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ALMA

Hélio Cardoso de Miranda Jr.

Esta obra foi vencedora do II Prêmio Literário da PUC Minas – edição 2019.

A alma não dorme: ela é inquieta, divaga, sonha. Há, para ela, um agalma desconhecido

que lhe corresponde, um valor que lhe confere vida, um valor que só encontra medida em outra

alma.

O que vem do pó, precisa. A alma ama. Amalma.

“Acorda menino! Hora de ir trabalhar!”

Eram quatro e meia da madrugada. A mãe já tinha preparado o café para o filho, que era

um pouco lento para levantar. “Bença mãe!”, “Vai com Deus!”. Depois do café, ele precisava

andar quase quarenta minutos para chegar ao sítio do patrão, onde cuidava da plantação de

hortaliças. Era um bom empregado, desses que não deseja nada além de um dia poder ter um

pedaço de terra parecido com aquele e cuidar de outras hortaliças. O patrão gostava dele.

Tratava-o com a medida de respeito suficiente para demonstrar reconhecimento, e ao mesmo

tempo não permitir intimidades, nem com ele nem com sua família, que por três gerações

praticava agricultura naquela cidade. Enquanto colhia algumas alfaces, ao ver uma joaninha ser

devorada por um pássaro, lembrou-se de seu irmão menor e esboçou um sorriso de

contentamento. “Moleque levado!”, pensou.

Ao seu lado na lavoura, o colega de trabalho tinha outras preocupações. O pensamento

retornava à sua mãe recorrentemente. Mulher vigorosa, ela estava mostrando-se cansada desde

o ano passado, quando teve de começar a cuidar da sua própria mãe. A avó tinha sofrido uma
amputação da perna por causa de diabetes e agora dependia da filha para tudo. Enquanto colhia

couves, rúculas e alfaces, ele não conseguia deixar de pensar naquela situação que o tornava

tenso. Desejava que a hora do almoço chegasse mais rápido para que pudesse relaxar tomando

um pouco de cachaça e, quem sabe, sonhando com as mulheres do hotel que ficava a pouca

distância.

No hotel, os empregados já serviam o café da manhã e limpavam a área externa. Ana se

atrasou um pouco naquele dia, mas rapidamente trocou a roupa pelo uniforme e começou suas

tarefas, o que não evitou o olhar de reprovação da supervisora. Os hóspedes começavam a

chegar ao restaurante e ela se esforçava para deixar tudo em ordem. Uma das hóspedes,

Graciela, perguntou a Ana sobre o suco de laranja e a empregada foi verificar, não sem antes

pensar que gostaria de deixar aquele emprego e se dedicar à escola. Se pudesse trabalharia na

escola; gostava muito de lá, sentia-se acolhida. Seu salário no hotel era, porém, importante para

a família de quatro irmãos. Ela era a primogênita e os três menores ainda não podiam trabalhar.

Um deles arrumava algum dinheiro ajudando em uma oficina mecânica, mas era pouco. A mãe

cuidava da casa, o pai trabalhava em uma empresa de transporte: era motorista de ônibus, mas

consumia parte de seu salário nos bares em fins de semana. Ela sentia raiva dele por isso.

Graciela recebeu o suco de laranja e se deu por satisfeita. Notou o mau humor da

empregada, mas relevou no momento. Falaria com o pai mais tarde, é claro, pois, afinal, o pai

conhecia os donos e era importante que eles soubessem do mau humor da empregada, coisa

desagradável. Graciela deixou isso de lado pouco tempo depois. O dia estava prometendo

muito. Ela se casaria em breve e sua família havia decidido antecipar o fim de semana para se

encontrarem naquele hotel tranquilo e confortável e decidirem os preparativos da cerimônia. O

noivo chegaria à tarde, os pais talvez chegassem para o almoço. Graciela era filha caçula e se

formara há dois anos em administração de empresas. Oscilava entre conseguir emprego em uma

empresa multinacional ou assumir os negócios da empresa do pai. A decisão não era fácil
porque, apesar de afetivo, o pai era muito rígido com as decisões nos negócios e raramente

admitia erros. Ela via isso nos telefonemas dele aos seus subordinados imediatos. Um pequeno

ruído indicou uma mensagem em seu celular. Era o áudio de uma amiga. Ela regulou o aparelho

e colocou-o perto do ouvido para só ela escutar, mas o barulho do motor de um ônibus que

passava em frente ao hotel atrapalhou. Era o único barulho a incomodar naquele lugar.

O ônibus se dirigia à empresa da região. Lá trabalhava muita gente. Era uma daquelas

empresas que não param, que precisam funcionar o tempo todo. Leonardo, João Paulo e José

Afonso estavam nele. Colegas de seção, eram operadores de máquinas. Leonardo e João Paulo

eram muito sociáveis, gostavam de conversar e jogar cartas. Os dois eram amigos fora da

empresa e as famílias conviviam em alguns eventos festivos. José Afonso era diferente.

Carrancudo, não gostava muito de brincadeiras, mas era cordial com os colegas, muito educado,

até elogiado por sua dedicação ao trabalho e atenção aos detalhes.

Naquele dia era aniversário de Leonardo e alguns colegas lhe prepararam uma pequena

surpresa no vestiário da empresa. Depois que ele tirou a roupa e antes que ele vestisse o

uniforme, estouraram um pequeno saco de farinha branca na sua cabeça. Coisas daquele

ambiente de trabalhadores que se divertem com o que podem. Leonardo fez que não gostou,

que não contava com a brincadeira - na verdade, já aguardada - riu e agradeceu os cumprimentos

que vieram em seguida. Brincadeiras desse tipo eram como um signo de reconhecimento, de

laço afetivo. Então, quando não aconteciam era sinal de que esse laço não era tão bom.

Assim era com José Afonso, que olhou tudo à distância. Com ele não brincavam e ele

preferia dessa maneira. Na verdade, naquele momento pensava na discussão que tivera com a

mulher pouco antes de sair de casa. Quando se lembrava sentia muita raiva. Pensava em como

iria resolver isso à noite. A mulher merecia uma bofetada, ah! merecia... Não ia dar muita

chance de ela falar demais. À noite, se precisasse, ia mostrar mais uma vez como é que a casa
funciona. Os filhos não deveriam ver, mas precisavam saber para aprenderem como é que é.

Assim o pai havia ensinado, assim ele queria que fosse. Havia um pouco de prazer misturado

com culpa nesse pensamento, mas ele havia se acostumado a essa ambivalência. Amor a si

próprio e ao pai se impunham a outros amores.

No ônibus também ia Vanessa. Ela trabalhava naquela empresa há pouco tempo e estava

gostando muito. Enfim encontrara um emprego que parecia promissor. Jovem, ela projetava

voltar a estudar, cursar universidade. O sonho tinha sido interrompido pela filha em idade

precoce. De família pequena, três irmãos, teve de suportar a tensão familiar depois do anúncio

da gravidez inesperada. Rejeição, censuras, confusão. Não tinha sido uma gravidez fácil. Não

fossem as intervenções da madrinha, talvez nem pudesse mais estar morando com os pais. A

pequena menina que nascera era linda, como o pai, de quem ela se separara pouco tempo depois.

Luana tinha o rosto bem feito, cabelos lisos e olhos castanho-claros. Muito esperta, com quase

quatro anos de idade já queria conhecer o novo trabalho da mãe. Os avós se acostumaram e

assimilaram a pequena na casa. Mais que isso, tornaram-na componente central da família. De

vez em quando, a própria Vanessa dizia, entre queixosa e orgulhosa, que ela mesma nunca

tivera tratamento igual na infância. Os pais-avós riam, era uma verdade perdoável.

Vanessa vivia um novo enredo amoroso e isso também a estimulava. Elias lhe parecia

um homem bom. Ele era bem mais velho e ocupava uma posição gerencial na empresa. Era o

responsável por uma equipe grande. Ela o conhecera lá, mas alguns colegas gostavam de pensar

que ele a indicara para a vaga no Departamento de Pessoal. Olhavam-na como oportunista. Até

porque ele era casado. Ela se sentia um pouco constrangida com esses olhares, o que não a

impedia de devanear as primeiras férias remuneradas viajando com ele às escondidas.

Elias trabalhava ali há muito tempo. Engenheiro prestativo e disposto a executar as

ordens da companhia, ele era um bom técnico. Sentia-se realizado profissionalmente, não tinha
muitas ambições. Era seguro, sabia do seu valor. Só por uma vez havia sido cogitada sua

demissão, justamente por causa de envolvimento com uma colega de trabalho. Ele se safou,

mas a colega não. O insatisfatório casamento servia como justificativa para os seus casos

amorosos. Dessa vez era Vanessa. E como era sexta-feira, ele pensava no encontro que

acontecera no dia anterior. Lembrava-se dela detalhadamente. Vanessa parecia ocupar um

espaço maior que as outras, ele não sabia o porquê. Depois do expediente se falariam, excitados.

Até gostava que os colegas pensassem que ele a havia indicado para a vaga, mesmo sabendo

que isso não era verdadeiro.

Elias realmente costumava indicar pessoas e era atendido. Damião, que acabara de se

aproximar para falar com ele naquela hora, metade da manhã, era um deles.

Damião tinha com Elias uma relação de gratidão: o amigo o indicara para trabalhar ali

e isso tinha sido sua salvação depois de meses desempregado. Ele se esforçava para

corresponder à indicação do amigo, por necessidade e por afeto. Havia dívidas a serem quitadas

e os cobradores telefonavam sem parar. Sua esposa, Jacira, também trabalhava e somava sua

renda aos bicos que o marido vinha fazendo durante muito tempo para sustentar os dois filhos.

Agora, porém, o destino parecia acenar com um amanhã melhor. Damião orava todos os dias

agradecendo a Deus a indicação do amigo, mas precisava se esforçar para tentar deixar aquele

cargo temporário e alcançar um emprego direto na empresa. Não era fácil pensar que em alguns

meses ele poderia estar novamente na situação de desemprego. Também não era fácil deixar de

ter um contrato temporário, pois eram muitos trabalhadores nessa situação e muitos outros

terceirizados, quase todos desejando conseguir um salário melhor e com mais benefícios.

Apesar disso, Damião quis tentar ajudar outro amigo, cujas dificuldades eram

semelhantes, e perguntou a Elias sobre a possibilidade de emprego para Auxiliadora, esposa do

amigo. O engenheiro sabia que todas as vagas estavam preenchidas, mesmo aquelas de trabalho
mais difícil, algumas ocupadas por mulheres, mas respondeu a Damião que iria verificar.

“Quem sabe com as empresas de limpeza e conservação?”.

Elias sabia porque Damião fizera o pedido mesmo tendo pouco tempo na empresa.

Damião fora convidado por Auxiliadora a batizar seu bebê, segundo filho dela, nascido há

poucos meses. O garotinho nascera saudável, mas dava trabalho à noite e aumentava as

preocupações dos pais com as contas da família. Uma boca a mais, uma cama a mais... Apesar

de não ser católico, ele aceitou o convite porque sentira nele o reconhecimento do valor da

amizade que mantinha com aquela família.

“Quer um?” disse Camilo, oferecendo-lhe um cigarro. Elias aceitou e o acendeu usando

o próprio cigarro de Camilo. Estavam em campo aberto, perto dos tratores estacionados. Camilo

era condutor dessas máquinas gigantes, pesadas. Já se aproximava o horário do almoço e ele

costumava fumar antes de se dirigir ao refeitório da empresa. Os dois jogavam futebol às

quartas-feiras e mantinham um laço de proximidade por causa disso. Laço que não ia muito

longe; afinal, Camilo não sabia do relacionamento entre Elias e Vanessa – era pouco ligado às

conversas de corredor – e Elias, por seu lado, não sabia que Camilo era homossexual e tinha

um namorado na pequena cidade ali perto. Não era fácil esconder tal situação dos seus colegas

de trabalho, mas Camilo se aperfeiçoara ao longo dos anos. Muito discreto, o motorista preferia

manter a imagem de alguém reservado, tímido. O futebol, de que ele verdadeiramente gostava,

servia para manter a imagem insuspeita. Experimentava alguma dificuldade ao ouvir as piadas

e brincadeiras sobre mulheres e gays durante os jogos e no vestiário, mas até aquele momento

suportava o ambiente e tratava o que era dito nessas horas como se não o incluísse. Assim

conseguia se sentir seguro de que não sabiam de sua condição e preferia assim.

O namorado também era discreto. Aceitara o relacionamento naqueles termos porque

gostava muito de Camilo, admirava-o. Alguns vizinhos olhavam com estranhamento os dois,
mas ninguém dizia nada. O casal era tratado como amigos que saíam juntos para se divertirem.

Até porque eram cordiais e religiosos. Eram vistos algumas vezes na igreja, durante as missas

de domingo e isso era um ponto a favor de sua índole, na percepção das mulheres mais velhas

que conheciam os dois. À boca pequena se falavam coisas, mas todos deixavam as coisas

permanecerem assim: à boca pequena.

Os cigarros de Elias e Camilo estavam quase no fim. Passavam por ali outros colegas

que se dirigiam ao refeitório, levantavam a mão cumprimentando de longe os dois. Alguns

diziam alguma coisa como “opa!”, outros só levantavam o braço. Elias e Camilo respondiam

com acenos de cabeça. Entre eles, outros colegas de futebol, Daniel e Leandro.

“Vamos almoçar?”, perguntou Elias. “Uai, vamos!”, respondeu Camilo.

Na hora do almoço se reúnem corpo e alma, fome e sonhos, que oscilam entre os

silêncios das mastigações e as palavras sobre a vida.

No hotel também serviam o almoço. Lá, porém, havia uma diferença marcante entre o

tempo dos empregados, cronometrado, e o tempo dos hóspedes, “descronometrado”. Os

primeiros tinham de ser precisos, tudo devia estar em ordem. Estes desfrutavam do conforto

com a calma de quem está pagando pelo tempo dos outros.

Os pais de Graciela chegaram para o almoço. Ela os abraçou. Sentaram-se à mesa e

enquanto seu pai atendia uma ligação no celular, aparentemente resolvendo algum problema de

trabalho, a moça remexia sua bolsa a fim de encontrar um pequeno souvenir que havia

comprado para sua mãe no caminho até o hotel. Era um escapulário que parecia ter desaparecido

dentro de sua bolsa.

Sol a pino entre nuvens, estrondos, lama. Rio de lama. Corpos tomados de assalto, almas

interrompidas.
Naquele dia, o lavrador não viu mais seu irmão menor. Sua mãe não iria mais acordá-lo.

Seu colega não pôde se preocupar com a mãe, nem com as mulheres bonitas do hotel.

Camilo não mais jogou futebol, não foi à missa nem se encontrou com o namorado.

Leonardo, João Paulo e José Afonso não deixaram seu local de trabalho.

Elias não voltou para seu casamento, nem se encontrou com Vanessa.

Graciela não encontrou o noivo, nem reclamou da empregada.

A sua mãe não recebeu o presente. O escapulário foi levado.

Ana não pôde descansar em casa, nem ter raiva de seu pai.

Damião não pôde se esforçar mais, nem pagar as dívidas.

José Afonso não pôde mais demonstrar sua virilidade.

A mulher de José Afonso não discutiu nem apanhou.

Leonardo e João Paulo não mais jogaram cartas.

Auxiliadora ficou sem resposta sobre o emprego.

O bebê de Auxiliadora perdeu o futuro padrinho.

Jacira e os três filhos não viram mais Damião.

Vanessa não encontrou Elias, nem a filha.

Luana não se encontrou com a mãe.

O patrão não vendeu hortaliças.

Leandro não saiu de lá.

Daniel também ficou.


Reinaldo sumiu.

Wanderson...

Ricardo...

Lenilda...

Márcio...

Alex...

Luiz...

...

Silêncio.

Então vieram

Os gritos.

A angústia.

O desespero.

As lágrimas derramadas.

As notícias desencontradas.

Os policiais para organizar.

Os telefonemas a esmo.

As redes sociais.

Os heróis.

Os bombeiros.
Os falsos heróis.

A inevitável falta de notícias.

A televisão com suas dúbias intenções.

Os grupos de familiares buscando notícias.

O futuro ex-diretor da empresa para falar.

Os políticos e suas falas protocolares.

Mais lágrimas derramadas, muitas.

O cheiro de metal e morte.

Os voluntários.

Os mosquitos.

O barro.

E de novo o silêncio.

Depois acionaram os técnicos: assistentes sociais, enfermeiros, psicólogos, advogados,

médicos, geneticistas, dactilocopistas e tantos outros.

Por fim, vieram os especialistas nas medidas, aqueles que conhecem bem o equivalente

universal para medir, dar valor e trocar as coisas. Mediram os corpos, o tempo dos corpos, o

tempo virtual dos corpos. Mensuraram as necessidades e as probabilidades.

Eles quiseram transformar também o que era da alma em medida cambiável, encontrar

um valor para a reunião da alma com a lama, como se elas pudessem se transformar em uma

coisa só - lamalma. Eles não entendem que só os corpos possuem medida. A alma não. Os
números não lhe servem. Ela pertence a um lugar onde a medida não alcança. Ele se chama

dignidade.

O que veio do pó, no barro permaneceu. O que era da alma, na dor do amor.

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