou aos
On

37 medicamentos.
38
39
40 Ideologicamente, a ciência é vista pelo público leigo, inclusive por parte
ly

41
42
dos produtores e operadores de tecnologia, como a melhor forma e a mais
43 evoluída na produção do conhecimento, e a única matéria de acesso à verdade,
44
45 escamoteando-se ou simplesmente se desqualificando as limitações que os
46
47 desenhos das pesquisas científicas impõem a esse conhecimento, o que é de
48 pleno reconhecimento dos próprios cientistas.
49
50
51 Essa hierarquia diferenciada em relação ao estatuto científico desse
52
53
conhecimento produz o entendimento da patologia como entidade natural e
54 neutra sobre a qual o médico atuará a partir de técnicas e tecnologias
55
56 cientificamente fundadas. Seriam, portanto, intervenções técnicas de caráter
57
58 neutro sobre uma disfunção de origem natural. Assim, a confiança sobre essa
59
ciência neutra cresce concomitantemente aos entes tecnológicos que produz.
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 17 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 Desse modo, deixamos de lado o conhecimento e a experiência pretérita
4
5 do médico, o saber do paciente sobre o seu corpo e sobre o seu adoecimento.
6
7 Nessa transformação ocorre a substituição do sujeito-paciente, com todo o seu
8
contexto de vida e história, pela aplicação quase que imediata da biomedicina
9
10 do corpo abstrato da ciência para o corpo real.
11
12
13
Na outra ponta da relação, a importância que os aparatos tecnológicos
14 ganham na contemporaneidade é tão grande que o profissional de saúde se
15
16 torna um aplicador de seus protocolos de uso, desvalorizando a necessidade de
17
18 uma reflexão quanto ao contingencial de cada caso frente à abstração
19
generalizadora que a patologia faz para todos os corpos. Esse processo de
20
21 rebaixamento do julgamento do homem em relação ao poderio da maquinaria é,
Fo

22
23 para Arendt, característico da modernidade. A desconfiança sobre o julgamento
24
médico parece crescer em proporção ao desenvolvimento dos instrumentos que
rR

25
26 primeiramente auxiliariam o discernimento do profissional, mas que, na
27
28 contemporaneidade, tendem a substituí-lo12.
ev

29
30
O paciente, torna-se consumidor dos insumos da saúde: com o acesso à
31
iew

32 informação, ele já ‘sabe’ que exame quer fazer e que remédio quer tomar. Assim,
33
34 a autoridade sobre as decisões clínicas sai das mãos do profissional rumo às
35
36 empresas de tecnologia biomédica e à indústria farmacêutica. É desse modo
On

37 que, se por um lado, o desenvolvimento científico-tecnológico aumentou as


38
39 possibilidades de intervenção médica, ampliando o conforto dos profissionais em
40
seus desempenhos, por outro, representou o desconforto para os médicos de se
ly

41
42
43
verem reduzidos a dispositivos no acesso às tecnologias.
44
45 Buscando fazer valer uma autoridade que acredita ainda mais legítima,
46
47 em razão do maior desenvolvimento dos fundamentos científicos de sua prática,
48 o médico busca impor sua perspectiva ao invés de dialogar com o paciente,
49
50 assegurando tal imposição pelo controle que ainda efetivamente detém no
51
52 acesso às diversas tecnologias da saúde. Essas atitudes reforçam a
53
54
precariedade da interação e se apresentam em relações nas quais a autoridade
55 é substituída pela violência. Assim, o uso por parte do médico do posto de
56
57 autoridade que antes ocupava, no momento em que se perde a legitimidade para
58
59 fazê-lo, transforma-se apenas em exercício de sobre o paciente, situação em
60
que, como diz Arendt18, não há nada mais ali de poder, apenas violência.

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 18 of 20

1
2
3 Portanto, defendemos que a violência nos serviços de saúde não está
4
5 pautada em um excesso de poder ou autoridade dos profissionais, mas, ao
6
7 contrário, tem origem na crise da autoridade em saúde dos profissionais e no
8
esvaziamento dos espaços políticos de poder dentro da relação clínica.
9
10
11 Através dessa análise, a humanização enquanto respeito aos usuários e
12
13
o fim da violência nos serviços nos parece ser uma luta a ser travada por
14 condições e demandas de trabalho que sejam compatíveis com uma prática que
15
16 possa particularizar os entes abstratos da ciência dentro da concretude singular
17
18 de cada corpo. Para tal, é fundamental um tempo de consulta que permita o
19
estabelecimento da vinculação entre profissional e usuário, para que ali possa
20
21 emergir tanto a experiência particular do adoecimento quanto a experiência
Fo

22
23 pretérita do profissional. Por fim, a luta pela humanização parece constituir-se
24
em um âmbito mais estrutural como luta contra a produção de caráter fabril na
rR

25
26 saúde. Humanizar surge, assim, como o respeito às individualidades e a
27
28 possibilidade da interação intersubjetiva entre profissionais e usuários e não
ev

29
30 como uma retomada de preceitos morais de qualquer filosofia de caráter
31
iew

32
humanista.
33
34
35
36
On

37
38
39
40
ly

41
42
43
44
45
46
47 Referências Bibliográficas
48
49 1. MS (Ministério da Saúde). Programa Nacional de Humanização da
50
51 Assistência Hospitalar. Brasília; 2000.
52 2. Azeredo YN. Saúde Coletiva e Filosofia: contribuições de Hannah
53
54 Arendt para o debate de humanização [dissertação]. São Paulo:
55
56 Universidade de São Paulo; 2017.
57
58
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Page 19 of 20 Interface - Comunicação, Saúde, Educação

1
2
3 3. Azeredo YN, Schraiber LB. Violência institucional e humanização em
4
5 saúde: apontamentos para o debate. Ciência e Saúde Coletiva. 2017;
6
7 22(9): 3013-22.
8
4. Gadamer HG. Verdade e Método: traços fundamentais de uma
9
10 hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes; 1997.
11
12 5. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio
13
14 de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2009.
15
16 6. Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na
17
18 produção científica do conhecimento em saúde coletiva. In: Baptista
19
TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas,
20
21 planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa.
Fo

22
23 Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. p. 33-57.
24
rR

25 7. Araújo MF, Schraiber LB, Cohen DD. Penetração da perspectiva de


26
27 gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção
28
ev

29 científica da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2011; 15(38): 805-


30
18.
31
iew

32
33 8. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde Coletiva: uma “nova” saúde pública
34
35 ou campo aberto a novos paradigmas? Rev. Saúde Pública. 1998;
36 32(4): 299-316.
On

37
38
39 9. Puccini P, Cecílio LCO. A humanização dos serviços e o direito à
40
saúde. Cadernos de Saúde Pública. 2004; 20(5): 1342-53.
ly

41
42
43 10. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia
44
45
social. Petrópolis: Vozes; 2004.
46
47 11. Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São
48
49 Paulo: Hucitec; 1993.
50
51 12. Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de
52
53 confiança. São Paulo: Hucitec; 2008.
54
55 13. Castro R, López Gómez A. Poder médico y ciudadanía: el conflicto
56
57 social de los profesionales de la salud con los derechos reproductivos
58
59 en América Latina. Avances y desafíos en la investigación regional.
60 México DF: UNAM, CRIM; 2010.

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
Interface - Comunicação, Saúde, Educação Page 20 of 20

1
2
3 14. Ricoeur P. Do texto à acção. Porto: RÉS-editora, 1989.
4
5
6 15. Cyrino AP. Entre a ciência e a experiência: uma cartografia do
7 autocuidado no diabetes. São Paulo: UNESP; 2009.
8
9
10 16. Arendt H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva; 2011.
11
12 17. Gomes RM. Trabalho médico e alienação: as transformações das
13
14 práticas médicas e suas implicações para os processos de
15
16 humanização/desumanização do trabalho em saúde [tese]. São Paulo,
17 Universidade de São Paulo; 2010.
18
19
20 18. Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
21
2013.
Fo

22
23
24
rR

25
26
27
28
ev

29
30
31
iew

32
33
34
35
36
On

37
38
39
40
ly

41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60

https://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo

Você também pode gostar