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Lisa Sanders é um Dr.

House real
Por Ana Machado

http://jornal.publico.clix.pt/noticia/23-01-2010/lisa-sanders--e-um-dr-house-real-18646518.htm

Vive para descodificar os mistérios da Medicina. Tem fascínio por doenças


estranhas. Lisa Sanders é um Sherlock Holmes de bata branca. Uma espécie
de Dr. House. Mas bem-disposta

Um homem de idade avanç ada entra na urgência do hospital com um ritmo cardíac o
assustadoramente baixo - apenas 20 batidas por minuto, quando o normal é 60 - sem que os
médicos percebam a razão. Todos se apressam a pedir uma bateria de exames car díacos que
acabam por revelar que ele tem um coração saudável. Passado algum tempo, o doente, a
quem ninguém tinha ainda pergunt ado nada, sussurra a um dos médicos: "Não faço xixi desde
ontem." Uma inflamação na próstata estava a obstruir a bexiga e isso estava a destruir-lhe os
rins, que, por sua vez, descontrolaram os níveis de potássio no organismo. Daí o ritmo
cardíaco baixo. O caso resolveu-se rapidamente. Moral da história: é preciso ouvir o que os
doentes têm para contar. Todos eles têm uma história para contar que pode ajudar a salvar-
lhes a vida.

Este é apenas um dos "fascinomas" - termo que os médicos inventaram para classificar as
doenças mais difíceis de diagnosticar - que fazem parte da colecção de Lisa Sanders. Histórias
incríveis de diagnóstico que conta no seu livro Como os Médicos Chegam ao Diagnóstico, que
a editora Caderno lança em Portugal no dia 28.
Lisa Sanders era jornalista da CBS News, na área da saúde, quando decidiu mudar de vida e
estudar Medicina. "Estava a filmar um dia de rafting com um médico chamado Bob Arnot. Foi
então que, de repent e, ele desapareceu e vejo-o a pux ar e a reanimar uma senhora que tinha
caído à água e quase se afogava. Salvou -lhe ali a vida. Não corri logo a inscrever-me em
Medicina. Mas aquela imagem perseguiu-me", conta ao P2 a catedrática na prestigiada
Universidade de Yale, autora há seis anos da coluna mensal Diagnosis, da New York Times
Magazine.
Foi nessa coluna que o aut or David Shore bebeu inspiração para criar um médico chamado
Gregory House, uma espécie de Sherlock Holmes maldisposto e implacável, para quem não há
dilemas médicos insolúveis. Lisa Sanders, consultora da série norte -americana House,
reconhece que esta veio mostrar um lado da Medicina que ninguém tinha ainda mostrado ao
público em geral. Veio apresentar os tais "fascinomas".
Mas, apesar de reconhecer grande mérito a House, Sanders é também crítica em relação ao
protagonista. "Eu ensino. E se os meus médicos se comport assem assim como o Gregory
Hous e, eu demitia-os. Aquela não é a maneira certa de lidar com os doentes", diz. E continua:
"Mas o House não é real, é uma personagem de uma série de ficção. E a ficção precisa de
drama. Nesse sentido, é uma personagem muito rica. Mas na vida real não existiria. Ninguém
trabalha assim. Ninguém entra pela casa do doent e para espiolhar o que quer que seja. É
ridículo! O House é uma metáfora do processo de diagnóstico."
Erros médicos

E volta à palavra-chave: diagnóstico. Que é o que lhe interessa. "Eu trabalhei sempre em
saúde na televisão. E achava que percebia a Medicina. Foi então que vim para a universidade,
estudar. E, no meu terceiro ano, deparei com uma Medicina de que nunca tinha ouvido falar."

Para Lisa Sanders, todos os médicos devem saber vestir a pele de Sherlock Holmes. "Uma
febre e uma alergia pode ser tudo. O papel do médico é descobrir o quê."
A experiência pode ajudar. Mas é preciso saber ouvir. E lembra out ro "fascinoma" descrito no
seu livro. Uma mulher que vem ao hospital, com quadro clínico de amigdalite e febre, e que é
mandada para casa com um antibiótico. Começa a enfraquec er, a febre continua e, para além
da amigdalite, há um inchaç o no pescoço que a impossiblita de abrir a boca e de rodar a
cabeça.
Passadas muitas tentativas de diagnóstico erradas, o caso cruza -se com um
otorrinolaringologista mais experiente que identifica a doença, uma coisa rara: síndrome de
Lemierre, mortal no início do século XX mas perfeitamente curável hoje com penicilina. Após
um tempo de internamento, a mulher curou-se. "Muitas vezes achamos que fizemos o
diagnóstico certo e o doent e volta pior. Temos de ir encaixando as peças, ver o que encaixa
melhor. Em 15 por cento dos casos o médico erra no diagnóstico."
Lisa Sanders sabe o que os doentes esperam do médico. "Querem alguém que lhes diga: " Tem
leucemia!"." Mas o médico tem de estar preparado para dizer: "Não sei." E, sim, é verdade, os
médicos erram muit as vezes. Em 2000, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos
divulgaram um relat ório, a que deram o nome de Errar É Humano, que revelava que morriam
anualmente 98 mil pessoas por erro médic o nos EUA. "Qualquer coisa como ter um avião
comercial a despenhar-se todos os dias durante um ano", conta Sanders no seu livro.
Há, para esta médica, um antes e depois de House na maneira como as pessoas comuns têm
acesso aos bastidores da Medicina, esse lado que ela própria desconhecia: "A televisão dava
uma imagem errada do diagnóstico médico. Não contava a história bem. Atropelava o
diagnóstico. Até que apareceu o House e isso mudou. Nunca tinha sido feito nada assim. Há
muita informação escondida no nosso corpo", diz ao P2. E o seu livro dá vários exemplos de
como isto é verdade.
Para além de investigar e dar at enção aos pormenores, a todas as peças do puzzle, os
médicos têm de saber ouvir os doentes, defende. E sentir se escondem algo ou se mentem.
Isso acontece muitas vezes. Um dos casos mais exemplificativos sobre o peso da mentira num
diagnóstico vem também descrito no seu livro. Uma mulher jovem, saudável até então, sofreu
durante mes es de náuseas e vómitos constantes e imparáveis que a impossibilitavam de
trabalhar, de sair de casa ou de comer.
Durante meses os médicos fizeram todos os exames, tentaram todos os tratamentos, sem
descobrir a razão daqueles ataques tão violentos. A doent e só se sentia aliviada debaixo de um
duche bem quent e. Quando já ninguém ac hava possível descobrir a resoluç ão daquele dilema
médico, uma das médicas que acompanhavam a jovem recorreu ao motor de pesquisa Google.
Procurou: "Náusea persistente melhorada com duches quentes". Deu então com um
diagnóstico feito antes por um médico australiano a um doent e viciado em marij uana que tinha
desenvolvido uma psicose que lhe provocada náuseas e vómitos e que era aliviada com
duches quent es. Chamou-lhe síndrome de hiperemes e (vómito persistente) por canabinóides.
A mulher, que nunca tinha contado nada ac erca do seu vício, também nunc a aceitou aquele
diagnóstico.
Mentiras de doentes

Lisa Sanders diz que Gregory House tem razão quando afirma, numa das suas mais célebres
frases: "Todos os doentes mentem." Ou pelo menos há uma grande probabilidade de não
contarem a história toda. Isso pode ser desastros o para o diagnóstico. E para a saúde dos
próprios.
"Os médicos vivem apaixonados pelas tecnologias de diagnóstico. Mas entre 80 e 90 por cento
dos casos são resolvidos com bas e naquilo que o doente nos conta", lembra a médica. E
também com base no que se encontra após um exame físico rigoroso, algo que, defende, a
Medicina tem descuidado. "Os médicos perderam a fé nas ferramentas humanas da Medicina.
O exame físico é muito import ante, embora não nos diga tudo. Usando a metáfora do detective,
quando se vai à cena do crime, não se encontra lá o criminoso. Mas é lá que estão as pistas. A
tecnologia, por si só, não é suficient e. E usá-la em exclusivo não é mesmo nada uma coisa
inteligente."

Cont udo, não esquece aqueles casos que nunca se conseguem resolver. "O que Hipóc rates
nos obriga a fazer é a tomar conta dos doentes e a dar toda a nossa art e e dedicação para os
curar. Mas muitas vezes não temos resposta e há muitas doenç as desconhecidas. O último
século ensinou-nos a ter muita humildade em relação a essas doenças que não conhec emos.
Muitas autópsias mostram o quanto estávamos errados em relação a alguns diagnósticos. E
muitos mais erros se revelariam se se fizessem mais autópsias", diz a médica sobre a
realidade americana, onde apenas um em cada dez doentes que morrem é autopsiado.
Os médicos nem sempre têm respostas. E fora do ec rã da televisão muitas vezes não se
chega a tempo de salvar uma vida.

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