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20/04/2020 As Bordas do Tempo 2 Repetição e diferença.

A lagoa do peixe | Fernando Fuão

21st December 2014 As Bordas do Tempo 2 Repetição e


diferença. A lagoa do peixe

As Bordas do Tempo. 2
Repetição e diferença.
A Lagoa do Peixe

Fernando Freitas Fuão

II
Voltar aos limites mais uma vez.
Essa viagem sempre igual que se faz, me causa sempre uma nova e estranha inquietação.
Mas a que se deve essa estranha sensação produzida nas bordas, nos limites da matéria?
Ao andar pelas bordas experimento continuamente o eterno pela primeira vez. Tudo, sempre,
parece novo.
Ainda que tenhamos já passado pelas mesmas trilhas, pelas mesmas musicas que escutarmos,
tudo parece novidade. Uma forte sensação de que isso ou aquilo não estavam aqui da outra
vez. E apontamos e dizemos: olha! Como se fosse pela primeira vez.
Eis aí o segredo da repetição inovadora.
Tudo é chapado no reino da repetição do atempo.
Plano na borda, liso, esfaceladinho.
A borda e todo seu reflexo.
A reflexão do mundo, o eu frente ao mundo.
A borda é sempre espelho que desorienta, reflete, ilumina.
A borda desnorteia, de dia ou de noite

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20/04/2020 As Bordas do Tempo 2 Repetição e diferença. A lagoa do peixe | Fernando Fuão

A escrita (des)organizada me guia e norteia como um farol, ela se inscreve e se dissemina ao


longa da faixa espelho d’agua, ao longo do mar. Nela, alucinadamente vejo letras, palavras que
sobrevoam e cintilam sobre a agua, seus sentidos espumam-se, levantam voo e voltam a
baixar, fixando-se temporariamente na areia, precipitam-se como signos temporariamente até
que uma onda mais forte dissolva-os.
A escrita d’agua sobre a areia. O ar, o movimento.
A escrita do tempo sobre o tempo, só poderia ser uma espécie de diário de bordo. Um delírio da
borda, um ‘deborde’.

O mapeamento dos limites do ser, seus contornos e seus espaços só, poderia ser uma
desilusão, miragem que se desvanece a cada instante, tal como as palavras feitas de espuma.
A cartografia das bordas não pode existir.
Não se quer que exista mesmo, pois não há verdadeiramente como possa existir.
Na beira do mar encontrei as ruinas do tempo, os escombros expostos do farol da Conceição
lavados pela agua salgada. A solidão tombada e lavada pelo mar.
A escrita do tempo.
As cinzas do tempo.
O tempo da noite, a noite do tempo.
Ali entendi realmente os limites dos espaços, o confinamento dos espaços, os limites da
arquitetura.
Aqui não há arquitetura, e ao mesmo tempo é arquitetura da natureza. Outra arquitetura.

Nessa pequeno espaço de vida ao Sul do Sul do Rio Grande


as bordas não são dobras. Um trajeto interminável que vem do lá do sul, do Chuí passa pelo
Hermenegildo, Albardão, por São José do Norte, e pelo estreito, pela solidão, pela solidão das
multidões.
A comprensão da multidão, seu sentido e orientação podem ser melhor comprendido, ou ter um
significar melhor a partir da experiência da solidão, na solidão do farol, do Farol da solidão.
A solidão é de concreto, dura, ereta como um falo sempre em busca de uma companhia.
A trajetória da multidão, o movimento dos bandos organizados como os pássaros, gaivotas,
revela o deslocamento, o movimento para o isolamento, a experiência intima. Pássaros
revoltando-se em revoadas nos acompanham nos limites do ser, acenando suas asas para o
voo da imaginação, a liberdade para cruzar o invisível precipício de certos limites da imaginação
que nos impuseram desde cedo.
A liberdade do sem fim quando se deixa de ver os limites e limitações do mundo.

A borda é também o espaço do despejo, da vomitação.


O mar, de quando em quando, entrega-se sobre a terra. Na beira, na borda é onde se precipita
o rejeito.
Tal qual a periferia, ali também o espaço da rejeição, o lugar onde se deposita os rejeitos da
matéria, os rejeitados, os excluídos, o lixo, o épave. É para lá que se dirige tudo, os que são
forçados a irem.

Sobre esse campo do saber, o da indefinição e indeterminação das bordas, o desmedido, é o


espaço onde se deveria começar a compreensão de uma outra filosofia não mais baseada no
conceito limitado de centralidade do ser, no logocentrismo do EU. O ego habita no umbigo, no
umbigo amputado do outro. Uma filosofia que se deposite sua descentralidade no conhecimento
na externidade, no fora do centro. Uma filosofia do desgarrado das multidões. Toda a filosofia
ocidental de certa forma tem sido uma filosofia da domesticação, de cisão da humanidade
enquanto comunidade, do individuo em detrimento das multidões.
Haveria de se buscar uma filosofia e uma psicologia não mais baseada na centralidade do ser -
um conceito de falsa interioridade- mas localizada em seus limites, em seus limites de corpo
mesmo, buscando a superfície da superfície, quase fora, no ponto de contato onde o eu deixa

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de ser eu e já é o outro. Uma filosofia que estabeleça seu acampamento fora, quase fora, quase
ali no outro, no quase fora da escrita, da linguagem domesticadora, quase fora da
representação, no quase além da escrita, no rejeito, no rejeitado, no que ainda não foi escrito,
ou simplesmente despejado fora, fora do campo do saber.

Para isso o conhecimento deveria se dissolver pela força das ondas e jogá-lo como precipitado
sobre a areia, nas terras do sem fim. Na dissolução poderíamos observar o apontamento, a
sinalização na transitoriedade dos sinais, em seus contornos, no escrito na areia, que se
dissolve pela força da agua.

Vejo, nesse espaço, na beira mar, estranhos marcos dentro e fora das margens, das margens
da escrita, ora dentro do mar, ora fora dele, cravado nas areia, na terra. São amarrações,
balizas. Acho que, os que moram nesses limites nunca esperam nada e tampouco a chegada
de ninguém.

Desses lugares, dessas bordas, nada deveria partir e nada deveria chegar. Aqui tudo está e não
está ao mesmo tempo no tempo. Pois aqui o tempo também está em seus limites. Na borda
tudo acontece por força da aventura, do desejo de ir mais além, da descoberta, da exploração.
Tudo junto no espelho d’água: céu, terra e agua.
Nas bordas tudo chega e delas tudo parte com novidades de volta. Tudo retorna.
As bordas, as indefinições dos lugares são os lugares do conflito da resistência, dos choques,
das lutas.
Hoje, um gigantesco tonel apareceu na beira do mar
Parecia o túnel do tempo. Negro como a noite e coberto de craca
Nos limites da vontade, tudo chega inesperadamente, conduzida pela matéria agua. Revi esse
tonel muitos anos depois num relato de uma amiga, permanecia e havia um homem que o
limpava sua areia semanalmente.

A beleza é amor, vem da força das aguas, a Vênus, a estrela Vênus que Negri fala tem que vir-
a-ser agua, vem através da agua e de seus líquidos, Nos limites da terra, nos devaneios da
agua, também o nascimento da Vênus de Botticelli, que me faz recordar as cebolas de São
José do Norte, a infinidade de conchas ao longo da faixa do mar.
Conchas: estranhas moradas onde também se pode escutar o som do mar. Labirintos, ouvidos
do mar, símbolo da dobra, do barroco. São as orelhas, os “orelhões” das bordas, telefones entre
os reinos da matéria, chamadas de longa distância, portais e moradas sonoras em
simultaneidade.

Nada mais belo que a chuva, na beira da praia, quando o céu se despeja também como agua,
quando a agua se precipita como desejo de areia sobre a terra, sobre o espelho. Tudo se
confundo em aguaceiro.
A chuva, o tempo sobre a forma de agua anuncia a presença do entendimento sobre os limites
da matéria

Depois de tanto percorrer agora vejo, a distância, a lagoa do desejo, a Lagoa do Peixe, difícil
obstáculo a ser atravessado, mas se atravessa nem que seja amanhã de manhã.

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AS BORDAS DO TEMPO, a ideia de collage em Negri


http://fernandofuao.blogspot.com.br/2012/10/as-bordas-do-tempo-ideia-de-collage-em.html [http://fernandofuao.blogspot.com.br/2012/10/as-
bordas-do-tempo-ideia-de-collage-em.html]

Postado há 21st December 2014 por fernando freitas fuão

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