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Texto publicado no site do Kátharsis.

Tradução por Bruno Bianchi.

Publicado originalmente em:


PARENTI, M., The Culture Struggle. New York: Seven Stories Press, 2011.

Psiquiatria como arma de controle

M. Parenti

A ciência ocupa um lugar inusitado na sociedade, pois seus métodos podem transcender
os limites da cultura. Cientistas de diferentes sociedades ao redor do mundo são capazes de
entender e construir sobre o trabalho do outro (ao menos dentro de suas respectivas disciplinas).
No entanto, o esforço científico é comumente distorcido por interesses impregnados ou pelo
clima ideológico predominante. O que é financiado e divulgado pode ter pouco a ver com uma
investigação desinteressada. Empresas de tabaco produzem estudos científicos provando que
cigarros são inofensivos; os interesses do petróleo promovem um punhados de cientistas que nos
asseguram que o aquecimento global é uma quimera; a indústria química patrocina pesquisas
científicas demonstrando a natureza supostamente benigna de pesticidas e herbicidas; e as
indústrias farmacêuticas financiam testes que mostram que os vários medicamentos são
perfeitamente seguros, quando na verdade às vezes têm efeitos prejudiciais à vida e precisam ser
retirados tardiamente do mercado.

Ao longo dos séculos, inovadores científicos pagaram caro por manterem visões que se
chocaram contra os preceitos mais ortodoxos. Seus opressores muitas vezes têm sido outros
cientistas trabalhando em conjunto com as autoridades estatais, ou aqueles em posições
dominantes dentro de suas profissões. De tempos em tempos, interesses adquiridos se
apropriaram do campo do discurso, dispensando pesquisadores dissidentes, permitindo que
importantes questões científicas fossem resolvidas por injunções e decretos, em vez de exames

1
rigorosos. Muitas opiniões científicas estabelecidas têm sido pouco mais do que crenças
embelezadas disfarçadas de descobertas objetivas. E algumas controvérsias científicas são pouco
mais do que a Kulturkampf vestida com jalecos de laboratório. Isso parece especialmente
verdadeiro para as ciências médicas e psiquiátricas.

Por séculos, a serviço da supremacia masculina e da dominação colonial, homens


instruídos da sociedade ocidental produziram exegeses científicas sobre a inferioridade natural
de mulheres e sobre as deficiências mentais e morais das “raças negras” e das “classes baixas”,
estas últimas também chamadas de as “classes perigosas”1. Médicos e psiquiatras tratavam as
doenças lançando agressões punitivas aos pacientes adoecidos. Antigamente, pessoas com sérias
queixas físicas eram sangradas, escaldadas, obrigadas a ingerir misturas nauseantes, queimadas
com mercúrio, tinham seus membros fraturados serrados ou eram submetidas a todos os tipos de
procedimentos cirúrgicos prejudiciais – muitas vezes com resultados fatais. Os médicos
espalham regularmente doenças letais permanecendo indiferentes às práticas mínimas de
higiene.

Durante grande parte do século XX, quando as amígdalas ficavam inflamadas por
resistirem a infecções corporais, os médicos resolviam rotineiramente o problema removendo
cirurgicamente as amigdalas, como se os órgãos estivessem ofendendo ao invés de defendendo
o organismo. Em meados do século, as histerectomias se tornaram a última moda: sempre que
miomas (tumores benignos) se formaram no útero, o útero era removido. Hoje, as vesículas
biliares são rotineiramente extirpadas por fazer seu trabalho de formar pedras a partir de
impurezas que se acumulam no corpo. Durante o último meio século, câncer foi tratado com
uma estratégias de corte, queimadura e envenenamento (cirurgia, radiação, quimioterapia)
destinada exclusivamente a destruir as células do corpo que sucumbiram ao câncer2. Enquanto
isso, tratamentos alternativos de câncer continuam a ser suprimidos pela indústria do câncer e
por seus aliados na Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos3. Recentemente,
algumas mulheres tiveram seus seios saudáveis retirados para evitar a probabilidade de câncer
de mama, uma aplicação medonha de excisão preventiva. Uma amiga próxima foi recentemente

1
O próprio Darwin é culpado disso. Ver The Descent of Man (New York: Modern Library, 1936). Para uma crítica,
ver Stephen Jay Gould, The Mismeasure of Man (New York: Norton, 1981).
2
Ver Barry Lynes, The Cancer Conspiracy: Betrayal, Collusion and the Suppression of Alternativa Cancer
Treatments (Delmar, N. Y.: Elsemere Press, 2000).
3
Lynes, The Cancer Conspuracy, e Ala Cantwell Jr., The Cancer Microbe (Los Angeles: Aries Rising Press,
1990).
2
incitada por seu alegre médico a remover seus ovários perfeitamente saudáveis porque havia
“uma chance de cinco por centro de que o câncer se desenvolvesse”.

Pessoas consideradas mentalmente perturbadas foram igualmente assediadas:


encarceradas (muitas vezes por toda a vida), abusadas verbalmente, espancadas, amarradas,
amordaçadas, deixadas para passar fome, isoladas e drogadas. Entre as doenças tratadas durante
o século XIX e início do século XX estavam a “ninfomania”, a “insanidade masturbatória” e
comportamentos disruptivos de quase todo tipo4. Psiquiatras e médicos por muito tempo
acreditaram que a histeria era um mal causado por perturbações no útero, e portanto uma doença
exclusivamente feminina. Um eminente médico do século XIX, William Goodell, sugeriu que
a coisa mais econômica seria “eliminar a insanidade removendo os ovários de mulheres
insanas”5.

Benjamin Rush, conhecido por muitos como o “pai da psiquiatria americana”, definiu
sanidade como a prática de “hábitos regulares” e “uma aptidão para julgar as coisas como os
outros homens, enquanto insanidade era um “afastamento disso”. Rush sustentou, e muitos de
seus colegas concordaram, que a loucura poderia ser curada tratando a vítima com doses
generosas de “terror” e “flagelação”, usando “medo acompanhado de dor, e um sentimento de
vergonha”. A total contenção e confinamento de “todas as partes do corpo” produziria efeitos
tranquilizantes nos pacientes que “eram verdadeiramente encantadores”, dizia Rush6.

Durante os dias de pré-guerra nos Estados Unidos, algumas autoridades médicas deram
séria atenção a uma condição mental que supostamente afligia os escravos. Chamava-se
drapetomania, o impulso insano que fazia com que os escravizados “fugissem do serviço”.
Compreendia-se que os escravos que abandonavam o feliz confim da servidão e os cuidados
solícitos de seus senhores em busca de uma liberdade incerta em lugares estranhos deveriam
estar sofrendo de uma grave desordem. Em 1851, em seu Relatório sobre as doenças e as
peculiaridades da raça negra, o Dr. Samuel Cartwright concluiu que a drapetomania, que induz

4
Ann Goldbert, Sex, Religion and the Making of Modern Madness (New York/Oxford: Oxford University Press,
1999), 4. Goldberg estudou um manicômico alemão do século XIX, mas o que ela encontrou pode ser sustentado
por um grande número de instituições psiquiátricas de outros tempos e lugares.
5
Citado em Andrew Scull e Diane Favreau, “A Chance to Cut is a Chance to Cure: Sexual Surgery for Psychosis
in Three Nineteenth Century Societies”, Research in Law, Deviance and Social Control (1986), citado em Leonard
Roy Frank, Influencing Minds (Portland, Oregon: Feral House, 1995), 160.
6
Frank, Influencing Mind, p. 165, e as fontes citadas ali. A literatura crise sobre os abusos da psiquiatria e da
psicoterapia são substanciais. Pode-se iniciar com os escritos de Thomas Szasz, Jeffrey Moussaieff Masson, e
Ronald Leifer.
3
o escravo a fugir da escravidão, “é uma doença da mente tanto quanto qualquer outra espécie
de alienação mental, e muito mais curável, como regra geral”7. A cura consistia em aplicações
ferozes do chicote, e para reincidentes: algemas nas pernas, queimaduras faciais, corte de
orelhas e, em alguns casos, castração.

Mais recentemente, pacientes mentais foram fortemente medicados, eletrocutados ou


lobotomizados. O cérebro perturbado é tratado como o cérebro perturbador – como se as
próprias vítimas fossem o problema, e não a doença. A esmagadora maioria dos pacientes assim
tratados em manicômios públicos vinham das classes mais baixas, os elementos
presumivelmente recalcitrantes da sociedade. “Médicos de todas as épocas”, concluiu R. D.
Laing, “fizeram fortunas matando seus pacientes por meio de suas curas. A diferença na
psiquiatria é que é a morte da alma”8.

Aqui estão exemplos adicionais de como a falsa ciência serviu ao paradigma


dominante: em 1952, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) adicionou a
homossexualidade à sua lista oficial de doenças emocionais em seu Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), classificando assim os homossexuais como
desajustados mentais. A lista forneceu uma imprimatur [autorização] à discriminação antigay
existente nos lares, nos empregos e nos treinamentos profissionais, e às leis que tratavam
ligações e reuniões públicas entre gays como crimes9.

O que estava faltando na lista do Manual era qualquer explicação dos meios científicos
pelos quais a psiquiatria havia chegado à sua conclusão. Onde estava o corpo de evidências para
apoiar a noção de que a homossexualidade era uma doença mental? E em que especificamente
consistiria tal evidência? Psiquiatras poderiam apontar para um século de prática em que os gays
buscaram – ou foram submetidos à força – a tratamentos para sua inversão (um termo
psiquiátrico favorito do século XIX, mais tarde substituído pela perversão). Tal tratamento
incluía a análise prolongada, confinamento institucional, medicamentos, programas de
modificação de comportamento, terapia de choque e até cirurgia cerebral. Em suas próprias
tentativas de tratar pessoas infelizes que por acaso eram gays, psiquiatras encontraram

7
O relatório de Cartwright foi publicado no New Orleans Medical and Surgical Journal, 1851, citado em Leonard
Roy Frank, “Understanding Psychiatry”, Street Spirit (Berkeley, California), junho de 2003.
8
Citado em Frank, Influencing Minds, p. 163.
9
Dudley Clendinen, “John E. Fryer – Gay Psychiatrist Who Spoke Out”, New York Times, 7 de março de 2003.
4
evidências autoconfirmadoras de que a homossexualidade era uma patologia séria difícil de
erradicar.

Alguns homossexuais sustentavam que não estavam doentes, que os gays haviam sido
ensinados por uma cultura homofóbica a se odiarem por serem gays. Não era sua
homossexualidade que os afligia, mas a hostilidade de outras pessoas, inclusive de pais e colegas,
junto com as práticas punitivas da psiquiatria e da lei.

Nos anos 1960 e início dos anos 1970, homens e mulheres homossexuais começaram a
se mobilizar abertamente pelos direitos dos homossexuais, insistindo que sua orientação sexual
não representava uma patologia. Na convenção de 1971 da Associação Psiquiátrica Americana
em Washington, D. C., ativistas gays confrontaram os psiquiatras. Como observou um escritor,
“os psiquiatras não estavam acostumados a ouvir de homossexuais que se sentiam sãos e
normais”10. Defensores dos homossexuais foram convidados a participar de um painel na
convenção da APA no ano seguinte. Após novos protestos e debates, o conselho administrativo
da APA votou para remover a homossexualidade da sua lista de transtornos mentais, urgindo
para que “os homossexuais recebam todas as proteções agora garantidas a outros cidadãos”. Os
membros da Associação ratificaram a decisão em abril de 1974.

Nota bene, nem a listagem da homossexualidade como uma doença nem sua exclusão
dessa listagem foram baseadas em julgamentos científicos. A lista de 1951 foi uma resposta a
uma cultura homofóbica e práticas de autoconfirmação de longa data dentro da própria
psiquiatria. E a decisão de rescindir em 1974 foi uma resposta à luta política travada por gays
contra a cultura homofóbica. Ambas as decisões demonstram: a) como o viés cultural permeia
os sistemas de crenças – incluindo sistemas científicos que se presumem livres do viés cultural,
e b) como a cultura nem sempre é uma construção fixa e imutável, mas às vezes pode ser mudada
pela agitação conscientemente organizada.

As alegações da objetividade científica livre de cultura também podem ser questionadas


quando olhamos para as práticas médicas transculturais. Considere como médicos britânicos e
americanos administram antidepressivos a crianças. Ajustando para o tamanho da população
entre os dois países, descobrimos que os médicos americanos são cinco vezes mais propensos
que os seus colegas britânicos a prescreverem antidepressivos a menores de idade11. A forma

10
Clendinen, “John E. Fryer – Gay Psychiatrist Who Spoke Out”.
11
Sally Satel, M. D., “Antidepressants: Two Countries, Two Views”, New York, 25 de maio de 2004.
5
como os antidepressivos são regulamentados nos dois países é um fator. Após extensos ensaios
clínicos envolvendo mais de 2300 jovens, os reguladores de drogas britânicos fortemente
recomendaram aos médicos que não usem certos medicamentos para depressão infantil. Nos
Estados Unidos, cientes dos mesmos dados, a FDA ainda não emitiu avisos de segurança, e os
médicos continuam a prescrever antidepressivos para crianças em grande quantidade.

A distribuição do mercado nos dois países também é um fator. Nos Estados Unidos,
quando os farmacêuticos começaram a achar difícil conseguir que os médicos prescrevessem
seus medicamentos caros, eles comercializavam diretamente para os pacientes. Hoje, eles
veiculam anúncios na televisão pedindo aos pacientes em potencial que solicitem os
medicamentos aos seus médicos. Tal publicidade medica para os consumidores é proibida na
Grã-Bretanha12.

Empresas farmacêuticas nos Estados Unidos tendem a vender a própria doença mental,
não apenas as pílulas para trata-la. Novos males mentais são regularmente designados, muitas
vezes pelas próprias empresas, especialmente nas áreas de ansiedade e depressão. A lista de
transtornos mentais no Manual Diagnóstico e Estatístico da APA cresceu de 106 em 1952 para
357 em 1993. Ao promulgar novas categorias de doenças mentais, a indústria cria mercados em
expansão para novos medicamentos13.

Em 2004, a enganosamente nomeada Nova Comissão de Liberdade em Saúde Mental


do presidente G. W. Bush lançou um plano para impor exames obrigatórios de saúde mental a
toda a população dos Estados Unidos. O objetivo era determinar quais pessoas precisavam de
“tratamento e apoio”. A triagem de adultos estava prevista para ocorrer durante os exames físicos
de rotina, enquanto a dos jovens ocorreria no sistema escolar. As crianças em idade pré-escolar
receberiam exames periódicos de “desenvolvimento”. Segundo os críticos, a triagem em massa
era um esquema da indústria farmacêutica para atrair os clientes e expandir as vendas dos mais
novos e mais caros medicamentos psiquiátricos. O programa tinha mais a ver com marketing do
que com medicina. A triagem de toda a população também daria às autoridades a oportunidade

12
David Healy, Let Them Eat Prozac: The Unhealthy Relationship between the Pharmaceutical Industry and
Depression (New York: New York University Press, 2003); ver também Satel, “Antidepressants: Two Countries,
Two Views”.
13
“Profitable Inventing New Diseases”, Health Letter, publicação do Public Citizen Health Research Group,
Agosto de 2003.
6
de medicar um grande número de cidadãos particulares, e possivelmente ganhar um novo nível
de controle sobre personagens politicamente problemáticos.

Os críticos advertiram que o plano da Nova Liberdade de Bush traria o controle estatal
das vidas privadas e um aumento maciço no uso de drogas psiquiátricas. De acordo com o
psicólogo Dr. Daniel Burston, “qualquer número de coisas que são, ou poderiam ser, respostas
perfeitamente naturais a um ambiente, pode ser interpretado como um sinal de transtorno
mental”14. O plano Bush enfatizou a importância de “medicamentos de última geração”, sem
reconhecer que algumas drogas eram de benefício duvidoso e às vezes letais. Certos
antidepressivos apareciam ligados a comportamentos homicidas em alguns adultos. Um comitê
consultivo da FDA insistiu que os antidepressivos deveriam ser rotulados com “avisos mais
fortes”, pois poderiam causar comportamento suicida em jovens.

A alegação da Comissão da Nova Liberdade de que a confiabilidade dos medicamentos


repousa em práticas “baseadas em evidências” não é confirmada por estudos recentes que
indicam que as empresas farmacêuticas manipulam o que supostamente são avaliações
independentes das novas medicações. Um artigo na revista médica britânica Lancet (24 de abril
de 2004) acusou o que parece ser uma prática comum e contínua de distorcer as conclusões em
favor da indústria farmacêutica. De acordo com os críticos, a indústria usa regularmente sua
riqueza e poder para manipular a defensores e grupos profissionais. A organização sem fins
lucrativos Aliança Nacional para os Doentes Mentais e a Associação Psiquiátrica Americana
têm enfrentado repetidamente tais críticas, e ambas endossam a Nova Liberdade.

Poder-se-ia continuar sobre a forma como uma ciência supostamente livre de


preconceitos é sequestrada e colocada em uso por interesses arraigados que fingem ajudar os
outros enquanto, na maioria das vezes, ajudam a si mesmos. O que foi apresentado aqui é apenas
uma pequena amostra.

14
Ritt Goldstein, “Critics see Drug Industry Behind Mental health plan”, IPS Report, 18 de outubro de 2004,
http://www.ipsnews.net/africa/interna.asp?idnews=25904. Essa discussão da New Freedom Commission,
incluindo todas as citações, são do artigo de Golstein.
7

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