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A COMPOSIÇÃO DAS INFÂNCIAS NO FILME “COMO ESTRELAS NA

TERRA – TODA CRIANÇA É ESPECIAL”

Pollyanna Rosa Ribeiro (PUC GO)


Keyla Andrea Santiago Oliveira (UEMS)

A arte e a psicanálise carregam em si um motor de questionamentos que demonstra um


olhar curioso, inquieto e provocador do mundo. São como convites a descortinar aquilo que
não nos toca no cotidiano, não conseguimos, não queremos ver ou escutar a priori. Embora o
pilar da psicanálise seja a clínica, suas elaborações ressoam para além do consultório e os
efeitos de suas elaborações se disseminam nos diversos campos da cultura. Por isso,
propomos aqui uma breve leitura do filme “Como Estrelas na Terra – toda criança é especial”
sob a luz de alguns conceitos psicanalíticos e da valorização da arte na formação humana.
Essa obra é uma dessas produções artísticas abundantes em elementos que nos convocam à
análise e também à crítica, pois nos oferece tantos fios discursivos que, certamente, este artigo
se configura como um recorte de uma imensa trama da narrativa fílmica.
O cinema é uma produção humana que acolhe diversas manifestações artísticas e que,
ao mesmo tempo, difunde diversas intertextualidades em meio ao movimento de suas
imagens. Ele atrai os olhares e a escuta dos apreciadores promovendo deslocamentos de
significados no imaginário que predomina na sociedade. Diante de uma infinidade de
produções cinematográficas, aqui será destacado o filme supracitado do indiano Aamir Khan
(2007). Em meio a tantas facetas dessas obras, algumas cenas foram sobressaltadas e
conceitos ganharam aqui relevos condicionados às discussões situadas no bojo da pesquisa em
curso Arte, psicanálise e educação: procedimentos estéticos no cinema e as vicissitudes da
infância UFE/ CEPAE/ UFG/PUCGO/ UEG/UAB-UNB.
A narrativa do filme contextualiza a história de Ishaan Awasthi, um garoto de 8 anos,
que experimenta a vida e as situações cotidianas por meio de uma visão bastante imaginativa
e criativa. Desenhos, quebra-cabeças, a troca de afetos com os animais, a atenção dispensada
à observação das cenas do cotidiano, as brincadeiras e, em especial, a fantasia que o permite
sonhar acordado, são cenários em que o protagonista age e que vai sendo surpreendido por se
tornarem cada vez menos presentes devido aos conflitos que emergem especialmente no
campo escolar.

Ishaan chega ao 3º ano do Ensino Fundamental apresentando um baixo rendimento


escolar e ainda não aprendeu a ler e a escrever, situação que se desdobra em uma convocação
aos pais por parte da escola que pontua a eminência de expulsão e a indicação para uma
instituição de ensino especial. Alarmados, os pais da criança optam por encaminhá-la a um
internato masculino que se gaba em dizer que “já domamos os cavalos mais selvagens”.
Diante da possibilidade de ficar longe da família, a criança endereça aos pais súplicas,
promessas de maior esforço e de diminuição da rebeldia. Assim, seu movimento, sua
vitalidade, suas criações artísticas, suas fantasias e suas brincadeiras imaginativas que
parecem deixá-lo “sonhando acordado”, em devaneio, vão se tornando cada vez mais
escassos.
Para Freud (1996a) sonhar acordado ou devaneios são ligados “às fantasias
construídas com base em lembranças” e são muito presentes na infância, porém perpetuam na
vida adulta, pois esta ainda carrega uma lógica infantil como uma manifestação de desejo.
Nas palavras do autor,

uma investigação mais detida das características dessas fantasias diurnas revela-
nos como é acertado que essas formações recebam a mesma designação que damos
aos produtos de nosso pensamento durante a noite – ou seja, a designação de
“sonhos”. Elas partilham com os sonhos noturnos um grande número de suas
propriedades e, de fato, sua investigação poderia ter servido como a melhor e mais
curta abordagem à compreensão dos sonhos noturnos. Como os sonhos, elas são
realização de desejos; como os sonhos; baseiam-se, em grande medida, nas
impressões de experiências infantis; como os sonhos, beneficiam-se de certo grau
de relaxamento da censura. Se examinarmos sua estrutura, perceberemos que
como o motivo de desejo que atua em sua produção mistura, rearranja e compõe
um novo todo o material de que eles são construídos (FREUD, 1996a, p. 524/525).

Já o sonho no contexto do adormecimento é a manifestação inconsciente mais evidente


até mesmo para o senso comum, pois ali o sujeito fica à deriva de todos os discursos que o
constituem situado em uma trama enigmática. Ao trazermos à tona o tema “sonhos” nos
propusemos o retorno a uma leitura de Freud a partir da produção lacaniana.
Para Lacan (1986), “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, logo os
sonhos funcionam a partir das leis da linguagem. Os significantes como materiais do sonho,
se arranjam de tal maneira que formam um texto que é enunciado pelo falante ao narrar seu
sonho. Mas qual é a lógica do texto onírico? Como ele opera? Podemos acrescentar a essa
questão, outras perguntas de Lacan:

O que é que é o sonho? A reconstituição que o sujeito faz dele seria exata? Que
garantia temos nós de que uma verbalização ulterior não se misturou aí? Todo
sonho não seria uma coisa instantânea, à qual a palavra do sujeito dá uma história?
Freud afasta todas essas objeções, e mostra que não são fundadas. Mostra-o
sublinhando o fato, inteiramente singular, de que, quanto mais o texto que o sujeito
nos dá é incerto, mais ele é certas partes do sonho, que ele, Freud, que o escuta,
que o espera, que está lá para revelar o seu sentido, reconhece justamente o que é
importante. Porque o sujeito duvida, deve-se ter certeza (LACAN, 1986, p. 57).
Ao enunciar o sonho o sujeito elabora e faz uma montagem que lhe é própria, em que
as incidências e as omissões são materiais que formam uma tessitura textual. Essa montagem
dá pistas sobre os elementos que marcam o sujeito e sobre seu funcionamento inconsciente.
Ao mencionar o relato que o sujeito realiza de seu sonho, Lacan diz que

o fato de que o sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os


eventos formadores da sua existência, não é, em si mesmo, tão importante. O que
conta é o que ele disso reconstrói. Há sobre esse ponto fórmulas surpreendentes.
Afinal, escreve Freud, os sonhos são ainda uma maneira de se lembrar [...] Direi,
afinal de contas, o de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história
(LACAN, 1986, p. 22 e 23).

A história contada do sonho opera a partir de substituições e da passagem de um


significante a outro na construção textual. Freud denomina essas operações oníricas como
condensação, deslocamento, representatividade e fantasia, assim como Lacan vincula essa
produção teórica à elaboração do campo da linguística, e assim relaciona a condensação à
metáfora e o deslocamento à metonímia.
As peças significantes são associadas e combinadas, assim estabelecem uma narrativa
ficcional que entrecruza discursos em uma configuração singular. No filme em questão, não
há o relato oral de um sonho, mas a própria composição de cenas que causam até mesmo um
engodo para o espectador que acompanha a trama.
Em apenas um momento da obra há a exposição de um sonho noturno em que, Ishaan
está na estação de trem com sua mãe em meio à multidão dirigindo-se ao embarque para o
internato, de repente, perde-se de sua mãe e se vê sozinho, tomado pelo temor do
desamparo.Quando olha para o lado, vê a mãe já a bordo do trem indo embora. Nesse
momento, sai correndo, todavia não consegue alcançá-la, ambos gritam um ao outro em
grande desespero. Nesse instante Ishaan acorda sobressaltado, mas não menos amedrontado,
pois a ruptura da família que o sonho anuncia simbolicamente está prestes a se concretizar.
Contudo, o que é mais notório no protagonista quando essa possibilidade de
distanciamento da família não existia eram suas elaborações imaginativas e devaneios lúdicos
contextualizados no ensejo do mais genuíno trabalho infantil: a brincadeira. Em uma das
cenas iniciais, esse movimento ficcional apresenta em forma de desenho animado o fundo do
mar repleto de vida marinha, até que polvo em fuga lança tinta compondo um céu com alguns
desses animais. Esse “céu marinho”está repleto de movimentos em que objetos autômatos
ganham vidas e formas incomuns em meio a animais e a vegetais que se transformam,
compondo um cenário de liberdade criativa. A interrupção vem quando um peixe gigante
engole a cena e Ishaan chega próximo à sua residência segurando distraidamente suas provas,
as quais se tornam brinquedo com os cachorros.
Essas manifestações inconscientes da criança dormindo ou acordada são elaborações
subjetivas compostas por impressões e experiências que demonstram a proximidade e modos
de funcionamento similares entre a atividade criadora e os processos inconscientes, estes não
estão nas profundezas da mente ou o avesso do consciente, como muitos leigos acreditam,
mas sim estão presentes no funcionamento de cada sujeito e no modo de produzir seus
discursos e suas ações.
A ação criativa de Ishaan era recorrente e ganhava variados contornos, seja na
composição de uma coleção de objetos considerados por ele preciosidades; seja na elaboração
de desenhos, de pinturas ou na construção de estratégias de escapatórias ficcionais para
resolver as situações problema do cotidiano e os desafios escolares, para os quais apresentava
soluções que destoavam do grupo, das expectativas da escola e da família.
Freud (1996) no texto “Escritores Criativos e Devaneios” nos dá pistas para
compreender o ato criativo dos artistas, em especial os escritores. Ele começa argumentando
que um ponto inicial de investigação poderia ser as atividades infantis que são repletas de
criatividade, em especial nas brincadeiras em que a criança cria um universo de fantasia o
qual é fruto de grande investimento emocional. De acordo com o autor, “a criança em
crescimento quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar,
ela agora fantasia. Constrói castelos de ar e cria o que chamamos de devaneios” (FREUD,
1996b, p. 136).
Mas o que é fantasia? O que a caracteriza? A abordagem psicanalítica tem a marca da
singularidade e, embora seja possível perceber tendências fantasiosas comuns em alguns
grupos, não é possível enrijecer generalizações aplicáveis a todos os sujeitos. As fantasias são
únicas a cada sujeito. Contudo, podem ser caracterizadas e conceituadas, a grande marca da
fantasia é que ela está em constante movimento porque funciona como uma “realização de um
desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (Freud, 1996b, p. 137).
Esse movimento, segundo o autor, segue ganhando novos rumos e contornos na
ondulação de três tempos: as impressões atuais do sujeito, os retrocessos às lembranças e uma
alusão ao futuro que projeta a realização do desejo. Assim, os tempos passado, presente e
futuro estão articulados pelo desejo que “utiliza uma ocasião do presente para construir,
segundo moldes do passado, um quadro do futuro” (Freud, 1996b, p. 139).
Nessas oscilações temporais da fantasia as deturpações, as distorções e as profusões
podem ocorrer ao reprimir ou expressar os desejos, seja por meio dos devaneios ou dos
sonhos em repouso. Esse é um movimento próprio de criatividade, entretanto, é de
criatividade e de imaginação que a escola não quer saber. No próprio filme, o primeiro
professor de artes do internato demanda de seus alunos a reprodução fiel do objeto por meio
do desenho e, Ishaan, que distraidamente observava uma cena da natureza através da janela,
chegou a ser punido com a palmatória por estar entregue ao seu devaneio. A obra fílmica nos
mostra como as instituições escolares se desestabilizam frente à resistência travestida de
rebeldia de Ishaan em se enquadrar aos rígidos ditames escolares.
Isso ocorre devido à inadequação do movimento tipicamente infantil frente às
exigências de uma escola que demanda dos sujeitos cada vez mais produtividade em um
menor tempo, servindo assim a uma formação que atende os moldes mercadológicos que
imperam nos liames sociais. Embora o filme desenhe seu curso para a discussão da dislexia,
questão que não nos deteremos aqui, a escola retratada na narrativa ainda apresenta um métier
– que não é tão diferente de muitas escolas espalhadas pelo mundo e pelo nosso país – em que
seu rígido formato impõe dificuldades à grande parte das crianças. A instituição escolar
retratada trabalha com metas configuradas em notas, segue um determinado itinerário que não
se altera de acordo com os sujeitos, centraliza o diálogo no professor, restando ao aluno
exaurir-se para seguir adiante.
O grande conflito que se sobressai é o distanciamento de Ishaan de sua família, que é
um desdobramento do descompasso entre o que mobiliza a criança, o que ela quer e pode
oferecer e o que a escola, representante da sociedade, quer receber. É notório o imperativo da
produtividade, do qual o irmão mais velho de Ishaan, Yohaan, é um exemplo emblemático de
infatigável tentativa de alcançar não só o êxito escolar como também o sucesso não em alguns
campos sociais, mas em todos os campos. Esse ditame da produção de vencedores por meio
da escola, que na verdade mais exclui do que exalta, está explícito na fala do pai das crianças
para o professor: “o que mais eu deveria buscar? O que vai ser dele? Como vai competir?
Terei de alimentá-lo a vida toda?”.
Ambas as infâncias retratadas do filme são repletas de sofrimento. A infância de
Yohaan,por buscar atender a lógica da produtividade do mercado tão bem engrenada pela
escola, segue-se no automatismo do ritmo de vida atual. Em contrapartida, mas não muito
distante, também mostra a infância de Ishaan, também abundante de contradições e de
conflitos por resistir à entrega desse imperativo da produtividade escolar uniformizante.
Assim, gradativamente, Ishaan vai perdendo esse movimento criativo inicial ao longo
do filme. Conforme trecho da letra da música “Siga em frente” de Jame Raho que compõe a
trilha sonora apresentada no início da trama, referindo-se ao movimento da maioria das
pessoas na lógica do capital e da produtividade, “eles dormem com um olho aberto, ficar para
trás não é uma opção”, enquanto o menino está em outro mundo, aquele em que ainda é
possível “o acordar com as músicas de um sonho, quando o tempo para, a fantasia se liberta”.
O paradoxo destes dois mundos se encontra fortemente marcado no lugar em que ele
não deveria ter espaço, na escola. Ishaan aos poucos vai sendo rotulado como a criança
encrenqueira, que queria apenas brincar com cães e pipas, mergulhar no mundo colorido de
seus peixinhos animados como em quadrinhos. Não corresponde às expectativas de
professores que cobram notas, resultados, produtos, numa vida que segue em frente e exige o
progresso, a batalha, o fardo dos dias rotineiros e enfadonhos. Enquanto ele quer ter reuniões
com as borboletas e debates com as árvores, é convocado na instituição que se diz educativa
para a ordem do mundo que mais se assemelha ao caos de uma guerra armada.
Ishaan não é um bom soldado na visão da escola. Transferido para um colégio interno,
ele ainda não se encaixa nas regras, mas há uma mudança significativa em seu
comportamento: várias cenas sugerem depressão, abandono e até mesmo suicídio. Voltaremos
a essas referências mais à frente, mas antes seria importante realçar uma cena que mostra com
sutileza a adequação a que vai sendo submetida a criança já no internato: Ishaan, quando
visitado pela mãe, pelo pai e irmão, corre na quadra da escola, a corrida se dá em torno do
quadrado que marca o espaço, ele não se desvia desse trajeto. Daí em diante vários outros
indícios vão indicando a apatia a que ele vai cedendo depois de muito tentar inclusive
corresponder ao que dele é esperado.
A cena em que o menino é escolhido para interpretar um poema intitulado
“Perspectiva” também é bastante interessante. O poema diz: Quando olho de cima, você é um
pedaço de céu cheio de nuvens, até aparecer um elefante sedento, ou meus amigos pularem,
talvez uma buzina de bicicleta, um pedregulho ou dois, até a bengala de um cego serve. Então
a imagem se dissipa, e você torna-se nosso rio outra vez”. Ishaan assim o interpreta: “o que
não vemos não sentimos, mas às vezes o que vemos na verdade não é. E o que não vemos, na
verdade é”. Neste ponto sua fala é interrompida pelo professor que indica outro aluno para
falar do poema, que apenas repete a fórmula já dada pelo professor anteriormente, que não
está errada, mas é uma interpretação que não nasceu da criança, sua postura ao falar é também
ensaiada e artificial: “o poeta diz que quando vê o rio, vê o céu refletido. Usando diferentes
objetos ele destrói o reflexo, e percebe então que é um rio.” O professor se mostra satisfeito e
parabeniza a segunda criança, Minu Patel.
O filme é muito feliz na escolha proposital do nome do poema com a palavra
“perspectiva”. A interpretação de Ishann é praticamente uma explicação muito autoral para o
que na pintura intitula-se perspectiva, a ilusão de verdade nas representações pictóricas que
convergem para o observador de uma obra, um expediente geométrico e método de
representação que captura uma verdade possível para os objetos em uma obra, dando a
sensação de estabilidade, de tamanho correto, de profundidade na visualidade. Infelizmente o
professor não valoriza a iniciativa de Ishaan.
Percebe-se sua sensibilidade e apesar de considerado inábil na vida e na escola, tem na
verdade dificuldades para se adaptar a um ambiente hostil que limita as possibilidades de
pensamento e imaginação. A autonomia que ele cultiva nos próprios desenhos e que é
percebida em sua fala não é considerada senão impertinência e rebeldia. Estes são exemplos
de como o filme foi bem sucedido na representação dos paradoxos que cercam o mundo de
Ishaan e o mundo da educação formal proposta, mas é preciso rever alguns aspectos da
película que tendem para o exagero quando da chegada do professor substituto de artes no
enredo, representações de uma arte redentora, na proposição de uma sensibilidade que
chamamos exacerbada.
O professor Ran Shankar Nikumbi é uma figura divisora de águas na história e chega
como o redentor de uma situação de opressão que o personagem de Ishaan vive. Sua
sensibilidade para perceber a problemática imposta é admirável, assim como sua disposição
para ajudar a criança diante dos pais e do diretor da escola, mas resvala para a exacerbação e
inclusive para a caricatura em cenas que extrapolam a denúncia e passam a mostrar o exagero.
Ishaan é visto como um enigma por todos que o rodeiam e as demandas sociais
ultrapassam a criança, que resiste em não ceder às imposições da escola e da família. Em um
determinado momento do filme, quando o sofrimento se multiplica e se amplia de tal forma a
tornar-se evidente para todos, o espectador se vê à deriva, sem conseguir situar exatamente
onde a problemática começou a se desenhar e sem vislumbrar uma saída para a situação
vivida pela personagem. Em alguns momentos, chega a sugerir ou anunciar uma tragédia
maior, como nas cenas em que Ishann mostra-se completamente apático; quando é tomado de
temor pelas letras que ganham vida em forma de repulsivas aranhas; quando corre
desgovernadamente ao redor da quadra aos prantos ou quando sobe no parapeito do prédio
escolar à beira do penhasco.
Ao mesmo tempo que essa é uma fragilidade da estética do filme é também um trunfo,
pois a gramática do filme é sustentada pela hipérbole, isto é, a corporificação do exagero, em
que a alegria, a tristeza, o sofrimento e as emoções em geral são desmedidas, alegóricas e
ressaltadas ao extremo.
Esse teor hiperbólico que marca todo o filme pode ser considerado uma fragilidade do
ponto de vista estético, pois beira à caricatura das personagens e do enredo, e ao mesmo
tempo é uma fortaleza para a indústria cinematográfica, já que desperta no público uma
comoção com equivalência proporcional, em especial ao traçar um desfecho radiante.
Esse trânsito do extremo movimento à apatia; da rebeldia e da agressividade à
indiferença; do sonho triunfante ao pesadelo; da depreciação ao reconhecimento; são
contrapontos que puxam o espectador para a narrativa e que oferece a experimentação de
tantas emoções em que se vê preso à teia narrativa em algum ponto, pois oferece grande
diversidade de identificação, seja com a escola altamente repressora, com a solidão do
internato, com severidade e persistência do pai, com a amabilidade da mãe, com a
compreensão do irmão mais velho, o acolhimento e doação do professor diferenciado frente
aos demais.
Acrescido a esses elementos, a trilha sonora do filme se configura um espetáculo. Os
clipes musicais e as nuances das canções assaltam o espectador que se vê mergulhado em
correntezas que o carregam para as emoções das personagens. Muitos desses são
estereotipados – o pai é a grande autoridade da casa; a mãe ocupada pelas atividades
domésticas é pura amabilidade; a escola e os professores marcados pela intolerância,
autoritarismo e distanciamento afetivo –
O atorTaareZameen Par que interpreta o novo professor de artes é também o diretor
desse filme. Ele é uma “celebridade” dos filmes indianos, as chamadas produções de
bollywood. Embora desconhecida por muitos, a indústria cinematográfica indiana atualmente
lidera quantitativamente as produções mundiais. Como os demais filmes indianos, a música é
um componente muito característico e seus clipes musicais se inserem ao longo da fabulosa
narrativa. Diferentemente de outros filmes bollywoodianos, a dança se presentifica como uma
linguagem secundária presente apenas na cena de apresentação do novo professor de artes às
crianças da turma de Ishaan.Neste filme em especial, a proposta é diferenciada das produções
citadas acima, em que “comumente [...] as cenas de música não costumam exatamente
complementar o desenrolar da história, mas aparecem mais como um momento de
entretenimento e, recentemente, de expor homens e mulheres em seu ápice de beleza
corporal” (Machado, 2008).
A sugestão de depressão, e até mesmo suicídio, como dissemos, ou cenas repetidas e
forçadas em que o professor chora, expressam outros exemplos que na caricatura da crítica
parecem deixar de lado o que mais importa na referência ao ensino de arte que é colocado
como um dos elementos centrais de discussão que o filme possibilita: entender o verdadeiro
papel da arte na instituição que se intitula formativa e de educação. É necessário saber que a
experiência estética não se baseia na livre expressão, tampouco está livre de se imiscuir na
tristeza, no feio ou nos antagonismos sociais, não defendemos aqui representações nostálgicas
e distorcidas da infância como sendo um tempo cronológico marcado pela felicidade, pela
ausência de responsabilidade e pela brincadeira. Mas o exagero em certos pontos do enredo
perde de vista a possibilidade de visualizar a experiência estética real, que na criação do
objeto artístico contém elementos como a sublimação, uma “espécie de saída que ameniza a
recusa do sujeito de se comportar abre espaço para, na cultura, aparecer um lugar de
liberdade, de vazão dos desejos” (OLIVEIRA, p. 82, 2012).
As escolas de Ishaan estavam marcadas pela morte do lúdico e em especial do estético,
que não está limitado à disciplina de arte, mas deve ser cultivado em qualquer área do
conhecimento pelo docente que pretende se valer não só da razão, mas também do sensível.
A dimensão estética e cognitiva do conhecimento artístico é peculiar, faz aflorar
a sensibilidade, favorece a reflexão, conjuga destrezas, prazer, entretenimento.
Além disso, valoriza e potencializa cada um desses elementos, porém, para que
esta potência se realize, é necessário recobrar o assombro do próprio educador da
infância e repensar a divisão sensível – inteligível estética (OLIVEIRA, p. 79,
2012).

O sofrimento mostrado em “Como estrelas na Terra: toda criança é especial”, portanto,


é verdadeiro, e a arte pode representar o prazer, a felicidade e a liberdade, mas o realce
precisa recair na experiência estética que não é redentora, nem a caricatura da vida feliz.
Antes, é uma proposta para o pensar com e por imagens quando se fala, por exemplo, das
artes visuais. Ishaan, como bem demonstra seu desenho final, é uma criança capaz de um
saber sensível que assombra pela maturidade das pinceladas e domínio da cor e das formas,
combinados a uma beleza serena, da natureza e do sujeito, que invoca a quietude da alma,
quase uma meditação.

O trabalho por meio de um ensino de arte comprometido com a formação das crianças
como a que se dedicou o professor de Ishann, Ran Shankar Nikumbi, possibilita colocar em
relevo a potência criativa e o resgate de uma força intelectual com o mergulho na experiência
estética, recuperando o verdadeiro sentido do ser criança, há muito perdido nos muros das
escolas que frequentou, que insistiam nas velhas fórmulas, desconhecendo a vida ao ar livre, o
brincar com brinquedos simples como a pipa, o pião, a busca de autonomia pelo desenho, pela
pintura, na interpretação própria de um poema.
O treino rígido imposto pela escola fermentava espaços limitados, com exagero de
regras e rotinas para cabeças sonhadoras e criativas, que cada vez mais cedo foram sendo
podadas e reprimidas, resultando em apatia e tristeza profundas, como o que vivenciou o
personagem principal. Buscava-se a segurança nos moldes das autoridades tradicionais,
proibia-se o questionamento, que abala as certezas, omitindo-se opiniões, questões, discussões
e uma infinidade de caminhos estimulantes e ao mesmo tempo assustadores.
Essa discussão demarca a emergência de mudanças na realidade construída, que figura
no ensino de maneira geral e no papel do educador. A arte pode ser um dos vetores de
recuperação de subjetividades, tanto das crianças quanto dos demais sujeitos envolvidos no
panorama da escola, alcançando pessoas da família e da comunidade. Um filme da grandeza
de “Como Estrelas na Terra – toda criança é especial” é um amplificador de compreensões e
em última instância mostra-se como um dos caminhos para o exercício do olhar sensível para
a infância.
Vale salientar que o cotidiano da escola, conectado ao que a arte permite consolidar
como trabalho de interpretação e entendimento dos sujeitos, consolida uma via de despertar
para a realidade da criança em outros moldes, à medida que pode preconizar o contato com o
pensamento lúdico, imaginativo, a consciência visual, responsável pela construção de um
repertório imagético mais rico e valioso. O salto da repetição para a criação, da visibilidade
para a visualidade torna-se, desse modo, fato consistente no espaço do ensinar, pois capacita
não só a criança, mas os indivíduos submersos neste movimento educativo, a criticar,
imaginar, criar, abstrair, compreender e optar pela convergência de atitudes na experiência
cotidiana dinâmica e grandiosa. As cenas finais no concurso de desenho no internato em que
Ishann se encontrava mostram isso. A confluência de risos, brincadeiras, entendimento entre
alunos e professores, que antes engessados na rotina do ensinar e aprender baseados no
exercício de poder e autoritarismo, aos poucos toma conta do universo da escola em pleno
domingo, em um congraçamento maior, aquele que desperta para a necessidade desse
convívio por meio da arte.
A arte é necessária, segundo Fischer (2002), ainda é válida sua “função” mais basilar:
a de auxiliar o homem na representação de suas necessidades, anseios, ideias e esperanças,
ligadas a um determinado contexto histórico, [auxilia] o ser na busca de seu desenvolvimento
como humano, ou seja, independente da época, a função da arte “concerne sempre ao homem
total, capacita o “eu” a identificar-se com a vida de outros, capacita-o a incorporar a si aquilo
que ele não é, mas tem possibilidade de ser” (Fischer, 2002, p. 19 ).
Com efeito, no contato com a arte que incita o pensamento, a razão e a emoção, o
horizonte que se descortina intensifica a possibilidade da socialização das individualidades, o
Eu limitado liga-se à existência humana coletiva, refletindo a infinita capacidade do ser de
não se limitar a uma vivência rotineira e isolada.
A arte ainda trafega, é preciso ressaltar, na dualidade da identificação e do
distanciamento. O espectador pode ao mesmo tempo encontrar nas obras a continuidade de
suas inspirações, a significação que corresponde aos seus anseios mais íntimos ou a liberdade
de achar-se em terreno absolutamente diferente do que vive em seu cotidiano esmagador. O
que é constante nesse mundo da estética, no ir e vir de identificações ou não, é entender a
fagulha de humanidade que ele acende e sua qualidade libertadora, que torna possível
potencializar os desejos, a rebeldia, a alegria, a tristeza, a genialidade, a magia em crianças e
adultos.

Referências Bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud vol. V. A interpretação


dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud vol. IX. Escritores
Criativos e Devaneios. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.

LACAN, Jaques. O Seminário: Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1986.

OLIVEIRA, Keyla Andrea Santiago. A experiência estética na educação da infância: uma


crítica no contexto da indústria cultural. 2012. 140f. Tese (Doutorado em Educação) -
Faculdade de Educação, da UFG. Universidade Federal de Goiás, Goiás.

MACHADO, Ibirá. Como Estrelas na Terra. São Paulo, 13 jun. 2008. Disponível em:
http://cinemaindiano.blogspot.com.br/2008/06/como-estrelas-na-terra.html. Acesso em 1 de
julho de 2014.

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