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wt 2 Vilém Flusser, Cultura imaterial, ("CA 14/8) 0 tema desta Ultima das quatro palestras serd o cérebro, e devo portanto advertir que de neurofisiclogts nao entendo quase nada. Minha desculpa 6 esta: falarei no cérebro como os fildsofos mecanicistas falavam de méquina, ¢ como os pengadores barrocos falavam em relogios, e en tais usos um tanto metaforicos a Rorancia de detalhes ajuda: facilita o ¥Go do pensamento, Por favor, mantenhan esta minha ignorancia na mente, a0 me criticarem denots de palestra. i‘ Disse que o tema de hoje seré o cerebro: deveria ter dito que seré a utopfa. Ora, os dols temas se confungem atunlmente. Arqumentel, nas palestras ? precedentes, que nova camada de conciencia, con novos codigos, rortanto novas categorias de pensamento, de valoracao e de acao, ,esté emerginto, Argumentarel ? hoje que tal visao utopica do futyro iminente est conexa com 3 visao do cerebro 2,60 sistona nervoso, e isto de varias maneiras, Alguns exemplos: A revolugao pos-industrial se garatterisa pele instalacgo de aparelhos que simulan funcoes cerebrais e/ou de drgaos perceptivos, isto ¢ de érgaos cerebrais, 0 c§digo digit! que grticula 2 novg imaginacao simula, por sua estrutura, os saitos quanticos das part{culas nas sinapses nervosas. 0 Cérebro, com gua estrutura extrenanente com= plexa e suas fungdes intricadamente entrelacadas, @,0 modelo par excellence de um: caixa preta, e serve de ponte de partida para as’ andlises cibernéticas de sistema: complexos, 0 lento mas inexdravel desvio do nosso interesse, jue vai abandonando 08 problemas da mogificagao do mundo objetivo, (do trabalho), em direcio de pro- + blemas de informagoes, (do processamento de dados), ¢ no fundo um desvio de inter- resse a partir do sistema muscular e digestivo em direcao do sistena nervoso, 0 Gonceito do orgasms cerebral vai inclusive desviando 0 interesse do sistona, repro~ dutivo, 0 tecido social, outrora visualizado enquanto campo de batalha entre in= teresses, val sendo yisualizado sempre mais enquando tecido nervoso. £ sobretudo © conereto nao mais 6 vivienciado enquanto algo massico que nos barra caminho por sua perf{dig inerte, mas enquant» vacuidade absurda, regida pelo acaso cego, e em tudo comparavel com'os processes computatorios nos intervalos entre os gervos ce; rebrais. Kesumindo taig exemplos multiplicaveis ad_nauseam: a visao utépica ests conexa con 3 visdo do cerebro, porque, antag sao visses nas quais o materi ile 0 mental se confundem. § proxim, Bienal tera a utop{a por tema: sugiro que tome imagem sintética de cérehro como emblema. Partirei, nestas reflexoes utopicas,do gampo socio-pol{ticg, parque a polftica trata do poder, isto ¢ da decisao, isto é da liberdade, ¢ toda utopia, inclusive as negativas, tratan da liberdade, Sob o enfoque darwiniano, (seja ele. colorida pelo liberalismo, "direita”, ou pelo socialism, “esquerda"), ha luta pel poder, @ os que conquistan o poder, decidem pelos outros. Argunentei nag palestga precedentes que tal enfoque linear, processual, discursivo, histdrico nao mais & - sgstentavel. As decisces podem atualmente ser decompostas 4m bits ge decisao e Fecomptadas em decisges-mosaico, estratégia esta pela qual inteligencias artifi- ciais deciden. Nao ha individuo, grupo, classe ou eminencia parda que detenha o ' poder de decisio, porque tal poder ngo @ algo que possa ser detido. Exemplo: se © presidente anericano e/ou o secretazio geral do partido se decidiren de apertar © botao vermetho_e reduzir cultura 3 cinza radiowativa, nao terao eles exercido © poder da decisSo, mas terao executado actoma provocado por outros actomas, por Gxoapte pos un botae apectade em tela TV que mostra foguetes dirigindo-se rune & Uniao Soviéticg e/ou os Egtados Unidos. Por iste, a funcdo de presidente americam ofou do secretario geral @ porfeitanente robotizavel. Presidents e secretario ngo 340 poderosos, mas funcionériog de aparelho automatizado e sempre mais automatiza— vel, 0 pensangnto polftico classico, linear, histérico, deve ceder seu lugar a pei samento cibernético, termo aste em cuja raiz se encontra o verbo "kybernein", do ual deriva tanbén terme "governo", 0 darwinigno politico deve ceder seu iugor “a visdo neuro-figtolégica da sociedade. No cerebro nao h& nenhuma zona, nehnhuma funcao especial, nenhum ponto central que governe g resto, que tome as decisoes definitivas. As decisdes tomadat pelo cerebro, ({sto es por nés enquanto individuos), sao resultados de computacao de bits decisitorios que ocorrem no cérebro todo. As decisdes sao tomadas por algy que pode ser chamado "consenso". 0 memso ocorre na sociedade, este super=cérebro -2- composto de cérebros, com a unica diferenca que a sociedade 6 cérebro muito pouco eficiente, Por tal ineficiéncia nutrimos a ilusdo que hd os que deci~ dem, e outros que sao manipulados, A visao utopica projeta imagem de socte- dade enquanto super-cére>ro mais bem estruturado. Sociedade sem governo, com © poder de decisao diluido pelo tecido social todo, portanto sociedade livre, enbora com significado novo, inter-relactonal, ludico do tgrmg "liberdade". Ora, tal visag utopica, cerebralizagora da soctedade, ¢ desde ja técnicamente vidvel. (0 que nai implica que seja viavel, efetivament 4 a cnica que permite o es= tabelecinento de tal sociedade utopica é chamada "shPinatica", © desviarei © argunento para este campo, : Nao tratarei dos aspectos tedricos que sustentam tal técnica, como seja a teoria das decisces ou a tenria dos jogos, Nao o farei por falta de tem- 0s gp eoreaazel apenas 0s resultados da telenatica aplicada, Rede de cabos rever~ sivets, em cujos nos de cruzamentos se localizan inteligencias artificiais @ hu= manas, Os cabos transportam informagdes, que séo processadas e reprocessadas nos nos de cruzamento, 0 Snput da rede 330 dados provindos do mundo externo e do mundo interne, (da "materia" e da "mente"). Q output da rede sao decisoes transmitidas a maquinas, degis$es estas cujo prodsite é dar significados a0 mun- do externo e interno, isto ey a vida dos participantes do i282, telematizado. Uma palavra digamos assim "ontologica", antes de considerar tal super-cérebro social um poucornais de perta.. (A contends cldssicat "a sociedade sera sistena a servico do indivfdyo, ou o individuo sera part{cula da sociedade e functonara em socie- dade?" est8 superada. Nem socledade nem individuo sao dados concretos.. 0 con- ereto é a relaggo inter~subjetiva, (o tal "cabo"), ga qual sociedade e individuo nao passam de horizontes abstratos, Nao hd desde ja muito gentido em querer distinguir entre inteligéncias artificigis e humanas, e tera sempre mens senti- do, porque a realidade concreta nao esta nelas, mas nas relacoes informdticas que as }igan. Ora, tal afirmativa “ontologica® & mais facilmente anunciavel que vivenciavel. € que ainda nao vivgnos na_utopfa. io Notem que a rede telematica ngo apenas acaba com as nocdes de indivi- duo e sociedade: acaba também com 9s nogdes do publico e do Rrivado. Portanto copa nogéa da conciencia infoliz, esta que pendula entre o publico para perder se, eo privado nara perder o mundo, 4s informagoes nos cabos percorrem os ine tetvalos entre os individuos, ¢ ao fazé-lo sincronizam 0 espago’ e aniquilan tempo: "ut significa precisamegte falta de espaco, portant tempo parado. fm tal situagao nao hd_nem espaco publico nem espaco privado: todos os partici- pantes da telenstica si contenporaneos e visinhos. iloten ainda que a rede, te- lomatica estabelece um presente parado, espécie de “nunc stans", de eternidsde. As informagdes que percorrem os cabos revers{veis passam de menoria para memoria, todgs,2s suas variantes sio amazenadas © recuperavets, tm desaffo a0 segundo princ{pio da termodinamica nenhuma informagao se pgrde, a menes que seja delibe~ Eadangnta apagada, Testo implica que © passadg esta sevpre presente, © que o fun turo g passado re-apresentado. Pos-historia e isto. Tal desaf{o a0 segundo princfpio, (que eo motivo de todo processo mental), naq 6, no entanto, milagre que acaba com a tendencia das coisas rumo a entropia. poss{yel, por ser a sn~ cledade telematizada cultura “imaterial", (sto @ cultura que ngo mais armazena as informacdes elaboradas em ~bjetos. Nao h& mais obras pereciveis e esquec{= vgis em tal cultura, apenas fluxo de bits de informagao sarmazenadas electromag~ neticamente, e invocdveis audiovisualmente. ,Por certo; ds cabos trans-ortadores das inform.caes, atualmente compostos de matéria inorgantta, ¢ futuranente de matéria nervosa, 320 perectveise Portanto perec{veis sao tambem os nos da rede, sejam eles cerebros hunanos ou conputadores, Nao serenos por enjuanto imortals ey tal utopfa, Mas isto pouco importa, ja que as informagses ela oradas pelos nos, (por nds e pelas nossas inteligencias artificiais), s4o imperec{veis. 0 que, afina! das contas, se parece muito com a nocao da imortalidade tanto dos judeus, "zecher", guantg dos gregos, "mnemosine”, £m suma: 0 nonto chave da utopia telendtic’ @ memoria processadora imperectvel, Retomarei o argumento da palestra precedente, no qual desenvolvf $ congested inaginagio de segunda orden. 0 Jogo telendtico que acabo de esboce eiidede seria a de conferir significados 3 vida dos partictpantes @ : 4 : aoe torng-los imortais em menérias imperec{veis, resultard em imagens sintetizadas dialogicamente pelos participan'es da sociedade, Tais imagens sinteticas, tais computagdes de conceitos claros e distintos para fornarem modelos de projecdo ge significados, serao os produtos culturais dominantes da futura socicdade. & imaginagao de segunda orden nao mais ¢ faculdade de mente individual, como 9 ¢ © caso da imaginagao de prineira orden, mas serg faculdade intersubjetiva: as fovas imagens serao produte de colaboraco dialogica entre inteligencias arti~ Ficlats e hymanas. £ os codigosfagitais pelos quais tade imagens gerao articule das, ,tais cddigos que oneram com elementos pontuads como o faz o cerebro, serao 9s gédigos dominantes da cultura futura, tonando destarte 0 lugar do codigg alfé nynérico na cultura ocidental cresedente, Imaginaeao de segunda orden sera pole nivel de conclencia que rompe a casca da individualidade para penetrar o gerrenc da intersubjetivigade, como 03 processog cerebrais romperam g casca do eranio para serem observaveis de dentro para fora nos semicondutores. Os processos gutrora chamados “mentais", como seja imaginagado e razdo discursiva, passarao a,Processos imatertais, yajuela rgna einzenta entre mente @ materia’ que as novas técnicas tornanran acessivel, £ ¢ tal zona cinzenta destruidora das categorias historicas que gerd o terreno dg nova cultura, Desfraldel visao utopica da cultura imateriel telematizada, ne qual © homo ludens dedicars o tempo de sya vida 4 criatividade nascida de imaginacdo de segunda ordem, apoiada sobre razéo clara e distinta, em sociedade dirigida ciberneticamente por feed-back intersubjetivo, sgciedade sem governo nen poderes sociedade de liberdade, Todos os pressupogtos tecnicos para 0 estabelecimento de tal cultura sao, desde fee dados: nada é preciso inventar, apenas 6 preciso distribuir os aparelhos existentes, e fazer com que a sociedade se aprovgite deles. No entanto, nag creio por um instante_sequer que tel cultuga sera ja- mgis realizada. _razéo da minha descrenca néo esta tanto nas catastrofes pro- vaveis que innedirgo a realizacao de tal projeto inebriante: na ameaga termo~ nuclear, na poluigao do ambiente terrestre, ou na revoltg alias justificada em- bora {rracional do Terceiro mundo. Nem descreio da ut-pfa por razoes inerentes ao proprio projeto, por exemplo pel, recusa dos homens a particinarem do Jogo creativa da doagao de sentido ao absurdo da vida., Descreio na realizac3o do projeto, porqueestou convencido que sempre intervém acidentes que impedem a re-~ a'tZagso de nao importa que projeto, e que tais acidentes sio, por defigicao imprevisfveis. Alias, a imprevisibilidade de acidentes e a propria essencia da liberdaje, Surge portanto a pergunta: com que propgsitg apresentel este pro= jeto utopico, e estas quatro palestras todas, que n3o s30 sen3o introdugi0 a0 projeto? as 7 N3o sei se 3 resposta a esta pergunta, que proponho com a maxima | honestidade da qual sou capaz, serd considerada satisfatérin pelos senhores, pis eivla: creio que engajar-se en pcojetos, ue se@ saben irralizaveis mas desej4e" veis, © procurar convencer outros & se engajaren em tais projetos, torna os Projetos um pouco menos irrealiziveis, £ nao conheco outro engajamento digno de: se nome, E£ gostaria de encerrar este curso de palestras com a consideracao seguinte: Falei na intersubjetividade como em realidade concreta, da_qual os sujeitos interligadog nao passam de horizontes abstratos, Tal relacio inter- subjetiva e alias a unica realidade coneretaa qual pcdemos agarrarnos en situ aad na qual tudo outrora tido por real, (o mundo objetivo eo da mente), se dissipa en vacuidade. Ora, tal relacéo’intersubjetiva tem nome antigo, embora desgasto e kitschizado: “amor” é esse nome,

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