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Depois que Irene terminou o banho, numa água quase morna, saiu para o pátio. Teve

de virar dois corredores e passar por algumas portas abertas e alguns quartos cheios. Apesar

do tamanho do hospital, o número de pessoas ali era incontável. Haviam encarregado uma

senhora, que quase não enxergava, e um de seus netos para o recenseamento. O número que

ela escreveu no papel, quando terminou, tinha quatro dígitos e começava com dois.

Irene sempre se dirigia ao pátio na tentativa de novas amizades. Em especial, a

amizade com o garoto do quarto doze. Era um menino bonito e forte. Tinha os olhos

profundos como muitas águas.

Chegou e sentou-se numa daquelas muretas que há em todo pátio de hospital. O clima

estava seco e gelado. Era meado de março quando foram obrigados a se isolarem naquele

lugar feio e monótono. Irene não tinha muitas opções para se divertir. Gostava de ficar só e

contar estrelas. Era daquelas meninas pensativas e sonhadoras. Porém enquanto o sol

permanecia, ora queimando, ora escondido, ela cumpria com seus afazeres designados por

mamãe. Quando terminava, passava a escrever, ou dirigia-se ao pátio para esperar alguma

alma solitária lhe fazer companhia.

Sua vida mudou muito desde então. Sua família não era de riquezas, seus pais eram

pais normais. O pai, militar, a mãe, enfermeira. Viviam uma vida ordinária, mas agora só lhe

restava auxiliar a mãe, com os feridos ou enfermos, e escrever em seu diário, que geralmente

fazia vez ou outra.

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Almeida / Pietro / 2

Nesse dia, enquanto estava naquela mureta desconfortável, chegou-lhe uma menina,

alta, mesma idade, com o rosto a fazê-la de piada, enchendo-a de espinhas e cravos. Chegou e

disse:

— Oi!

— Oi! — respondeu Irene.

— Você veio de onde? — Perguntou sentando-se sobre a mureta.

— Santos. E você?

— Legal! Minha mãe nasceu lá. Eu vim de Paranaguá — seu olhar vagou um pouco

pelo nada e depois se repôs. — Nem dá para reconhecer a cidade depois desse último ano —

disse num tom melancólico.

— Que pena! — respondeu Irene, fazendo-se soturna. — E para falar a verdade eu

sou italiana. Estávamos em Florença até ano retrasado, mas a coisa piorou e a gente fugiu

para cá.

— Fugiram? Nossa! — A menina fez uma careta de surpresa. Houve silêncio. — Mas

você tem mesmo um sotaque diferente, só que fala muito bem.

— Obrigada! — respondeu Irene num sorriso. — Meu pai é brasileiro.

O menino do quarto doze passou pelo corredor em frente ao pátio e roubou a atenção

de Irene. Bem, decerto que ele era muito bonito, até demais para um homem, digo eu. Mas

era sério o tempo todo.

— Você conhece o Pietro? — Perguntou a menina olhando Irene observá-lo distante.

— A família dele também veio da Itália.

“Pietro!“, pensou Irene. ”Um nome bonito.”, pensou mais.


Almeida / Pietro / 3

— Acho que o pai dele é agrônomo — continuou a menina enquanto se espreguiçava

e observava o garoto sumir corredor adentro. — Dizem que por lá não sobrou muito trabalho,

ainda mais nesses anos difíceis.

— Você o conhece? — perguntou Irene sem graça.

— De vista. Minha mãe trabalhou para a família Grande por um tempo. Eles vieram

com a gente — ela suspirou. — Eles tinham uma livraria em Paranaguá. São pessoas

estranhas. Diferente de você — ela sorriu e se levantou. — Você parece legal — a menina

deu com a mão e se foi.

Irene ficou dispersa alguns minutos em pensamentos que não tive acesso, mas depois

se lembrou de que nem sequer perguntou o nome da nova conhecida. ”Ela parece legal…

Talvez seremos boas amigas“.

Irene ouviu mamãe chamar pelo corredor, então seguiu por ele. Quando chegou até

ela, mamãe se virou e disse:

— Preciso de você para me ajudar com um curativo — dizia enquanto trocava suas

luvas. — A dona do cento e vinte está com infecção. Vou ter que limpar a ferida e refazer o

curativo. Ponha a luva e a máscara.

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