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Revista do

Instituto
Arqueológico,
Histórico e
Geográf ico
Pernambucano
Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano - IAHGP
Número 67. Recife, 2014. ISSN 0103-1945.
CAPA: Retrato de Alfredo de Carvalho (1870-1916). Óleo sobre tela de Bal-
tazar da Câmara. Acervo do IAHGP. Fotografia:
George F. Cabral de Souza.

Editores
Alexandre Furtado de Albuquerque Corrêa (UPE/IAHGP)
Bruno Romero Ferreira Miranda (UFRPE/IAHGP)

Conselho Editorial
Antônio Jorge de Siqueira (UFPE/IAHGP)
Bruno Augusto Dornelas Câmara (UPE/IAHGP)
Ernst van den Boogaart (IAHGP - Países Baixos)
José Luiz Mota Menezes (UFPE/IAHGP)
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (UFPE/IAHGP)
Onésimo Jerônimo Santos (IPHAN/IAHGP)
Yony de Sá Barreto Sampaio (UFPE/IAHGP)

Conselho Consultivo
Acácio Catarino (UFPB)
Ana Lúcia do Nascimento Oliveira (UFRPE)
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Carla Mary da Silva Oliveira (UFPB)
Daniel de Souza Leão Vieira (UFPE)
Giselda Brito Silva (UFRPE)
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Maria Ângela de Faria Grillo (UFRPE)
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Severino Vicente da Silva (UFPE)
Suely Creusa Cordeiro de Almeida (UFRPE)
Wellington Barbosa da Silva (UFRPE)

Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP


Fundado em 1862

 Rua do Hospício, 130, Boa Vista, Recife-PE, Brasil. CEP 50.080-060



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PERNAMBUCANO – IAHGP PARA O TRIÊNIO 2014-2017
Presidente: José Luiz Mota Menezes
1º Vice-Presidente: Isnard Penha Brasil Júnior
2º Vice-Presidente: Ramires Cotias Teixeira
3º Vice-Presidente: Gilda Maria Whitaker Verri
1º Secretário: Reinaldo José Carneiro Leão
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2º Tesoureiro: Francisco Bonato Pereira da Silva
Diretora de patrimônio: Fernanda Ivo Neves

Comissão de Admissão de Associados:


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Comissão de História e Geografia:


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Gilvan de Almeida Maciel
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Comissão de Arqueologia e Etnografia:


Fernando Guerra de Souza
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Comissão de Genealogia e Heráldica:


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Conselho Fiscal:
Paulo Frederico Lobo Maranhão
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Tácito Augusto de Medeiros

Suplentes
Geraldo José Marques Pereira
Luiz Jorge Lira Neto
Yony de Sá Barreto Sampaio
Revista do
Instituto
Arqueológico,
Histórico e
Geográf ico
Pernambucano

Número 67
Recife, 2014
Sumário

Nota dos Editores. .................................................................................9

ARTIGOS

Os holandeses e a consolidação do sistema econômico


do Atlântico Sul Seiscentista
Filipa Ribeiro da Silva ............................................................................ 11

A mão que afaga.Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas


da presença neerlandesa no Atlântico Sul
Kleber Clementino.................................................................................. 39

Inventário dos bens do casal: família, elite local e bens materiais


em cimbres, nos sertões de Ararobá, Pernambuco (1762-1836)
Alexandre Bittencourt Leite Marques e
Ana Lúcia do Nascimento Oliveira ......................................................... 55

O Hospital Pedro II do Recife. Um resgate histórico


e o tombamento estadual
Geraldo José Marques Pereira................................................................ 91

Será mesmo de Nossa Senhora o Morro da Conceição?


Jamerson Kemps ................................................................................... 113

Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o


Primeiro Reinado e as Vésperas do domínio do Partido da Praia
Paulo Henrique Fontes Cadena ............................................................ 141
Frans Post e o carro de bois: o imaginário
da paisagem do Brasil Holandês
Daniel de Souza Leão Vieira ................................................................ 165

Ordens, bandos e fintas para fazer “a cruel guerra”: Os governadores


de Pernambuco, a Câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na
segunda metade do Século XVII
Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo......................................... 193

ENSAIO

Olinda: um roteiro
José Luiz Mota Menezes ....................................................................... 225

Política editorial e normas gerais para a apresentação de textos ....... 245


NOTA DOS EDITORES

Um dos principais compromissos do Instituto Arqueológico,


Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP, desde as suas
origens, é levar a cabo esforços para a divulgação das pesqui-
sas sobre a história e a cultura de Pernambuco. Esse objetivo
continua norteando todas as ações realizadas por este mais que
sesquicentenário sodalício. A Revista que o leitor tem em mãos
nasceu com o Arqueológico no século XIX. Seu primeiro nú-
mero viu a luz em 1863. Desde então, colaboradores e editores
trabalharam incansavelmente para manter vivo o periódico que
é um marco incontornável da produção historiográfica brasilei-
ra. Períodos de grandes dificuldades resultaram em pausas na
publicação da Revista, mas ela jamais deixou de circular, sendo
por isso, um dos mais antigos periódicos de história em funcio-
namento no mundo. É com muita alegria que chegamos ao ano
152 de existência do Arqueológico e que podemos anunciar a
publicação de mais um número da Revista.
Este é o sexto número consecutivo publicado desde a reto-
mada da periodicidade em 2009. Esta conquista não seria pos-
sível sem a colaboração dos associados do IAHGP e de pesqui-
sadores de outras instituições que gentilmente submetem seus
textos aos pareceristas do nosso periódico. Desde já, registra-
mos nossos mais sinceros agradecimentos. A circulação de um
periódico não-comercial como é o nosso depende, obviamente,
de apoio material. Esta nova fase da Revista do IAHGP jamais
ocorreria não fosse o apoio incondicional e constante da Com-
panhia Editora de Pernambuco - CEPE. Devemos um pleito de
gratidão aos quadros dirigentes da CEPE que nunca hesitaram
em fazer valer o dispositivo constitucional estadual que delega
à imprensa oficial de Pernambuco o dever de produzir a Revista
do IAHGP. Agradecemos ainda aos quadros técnicos que reali-
zam de forma primorosa a confecção deste periódico.
Este número mais uma vez combina as colaborações de pes-
quisadores de diversas instituições e com perfis de atuação bas-
tante variados. O período holandês, tema dos mais frequentes
na história da Revista se faz presente novamente em três co-
laborações. Filipa Ribeiro da Silva aborda as intervenções dos
holandeses na formação do sistema econômico no Atlântico
Sul em meados do século XVII. Kleber Clementino analisa as
crônicas portuguesas sobre o período enfocando as estratégias
discursivas presentes nelas. Daniel Vieira retoma a abordagem
à esta fase de nossa história a partir das imagens produzidas
por Frans Post, concretamente a tela “O carro de bois” de 1638.
O período colonial é enfocado também pelo artigo de Arthur
Curvelo, que analisa a comunicação política entre os governa-
dores de Pernambuco e a câmara das Alagoas do Sul durante
o conflito em Palmares, na segunda metade do século XVII.
Alexandre Bittencourt e Ana Nascimento trabalham com uma
instigante documentação cartorária do sertão, especificamente
com inventários post-mortem da vila de Cimbres na passagem
do século XVIII para o XIX. O cenário político de Pernambuco
na primeira metade do século XIX é analisado por Paulo Cade-
na com destaque para a atuação da família Cavalcanti de Albu-
querque. Jamerson Kemps apresenta um enfoque atual das re-
lações entre religiosidade e sociedade no Morro da Conceição a
partir de um cenário historicamente construído. Completando o
painel de textos temos o artigo de Geraldo Pereira – que discor-
re sobre a história do Hospital Pedro II no Recife no âmbito dos
esforços para o seu tombamento como patrimônio histórico do
Estado de Pernambuco – e o ensaio de José Luiz Mota Menezes
que nos apresenta um instigante roteiro de leitura dos traços
urbanos e arquitetônicos da cidade de Olinda.
Desejamos que os textos aqui apresentados possam sus-
citar novas pesquisas e novas perguntas sobre a história de
Pernambuco.

Recife, dezembro de 2014.

Os editores.
OS HOLANDESES E A
CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA
ECONÔMICO DO ATLÂNTICO SUL
SEISCENTISTA, C. 1630-16541

Filipa Ribeiro da Silva2

Resumo: Este artigo analisa o papel desempenhado pelos mercadores pri-


vados das Províncias Unidas dos Países Baixos do Norte sediados no Brasil
e pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais na consolidação do
sistema econômico do Atlântico Sul durante o século XVII. Para tal, vamos
examinar as trocas políticas, militares e comerciais estabelecidas entre as
capitanias do Nordeste Brasileiro e Angola durante os anos de 1630 a 1654.

Palavras-chave: Holandeses, Comércio, Atlântico Sul.

The Dutch and the consolidation of the seventeenth-century South Atlan-


tic complex, c.1630-1654

Abstract: This article looks at the seventeenth century South Atlantic and
explores the role played by the Dutch private merchants based in Brazil
and by the Dutch West India Company for the consolidation of the South
Atlantic. To do so, we will focus on the political, military and commercial
exchanges between the North-eastern Brazilian captaincies and Angola du-
ring the years 1630 and 1654.

Keywords: Dutch, Commerce, South-Atlantic.

Artigo recebido e aprovado para publicação em abril de 2014.


1

Professora Assistente do Departamento de História da Faculdade de Ciências


2

Sociais da Universidade de Macau, SAR China.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


12 Filipa Ribeiro da Silva

Introdução
Nos últimos anos, a historiografia sobre a economia atlân-
tica tem claramente demonstrado que ao longo do Período
Moderno, o Atlântico Sul emergiu como um sistema econô-
mico, social, cultural e político próprio, e em muitas ocasiões
operando independentemente dos poderes coloniais sediados
na Europa (ELTIS, 2000:307; ALENCASTRO, 2000:62; Idem,
2007:118-119). Por outro lado, a informação recentemente re-
unida na base de dados do Tráfico de Escravos Transatlântico
(TSTD) e os estudos sobre o tráfico de escravos têm tam-
bém evidenciado que a formação do sistema econômico do
Atlântico Sul remonta à década de 1570 e a sua afirmação na
globalidade da economia atlântica começa a tornar-se mais
patente a partir de meados do século XVII (DOMINGUES,
2007:477-501; SILVA, ELTIS, 2008:95-129; RIBEIRO, 2008:130-
154; MENDES, 2008:63-94).
Porém, a maior parte dos trabalhos sobre este sistema tem se
concentrado essencialmente nos séculos XVIII e XIX, que cor-
respondem ao período áureo das trocas no Atlântico Sul (CAN-
DIDO, 2008a:1-30, 2008b:63-84, 2011a:223-244, 2011b:239-272;
FERREIRA, 2006:66-99; LOPES, 2008:176; VERGER, 1997; FLO-
RENTINO, 1997; RIBEIRO, 2006:9-27; FLORY, 1978; DONOVAN,
1990), sendo as grandes exceções a esta tendência mais geral
os estudos de Alencastro e Puntoni, entre outros (ALENCAS-
TRO, 2000; PUNTONI, 1999, 1992). Sabemos, por isso, pouco
sobre o sistema do Atlântico Sul no período entre as décadas
de 1570 e 1650 e sobre o impacto da chegada dos mercadores
da Europa do Norte, em particular, das Províncias Unidas ao
Atlântico Sul e o papel que terão (ou não) desempenhado na
consolidação deste sistema econômico.
A chegada dos mercadores das Províncias Unidas ao Atlân-
tico Sul, e especialmente, da Companhia das Índias Ocidentais
Holandesa (WIC), é, frequentemente, retratada na historiografia
como um momento de intenso conflito, conduzindo a grandes
perdas no comércio e noutros tipos de trocas no Atlântico Sul,
e entre este espaço econômico e a Europa (BOXER, 1952; EM-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 13

MER, 2003, 1997:57-69; MELLO, 1975, 20033). Recentes trabalhos


de pesquisa dedicados ao estudo de vários tipos de interações
estabelecidos entre portugueses e holandeses no Atlântico têm
vindo a alterar esta imagem das trocas Luso-Holandesas como
essencialmente conflituosas, ao demonstrar que, em regra, con-
flito e cooperação surgiram associados, quer a nível estatal,
quer entre privados. No entanto, com exceção para os estu-
dos de Ebert, pouco é ainda sabido sobre a participação dos
mercadores da Europa do Norte no comércio do Atlântico Sul,
especialmente, no comércio bilateral estabelecido entre a Costa
Ocidental Africana (em particular Angola), o Brasil e a Améri-
ca do Sul entre o final de Quinhentos e meados de Seiscentos
(EBERT, 2003:49-76, 2008).
Este artigo procura preencher esta lacuna na historiografia
através do estudo do sistema econômico do Atlântico Sul du-
rante o século XVII e do papel desempenhado pelos mercado-
res privados das Províncias Unidas sediados nas mesmas e no
Brasil, bem como o papel desempenhado pela WIC na consoli-
dação desse sistema econômico, tal como viria a ser conhecido
e reconhecido nos séculos seguintes. Para tal, iremos examinar
algumas das trocas políticas, militares e comerciais estabeleci-
das entre as capitanias do Nordeste Brasileiro e Angola durante
os anos de 1630 e 1654.
Para analisar esta temática, começaremos por dar uma breve
panorâmica das estruturas legais que regulavam a participação
dos mercadores privados das Províncias Unidas no comércio
do Atlântico Sul. Passaremos depois à análise do período inicial
de atividade deste grupo de mercadores do Atlântico Sul, atra-
vés do estudo da sua participação no comércio do Brasil e de
Angola. Seguir-se-á uma breve abordagem das relações políti-
cas e comerciais estabelecidas entre o Brasil Holandês e Angola
durante o governo da WIC sobre estes territórios. Aqui, dare-
mos especial atenção às negociações políticas entre o governo

Edição Holandesa: De Braziliaanse affaire: Portugal, de Republiek der Verenig-


3

de Nederlanden en Noord-Oost Brazilië, 1641-1669. Barel, Catherine (trans.).


Boogaart, E. van den (ed.). Zutphen: Walburg Pers, 2005.

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14 Filipa Ribeiro da Silva

da WIC no Brasil, em Luanda e nas Províncias Unidas. Para


concluir, examinaremos os circuitos comerciais e as trocas que
ligavam os dois territórios. É nosso objetivo principal salientar
o papel desempenhado por estas relações na consolidação do
sistema do Atlântico Sul.
Os dados aqui apresentados e discutidos foram reunidos du-
rante sete anos de cuidadosa pesquisa nos arquivos holandeses.
Para o estudo dos mercadores privados envolvidos no Atlântico
Sul utilizamos a coleção dos arquivos notariais da cidade de
Amsterdã.4 A coleção da primeira WIC5 foi também essencial
para elaboração deste trabalho. Juntamente com relatos de via-
gens e a informação disponível na TSTD, todos estes materiais
foram fundamentais para reconstruir a participação das Provín-
cias Unidas no Atlântico Sul. Comecemos, então, pela análise
das estruturas legais que nas Províncias Unidas regulavam o
comércio Atlântico durante o Período Moderno.

A regulamentação das Províncias Unidas sobre


comércio privado no Atlântico

Até 1621 o comércio entre as Províncias Unidas, a Améri-


ca do Sul e a Costa Ocidental Africana, incluindo o Brasil e
Angola, era controlado por mercadores privados. Nas prin-
cipais cidades portuárias das Províncias estava sediado um
bom número de “companhias” privadas e vários mercadores
independentes envolvidos nestes ramos de negócio (UNGER,
1940:194-217; ENTHOVEN, 2003:17-48). Naturalmente, ne-
nhum destes “consórcios” tinha uma organização comercial
formal comparável à da futura WIC, dado que na sua maioria,
estas “firmas” somente contratavam mercadores e caixas para
defender os seus interesses a bordo dos navios, em terra, e a
bordo de uma espécie de feitorias-flutuantes (leggers) para co-

4
Stadsarchief Amsterdam (SAA) antigo Gemeente Archief van Amsterdam,
Notariële Archieven (Not. Arch.).
5
Nationaal Archief, Oude West-Indische Compagnie, (NA, OWIC).

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Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 15

merciar no Brasil e na Costa Ocidental Africana ( JONES [Ed.],


1983:21-29, 45-96; FLEUR, 2000:28, 47, 83-103; SILVA, 2010:19-
38). O estabelecimento da WIC pelos Estados Gerais em 1621
iria pôr fim a este período inicial de livre comércio, dado que
à Companhia seria concedido um monopólio sobre todo o
comércio Atlântico (EMMER, 1981:71-95; HEIJER, 19946, BOO-
GAART, EMMER, 1979:353-375).
Desde a sua formação, a Companhia teve sempre grande
oposição por parte dos mercadores de Amsterdã, e das cida-
des portuárias do Norte das Províncias, que tinham importantes
investimentos nas pescas do Atlântico Norte, no comércio do
açúcar Brasileiro e do pau-Brasil, no comércio do sal com a
América do Sul, e no comércio do ouro, marfim e escravos com
a Costa Ocidental Africana. Na sequência desta contestação,
alguns destes ramos comerciais viriam a ser retirados do mono-
pólio da Companhia pouco tempo após o seu estabelecimento.
Porém, o caráter bélico da Companhia iria causar grandes per-
turbações nas atividades comerciais nas referidas áreas. Por exem-
plo, durante vários anos após a tomada das capitanias do nor-
deste Brasileiro, a produção do açúcar iria diminuir, provocando
grandes perdas para os donos das refinarias de açúcar nas Provín-
cias Unidas (EBERT, 2003:49-76, 20087). Situação idêntica iria ser
vivida em Angola. Nos anos imediatos à ocupação de Luanda, os
oficiais da Companhia também não seriam capazes de assegurar
um abastecimento regular de mão-de-obra escrava à cidade, e,
consequentemente ao Brasil holandês (RATELBAND, 2003).
Durante o mesmo período, os pesados encargos financeiros
com as enormes campanhas militares organizadas pela Compa-
nhia para a tomada das possessões portuguesas também come-
çariam a se fazer sentir ( JONG, 2005). A Companhia começaria
então a ter falta de dinheiro em caixa para operacionalizar os
negócios no Brasil, na África Ocidental, no Caribe, e na Améri-
ca do Norte, e a se debater com dificuldades para assegurar o
transporte de mercadorias, pessoal, e armas entre os seus vários

Capítulos 1, 2, e 3.
6

Capítulos 3, 5 e 6.
7

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16 Filipa Ribeiro da Silva

postos e colônias. Para minimizar estas perdas, a Companhia


iria garantir aos seus acionistas permissão para participar no
comércio com o Brasil, e com o Caribe em 1638. Em 1647, a
Companhia iria também concordar com a abertura do tráfico de
escravos entre Angola e o Brasil, o Caribe, e as Índias de Cas-
tela aos mercadores privados das Províncias Unidas (EMMER,
1981:79-81; DILLEN, 1970:169). Estas medidas seriam, porém,
insuficientes para impedir a perda do controle sobre o Brasil
e Angola por parte da Companhia, bem como a perda da sua
cota no comércio do Atlântico Sul após o início da década de
1650, como os dados relativos ao tráfico negreiro disponíveis
na TSTD mostram claramente.

Fonte: http://www.slavevoyages.org: 19-07-2012.

A participação das Províncias Unidas no


Atlântico Sul: entre o comércio privado
e o monopólio da wic

O comércio privado das Províncias Unidas


no Atlântico Sul

No final do século XVI, as Províncias Unidas ofereciam resi-


dência a dois principais grupos de mercadores com interesses
econômicos no comércio com o Brasil e Angola: um grupo

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 17

de mercadores cristãos de origem holandesa, flamenga, e ale-


mã8 e outro grupo formado pelos judeus portugueses que se
haviam estabelecido em Amsterdã, e em outras cidades.9 O
primeiro grupo havia iniciado as suas atividades econômicas
no Atlântico Sul no final da década de 1580, investindo maio-
ritariamente no comércio do açúcar Brasileiro e do pau-Brasil,
e no comércio do ouro, marfim, e peles com a África Ociden-
tal. Durante este período inicial, a participação das Províncias
no comércio de escravos era mínima, como os estudos de
Postma, Eltis, Vos e outros já demonstraram (POSTMA, 1990,
2003:158-183; VOS, ELTIS, RICHARDSON, 2008:228-249). En-
tre os mercadores sediados nas Províncias, envolvidos neste
inicial comércio negreiro encontraríamos os judeus portugue-
ses. Muitos deles operavam já nos circuitos comerciais que
ligavam a Península Ibérica e as Províncias Unidas a Angola
e ao Brasil, antes do seu estabelecimento nas Províncias, na
sequência da sua deslocação de Antuérpia devido ao bloqueio
holandês, e da Península devido à perseguição desencadeada
pelos tribunais inquisitoriais.
De fato, muitos destes mercadores combinavam no seu
portfólio investimentos em ambas as regiões do Atlântico Sul.
Os mercadores cristãos de origem holandesa, flamenga e ale-
mã surgiam envolvidos simultaneamente no comércio com a
Costa Ocidental Africana e o Brasil. No que respeita aos ju-
deus portugueses, estes surgiam não só envolvidos no co-
mércio com o Brasil, mas também com as Índias de Castela,
nomeadamente enquanto responsáveis pelo abastecimento de
mão-de-obra escrava e estas colônias e pelo transporte de
mercadorias, como açúcar, pau-Brasil, tabaco, prata, ouro, e
pedras preciosas para a Europa (GELDERBLOOM, 2000:180-
181.224, 231, 238).10

Sobre os grupos mercantis das Províncias Unidas, ver, por exemplo: Antunes,
8

2004; Gelderbloom, 2000; Lesger, Noordegraaf, (Eds.), 1995.


Sobre os Judeus Portugueses nas Províncias Unidas, na Europa do Norte e no
9

Atlântico em geral, ver: Israel, 1998, 2002; Kaplan, 2000; Swetschinski, 2000.
10
Para mais informação sobre as atividades desenvolvidas por estes mercadores em
ambas as margens do Atlântico Sul, ver: Silva, 2011(capítulo 7).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


18 Filipa Ribeiro da Silva

Embora os dados recolhidos não nos permitam afirmar cate-


goricamente que estes mercadores estariam envolvidos em rotas
comerciais bilaterais entre Angola e o Brasil, utilizando circuitos
comerciais independentes daqueles operados a partir das Pro-
víncias e de outros portos Europeus, a informação recolhida
deixa claro, como explicaremos em maior detalhe adiante, que
entre estes mercadores privados já existia uma clara noção de
que estes dois mercados do Atlântico Sul eram complementares.
Esta ideia de complementaridade entre os mercados angolano
e brasileiro tornar-se-ia bastante clara após o estabelecimento
da WIC em 1621, e, particularmente, nos anos que precedem
a conquista das capitanias do Nordeste Brasileiro em 1630. As
rotas comerciais, as práticas adotadas e a logística desenvolvida
pelos mercadores portugueses e brasileiros sediados no Brasil-
-Colônia desde a década de 1570 para comerciar no Atlântico
Sul certamente ajudaram a desenvolver esta crescente consciên-
cia entre os oficiais da WIC acerca da complementaridade eco-
nômica dos mercados angolano e brasileiro.

As políticas da wic para o Atlântico Sul


Quando a Companhia traçou planos para a ocupação de
grandes territórios, como o Brasil e Angola, o conselho dos Di-
retores (HEIJER, 1997, 2005:17-43) – também designados como
os Dezenove Senhores – consideraram pela primeira vez a pos-
sibilidade de estabelecer um governo central para o Atlântico
holandês, com sede no Atlântico Sul. Entre 1629 e 1630, quan-
do a Companhia lançou o seu segundo ataque ao Brasil, mais
precisamente sobre a capitania de Pernambuco, o Conselho
dos Diretores, com a permissão dos Estados Gerais, começou
a preparar um documento que definia o novo governo central
das colônias Atlânticas holandesas, incluindo regulamentação
relativa à organização comercial, militar, judicial, administrativa
e fiscal – a chamada Ordem do Governo de 1629.
Com o estabelecimento de um governo central com poder
de tutela sobre todas as colônias e postos das Províncias no

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 19

Atlântico, o principal objetivo da Companhia era criar certa


unidade administrativa, militar, judicial, comercial e fiscal que
se estendesse a todos estes espaços (SCHILTKAMP, 2003:320-
321). A sede deste governo central seria no Brasil. Isto signi-
fica que qualquer colônia a ser estabelecida pela Companhia
no Atlântico Sul ficaria sob a jurisdição do governo central
sediado no Brasil. Assim, de acordo com a Ordem de 1629, to-
dos os postos e colônias que futuramente fossem tomados aos
portugueses, como iria suceder durante as décadas seguintes
de 1630 e 1640, nomeadamente, São Jorge da Mina, Achem,
Chama, e os territórios de São Tomé e Angola, ficariam, pelos
menos em teoria, sob a jurisdição do governo central no Bra-
sil. Na prática, a realidade viria a ser bastante diferente, como
explicaremos mais adiante.
Na verdade, seria o Governo Central sediado no Brasil, e o
Conde Maurício de Nassau, na qualidade de governador-geral
do Brasil holandês, que iriam traçar o plano para a conquista
de Angola e de São Tomé aos Portugueses, e para manter os
laços econômicos entre ambas as margens do Atlântico Sul. O
principal argumento utilizado pelo Conde Nassau e o Gover-
no Central para obter autorização do Conselho dos Diretores
e dos Estados Gerais para a expedição fora a elevada procura
de mão-de-obra escrava no Brasil holandês. Porém, a decisão
de preparar e financiar esta enorme operação naval e militar
pelo Conde Nassau e pelo Governo Central não fora tomada,
em nossa opinião, independentemente da jurisdição que a Or-
dem de 1629 concederia ao Governo Central sediado no Brasil
holandês sobre o Atlântico. Esta decisão não fora certamente
tomada de leve consciência e sem um conhecimento detalhado
dos laços entre estes dois territórios do Atlântico Sul.11 As ações
do Conde Maurício de Nassau e do Governo Central no Brasil
que se seguiram à tomada de Luanda e São Tomé, conduzindo
a grandes disputas entre estas duas entidades, o Conselho dos
Diretores e os Estados Gerais das Províncias Unidas são, em

NA, OWIC 8: 18 Dezembro 1640: “Les XIX au gouverneur et au conseil de Recife”


11

in JADIN [Ed.], 1975:I, 19 doc. 9.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


20 Filipa Ribeiro da Silva

grande medida, reveladoras das intenções associadas à tomada


destes territórios quer do ponto de vista administrativo, e mili-
tar, quer do ponto de vista político.
Imediatamente após a ocupação de Angola e São Tomé, o
Conde Maurício de Nassau e o Governo Central no Brasil soli-
citaram aos Estados Gerais a integração destes territórios sob a
tutela do dito Governo, dada a elevada procura de mão-de-obra
escrava na colônia, e as rotas diretas entre Angola e o Brasil, es-
tabelecidas desde 1630, e utilizadas para satisfazer essa procu-
ra. Os Estados Gerais elaboraram um relatório sobre a questão
e submeteram o documento à apreciação do Conselho de Dire-
tores da Companhia para aprovação. Para estudar a questão, os
Dezenove Senhores organizaram uma comissão. Em relatório
datado de 6 de Fevereiro de 1642, a comissão votou a favor da
proposta dos Estados Gerais. De acordo com este documento,
Angola deveria ficar sob administração direta dos Dezenove
Senhores. A colônia devia ser abastecida de provisões e bens
de troca diretamente a partir das Províncias Unidas. O seu go-
verno devia, assim, ser separado do Governo Central no Brasil,
tal como, o era durante o domínio dos Portugueses. Do ponto
de vista da Comissão, não fazia sentido abastecer Angola e São
Tomé via Brasil, pois esta colônia também era abastecida pelas
Províncias. Além disso, de acordo com a opinião da comissão,
as viagens entre o Brasil e Luanda eram, mais longas do que a
rota entre as Províncias e Angola. Por outro lado, o Brasil já se
debatia com problemas financeiros, e a administração de outra
colônia poderia ser demasiado danosa para o Brasil holandês.12
A comissão argumentou, assim, que Angola e São Tomé de-
viam ser abastecidos diretamente a partir das Províncias, e to-
das as instruções para seu governo deviam ser emitidas e en-
viadas pelos Dezenove Senhores. Em sua opinião, a procura de
mão-de-obra escrava no Brasil não era um argumento suficien-
temente sólido para dar ao Governo Central no Brasil holandês

12
NA, Staten Generaal (SG), 5773: 6 Fevereiro 1642: “Rapport de la commission
formé par les XIX pour étudier le pro et le contre de la séparation de Loanda avec
le Brésil” in JADIN [Ed.], 1975:I, 200-202, doc. 76.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 21

jurisdição sobre Angola e São Tomé, pois outras colônias que a


Companhia pudesse vir a estabelecer no futuro também pode-
riam vir a necessitar de importar escravos africanos. Além disso,
a Comissão acrescenta ainda que embora o tráfico negreiro
fosse o principal comércio em Angola, existiam nesta região
outros ramos comerciais que a Companhia desejava desenvol-
ver. Por outro lado, segundo a Comissão, o Brasil não tinha
como abastecer Angola e São Tomé sem os abastecimentos en-
viados a partir das Províncias. Na verdade, a experiência havia
já demonstrado que esta função redistributiva não funcionava
adequadamente, dado que os funcionários da Companhia em
Angola enfrentavam problemas com falta de alimentos, muni-
ções e provisões, apesar das elevadas quantidades de provisões
enviadas das Províncias para o Brasil. Além disso, a redistri-
buição das tropas transportadas das Províncias para o Brasil e
daí para a Angola sofria problemas semelhantes, pois as tropas
chegadas ao Brasil eram mantidas neste território. Consequen-
temente, o Brasil não conseguia assegurar a redistribuição dos
militares para os vários postos da Companhia da África Ociden-
tal e em Angola e em São Tomé não era possível assegurar a
rotação dos soldados. Todos este argumentos seriam apresenta-
dos perante os Estados Gerais a 4 de Março de 1642.13
Os Estados Gerais aceitaram os argumentos da comissão e,
contrariamente aos pedidos do Conde Maurício de Nassau e
do Governo Central no Brasil, decidiu em favor da separação
dos governos de São Tomé e Angola do Governo do Brasil,
estabelecendo, assim, uma nova divisão administrativa para os
postos da WIC na África Ocidental. De acordo com essa nova
organização, a Costa Ocidental Africana ficaria dividida em dois
distritos com governos separados. O Distrito do Norte incluía
as áreas costeiras entre o Cabo das Três Pontas e o Cabo Lopo
Gonçalves (atual Cabo Lopes); enquanto o Distrito do Sul en-
globava as regiões costeiras a partir do referido Cabo até ao

NA, SG, no. 5773: 4 Março 1642: “Arguments des commissaires de XIX contre
13

un mémoire des États-Géneraux sur le gouvernement des nouvelles conquêtes


d’Afrique” in JADIN [Ed.], 1975:I, 237-239, doc. 84.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


22 Filipa Ribeiro da Silva

Cabo da Boa Esperança, bem como as Ilhas do Golfo da Guiné.


O governo do Distrito do Norte teria sede em Elmina e o do
Distrito do Sul em Luanda. Cada governo teria jurisdição sob
questões administrativas, judiciais, comerciais e religiosas.14 A
estes dois distritos, o Conselho dos Diretores viria adicionar um
terceiro: o Distrito de São Tomé, com o seu respectivo governo.
Esta ilha e o seu governo seriam responsáveis, na visão dos
Dezenove Senhores, pela ligação entre os outros dois distritos.15
Porém, este terceiro distrito não iria sobreviver por muito tem-
po. Logo, em 1645, as ilhas de São Tomé seriam incorporadas
no Distrito do Norte, mas mantendo governo próprio.16
Esta nova divisão administrativa teria também implicações
no que respeita ao abastecimento de alimentos, medicamentos,
roupa, munições, armas, materiais para equipar e reparar na-
vios, etc. Tudo seria fornecido diretamente pelas Províncias a
estes governos. O abastecimento de mercadorias de troca para
o comércio, de pessoal civil, naval e militar seria assegurado
pelas várias Câmaras da Companhia, de acordo, com a sua quo-
ta de participação no capital da mesma. Na prática, nem tudo
funcionaria da melhor forma. Esta nova divisão jurisdicional e
a interferência dos Estados Gerais nos assuntos administrativos
da WIC dado as suas implicações do ponto de vista político e
diplomático para as Províncias, deu lugar a múltiplos conflitos
entre as várias entidades envolvidas, que, na maioria dos ca-
sos, resultariam em grandes perdas para os governos da África
14
VV. HH. Puissances, par leur lettre du 13 courant, nous ont chargés de hâter
l’élaboration de l’instruction sur le gouvernement du district sud de la côte
d’Afrique. Il s’étendra du sud de la ligne de ‘Equateur au cap de Bonne-Espéran-
ce, et comprendra notamment São Paulo de Loanda et l’île de São Tomé. Nous
avons établi cette instruction ici, à la réunion de ce 19, selon votre demande, et
nous en envoyons ci-joint la copie à VV. HH. Puissance. » NA, SG, 5773: 19 Março
1642: “Les XIX aux États-Généraux” in JADIN [Ed.], 1975:I, 250-251, doc. 96. NA,
OWIC 9: 19 Abril 1642: “Les XIX à Jacob Ruychaver, commandeur à la Guinée” in
JADIN [Ed.], 1975:I, 271 doc. 101.
15
NA, OWIC 9: 14 Junho 1642: “Les XIX aux directeurs de Loanda” in JADIN [Ed.],
1975:I, 296-302, doc. 112.
16
NA, OWIC 56, doc. 23: 28 Maio 1641: “Instruction du comte de Nassau et du
conseil secret du Brésil pour l’admiral Jol, P. Moortamer, C. Nieulant and J. Hen-
derson” in JADIN [Ed.], 1975:I, 34-42, doc. 27.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 23

Ocidental, do Brasil e de outros territórios no Atlântico. Por


um lado, o abastecimento irregular de mercadorias de trocas
aos fortes na Costa Ocidental Africana pelas referidas entidades
causaria grandes perdas do ponto de vista comercial. Por outro
lado, o abastecimento insuficiente de alimentos e munições e o
deficiente sistema de rotação entre as tropas conduziria a gran-
de descontentamento, que certamente viria a contribuir para
as perdas militares e territoriais que a Companhia viria a sofrer
não só na África Ocidental mas também no Brasil, no final da
década de 1640 e no decênio seguinte.17
Os territórios de Angola e São Tomé foram provavelmente
aqueles que mais sofreram as consequências diretas deste tipo
de problemas. Inicialmente, os abastecimentos a estas áreas de-
viam ser assegurados pelo Governo Central no Brasil. Em 1642,
após os Estados Gerais considerarem que esta prática era um
enorme encargo para as finanças da Colônia ficou decidido
que essas provisões passariam a ser enviadas diretamente das
Províncias pelo Conselho dos Diretores. Porém, os Dezenove
Senhores não libertaram formalmente o Governo Central no
Brasil da obrigação de ajuda e assistência a Angola e a São
Tomé.18 E, frequentemente, as Câmaras da Companhia nas Pro-
víncias também falhariam no abastecimento a estes territórios.
O pedido e os argumentos utilizados pelo Conde Maurício
de Nassau e o Governo Central do Brasil para solicitar juris-
dição sobre os territórios de Angola e São Tomé são bastante
reveladores da visão que o Governador-geral e o Governo Cen-
tral tinham do Atlântico Sul sob o domínio da WIC. Para eles,
o Atlântico Sul tinha uma lógica e unidade econômica própria,
que, caso fosse preservada, iria beneficiar as colônias da Com-
panhia na região. Porém, os Estados Gerais e o Conselho dos
Diretores da Companhia não partilhavam da mesma opinião.

Para mais informação sobre as disputas entre as Câmaras de Amsterdã e da Ze-


17

lândia relativamente aos investimentos no Brasil e ao financiamento dos conflitos


militares com Portugueses no Brasil-Colônia, ver, por exemplo: EMMER, 1981:71-
95 e DILLEN, 1970:160-170.
NA, OWIC 8: 3 Agosto 1643: “Les XIX au gouverneur et au Conseil du Recife
18

(extraits)” in JADIN [Ed.], 1975:I, 466-467, doc. 165.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


24 Filipa Ribeiro da Silva

Aquilo que parece ter estado aqui em jogo foi um conflito


entre diferentes interesses políticos e econômicos: de um lado,
tínhamos os interesses sediados no Brasil holandês e na Angola
holandesa, e, de outro, os interesses enraizados nas Províncias;
sendo os primeiros representados e defendidos pelos oficiais
da Companhia nesses territórios, e os segundos pelos Dezeno-
ve Senhores nas Províncias. Enquanto os Dezenove Senhores
estariam, pelo menos em teoria, a proteger os interesses dos
mercadores de açúcar e dos donos das refinarias de Amsterdã
(na prática e a longo-termo, as políticas adotadas pelo Conse-
lho viriam a prejudicar os interesses destes grupos), o Governo
Central no Brasil e o Conde Maurício de Nassau defendiam os
interesses na Companhia na Colônia, nomeadamente as ativi-
dades dos colonos e dos mercadores portugueses que faziam
negócio com os holandeses, e os novos colonos e mercadores
que começaram a produzir e comerciar com a colônia já duran-
te o governo da Companhia.
Ao seguir práticas já existentes e rotas comerciais já em
funcionamento, Nassau estava indiretamente a encorajar cer-
ta autonomia econômica para a colônia da WIC, que pode-
ria ajudar a melhorar a sempre precária situação financeira e
econômica do território. Embora, o Conselho dos Diretores
fosse a favor do desenvolvimento das colônias e que estas se
tornassem autossuficientes; por outro lado, temia que a colô-
nia pudesse se tornar demasiado autônoma e eventualmente
demasiado poderosa.
O poder pessoal que o Conde Nassau tinha adquirido na
Europa antes da sua partida para o Brasil, e a sua crescente
autoridade e influência entre os funcionários navais e mili-
tares que serviam na Colônia, bem como, em Angola e São
Tomé, foi, em nosso ponto de vista, outro fator que levou a
Companhia a descartar o pedido subscrito pelo Conde Nas-
sau e o Governo Central para obter a jurisdição sobre Angola
e São Tomé.
As disputas e os argumentos trocados entre o Governo
Central no Brasil, o Conselho dos Diretores e os Estados Ge-
rais colocam também, em evidência, a diferente visão e enten-

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Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 25

dimento de uma mesma realidade por parte de funcionários


a servir nas colônias e aqueles que serviam na Europa, e o
conhecimento da situação real por parte desses dois grupos
de funcionários da Companhia.
Aqueles que serviam nas colônias da WIC pareciam ser muito
mais conscientes do papel desempenhado pelas relações comer-
ciais entre os dois territórios do Atlântico Sul, não só durante o
domínio da WIC, mas também em épocas anteriores, quando
os dois territórios ainda estavam em controle dos comerciantes
Portugueses e de mercadores privados a operar nestes mercados.
Os elementos recolhidos nos arquivos notariais de Amsterdã, na
coleção da WIC e na TSTD não só mostram claramente uma
continuidade nas relações comerciais Angola-Brasil sob o domí-
nio holandês, mas também sugerem um crescente dessas trocas
durante o domínio da Companhia sobre o Brasil e Angola, como
iremos explicar em detalhe na seção seguinte.

As rotas comerciais holandesas no Atlântico Sul


Durante o período inicial de atividades Holandesas no Atlân-
tico Sul, os mercadores das Províncias parecem ter utilizados
três tipos de rotas no seu comércio de longo-curso: rotas diretas
ligando as Províncias ao Novo Mundo, nomeadamente ao Bra-
sil; circuitos triangulares ligando as Províncias às Américas, mas
com escala na Costa Ocidental Africana, em particular junto ao
Cabo Lopes, Loango, Kongo e Angola; e rotas diretas ligando as
Províncias ao Golfo da Guiné e às zonas litorais circundantes;
e ainda rotas diretas em direção às regiões costeiras do Cabo
Lopes, Loango, Kongo e Angola. A maior parte destes circuitos
incluía também navegação de cabotagem para garantir a troca
de mercadoras – uma prática comum entre os mercadores das
Províncias envolvidos no comércio atlântico.
Assim, e contrariamente aos mercadores sediados em Por-
tugal, no Brasil e em Angola que no final do século XVI já ha-
viam desenvolvido circuitos bilaterais entre o Brasil e Angola, e
entre esta Colônia e outros portos ao longo da Costa Ocidental

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26 Filipa Ribeiro da Silva

Africana, completamente separados dos circuitos europeus, os


mercadores das Províncias baseavam suas atividades somente
em circuitos bilaterais entre a Europa e ambas as margens do
Atlântico Sul, e os chamados circuitos triangulares ligando a
Europa à Costa Ocidental Africana e às Américas.
Porém, após a tomada das capitanias do Nordeste Brasileiro
pela WIC, novas rotas comerciais seriam estabelecidas. A partir de
1630, os Dezenove Senhores iriam defender que o comércio com
o Loango e o Kongo fosse feito via Brasil. Esta decisão iria contri-
buir para a abertura de duas novas rotas comerciais: um circuito
que ligava as Províncias ao Brasil holandês; e uma segunda rota
que ligava a Colônia Holandesa à costa do Loango, Kongo e An-
gola. No primeiro circuito, provisões, munições, pessoal e produ-
tos de troca eram enviados das Províncias para o Brasil; enquanto
açúcar, pau-Brasil, e tabaco constituíam a maior parte da carga
na torna-viagem, juntamente com funcionários da Companhia e
alguns passageiros de regresso às Províncias. A segunda rota que
ligava os portos de Pernambuco aos da Costa Ocidental Africana
tinham várias funções. Por um lado, eles abasteciam os funcioná-
rios da Companhia no Loango, Kongo e Angola de mercadorias
de troca, alimentos e armas. Por outro lado, este circuito também
garantia o fornecimento de escravos Africanos necessários aos
produtores de açúcar no Brasil-Colônia. Este circuito garantia ain-
da o transporte de marfim, e plantas tintureiras para a Europa,
via Brasil. Por último, esta rota assegurava ainda a comunicação
entre os governos da Companhia nos vários portos e colônias do
Atlântico. Além dos referidos circuitos, várias outras rotas ligavam
o Brasil holandês aos portos sob domínio da Companhia na Costa
Ocidental Africana. Na década de 1630, as rotas principais ligavam
os portos de Pernambuco aos da Senegâmbia, nomeadamente à
Ilha de Gorée, bem como aos portos de Mori e da Mina na Costa
do Ouro. Existia também uma importante rota que ligava Per-
nambuco ao Cabo Lopes. Este era, geralmente, o local na Costa
Ocidental Africana, onde os navios da Companhia que operavam
no comércio costeiro do Golfo do Biafra e na Costa dos Escravos
aguardavam as frotas brasileiras para as abastecer com os escra-
vos adquiridos nestes mercados e destinados a colônia holandesa.

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Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 27

Entre 1641 e 1648, a Companhia também promoveu o desen-


volvimento de rotas diretas ligando as Províncias a Angola e a
São Tomé. Os circuitos mais importantes ligavam as Províncias
a Luanda e ao porto da ilha de São Tomé. Estas rotas tinham
duas funções principais: i) abastecer de provisões, munições e
alimentos o pessoal militar e civil da Companhia a servir nestes
territórios; e transportar os produtos africanos comprados nes-
tas áreas costeiras com destino às Províncias, nomeadamente
açúcar são-tomense e marfim angolano, e plantas tintureiras.
Porém, dado que o principal “produto” disponível nesta cos-
ta era mão-de-obra escrava destinada ao mercado de trabalho
brasileiro, as rotas diretas com destino a Europa nunca se tor-
naram muito intensas. De fato, as torna-viagens para a Europa
eram frequentemente feitas com escala no Brasil, onde os es-
cravos africanos eram desembarcados e as cargas completadas
com açúcar brasileiro, pau-Brasil, e tabaco.
Durante o domínio da WIC sobre Angola e São Tomé (1641-
1648), Luanda tornar-se-ia o principal centro abastecedor de es-
cravos africanos para satisfazer as necessidades dos produtores
de açúcar no Brasil-Colônia, quer de origem luso-brasileira, ju-
daica, holandesa, ou flamenga. Tal como a informação disponí-
vel na TSTD mostra, na década de 1640, a rota mais importante
ligava Pernambuco a Luanda.

Fonte: http://www.slavevoyages.org: 19-07-2012.

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28 Filipa Ribeiro da Silva

Em suma, a partir de 1630, o Brasil holandês foi utilizado


pela Companhia como uma placa giratória para o comércio
com a Costa Ocidental Africana, especialmente com as áreas
ao sul do Cabo Lopes, como o Loango, o Kongo e Angola.
Desta forma, o abastecimento de produtos de troca europeus,
provisões e munições a estes territórios, bem como o forne-
cimento de produtos Africanos e escravos adquiridos nessas
regiões, era garantido aos mercados consumidores da Europa
e das Américas através do Brasil. O pessoal militar e civil ao
serviço da Companhia na costa do Loango, Kongo e Angola
também era transportado via Brasil. Portanto, a Companhia
mantinha circuitos bilaterais ligando os seus postos e esta-
belecimentos no Atlântico Sul, em separado dos circuitos de
ligação à Europa.
A perda do Brasil por parte da Companhia holandesa pôs
termo a estes circuitos que ligavam o Brasil holandês à costa
africana, pelo menos para os navios operando sob pavilhão
holandês. Os circuitos ligando o Brasil a Angola e ao Golfo
da Guiné seriam reativados na década de 1650 por iniciati-
va de mercadores luso-brasileiros. Estes mercadores traziam
bebidas alcoólicas (cachaça), tabaco e algum ouro para com-
prar escravos africanos nos postos comerciais dos diferentes
poderes europeus instalados na costa africana, em particular
no Golfo do Benim e a chamada Costa da Mina. Estes circui-
tos viriam a adquirir especial importância durante a existên-
cia e funcionamento da segunda WIC (1674-1791) (HEIJER,
2003:139-170).
Os mercadores privados sediados nas Províncias com inte-
resses no Atlântico Sul começaram a operar novos circuitos
ligando o Loango, Mpinda, e Angola à ilha de Curaçao (a nova
plataforma comercial da WIC para o seu comércio transatlân-
tico), ao Suriname, e, por vezes também à América do Norte.
O complexo econômico do Atlântico Sul controlado pelos ho-
landeses havia terminado. Estas novas rotas tinham por base as
tradicionais rotas triangulares e garantiam as trocas essenciais
entre o Atlântico Sul e o Atlântico Norte.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 29

Conclusão
Os circuitos bilaterais entre o Brasil holandês e a Costa Oci-
dental Africana, mais precisamente o Loango, o Kongo e An-
gola, desempenharam um papel importante na consolidação
de um conjunto de práticas comerciais e trocas entre estes dois
territórios, que tiveram início anteriormente quando estes es-
paços estavam sob o controle dos Portugueses, como aliás a
informação reunida na TSTD sugere.

Fonte: http://www.slavevoyages.org: 19-07-2012.

Através do aproveitamento de ligações comerciais entre o


Brasil e Angola pré-existentes ao estabelecimento holandês
nesses espaços, a presença e domínio da WIC sobre estes dois
territórios não só contribuiu para estimular o desenvolvimen-
to dos circuitos entre as capitanias do Nordeste, o Loango e
Angola, como também, para fortalecer os laços entre essas
regiões. Além disso, a presença holandesa no Brasil também
forçou os mercadores luso-brasileiros, luso-angolanos e por-
tugueses a deslocaram-se para as capitanias do sul do Brasil, o
estuário do Rio Kwanza e a região de Benguela, em Angola, e
a utilizar de uma forma mais regular e intensa os circuitos co-
merciais que já tinham começado a emergir a partir da década
de 1570. O poder naval da WIC e os seus ataques frequentes
aos navios portugueses a circular entre o Atlântico Sul e o

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


30 Filipa Ribeiro da Silva

Atlântico Norte poderão ter sido também importantes razões


para promover o desenvolvimento dos circuitos bilaterais já
existentes, bem como de novos circuitos de ligação entre o
Brasil e a costa angolana.
Na verdade, após a conquista de Pernambuco pela WIC, os
produtores de açúcar luso-brasileiros foram forçados a plan-
tar cana nas regiões ao sul da Bahia e nos arredores do Rio
de Janeiro (SANTOS, 2005; ABREU, 2005; SCHWARTZ, 1998;
MAURO, 1997). Além disso, devido à tomada de Angola e São
Tomé pelos holandeses, os mercadores luso-brasileiros foram
também obrigados a encontrar novos mercados abastecedores
de mão-de-obra escrava de forma a satisfazer a procura de tra-
balho dos produtores de açúcar do Brasil. O desenvolvimento
de produção local no Brasil garantiu a estes mercadores o abas-
tecimento regular de produtos de troca, como álcool, tabaco,
e mais tarde ouro, que podiam ser trocados por mercadorias e
mão-de-obra na costa ocidental africana (CURTO, 2005).19 Por
outro lado, o conhecimento dos mercadores sobre as exigên-
cias dos mercadores consumidores africanos desempenharam
também um papel importante no estabelecimento destas novas
rotas comerciais. A Bahia e o Rio de Janeiro emergiriam duran-
te o período aqui estudado como os dois principais portos de
partida para estas rotas comerciais bilaterais entre as capitanias
a Sul do Nordeste brasileiro e Angola. Alguns autores, como
David Eltis, argumentam que durante o domínio holandês do
Brasil e Angola foram feitas várias tentativas para desenvolver
o transporte de escravos africanos a partir de Moçambique com
destino ao Brasil, e existem, de fato, referências a algumas via-
gens (SMITH, 1974:233-259; BOXER, 1949:474-497).20 Porém, a
duração da viagem e as exigências logísticas destas viagens
tornavam-nas pouco lucrativas. Após a tomada das capitanias
do Nordeste Brasileiro e Angola à WIC, as rotas diretas ligando
o Brasil à costa angolana e ao Golfo da Guiné tornar-se-iam
uma característica fundamental do Atlântico Sul luso-brasileiro,

19
Ver também: Ribeiro, 2008:140-145.
20
Idem.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014


Os holandeses e a consolidação do sistema econômico
do Atlântico Sul seiscentista, c. 1630-1654 31

também designado como “o complexo Angola-Brasil” (ALEN-


CASTRO, 2007:118-119). A partir das décadas de 1670 e 1680,
estas rotas iriam desempenhar um papel chave no abastecimen-
to de escravos africanos a fim de satisfazer a elevada procura de
mão-de-obra no mercado laboral brasileiro.

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32 Filipa Ribeiro da Silva

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A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas
portuguesas da presença neerlandesa
no Atlântico Sul1

Kleber Clementino2

Resumo: O presente artigo tem o propósito de examinar de que maneira


as crônicas portuguesas seiscentistas do “Brasil holandês” abordaram al-
gumas das tensões surgidas entre as lideranças do movimento restaurador
(1645-1654). A perspectiva adotada é a de que tais obras não se propuseram
apenas a registrar a memória daquelas lutas para a posteridade, antes perse-
guiram objetivos políticos imediatos a cada contexto histórico em que foram
produzidas, enaltecendo determinados personagens e eventos, atenuando
passagens delicadas, retratando adversários como anti-heróis sem dignida-
de. A análise se debruça sobre as obras O Valeroso Lucideno, de frei Manuel
Calado do Salvador, e História da Guerra de Pernambuco, atribuída a Diogo
Lopes Santiago, extraindo delas os elementos que permitem construir a ar-
gumentação e apresentar as conclusões.

Palavras-chave: Crônicas, Brasil holandês, Pernambuco.

The hand that caresses: rhetorical strategies in Portuguese chronicles on


Dutch presence in the South Atlantic

Abstract: The present paper aims to examine in which way the seventeenth
century Portuguese chronicles of the “Dutch Brazil” approached some of the
tensions between the leaders of the movement to restore Pernambuco to the
Portuguese domain (1645-1654). One has adopted the perspective that such
books did not intend only to record the memory of such battles to posterity,


1
Artigo recebido em março de 2014 e aprovado para publicação em abril de 2014.
Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da UFPE, linha Nor-
2

te-Nordeste no Mundo Atlântico. Bolsista CAPES. Orientadora: Dra. Marília de


Azambuja Ribeiro.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


40 Kleber Clementino

but rather seek immediate political goals regarding each historical context,
praising some characters and events, attenuating delicate passages, portray-
ing adversaries as anti-heroes with no dignity. The analysis scrutinizes the
works  O valeroso Lucideno, written by friar Manuel Calado do Salvador,
and História da Guerra de Pernambuco, attributed to Diogo Lopes Santiago,
extracting from them the elements which allow to build up the argumenta-
tion and so to present the conclusions.

Keywords: Chronicles, Dutch Brazil, Pernambuco.

“Toma um fósforo, acende teu cigarro.


O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja”.

Augusto dos Anjos, “Versos íntimos”.

Intitulei este escrito “a mão que afaga”, por um lado, para


prestar uma singela homenagem ao grande poeta paraibano
Augusto dos Anjos, que tanto admiro, e, por outro, porque a
frase parece encapsular com exatidão o raciocínio que almejo
desenvolver ao longo do texto: que as crônicas portuguesas
da presença neerlandesa no Atlântico Sul seiscentista, longe de
equivalerem a páginas memorialísticas a erigir uma narrativa
imparcial, foram antes compostas e divulgadas como armas po-
líticas, disparadas em meio aos conflitos em que se embrenha-
vam as elites portuguesas do Atlântico Sul. Não se pretendia,
por meio delas, meramente registrar a memória daqueles feitos
para a posteridade, mas sobretudo erigir e decalcar determina-
da memória, expressão de segmentos de uma elite que estava
longe de ser coesa. Sendo armas, a depender dos desenvol-
vimentos da batalha, às vezes convinha sacá-las e dispará-las
contra um inimigo ou muitos, às vezes convinha metê-las na
bainha, estender a mão e sacudir a bandeira da trégua.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 41

As crônicas olhadas diferentemente

A passagem neerlandesa pelo Atlântico Sul de colonização


ibérica é tema historiográfico de extensa revisitação. Embora haja
ainda polêmicas sobre os episódios que a antecedem e envol-
vem, a união das coroas ibéricas sob o monarca espanhol, a luta
pela emancipação política das Províncias Unidas e sua expansão
colonial a leste e a oeste do planeta foram examinadas com
atenção pela historiografia. Mais especificamente, a ocupação
holandesa do Norte Açucareiro e as lutas que os expulsaram têm
sido estudadas com base em diversas fontes, de caráter oficial e
privado, pelo menos desde meados do século XIX. Contamos,
hoje em dia, com uma representação relativamente estável do
que foi aquela passagem, conhecemos seus próceres, comparti-
lhamos uma periodização verossímil... O “Brasil holandês” exibe,
por assim dizer, uma historiografia consolidada.
Há um elemento desse período, de indiscutível importância,
o qual, contudo, parece ter merecido menor apreciação dos es-
tudiosos. Este elemento é a literatura portuguesa composta na
esteira dessa experiência colonial neerlandesa no Atlântico Sul.
Ela é abundante, pulsante, controversa e está a reclamar adequa-
da problematização historiográfica. E é exatamente isto a que se
propõe a pesquisa de doutorado que embasa este artigo: abordar
essas crônicas em sua pluralidade, no diálogo que estabelecem
entre si e, ao longo do tempo, com os diferentes contextos po-
líticos em que foram escritas, num intervalo de 50 anos (1630-
1679); abordá-las não como documentos que retratam objetiva-
mente um evento histórico e nos permitem assim recontá-lo, mas
atribuir a elas próprias a condição de evento histórico. Reconhe-
cê-las em sua subjetividade, nos possíveis compromissos que de-
marcaram as linhas de sua composição e a versão que pretender
difundir, enxergando a dinâmica das perspectivas em que foram
escritas, no interior de uma tradição interpretativa que remonta
ao filólogo alemão Chladenius (KOSELLECK, 2006)3.

Koselleck aponta em Chladenius um pioneiro no reconhecimento não apenas


3

da subjetividade do historiador, mas na proposição de que também as fontes

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


42 Kleber Clementino

Olhá-las consoante esta concepção conduz a revelações in-


teressantes, permite uma imersão em águas pouco navegadas.
A primeira onda que nos atinge é a da diversidade desses es-
critos: e são diversos não exatamente na temática, mas nos
compromissos assumidos por seus autores e no diálogo que
estabelecem com os diferentes contextos políticos do recorte
temporal aqui proposto. Não é possível, senão com muitas res-
salvas, reunir a todas elas e lhes dar uma classificação comum,
falar de uma “voz portuguesa”, porque são escritos em grande
medida facciosos, isto é, são manifestos, não do povo portu-
guês, nem mesmo da elite portuguesa na península ou no ultra-
mar, mas de um “partido”, de um grupo de interesses a que se
filiava o autor. Por exemplo, diversos indícios apontam que frei
Manuel Calado do Salvador redigiu O Valeroso Lucideno ou a
mando ou em homenagem a João Fernandes Vieira – ninguém
menos que o “Lucideno” do título – como panfleto político de
seu partido, no contexto da década de 1640, em vista das vacila-
ções que a causa da Restauração Pernambucana encontrava na
corte e nas negociações com os neerlandeses em Haia, quando
a entrega do Nordeste era vista como o mais seguro caminho
diplomático (MELLO, 1998), e, sobretudo, diante dos muitos
adversários que protestavam contra a liderança de Fernandes
Vieira, acusando-o de tirania. A narrativa de Calado é uma in-
terminável reiteração desta filiação àquele partido, atacando e
ridicularizando adversários, – como o mestre de campo Conde
de Bagnuolo, o bispo D. Pedro da Silva e o comerciante Gaspar
Dias Ferreira, entre tantos outros, – retratando-os com ruins
tintas e funestos pincéis, negando-se a inscrever quaisquer pas-
sagens que lhes saíssem meritórias. Se, no entanto, passamos
à análise da História da Guerra de Pernambuco, do mestre de
gramática Diogo Lopes Santiago, supostamente composta cerca
de 20 anos depois4, verificamos semelhante facciosismo, porém

expressam “pontos de vista” sobre os eventos, sendo esta a única forma possível
de apreendê-los.
4
A datação da História da Guerra de Pernambuco, que teria sido escrito em al-
gum momento do intervalo 1661-1675, foi realizada pelo professor José Antônio
Gonsalves de Mello, a partir de elementos intratextuais.

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A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 43

atendendo a um contexto político diferente – o que implica,


por exemplo, atenuar ou mesmo expurgar trechos de crítica a
certos personagens, numa evidente operação de reconfigura-
ção da memória (MELLO, 1986; CLEMENTINO, 2013).
Compreendê-las assim, portanto, esclarece muito sobre o
tipo de história que registram, os episódios que narram e que
ocultam, os personagens que enaltecem e que denigrem – e
como esta representação, consolidando-se, passou a compor o
quadro do “Brasil Holandês” cristalizado na posteridade. Abre-
-se-nos, mais ainda, a possibilidade de vislumbrarmos as estra-
tégias retóricas5 empregadas por aqueles escritores, visando a
moldar a narrativa que lhes interessava a eles e a seus patronos.
Transformando arengas em fraternidades, convertendo crimes
em gentilezas, fabricando e imortalizando heróis.

Com algemas de amor

A insurreição de parte da elite pernambucana, sob o co-


mando de Fernandes Vieira, a quem todos elegeram “gover-
nador da empresa”, iniciou-se em 13 de junho de 1645. Nem
se pode dizer que tenha sido dos inícios mais honrosos, pois
começou pela fuga e esconderijo dos cabeças do movimento,

A tradição da narrativa pensada como exercício retórico remonta à Antiguidade,


5

encontrando sua mais consistente formulação no tratado De oratore, de Cícero.


Nele, o célebre romano pretendia que, em lugar de aplicar-se a uma narrativa
exaustiva, minuciosa, comprometida com a apresentação de episódios cotidianos
e de “pouca importância”, caberia ao historiador selecionar para sua narrativa
apenas eventos e personagens que, por sua grandeza, merecessem ecoar pela
posteridade. Em alguns casos, gestos de “vileza” poderiam também ser contados,
para ensinar o que não imitar. Respeita-se o princípio pedagógico dos exempla, e
os historiadores agora deveriam valer-se de topoi discursivos, formas de dizer ou
estratégias retóricas capazes de emocionar e engajar o público e, emocionando-
-o, educá-lo. Ainda na Antiguidade, autores como Salústio, Tito Lívio e Tácito
seguiriam a trilha aberta por Cícero, sendo a concepção da escrita histórica como
um exercício retórico continuada no Medievo por um autor como Froissart e,
no Renascimento, por diversos autores, entre os quais um historiador tão impor-
tante para Portugal quanto João de Barros (DOSSE, 2012; LOPES, SARAIVA, s/d;
BOURDÉ, MARTIN, s/d)

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


44 Kleber Clementino

descobertos pela espionagem neerlandesa. Pelos próximos 50


dias, esses insurgentes se embrenhariam pelas matas Várzea
adentro, ziguezagueando de engenho em engenho, angarian-
do (ou coagindo) apoios, recolhendo mantimentos e armas,
caçados pelas tropas neerlandesas, até a primeira batalha en-
tre as duas forças, no Monte das Tabocas, atual município
de Vitória de Santo Antão, em 3 de agosto. Os insurgentes
venceram-na, segundo as crônicas, com intervenção divina
direta, pois a Virgem Maria e Santo Antão, caminhando entre
as fileiras, distribuíram pólvora, protegeram os portugueses e
ofuscaram com seu brilho a visão dos artilheiros neerlandeses.
Dali se iniciou uma contramarcha em direção ao Cabo de San-
to Agostinho e depois aos Apipucos, quando, a 17 de agosto,
surpreenderam-se os batavos no engenho de Ana Pais, atual
bairro de Casa Forte, os quais, depois de renhida peleja, foram
derrotados e rendidos (SALVADOR, 1648:179 e ss).
Paremos um momento. Esta sucessão triunfante de aconteci-
mentos atropela episódios que, se não tão heróicos e românti-
cos, guardam também sua importância. Analisemo-los.
Em 1645, Portugal estava em trégua com as Províncias Uni-
das, resultado do arranjo diplomático alcançado depois da
Restauração Portuguesa de 1640. O status quo no Nordeste
Açucareiro, na África e no Oriente deveriam permanecer inal-
terado até a resolução do imbróglio diplomático ou o reinício
do conflito. Qualquer ação em contrário seria aleivosa, ato
de corso, indignidade e baixeza incompatíveis com a dinas-
tia reinante em Portugal. Assim, formalmente, João Fernan-
des Vieira e seus aliados não eram insurretos apenas perante
os governadores neerlandeses, mas também perante o reino
português, já que violavam compromissos internacionalmente
firmados pelo rei. Não lhe cabia esperar apoio régio a sua
empreitada, e sim castigo. Em vista disso, as autoridades ho-
landesas no Recife mandaram emissários ao governador geral
na Bahia, Antônio Teles da Silva e, protestando consoante os
termos da trégua, exigiram que prendesse Fernandes Vieira e
“aquietasse” Pernambuco. Oficialmente, é com esse propósito,
segundo a crônica, que Teles da Silva envia André Vidal de

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 45

Negreiros e Martim Soares Moreno à frente de tropas e com a


anuência do governo holandês no Recife. Os dois mestres de
campo, Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros, se encontram
em 16 de agosto de 1645, no Cabo de Santo Agostinho, e o
diálogo que travam é, no mínimo, inusitado:

Disse então o mestre de campo André Vidal de Ne-


greiros: eu venho aqui por mandado do senhor Antô-
nio Teles da Silva, governador e capitão general deste
Estado, para prender a vossa mercê e a todos os que
foram cabeças deste motim e alevantamento, e levá-
-los presos para a Bahia (...). Ao que João Fernandes
Vieira respondeu dizendo: pois também vossa mercê
há de saber que eu e esta multidão de gente que tra-
go comigo, todos vimos a prender a vossa mercê e ao
senhor mestre de campo Martim Soares Moreno (...) e
a todos os soldados que consigo trazem, e amarrá-los
com algemas de amor e com grilhões de obrigação,
para que nos ajudem a vingar os agravos, crueldades,
traições e aleivosias (...) com que os pérfidos holan-
deses nos têm tratado (...) (SALVADOR, 1648:217).

Calado, em algumas passagens, indica que Antônio Teles da


Silva apoiava a insurreição em Pernambuco e a fomentava, su-
postamente em desobediência às ordens do monarca, embora
não afirme textualmente que a expedição de Negreiros era uma
farsa – coisa que a historiografia tem como ponto pacífico6. Há
um quê de deboche em toda passagem, a teatralização um tan-
to burlesca de uma conciliação; imaginando a cena, é como se
todos assistissem a ela com mal contidos sorrisos. Apesar de ser
o propósito expresso de Negreiros trazer Vieira preso à Bahia,
o “canto da sereia” do madeirense e suas “algemas de amor”
teriam cativado o paraibano, desanuviando seus olhos para as


6
Sobre isso convém consultar MELLO (2000) e também MELLO (1998:39 e ss.). Em
ambas, argumenta-se que não só o projeto era apoiado por Antônio Teles da Sil-
va, mas ainda que tanto ele quanto André Vidal de Negreiros receberam ordens
de Lisboa para fomentar a insurreição desde 1642.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


46 Kleber Clementino

atrocidades perpetradas pelos neerlandeses, de vez que ele ter-


mina o diálogo prometendo examinar as denúncias de Vieira e,
ipso facto, aliando-se aos insurretos. Ficavam, assim, ao mesmo
tempo salvas as aparências (pois Negreiros, a rigor, desobede-
cia às ordens de Teles da Silva) e ridicularizados os inimigos.
Exemplo do tipo de retórica mobilizada por Calado em sua
crônica, em que recursos estilísticos e a própria fórmula tra-
dicional do diálogo – recorrentes na historiografia antiga e na
Península Ibérica (DOSSE, 2012; LÍVIO, 2010; LOPES, SARAIVA:
s/d) – colaboram para a edificação de um discurso de intrigante
polifonia, amainando conflitos subterrâneos, oferecendo uma
descrição simultaneamente idealizada e farsesca do episódio,
pela qual, na superfície, emerge apenas o amor por Portugal
e a harmonia entre os chefes da insurreição em Pernambuco,
na Bahia e, embora não dito, em Lisboa – e, abaixo da linha
d’água, espreita-se a estratégia do comando luso a ludibriar e
minar seus inimigos.

Um momento delicado

Calado não está sozinho neste esforço de representação das


relações luso-neerlandesas. Aqueles que financiavam e anima-
vam a composição destas obras perseguiam propósitos políticos
muito concretos, tais como a legitimação, o reconhecimento, a
lembrança, a mercê, a regalia7. Pretendiam construir, perante o
conjunto do império português, a imagem de conquistadores,
de generosos restauradores do domínio luso, justos, fiéis, porta-
dores, enfim, de todos os distintivos próprios da nobreza. Con-
trovérsias e desinteligências entre suas fileiras serviriam apenas
para manchar este retrato, expondo facetas pouco admiráveis
daqueles próceres; daí sua atenuação, daí seu apagamento, daí
esta romantização do relato, este aparamento de arestas que
vimos, conteúdo de uma retórica política em ação.

7
Aludo ao conjunto de conceitos em torno da noção de economia das mercês, tão
explorado pela historiografia recente, tal como em HESPANHA (1998).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 47

Outro episódio ilustrativo em que se flagra, talvez com ainda


mais nítida evidência, tal operação discursiva seja o da troca do
comando militar da insurreição, ocorrido no primeiro semestre
de 1648. Desde o início do movimento até ali, João Fernandes
Vieira e André Vidal de Negreiros eram os mestres de campo
generais ad hoc, governando, afirmam Calado e Santiago, por
espontânea aclamação da elite local (SALVADOR, 1648; SAN-
TIAGO, 2004), – e todos os homens de bem, insistem os cronis-
tas, aplaudiam sua liderança, disputando-as apenas os covardes
e os traidores amigos de Holanda. Não obstante, em 1647, El-
-Rei despachou Francisco Barreto de Menezes mais 300 ho-
mens para substituir a liderança e reforçar as tropas. Barreto, na
travessia do Atlântico, teve sua nave interceptada pelos batavos,
permanecendo algumas semanas preso em Recife. Escapou em
janeiro de 1648 e, segundo Diogo Lopes Santiago, foi, junta-
mente com seu tenente Felipe Bandeira de Melo, bem recebido
e alojado pelos mestres de campo, tornando-se os três “cama-
radas de casa e mesa” (SANTIAGO, 2004:459). Em abril, às vés-
peras da primeira Batalha dos Guararapes, chegaria da Bahia a
ordem do governador-geral, já então o conde de Aguiar, para
que se entregasse a governança da guerra a Menezes.
Somente esta breve apresentação do episódio basta a trans-
mitir a delicadeza da situação. Por que, convém desde logo
perguntar, El-Rei ordenaria substituir o comando? Gonsalves
de Mello dá-nos muitas indicações de quão numerosa era a
lista dos desafetos de Fernandes Vieira, os quais maquina-
vam, reclamava ele, para “desluzir minhas ações” e mesmo
para assassiná-lo8; tantas acusações, que expressam queixas
certamente anteriores a 1647, alcançando as régias orelhas,
ajudam-nos a compreender melhor tanto a nomeação de Bar-
reto de Menezes quanto o empenho de Vieira em desmentir
as denúncias e dar mais lustre ao seu nome, trazendo para
seu círculo frei Manuel Calado e encampando o projeto do

MELLO (2000, pp. 243 e ss). Também convém consultar a Revista do Instituto
8

Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) (1913), edição na qual são transcritos


os manuscritos compilados por Alberto Lamego, contendo cartas anônimas que
denunciam Fernandes Vieira, acusando-o de abuso de poder e outros crimes.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


48 Kleber Clementino

Lucideno, bem como, mais tarde, o da História da Guerra de


Pernambuco e do Castrioto Lusitano. Convinha, é óbvio, lidar
com esta transferência de comando com discrição e habilida-
de, de modo a representá-la com o mínimo de dano à imagem
dos mestres de campo. Encontramos, no texto de Santiago,
precisamente esta precaução, ao lado de discernível esforço
para reverter o episódio em benefício dos descomissionados.
Primeiramente, descreve a entrega do governo nos termos de
um erro suportado com mansuetude:

Os mestres de campo governadores, em considera-


ção d’alguns respeitos, e por não entender o conde
(de Vila Pouca) que lhe não obedeciam às suas or-
dens, entregaram o governo a Francisco Barreto de
Meneses, averiguando entre si primeiro, por serviço
de sua majestade, [se] deviam ficar eles na mesma
guerra, pelo conhecimento que dela tinham, e por
serem experimentados, e que assim convinha, pos-
to que Pernambuco não tomou isto a bem porque
requeria a terra pessoa mais experimentada nela e
prática no estilo da guerra daquela campanha, e de
anos bastantes, para suportar vontades tão diversas
de tantas castas de gente que há naquelas capitanias,
e de gente tão belicosa.

É pacífica, obediente, como cabe a um soldado – embora,


insinua-se, houvesse todos os motivos para desobedecer. Ele
personifica até mesmo uma “voz pernambucana”, cujo timbre,
com unanimidade, se teria zangado face à demissão de seus
comandantes eleitos. Em lugar de chefes impopulares, substituí-
dos, ao menos em parte, em decorrência dos muitos incômodos
que provocavam, o cronista retrata uma injustiça cometida con-
tra dignos oficiais e reconhecida por todos os soldados e mora-
dores, nesta intrigante proposopeia do “Pernambuco”, que “não
tomou isto a bem”. Na sequência, Santiago lista as conquistas de
Negreiros e Vieira enquanto mestres de campo e, desfechando
sua peroração, compara-os ao “valoroso Fernão Cortés”, que,

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 49

tendo conquistado bravamente a Nova Espanha, foi destituído


do comando por um desinformado Carlos V. Cortés, comenta
com fina malícia Santiago, recusou-se a render o cargo e pren-
deu quem o vinha prender, Pánfilo de Narváez, até que o rei
recebesse mais honestos memorandos. Carlos, melhor informa-
do, “dissimulou com a cousa e desobediência” e encarregou
Narváez de conquistar a Flórida (SANTIAGO, 2004:479-481).
Santiago, portanto, constrói um edifício retórico que, sem
negar a tensão envolvida no episódio, manipula-a em favor
de seus personagens. A tensão da substituição é canalizada na
forma de um “sentimento pernambucano” favorável a Vieira e
Negreiros e voltado contra seus difamadores e contra Francis-
co Barreto de Menezes; a própria entrega do posto, por meio
da comparação com o caso espanhol, reveste-se de magnani-
midade, de vez que haveria justiça na eventualidade de uma
resistência. Como para confirmar o terreno arenoso em que
se movia Menezes, coroando a narrativa que desenvolve, San-
tiago, linhas adiante, apressa-se em dizer que não só Vieira e
Negreiros permaneceram na guerra, mas que o novo mestre de
campo general lhes restituiria ad hoc, perante todo o oficialato,
o comando das tropas na ocasião da Batalha dos Guararapes,
“por não ser prático na campanha”. Devolução que só realça-
-lhes o prestígio, de vez que ambos aceitaram o encargo “ale-
gremente” (SANTIAGO, 2004:485).

Amizades inimigas

As tropas portuguesas, no retrato de Santiago, cultivavam,


pois, um ambiente de amistosidade, encabeçadas por um ofi-
cialato leal, obsequioso, coeso. As fontes que estão para além
das crônicas, contudo, oferecem diferente versão no tocante
aos elementos desta representação, ajudando-nos a apreciar
outras facetas da estratégia retórica mobilizada por Santiago e o
compromisso consoante o qual foram produzidos estes relatos,
ultrapassando a possibilidade de uma leitura unidimensional
deles. Problematizando-os, em suma.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


50 Kleber Clementino

Tão logo ascendeu a posições de riqueza e comando na capi-


tania, Fernandes Vieira passou a ser alvo de denúncias por seus
supostos abusos, e as queixas prolongaram-se durante a insurrei-
ção e para além de 1654. André Vidal de Negreiros e Henrique
Dias – outro herói ubíquo nas crônicas de Calado e de Santiago
– foram alvo de imputações análogas. Na denúncia do “cape-
lão”, dirigido ao governador geral, Antônio Teles da Silva, bem
como em outros papéis dos anos seguintes, Vieira é acusado de
roubar, intimidar, chantagear e mesmo coagir os moradores de
Pernambuco a redigir papéis com louvores a si, além de “acutilar
a muitas pessoas”9, valendo-se de seu poderio para estar sempre
impune; Henrique Dias, sob suas ordens, tomaria à força escra-
vos pertencentes a homens que já contribuíam com o esforço de
guerra, guardando parte da presa para si; de Vidal de Negreiros
diz-se que prendia e torturava desafetos e acoitava parentes cri-
minosos, como André Curado Vidal, responsabilizado por pelo
menos 12 homicídios (ACIOLI: 1997, p. 42). O próprio anonima-
to que predomina nas denúncias revela o temor perante a facção
de Vieira e Negreiros, ao mesmo tempo indicando que o parti-
do ou os partidos adversários permaneciam aguerridos e dispu-
nham também de certa medida de força e de voz. Pois é assim
que convém ler esta “guerra de papéis”: versões que se opõem,
que esgrimam, que anseiam por impor-se àquela “opinião pú-
blica” seiscentista de que fala Evaldo Cabral de Mello (MELLO,
1998:122). Repercussão não há dúvida de que tiveram. Algumas
das acusações alcançaram a alta administração, sendo discutidas
no Conselho Ultramarino, aliás com divergências nas conclusões
dos membros, prevalecendo, na decisão régia, a recomendação
do conselheiro Salvador Correia de Sá, de que havia nelas exa-
geração, fruto da aleivosia dos adversários de Fernandes Vieira
(que, cumpria recordar, governava em tempo de guerra, sendo
natural que provocasse descontentamentos), ficando na alçada
do mestre de campo enviado para substituí-lo a decisão de afas-
tá-lo ou conservá-lo na guerra (MELLO, 2000:244-246).

9
ACIÓLI (1997:42). Vejam-se também, para a coletânia de alguns escritos contra
Fernandes Vieira, os papéis do Dr. Alberto Lamego em RIHGB (1913:33 e ss.).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 51

O mestre de campo era justamente Francisco Barreto de Me-


nezes. O retrato dele oferecido na História da Guerra de Per-
nambuco é discretamente favorável e, embora insinue pouco ta-
lento para o comando militar, enfatizando sua inexperiência para
o posto, é compensado pela sensatez e visão de render a chefia
à gente experimentada da terra, o que teria angariado o respeito
de todos, sem com isso ofuscar sua glória. Entretanto, em docu-
mentos posteriores à Restauração, fortemente contrastantes, figu-
ra outro Barreto de Menezes. Um papel anônimo intitulado Per-
nambuco Afligido, estudado pela Dra. Virgínia Almoêdo de Assis,
disparam-se-lhe acusações de malversação do Erário e mesmo,
escandalosamente, de defloramento de moças de família (ASSIS,
ALMOEDO, 2009:87 e ss.). Menezes seria vaidoso, autoritário,
um notório atrabiliário, cioso ao extremo de suas prerrogativas. E
suas relações com os “régulos” de Pernambuco, Vieira, Negreiros
e seu partido, estariam longe dos beijos e abraços das páginas de
Santiago. Fernandes Vieira queixara-se à coroa do pouco respei-
to que Menezes, empossado governador-geral do Brasil em 1657,
lhe demonstraria; o mesmo fez Henrique Dias, magoado por
ser tratado “com pouco respeito e palavras indecentes” (ACIOLI,
1997:92). Mais grave que todos, o conflito entre ele o governador
de Pernambuco André Vidal de Negreiros, empossado em 1657,
acerca das regalias e jurisdições de cada cargo, esteve muito pró-
ximo de fazer estourar a guerra entre Pernambuco e Bahia, de
onde vieram tropas a mando do governador-geral, a fim de fazer
valer sua autoridade. O azedume das relações entre Menezes e
Negreiros transpira, outrossim, nas cartas do primeiro, como nes-
ta, endereçada à regente D. Luísa de Gusmão:

Os excessos com que a meu respeito está ali ofen-


dendo os vassalos de Vossa Majestade, desprezando
as ordens deste governo, me tiveram quase levado
pessoalmente a Pernambuco, e se o regimento que
aqui achei me não proibira sair desta praça (...) sem
dúvida fora ensinar André Vidal todas as obrigações
a que faltava [e] o trouxera preso (apud ACIOLI,
1997:91).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


52 Kleber Clementino

O que, novamente, realça a estratégia retórica de Santiago, na


pintura que faz da idílica amizade entre os chefes do movimento.
Não é o caso de dizermos que a boa convivência retratada em
suas páginas nunca existira, mas sim que a exposição daquela
versão e a exclusão de outras, a escolha daquelas tintas suaves
tem em vista a construção da imagem de uma cúpula coesa no
serviço de El Rei, contra o invasor herege. Introduzir na narrativa
eventuais dissensões entre os líderes era meter nódoa ao retrato,
dar munição aos “partidos” adversários, e não convinha.

À guisa de conclusão:
os documentos, a falsidade

As fontes não apenas falam, elas muita vez escolhem cui-


dadosamente o que proferem. Cuidadosamente, interessada-
mente, estrategicamente. A tarefa do historiador não se resume
a interpretar sua fala, mas também a devassar o segredo que
sussurram, as notícias que, pretendendo ocultar, revelam. A en-
trelinha é o habitat do historiador, o confronto de vozes é a sua
música. Até certo ponto, o documento, mesmo aquele que se
proclama honesto e aberto, é uma espécie de adversário que se
nos escorrega, que tanto quer dizer quanto encobrir, atirando
lençóis sobre as porções do passado que o constrangem. Deter-
mina-nos diligentemente a direção exata para onde olhar e não
raro teme que enxerguemos a completude do quadro – temor
inútil, aliás, porque isso não é possível. Mas, com sorte, às ve-
zes, é possível desarmá-lo, o documento, em suas estratégias,
em seus compromissos, em seus jogos de esconde-esconde.
A história do “Brasil Holandês” tem, como disse, desde
muito sido contada e recontada, com base em documentos
administrativos, no epistolário, na iconografia e nas crônicas
de então. O mergulho no período, contudo, revela que esta
própria produção documental tem uma história, veio à luz
não na tranquilidade dos gabinetes dos memorialistas, mas
em meio ao fogo cerrado das arengas que fragmentavam a
política do império português no Atlântico Sul. Obras como O

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


A MÃO QUE AFAGA
Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul 53

Valeroso Lucideno e a História da guerra de Pernambuco são


discursos políticos de facções que almejavam disseminar de-
terminada representação daqueles episódios, em vista de seus
projetos também políticos de predomínio sobre as regiões em
que se encastelavam. Toda a amizade a que Diogo Lopes San-
tiago alude entre Vieira, Negreiros e Barreto de Menezes, por
exemplo, “amigos de casa e mesa”, jantando e gargalhando
juntos, e que outros textos e as cartas dos próprios envolvidos
contestam, não pode ser meramente proscrito ao título de “fal-
sidade” do documento, como se dizê-lo bastasse e encerrasse
o assunto. As “verdades” que constam dos documentos têm
seus porquês e as “incorreções” e “falsidades” também têm. As
versões que procuram disseminar se valem, ora da fidedigni-
dade, ora da distorção, empregando-as em vista de finalidades
semelhantes. Talvez, depois de tanto tempo perseguindo a
verdade, examinar a mentira não nos caísse tão mal.

Referências
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tudo introdutório de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: CEPE.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL:
Família, elite local e bens materiais em
Cimbres, nos sertões de Ararobá de
Pernambuco (1762-1836)1

Alexandre Bittencourt Leite Marques2


Ana Lúcia do Nascimento Oliveira3

Resumo: Na passagem do século XVIII para o XIX, diversas famílias pas-


saram a ocupar sítios e povoados pertencentes à jurisdição da vila de
Cimbres, então Comarca do Sertão. Algumas dessas famílias pertenceram
à elite local e tiveram alguns de seus membros ocupando cargos públi-
cos, trabalhando como homens de negócios ou então exercendo as duas
funções ao mesmo tempo. Tomando como objeto de estudo duas famílias
distintas que residiam no termo de Cimbres, o presente trabalho tem por
objetivo analisar - através de variadas fontes como inventários post mor-
tem, relatos de cronistas e documentos administrativos – a vida em família
e os bens materiais acumulados que, dentre outras coisas, contribuíram
para torná-las membros de uma elite local.

Palavras-chave: Sertões de Ararobá, Elite Local, Famílias.

Homestead Inventory of a couple: family, local elite and material posses-


sions in Cimbres, in Ararobá hinterland in Pernambuco (1762-1836)

Abstract: During the transition from the eighteenth to the nineteenth cen-
tury, several families have moved to villages and sites belonging to the ju-
risdiction of the town of Cimbres, in the Hinterland District. Some of these


1
Artigo recebido em março de 2014 e aprovado para publicação em maio de 2014.
Mestre em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e Professor
2

da Rede Pública de Ensino do Governo do Estado de Pernambuco.


3
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Arqueóloga
e Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de
Pernambuco.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


56 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

families belonged to the local elite and had some of its members occupying
public office, working as businessmen or else, exerting both functions at the
same time. Taking two different families who lived at the end of Cimbres
as an object of study, this paper aims to examine - through various sources
such as post mortem inventories, accounts of chroniclers and administrati-
ve documents – the family life and the material goods accumulated, which
among other things, contributed to make them members of a local elite.

Keywords: Hinterland of Ararobá, Local elite, Families.

Introdução
Nas primeiras décadas do século XIX veio a falecer Dona Cla-
ra Coelho Leite dos Santos, moradora do “sítio Pesqueiro”, e tam-
bém Gonçalo Antunes Bezerra, residente no “sítio Alagoinhas”.
Habitando em diferentes localidades situadas no termo da vila
de Cimbres, nos sertões de Ararobá de Pernambuco, essas duas
pessoas tiveram em comum o fato de pertencerem a uma elite
local e de terem deixados seus bens inventariados e partilhados
para com seus herdeiros.4 Entretanto, mesmo sendo parte da
elite, essas pessoas e seus respectivos parentes possuíam deter-
minadas diferenças entre si, como, por exemplo, acúmulos de
bens materiais. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo
analisar o patrimônio e a vida em família desenvolvida durante a
passagem do século XVIII para o XIX, tomando como objeto de
pesquisa duas famílias distintas que habitavam duas localidades
diferentes inseridas na jurisdição de Cimbres.

4
Existe uma ampla e complexa discussão a respeito do conceito de “família”. No
presente trabalho, adotaremos o conceito antropológico-social utilizado por Ta-
-nya Maria Pires Brandão, que conceitua a “família” como um “vínculo de paren-
tesco, estabelecido a partir dos laços de sangue e de casamento”. Tomando como
amostra a Capitânia do Piauí, Brandão também analisa que o caráter elitista da
família colonial da América portuguesa se dá através das condições econômico-
-financeiras suficientes para deixar bens materiais a seus descendentes. (BRAN-
DÃO, 2012: 117, 122). Para uma discussão do conceito de família, ver os textos de
Leila Mezan Algranti (ALGRANTI, 1997), de Françoise Choay e de Allain Collomp
(CHOAY, 2001; COLLOMP, 2009).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 57

O recorte espacial compreende os antigos sítios de Pesquei-


ra e Alagoinhas, pertencentes ao termo ou município da vila de
Cimbres.5 Outrora um povoado chamado de Ararobá, e depois
Monte Alegre, a vila foi erguida em um antigo aldeamento in-
dígena organizado por missionários religiosos e possuía seus
limites jurídico-administrativos estendidos por um vasto territó-
rio do interior da Capitania de Pernambuco, então chamado de
sertões de Ararobá (MACIEL, 1980).
Já o recorte temporal da pesquisa tem como baliza cronoló-
gica o ano de 1762, data em que Cimbres é elevada a categoria
de vila através de um Edital, até 1836, ano em que ela perde a
categoria de sede do município para Pesqueira.
Utilizamos como fontes de pesquisa variados documentos
de âmbito judicial, político e pessoal como, por exemplo, in-
ventários post-mortem, testamentos, cartas, petições, alvarás,
provisões, editais e relatos de alguns cronistas (Henry Koster,
Martius e Gardner). Devidamente analisados, os bens arrola-
dos nos inventários (móveis da casa, ferramentas, escravos,
plantações, animais, bens de raiz), bem como a lista de her-
deiros (com os nomes e quantidades de filhos, estado civil,
idade) podem fornecer informações a respeito dos modos de
vida e do uso e acúmulo da cultura material das famílias.6 Já
os documentos do legislativo, que integram o Livro da Criação
da Vila de Cimbres (1762-1867)7, contribuem para a percepção

5
A área de abrangência de uma vila era chamada de município ou termo. De
acordo com Graça Salgado, o município ou termo era considerado a menor
divisão administrativa da Colônia, sendo dirigida por um órgão colegiado, a
Câmara Municipal, que exercia as funções político-administrativas, judiciais, fa-
zendárias e de polícia (SALGADO, 1985: 69). Para Cláudia Damasceno Fonseca,
na América portuguesa a vila era o núcleo urbano principal, onde se reunia a
câmara. Já o termo da vila era o território de jurisdição dos oficiais camarários,
que incluía geralmente várias outras localidades, como sítios, povoações, ar-
raias (FONSECA, 2011).
Os inventários post mortem pesquisados no presente trabalho fazem parte do
6

Acervo Orlando Cavalcanti, pertencente ao Instituto Arqueológico Histórico Geo-


gráfico de Pernambuco (IAHGP).
O livro é uma compilação de vários tipos de documentos manuscritos - petições,
7

ofícios, cartas, etc - que foram produzidos no período de 1762 – 1867. No ano
de 1985, cópias impressas do Livro da Criação da Vila de Cimbres passaram a

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


58 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

da trajetória da gente dos sertões. Por fim, os relatos dos cro-


nistas fornecem suas impressões a cerca da vida nas proprie-
dades e moradias dos colonos.8
Ao pesquisar a vida familiar e a posse de bens materiais
em Cimbres, é necessário lançar alguns questionamentos para
que se possibilitem leituras sobre o objeto de estudo. Pergun-
tas como: quem eram essas famílias? Quais as semelhanças e
diferenças entre elas? Como se dava a forma de habitar? Que
tipos de bens materiais foram adquiridos ao longo dos anos?
São essenciais para compreender o cotidiano dos colonizadores
nos sertões de Pernambuco.
Procurando analisar essas indagações, instituímos um pa-
ralelo entre as habitações, a cultura material e as famílias no
intuito de reconhecer os aspectos da sociedade sertaneja, le-
vando em conta as características variadas das estruturas fami-
liares e das formas que a habitação possui. Como bem afirma
Allain Collomp, “tais razões determinam que não se separe o
estudo das condições habitacionais (as tipologias das constru-
ções, os planos dos espaços internos, o mobiliário e seu uso)
do estudo das pessoas aparentadas que moram no interior
das casas” (COLLOMP, 2006: 489). Também para Leila Algran-
ti, mesmo com a dificuldade encontrada em reconhecer as
características originais de determinadas residências coloniais
em virtude do desaparecimento das construções ou das gra-
duais reformas às quais foram submetidas ao longo do tempo,
o reconhecimento dos diversos cômodos, suas funções e o
modo como tais espaços podem ser utilizados ajudam a “des-
vendar a intimidade dos colonos no interior do domicílio...”
(ALGRANTI, 1997: 90).

integrar a coleção Documentos Históricos Municipais, publicada pelo Centro de


Histórias Municipais (Livro da criação da vila de Cimbres).
8
Sobre o histórico de alguns cronistas e viajantes que visitaram o Brasil como
Henry Koster, George Gardner, Tollenare, Spix e Martius, ver o livro de Mário
Souto Maior e Leonardo Dantas Silva (MAIOR; SILVA, 1993).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 59

Duas famílias da elite colonial


no termo de Cimbres

A partir da criação da vila de Cimbres nos sertões de Ara-


robá, no ano de 1762, logo começaram a aparecer sítios e
povoações inseridos na área de abrangência política-jurídica-
-administrativa da dita vila. Possivelmente era necessário ex-
pandir cada vez mais a população, a cultura e a economia
dos colonizadores nas territorialidades pertencentes a Cim-
bres para poder eliminar as áreas designadas pelos coloni-
zadores como selvagens, bravias, ocupadas por índios sel-
vagens, caracterizadas como inadequadas para os padrões
de civilidade.9 Sendo assim, o estabelecimento de sítios e
povoações tinha por finalidade levar a civilização para os
locais distantes das vilas, isto é, aqueles considerados matos
desertos e vazios: os sertões (Foto 1).10

De acordo José Carlos Reis, o “processo colonizador” colocava os não europeus


9

como o ‘outro’, isto é, aqueles que deviam ser “civilizados”, europeizados. Este “ou-
tro” aparece como “sub-homens, sub-raças, bárbaros, primitivos, inferiores, homens-
-criança, homens-fera, homens-natureza, pagãos, selvagens, indígenas, homens-
-floresta, incultos, iletrados, supersticiosos...”. Logo, os que possuíam os valores
europeus eram tidos como racionais. Segundo Eni Orlandi, “falar sobre o ‘outro’
para instituir a imagem de ‘si’, cria sua tradição (sou-sempre-já), além de sua imagem
(como deve ser)”. (REIS, 2011: 30; ORLANDI, 2008: 52). Em relação à dicotomia en-
tre bárbaro e civilizado nos sertões de Pernambuco, ver Kalina Silva (SILVA, 2010).
10
Segundo Cláudia Fonseca, o Estado português procurava se impor nas áreas
que correspondiam os sertões da América portuguesa, isto é, ele intervinha nas
áreas do interior através do desenvolvimento de vilas e povoações, pois na visão
etnocêntrica dos colonizadores os sertões seriam os “espaços caóticos” (sem lei e
administração), portanto era necessário levar a “civitatis” (conjunto de habitantes
regidos por regras e leis) através do estabelecimento de núcleos urbanos. Ela
também afirma que se deve ter cuidado ao avaliar um surgimento de um po-
voado como “espontâneo”, pois mesmo os mais “insignificantes” deles, fundados
por humildes colonos, poderiam de alguma forma ter sidos influenciados pelo
processo de intervenção do Estado na região. (FONSECA, 2011).

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60 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

Foto 1: Fachada atual da edificação que abrigou o antigo Senado


da Câmara da Vila de Cimbres, construído no final do século XVIII

Fonte: foto de Alexandre Bittencourt, 2011

Para Mary Del Priore e Renato Venâncio, a família colonial


era à base de existência dos lugarejos do interior do Brasil, na
qual grupos domésticos podiam viver isolados de outras famílias
graças a uma produção praticamente autossuficiente. Geralmen-
te a ocupação desses locais se dava em regiões originalmente
ocupadas por povos indígenas (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2006).
Segundo José de Almeida Maciel, o estabelecimento da vila
de Cimbres e seu termo se deram em áreas ocupadas por gru-
pos indígenas como, por exemplo, os Xucurús e os Paraquiós
(MACIEL, 1984). Os primeiros habitavam principalmente a Serra
do Ororubá, já o segundo grupo indígena habitava, dentre ou-
tros lugares, a Serra do Gavião, nos contrafortes do Ororubá.
Nesse sentido, a criação dos sítios, povoados e vila nos sertões
de Ararobá seguiu um processo já corriqueiro e bem difundido
em outras localidades da América portuguesa, que geralmente
se iniciava com instalação de uma família colonial, em terras

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 61

outrora frequentadas por grupos indígenas, propiciando uma


série de atividades desenvolvidas pelos colonos.
Os aspectos dos sítios, povoados e vilas não eram estáti-
cos. Pelo contrário, algumas razões contribuíam para explicar a
constante mudança de construção nos espaços, entre elas, con-
siderações de ordens econômicas e demográficas (COLLOMP,
2009). Na medida em que a pecuária e o algodão foram se ex-
pandindo nos sertões de Pernambuco foi havendo uma trans-
formação dos espaços naturais em espaços construídos, pois
agora os locais atraíam cada vez mais pessoas interessadas na
economia agropastoril. Razão menos aparente, mas tão impor-
tante quanto, era o aumento populacional causado pela amplia-
ção dos núcleos familiares nos espaços sertanejos, que também
culminavam em seguidas mudanças no ambiente natural.
Os quadros abaixo se referem aos números de habitantes de
algumas freguesias no interior da Capitania de Pernambuco, na
penúltima década do século XVIII, e mostram o aumento po-
pulacional ocorrido em algumas vilas:

QUADRO 1 – Lista do número de habitantes de vilas do interior de Per-


nambuco
ANO 1782
FREGUESIA HOMENS MULHERES
Cimbres 512 628
Bezerros 1004 832
Cabrobó 2684 2276
FONTE: Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste governo: a saber, Pernam-
buco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, o seguinte. Freguesias de que se compõem as cinco Comarcas
Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro. 25 de setembro de 1782. A.H.U., PE, p.a., Caixa 73. LAPEH – UFPE.

QUADRO 2 – Lista do número de habitantes de vilas do interior de Per-


nambuco
ANO 1788
FREGUESIA HOMENS MULHERES
Cimbres 824 860
Bezerros 1568 1462
Cabrobó 2934 2655
FONTE: Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste governo: Pernambuco,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, divididas nas cinco Comarcas Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro.
25 de setembro de 1788. A.H.U., PE, p.a., Caixa 88. LAPEH – UFPE.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


62 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

Ao analisar os quadros percebemos que em seis anos hou-


ve um aumento no número de homens e mulheres moradores
de algumas freguesias nos sertões. A vila de Cimbres passou
a contar com 312 homens a mais, Bezerros saltou para 564 e
Cabrobó teve um aumento de 250 homens. Já com relação ao
sexo feminino, Cimbres foi para 232 mulheres a mais, Bezerros
sofreu um acréscimo de 630 e Cabrobó 379.
Na medida em que a população crescia, provavelmente era
necessário se apropriar de novas áreas naturais para transfor-
má-las em espaços construídos no intuito de abrigar novos mo-
radores, sejam eles nascidos nas próprias vilas e povoados ou
vindos de outras localidades. Sendo assim, os dados populacio-
nais podem sugerir que o aumento de números de habitantes
nas freguesias dos sertões poderia contribuir para uma altera-
ção cada vez maior dos espaços naturais do entorno desses
núcleos urbanos.
Após o estabelecimento dos colonizadores nas áreas con-
sideradas por eles como selvagens e perigosas, com o passar
dos anos foi havendo um aumento populacional nas localida-
des. Sendo assim, nas áreas do entorno da vila de Cimbres,
os espaços naturais passaram a sofrer cada vez mais transfor-
mações, pois a partir do aumento populacional começou a
surgir a necessidade de novas habitações nestes espaços. Para
Allain Collomp, nas vilas e povoados “as superfícies construí-
das pertencentes a uma unidade familiar não eram imutáveis.
A utilização de cada parte podia mudar ao longo de gerações
e na medida das necessidades” (COLLOMP, 2009: 488). Uma
das causas das mudanças no espaço era o aumento do núme-
ro de indivíduos dentro de uma mesma família estimulados
por casamentos.
No termo de Cimbres, dois exemplos de famílias coloniza-
doras estavam estabelecidos na área de abrangência jurídico-
-administrativa da vila e deram início ao povoamento de dois
sítios da região. De acordo com o inventário de Clara Coelho
Leite dos Santos, cujo inventariante foi seu esposo o sargento
mor Manoel José de Siqueira, a falecida habitava o chamado
sítio do Pesqueiro, que foi “adquirido por dote que fizera

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INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 63

o Capitão mor Antonio dos Santos Coelhos da Silva...” (O


Capitão Antonio era pai de Clara). Já o inventário do finado
Gonçalo Antunes Bezerra, que tinha por inventariante sua
esposa Antonia Maria de Jesus, consta que ele morava no
sítio Alagoinhas. Segundo pesquisas realizadas por José de
Almeida Maciel e Dorgival Gallindo, o sítio Alagoinhas foi
ocupado pelo homem de negócio Gonçalo e Antonia, no ano
de 1805, a partir da compra da propriedade que pertencia ao
irmão de Gonçalo, chamado de João Antunes (GALLINDO,
1931; MACIEL, 1980).
Sobre o dito acima, os inventários post-mortem nos ajudam a
ter informações a respeito da constituição de ambas as famílias
como, por exemplo, o número e nome de filhos e genros, suas
respectivas idades e estado civil. É o que nos mostra os trechos
abaixo transcritos dos inventários do finado Gonçalo Antunes
Bezerra, então morador e proprietário do sítio Alagoinha, e da
falecida Clara Leite Coelhos dos Santos, moradora e proprietá-
ria do sítio do Pesqueiro:

QUADRO 3 – Listagem de herdeiros de Gonçalo Antunes Bezerra


Filhos legítimos
1. Luiz Alves Bezerra [espaço], casado
2. Gonçalo Antunes Bezerra [espaço], casado/ morto
3. Antonio Fernandes Sampaio Leite [espaço], casado
4. José Paz Bezerra [espaço], casado
5. Rita Nunes Bezerra, casada com José Gomes Ribeiro
6. Maria de Santiago Bezerra, casada com Cypriano José da Silva
7. Izabel Nunes Bezerra, casada com Estevão de Oliveira Lima
8. Antonia dos [ilegível] Bezerra, casada com Manoel Alves Bezerra
9. Lisarda Nunes Bezerra, casada com Jacinto da Silva Torres
10. Donenciana Bezerra, casada com José Joaquim Chalegre
11. Ignacia Nunes Bezerra, casada com João Francisco Chalegre
12. Joaquim Antunes Bezerra [espaço], filho natural e casado
FONTE: Inventário de Gonçalo Antunes Bezerra - IAHGP -Acervo Orlando Cavalcanti – Cx. 61. Folha 1.

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64 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

QUADRO 4 – Listagem de herdeiros de Dona Clara Coelho Leite dos Santos


Filhos e herdeiros anos
Antonio dos Santos Coelho de Sirqueira, de idade de nove
Manoel, de idade de dois meses
Francisco, de dois meses
D. Anna Leite de Sirqueira, de idade de doze anos
D. Thereza de Jesus Leite, de idade de onze anos
D. Maria Benedita de Sirqueira, de idade de sete anos
D. Francisca Leite de Sirqueira, de idade de quatro anos
D. Clara Leite Coelho dos Santos, de idade um ano
D. Ritta, de idade de dois meses
FONTE: Inventário de Dona Clara Coelho Leite dos Santos - IAHGP -Acervo Orlando Cavalcanti – Cx. 107.

Analisando a primeira relação se percebe que todos os no-


mes dos filhos e filhas aparecem acompanhados respectiva-
mente do termo casado ou do nome do esposo. Através dessa
descrição se pode notar que a constituição da família de Gon-
çalo Antunes foi ampliada graças aos casamentos realizados
por seus filhos. Já em relação aos herdeiros do casal Manoel e
Clara, apesar de possuírem pouca idade no ano da morte da
mãe, provavelmente anos mais tarde, ao atingir idade suficien-
te, também se casaram e tiveram rebentos.
Ora, provavelmente o aumento do número de pessoas exigiu
também uma expansão de novas moradias na localidade. Para
Collomp, “novas construções surgiam no mesmo pátio para
abrigar os pais velhos que se afastavam do trabalho agrícola ou
um filho que se casara”. Além disso, saído do lar paterno por
conta do casamento, a nova residência do filho devia ser esta-
belecida perto dos pais, “no seio da comunidade” (COLLOMP,
2009: 488-489).
Em um pequeno povoado rural como o de Alagoinhas, por
mais distante que fosse da vila principal, Cimbres, os mora-
dores necessitavam encontrar formas variadas para realizar a
união matrimonial. Possivelmente, pelo número reduzido de
habitantes, alguns recorriam aos casamentos consanguíneos
com primos e primas. Já outros pretendentes dependiam da
vinda de pessoas de fora do povoado. De acordo com pesqui-
sas feitas por Dorgival Gallindo e José de Almeida Maciel, o
casamento da filha de Gonçalo Antunes, Izabel Nunes Bezerra,

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INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 65

deu-se com um primo da mesma. Já as outras filhas se casaram


com homens de negócios vindos de outras regiões de Pernam-
buco (GALLINDO, 1931; MACIEL, 1980).
Ainda em relação ao casamento, este tinha sua importância
na sociedade colonial. De acordo com Leila Mezan Algranti, “o
casamento sacramentado conferia status e segurança aos co-
lonos, tornando-o desejável tanto pelos homens como pelas
mulheres” (ALGRANTI, 1997:87). Nesse sentido, além de sim-
plesmente aumentar o número de habitantes em determinadas
localidades, certos casamentos poderiam trazer benefícios eco-
nômicos e acrescimento social e material para os noivos.
É o que podemos notar no casamento entre Manoel José
de Siqueira e Clara Coelho Leite dos Santos. O casal era des-
cendente de duas famílias poderosas de Cimbres, que além de
ocuparem cargos públicos, também eram pessoas de negócios
e possuíam significativos bens materiais. Segundo José de A.
Maciel, Manoel era filho do Mestre de Campo Pantaleão de
Siqueira. Já sua esposa era filha do Capitão mor Antonio San-
tos Coelho da Silva, considerado um dos homens de negócios
mais ricos da Capitania de Pernambuco (MACIEL, 1980). Para
se ter uma ideia da riqueza acumulada pelo casal, ao ler o in-
ventário de dona Clara, produzido no dia 30 de junho de 1814,
percebemos uma grande quantidade de bens materiais, entre
eles, dinheiro, ouro, pedras finas, prata, cobre, ferro, escravos,
móveis de casa, lavras de terras, gado vacum, gado cavalar e
propriedades de terras.
Apesar dos zelos interligados entre Igreja e Estado Moderno
para a valorização do casal legalmente instituído e no comba-
te das atividades extraconjugais, naquilo que Mary Del Priore
chamou de “normatização do corpo social” (DEL PRIORE, 1995:
38), havia nos sertões casos de relacionamentos fora do casa-
mento. É o exemplo do próprio Gonçalo Antunes que deixou
em sua lista de filhos legítimos Joaquim Antunes Bezerra, des-
crito no inventário como filho natural. Segundo Leila Algranti
são verificados em alguns domicílios coloniais filhos naturais
“que muitas vezes são criados com os legítimos” (ALGRANTI,
1997:87). No caso de Alagoinhas, Gonçalo Antunes possuía um

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


66 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

rebento fruto de uma relação extraconjugal e o colocou em sua


lista de filhos legítimos no inventário, concedendo-lhe direito
na partilha dos bens inventariados.
Nesse sentido, na medida em que os casamentos iam sendo
realizados e filhos eram gerados, aumentava-se gradativamente
o número de pessoas morando na localidade. Por tanto, para os
habitantes do termo de Cimbres era necessário cada vez mais
aumentar o número de casas e ampliar o consumo de matérias-
-primas para suprir as necessidades básicas de sobrevivência,
como habitação, segurança, alimento.

A morada, os móveis da casa e outros artefatos

No inventário do falecido Gonçalo Antunes Bezerra é pos-


sível perceber a descrição de sua esposa em relação a consti-
tuição física da residência do casal: “Declarou a inventariante
haver na mesma propriedade Alagoinhas uma morada de casas
de taipa cobertas de telha, onde mora a inventariante que ava-
liaram em sessenta mil reis que dá”.11
Nota-se que a inventariante fez questão de declarar que
a residência possuía uma cobertura de telhas (Foto 2). Esse
tipo de descrição estava relacionado com o valor material
que o bem ocupava na sociedade, pois havia certa diferença
entre as pessoas que moravam em casas de taipa com o teto
feito de palha em relação as que habitavam a taipa coberta
de telhas de barro.
Para alguns estudiosos, as casas de taipa das residências ru-
rais que possuíssem seu telhado formado por palha eram con-
sideradas moradias de pessoas humildes. Já as casas de taipa
cobertas de telhas eram caracterizadas como uma habitação
de família mais abastadas (Cf. SYMANSKI, 1998; LEMOS, 2006;
COLLOMP, 2009).

11
IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
do Cavalcanti. Caixa 61.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 67

FOTO 2: Fachada atual da outrora morada de Gonçalo Antunes feita de


taipa e coberta de telha no ano de 1805

Fonte: foto de Alexandre Bittencourt, 2010

Em seus relatos sobre a vida dos sertanejos nas capitanias


do norte do Estado do Brasil, Koster descrevia as casas como
“pequenas e construídas com barro e bastante abrigadas para
o clima, e cobertas com telhas quando podem adquirir, ou ge-
ralmente com folhas de carnaúbas” (KOSTER, 2003: 208). Sen-
do assim, percebe-se nessa passagem do cronista que não era
qualquer família que poderia ter condições de possuir uma mo-
rada coberta de telhas. Para ele, os sertanejos que viviam bem
geralmente possuíam residências cobertas de telhas, já as famí-
lias situadas em lugares desolados frequentemente habitavam
choupanas feitas com cobertura de vegetação.12
De acordo com Leila Algranti, na América portuguesa, tanto
no campo quanto na cidade, as casas térreas dos homens po-

Nos sertões do Ceará-Mirim Koster presenciou a situação desoladora de famílias


12

que moravam em choupanas (KOSTER, 2003:131).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


68 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

bres livres do período colonial eram pequenas choupanas com


até dois cômodos. Já as pessoas com algumas posses dispu-
nham de casas com mais aposentos, normalmente enfileirados:
“o da frente com janela para a rua, servindo de sala, e os de-
mais acessíveis por um corredor lateral, que serviam de quarto
de dormir, consistindo por vezes nas chamadas ‘alcovas’ sem
janelas” (ALGRANTI, 1997:99).
Mesmo sendo constituído de taipa, o aspecto desse tipo de
moradia muitas vezes não representava a opulência dos mora-
dores. Pelo contrário, existiam famílias que embora residissem
em casas de taipa possuíam significativa quantidade de escra-
vos, objetos de ouro e prata, terras. É o caso da inventariante
Antônia Maria de Jesus, esposa do falecido Gonçalo Antunes,
que declarava ter o casal entre outros bens:

[...] cordão de ouro com o peso de duas oitavas [ile-


gível], que avaliaram a mil e quatrocentos a oitava,
que comporta em três mil e [ilegível] réis [ilegível]”,
[...] uma coroa de prata da Senhora da Conceição
com o peso de sete oitavas [ilegível], que avaliaram
cada oitava a cento e vinte réis, que comporta em
novecentos réis [ilegível], [...] a crioula Caetana, ca-
sada com o pardo João, e que apresenta a idade de
trinta e dois anos, que avaliaram em duzentos e oi-
tenta mil réis. Já a morada de taipa era avaliada em
sessenta mil réis que dá.13

Através desse arrolamento de bens, nota-se que o valor do


imóvel chega a ser inferior ao preço de um escravo, o que de-
monstra o baixo valor financeiro da residência.
Fábio Kühn, ao realizar estudos sobre as casas rurais do Rio
Grande do Sul no período colonial, afirma que os inventários
revelam que na maioria das vezes o valor da residência era bem
abaixo em relação a outros tipos de bens, como escravos, ob-

IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
13

do Cavalcanti. Caixa 61.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 69

jetos. Ainda segundo Fábio Kühn, geralmente as habitações co-


loniais possuíam um baixo valor financeiro, na qual muitas não
chegavam a atingir o valor de duzentos mil réis (KÜHN, 2011).
Sendo assim, as descrições dos bens de Gonçalo Antunes
somadas às informações trazidas por Fábio Kühn em relação
as características das casas coloniais no meio rural, corroboram
a dedução da possível opulência da família Antunes Bezerra
na região, mesmo que a morada dessa família possuísse baixo
valor financeiro.
Os moradores do termo de Cimbres também fizeram uso de
matéria-prima encontrada nos espaços naturais dos sertões de
Pernambuco. Além da construção de residências, eles fabrica-
ram variados tipos de artefatos. No inventário de Dona Clara
Coelho Leite dos Santos, proprietária do sítio do Pesqueiro, são
descritos alguns móveis da casa como sendo feitos de matéria-
-prima encontrada na região como, por exemplo, uma “mesa de
madeira imburana”, além de variados objetos feitos de cedro e
amarelo.14 Já no sítio Alagoinhas, de Gonçalo Antunes, foi en-
contrado a presença de dois bancos de cedro em sua morada.
Segundo o relato feito pelo cronista Henry Koster, ao per-
correr os sertões da América portuguesa, o cedro é um tipo
de madeira nobre encontrada na caatinga, sendo comum ser
aproveitado na constituição de certas habitações dos sertões
(KOSTER, 2003). Em relação a origem do nome desse vegetal,
tudo indica que ele foi batizado pelos colonizadores portu-
gueses para fazer uma alusão a uma outra árvore conhecida
na Europa. Ainda hoje em algumas regiões do continente eu-
ropeu existe uma árvore cuja madeira é considerada nobre e
que é chamada de cedro. Segundo outro cronista, Von Martius,
os colonos portugueses que chegaram ao Brasil necessitavam
procurar novas plantas em lugar daquelas que faziam uso em
Portugal e designavam esses novos vegetais por nomes antigos
de acordo com sua analogia externa, forma, cor, cheiro, sabor.

IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo
14

Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


70 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

Um hábito mais prolongado, e por assim dizer, fami-


liaridade destes colonos com a natureza, não podia
deixar de lhes aguçar os sentidos, para da grande
abundância que lhes oferecia, irem cada vez mais
escolhendo maior número de cousas análogas e
aparentadas com aquelas que possuíam na Europa
(MARTIUS, 1854: 21-22).

Nesse sentido, possivelmente o espécime vegetal encontra-


do no semiárido brasileiro recebeu o nome também de cedro
por conta da boa qualidade de sua madeira para fazer artefa-
tos. Além do cedro, outros tipos de madeira encontradas nos
sertões eram usados como matéria prima para a fabricação de
moradas, móveis e outros tipos de artefatos.
Em suas andanças por terras pernambucanas, Koster descre-
veu as características de uma variedade de árvores encontradas
do litoral ao sertão, cuja madeira era utilizada na elaboração
dos diversos tipos de cultura material, entre elas: o pau-ferro,
cujo “miolo rompe os machados”; o cedro, que possuí madeira
“dura e muito usada para construção”; o mulungu, cujo “os ra-
mos criam raízes nas terras secas” e juntamente com a aroeira
“é possível fazer uma boa sebe” (KOSTER, 2003:377-381).
A presença dessas vegetações na flora dos sertões de Araro-
bá indica que os colonizadores as utilizavam para construção
de edificações, fabricação de artefatos e elaboração de alimen-
tos e medicamentos no povoado.
Em relação ao uso da habitação, sua função primária é ser-
vir de abrigo para as pessoas em suas diversas atividades. Tais
atividades, relacionadas sobretudo à alimentação, trabalho, eco-
nomia, práticas religiosas, descanso e lazer, são, em grande par-
te, realizadas com o auxílio de diversos tipos artefatos. Nesse
sentido, graças aos inventários de Gonçalo Antunes e de Clara
Coelho, foi possível perceber os tipos de bens existentes em suas
respectivas propriedades, como por exemplo: móveis, utensílios
de uso domésticos, imagens sacras, ferramentas, armas, roças.
A presença dos objetos sacros proporcionou o conhecimen-
to dos aspectos religiosos do termo de Cimbres: segundo o

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 71

inventário de Gonçalo Antunes Bezerra existiam na casa al-


guns artefatos usados para adornar imagens de santos como
por exemplo:

Uma coroa de prata com o peso de duas oitavas”,


(...) um resplendor de prata [ilegível], com o peso de
quatro oitavas, uma coroa de prata da Senhora da
Conceição com o peso de sete oitavas.15

Da mesma forma são verificadas a presença de imagens na


morada de Dona Clara e seu esposo:

Declarou o inventariante haver ficado por falecimen-


to da dita sua mulher em ouro lavrado uma imagem
do senhor crucificado (...) uma redoma com imagem
da senhora da conceição de pedra com seu cordão
de ouro fino (...) outra redoma de vidro com imagem
da conceição... 16

Já o inventário da esposa de Gonçalo, Antônia Maria de Je-


sus, também cita a presença de um “oratório que avaliaram em
oito mil réis”.17 O mesmo se dá com o de Ana Clara que consta
com um “oratório de médio tamanho pintado de dourado com
duas imagens e uma do Senhor crucificado e outra de São Fran-
cisco das Chagas”.18
De acordo com Dorgival Gallindo, graças à imagem da Nos-
sa Senhora da Conceição e a construção de um quarto com
oratório, a casa de Gonçalo Antunes costumava, em certas épo-
cas do ano, servir de templo para os moradores do povoado,

IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
15

do Cavalcanti. Caixa 61.


IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo
16

Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.


IAHGP. Inventário post mortem de Antônia Maria de Jesus. Acervo Orlando Ca-
17

valcanti. Caixa. 64.


IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo
18

Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


72 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

“onde rezavam a família e os vizinhos as suas novenas e aonde


de tempos em tempos um padre celebrava o Santo Sacrifício
da missa e fazia batizados e casamentos” (GALLINDO, 1931:5).
Segundo Luiz Mott, famílias coloniais da América portuguesa
consideradas um pouco mais abastadas eram proprietárias de
um quarto especial para orações e lá instalavam um oratório.
Para essa gente o oratório funcionava como uma espécie de
relicário, onde eram abrigados objetos sacros abençoados por
um vigário ou missionário que porventura fosse realizar uma
visita à residência (MOTT, 1997:155).
Em relação a necessidade da vinda de um padre para rea-
lizar missas em povoados distantes, Henry Koster já relatava
esse hábito existente nas regiões onde as moradas eram muito
afastadas umas das outras. Segundo ele, esses padres obteriam
licenças do Bispo de Pernambuco para viajar aos locais isola-
dos dos sertões, promovendo, com isso, cultos em localidades
onde o acesso a serviços religiosos era bastante difícil por conta
da grande distância entre os lugarejos e as igrejas mais próxi-
mas. Geralmente esses padres eram agraciados pelos morado-
res por seus serviços prestados, chegando a ganhar, quando
havia homem rico que tinha orgulho de receber um sacerdote,
cerca de oito a dez mil réis. Para Koster, os padres tinham sua
missão no mundo: guardar e preservar o ritual religioso, através
dos batizados e casamentos realizados nas distantes paragens
(KOSTER 2003:139). Tudo isso ajuda a fortalecer a ideia de que
provavelmente Gonçalo Antunes era um homem abastado na
região, a ponto de receber um homem religioso em sua própria
residência para celebrar missas.
Já sobre a presença de oratórios dentro das casas coloniais,
além de promover as práticas religiosas, o quarto para orações
das casas brasileiras do inicio do século XIX também tinha a
função de fiscalizar a habitação segundo as normas da igre-
ja. “Eram ainda locais legítimos para uma sexualidade legali-
zada, consentida pelo casamento e vigiada pelas normas da
Igreja como atesta a presença de oratórios nesses recintos...”
(SYMANSKI, 1998:92). O casal deveria ser levado a seguir uma
moral sóbria e vigilante em relação à vida conjugal. De acordo

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 73

com Del Priore, foi a Igreja quem primeiro iniciou e impôs na


sociedade colonial o projeto de normatização do corpo. No
entanto, ela não tinha a necessidade de controlar diretamente
a população para estabelecer seus princípios, “bastava que es-
tivesse presente, e pela sua proximidade, pela ameaça, ou pelo
vigor de seu prestígio inoculava seus propósitos a vida comuni-
tária” (DEL PRIORE, 1995:38-39). Nesse sentido, o quarto com
o oratório nas residências de Alagoinhas e Pesqueira, além de
servir como um local para reza da família e dos vizinhos, con-
tribuía indiretamente para a função regulatória da vida conjugal
e cotidiana como um todo.
A descrição dos móveis da casa no inventário ajuda ainda a
compreender a composição do ambiente interno da moradia e
as características da sociedade rural. Geralmente os ambientes
internos e os objetos das casas coloniais no meio rural eram
modestos. Mobiliários como: caixões de despejo com fechadu-
ras, malas cobertas de couro com fechaduras, cadeiras cober-
tas de sola, canastras, baú, catre, lampião, candeeiro estavam
presentes nas residências das famílias Antunes Bezerra-Jesus e
Coelho dos Santos-Siqueira. Além dos móveis, também se regis-
travam ferramentas e outros utensílios de uso doméstico, como
“uma serra braçal usada, um serrote velho, um Enxó velho, um
[ilegível] velho, um [ilegível] velho, um escopro”.19
A simplicidade dos mobiliários das moradas rurais também
aparece nas descrições de outros inventários da comarca de Cim-
bres nos sertões pernambucano, evidenciando a raridade de es-
paços aconchegantes na residência:20 “[...]a precariedade do mo-
biliário e dos ambientes domésticos era comum a toda Colônia,
salvo algumas poucas exceções como as casas de certos capi-
tães-mores e de alguns ricos fazendeiros” (ALGRANTI, 1997:105).
Dentre os objetos da casa relacionados no inventário de Gon-
çalo Antunes se percebe a ausência de alguns móveis como,

IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
19

do Cavalcanti. Caixa 61.


Como por exemplo, o Inventário de José dos Reis Lima. IAHGP. Inventário post
20

mortem de José dos Reis Lima. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa. 40.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


74 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

por exemplo - mesa e cama - e a presença apenas de “duas


cadeiras cobertas de sola”, “dois bancos de cedro” e “um catre
em bom uso”. Outros objetos, como os talheres, também eram
escassos, pois foi verificada a existência de “duas colheres de
prata” e a falta de garfos.21
Entretanto, nem todas as casas de Cimbres e seus móveis
tinham um padrão considerado modesto. O mesmo não pode
ser dito em relação a estrutura da habitação de Dona Clara Leite
dos Santos. Ela e seu esposo possuíam uma “morada de casas
de sobrado em que mora que foi vista e avaliada pelos avalia-
dores na quantia de um conto e quatrocentos mil réis”.22 Além
disso, eles possuíam variados tipos de objetos como, por exem-
plo, 34 cadeiras, duas mesinhas, quatro mesas feitas de imbu-
rana ou amarelo, três camas, três catres, um faqueiro de prata
[e uma] dúzia de colheres, garfos e facas”, tudo isso espalhados
em outras duas propriedades como “uma casa na vila de Cim-
bres de madeira lavrada (...) uma de taipa no sítio Calumbi”.23
Ora, ao comparar o valor das residências das duas famílias,
bem como a quantidade de objetos das duas casas relatadas
acima, percebe-se claramente que a morada da falecida Clara e
de seu esposo era bem mais opulenta que o do casal proprie-
tário do sítio Alagoinhas, Gonçalo e sua esposa.
Para Koster, poucas residências no sertão possuíam mesas,
o que levava muitas famílias a se acocorar ao redor de uma
esteira onde realizavam suas refeições sem muita utilização de
talheres: “facas e garfos não são muito conhecidos, e nas clas-
ses pobres, nenhum uso possuem”. Já a cama também era um
objeto raro de se encontrar nas casas sertanejas. Entretanto, as
famílias procuravam variadas formas para resolver o proble-
ma do descanso. Objetos como o catre e a rede serviam para
substituir a falta de camas e cadeiras. “As redes usualmente

21
IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
do Cavalcanti. Caixa 61.
22
IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo
Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.
23
Idem.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 75

ocupavam o lugar dos leitos, sendo mais confortáveis e mais


frequentemente utilizadas como cadeiras” (KOSTER, 2003:208).
O registro de um lampião na propriedade Alagoinhas e de
dois candeeiros no sítio Pesqueiro sugerem como se dava a
iluminação no termo de Cimbres. Após o pôr do sol esses ob-
jetos deveriam ter uma grande importância na vida doméstica
e pública, pois caberia a eles a função de iluminar caminhos e
residências durante a noite, facilitando a realização de alguns
trabalhos por terminar, a convivência maior entre membros da
família e andanças de algum transeunte.
A iluminação de certas localidades poderia ser utilizada tam-
bém com a finalidade de proporcionar festas e comemorações.
Em Cimbres, em virtude de uma comemoração durante o ano
de 1812, foi registrado um requerimento e comprovação da
iluminação dos espaços da vila feita pelo sargento mor Manuel
José de Siqueira:

[...] sendo ordenado pelo Excelentíssimo General de


Pernambuco se iluminasse esta vila por espaço de
três dias pelo feliz nascimento do príncipe filho do
sereníssimo Senhor Infante da Espanha Dom Pedro
Carlos, com a demonstração de alegria que são do
costume em ocasiões semelhantes e achando-se este
senado sem forças para cumprir tão justo dever, o
suplicante se encarregou de fazer a dita iluminação à
custa de sua fazenda e a fez nos ditos três dias com
cera branca nas casas da câmara e por todas as ruas
da vila com luzes de azeite, havendo juntamente to-
das as três noites fogo no ar.24

De acordo com o documento acima, percebe-se a impor-


tância do uso de certos apetrechos, como as ceras brancas e o
azeite, para a iluminação da noite nos edifícios públicos e nas
ruas da vila.

Registro de um requerimento e atestação feito pelo sargento mor Manuel José de


24

Serqueira. Livro da Criação da Vila de Cimbres (1762-1867). p. 229.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


76 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

Segundo Leila Algranti, a queima do azeite, tanto de origem


animal quanto vegetal, era utilizada em lampiões, castiçais, can-
deias e candeeiro, nas áreas rurais e urbanas. As velas de cera
também eram usadas pela sociedade colonial, passando a se
tornar mais presentes na iluminação da sociedade principal-
mente a partir do século XIX (ALGRANTI, 1997).
Até o inicio do século XIX, tanto nas áreas rurais quanto ur-
banas do Brasil, era comum guardar vestimentas e papéis em
baús, caixas ou canastras (ALGRANTI, 1997). No inventário de
Gonçalo, o arrolamento dos seguintes bens “um caixão grande
de despejo, com fechadura, e dobradiças”; “outro caixão de
despejo, mais pequeno, com fechadura, e dobradiças”; “outro
caixão”; “um baú pequeno, ainda novo”, “duas canastras, em
bom uso”,25 sugere que esses objetos eram utilizados pela fa-
mília do povoado de Alagoinhas para guardar diversos tipos de
utensílios. O mesmo pode ser visto no inventário de Dona Cla-
ra: “um baú velho”, “uma caixa de madeira amarelo”, “um par
ou jogo de malas cobertas de sola”, dentre outros.
Por conta da necessidade de executar tarefas específicas -
como semear, talhar, cortar - uma variedade de ferramentas
usadas para os mais diversos tipos de trabalho dos colonos
completava os utensílios domésticos: “serra braçal usada, um
serrote velho, um Enxó velho, um escopro em bom uso, um
formão velho...”.26 Nota-se que o arrolamento desses bens (al-
guns descritos como “velho” e “usada”) sugere que a carência
de certos equipamentos era comum a tal ponto de se chegar a
inventariar objetos velhos e gastos.
Em relação à descrição de malas cobertas de couro e de
cadeiras e outros objetos cobertos de sola, nota-se que através
desses artefatos a cultura do couro estava presente na vida rural
dos sertões pernambucano. Os cronistas que visitaram os ser-
tões nos primeiros anos do século XIX, Koster, Spix e Martius,
descreviam em seus relatos variedades de objetos feitos de cou-

25
IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
do Cavalcanti. Caixa 61.
26
Idem.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 77

ro. Além de servir para elaboração de móveis, o couro do gado


também era utilizado para a fabricação de diversos utensílios
de uso pessoal: o gibão, botas, alpargatas, chapéu (Cf. KOSTER,
2003; SPIX, MARTIUS, 1938).

O entorno da casa: trabalhos,


roçados, criações de animais

A propriedade rural e seu entorno não se caracterizavam


somente como um local onde residia um grupo familiar. Boa
parte abrigava também diversos tipos de roças, pastos, além
de anexos como armazéns. A presença de armazéns nos bens
inventariados de ambas as famílias provavelmente tinha a fun-
ção de guardar os mais diversos tipos de utensílios como “uma
prensa de [ilegível] algodão já velha”, “um aviamento de fa-
zer farinha já deteriorada”,27 “uma prensa de prensar lã”,28 além
de armazenar os excedentes da produção agrícola, como por
exemplo, porções de milho, feijão, mandioca.29
Nos bens inventariados pertencentes aos dois casais também
são descritos roçados de milho, feijão, mandioca, lavras de algo-
dão, criação de ovelhas, cavalos e gados. Além de proporcionar
informações econômicas, a listagem desses bens dá a ideia dos
tipos de alimentos consumidos pelos habitantes do termo de
Cimbres, pois esses espaços utilizados para agricultura e a cria-
ção de animais serviam para abastecer de alimentos os colonos.
Considerados heranças indígenas, o cultivo do milho, feijão
e mandioca consistia na base da alimentação dos habitantes
dos sertões. Esse tipo de cultura foi assimilado pelos coloni-
zadores e seus escravos que, uma vez se fixando nesses espa-

IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
27

do Cavalcanti. Caixa 61.


IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo
28

Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.


Os armazéns eram anexos das moradas, naquilo que Leila Algranti se refere
29

como sendo encontrado de norte a sul do território brasileiro no período colonial


(ALGRANTI, 1997).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


78 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

ços, passaram a cultivá-los para sua subsistência, como também


para realizar trocas comerciais.30
Tidos como uma importante fonte de alimento para vida
nos sertões, os roçados também estavam presentes em Cim-
bres. Foram declarados no inventário de Gonçalo algumas
áreas de cultivo no sítio Alagoinhas: “...roçado de milho, fei-
jão, mandioca, que poderá ter três mil covas de mandioca...”;
“hum roçado de mandioca do ano passado, com duas mil co-
vas...”. Já Clara Coelho Leite possuía lavras em três proprieda-
des diferentes: a do sítio Pesqueiro, a do sítio Gravatá e a do
sítio Calumbi. Entretanto, diferente do inventário de Gonçalo,
o da esposa de Manoel de Siqueira não aparece descrito os
tipos de lavra.
No processamento da mandioca para o fabrico da farinha era
bastante comum encontrar nas propriedades estabelecimentos
esse tipo de cultura como, por exemplo, o que existia no sítio
Alagoinhas, onde o proprietário possuía “um aviamento de fa-
zer farinha”, no qual o aviamento era o mesmo que um peque-
no engenho para a produção da farinha de mandioca.31
Em relação aos primórdios das plantações de mandioca no
Brasil, antigas pesquisas arqueológicas restringiam o cultivo da
mandioca aos grupos indígenas pré-coloniais do litoral e das
zonas de mata úmida, desconsiderando que os grupos indíge-
nas que ocupavam as regiões semiáridas também eram deten-
tores dessa técnica. De acordo com as pesquisas, essa prática
agrícola predominava nas regiões litorâneas e de matas úmidas,
sendo incompatíveis nas zonas semiáridas. Entretanto, faltou
um melhor conhecimento dos pesquisadores a respeito do se-
miárido: ele “apresenta condições muito mais propícia para o
desenvolvimento deste tubérculo do que a zona úmida, sendo
o índice produtivo muito maior na região semiárida” (NASCI-
MENTO, 1991:145). Nesse sentido, possivelmente os colonos
30
Em relação a herança alimentar indígena e o cultivo do milho, feijão e mandioca
pelos colonizadores, ver Paula Pinto e Silva (SILVA, 2005).
31
Segundo Koster, o engenho de fazer farinha era formado por uma “roda, atraves-
sada por um eixo, com uma manivela em cada lado, podendo ser removida por
dois homens, um deles trabalhando em cada flanco” (KOSTER: 457).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 79

herdaram as técnicas do cultivo da mandioca tanto com os gru-


pos indígenas do litoral e das matas úmidas quanto com os que
habitavam os sertões.
Ao percorrer os sertões no início do século XIX, Koster
descreveu como simples o plantio da mandioca, sendo que
o cultivo não diferia muito da antiga prática utilizada pelos
povos indígenas. Ele também observou a importância da fa-
rinha para a alimentação do povo sertanejo, percebendo que
em período de seca e baixa produção de mandioca alguns
moradores chegavam a se deslocar do interior para o litoral a
procura desse tipo de alimento para saciar a fome da família.
Foi o caso de um major de Milícias, descrito como homem
robusto aparentando ter 40 anos idade, que “noutros tempos
gozava de todo conforto que essa região oferece aos da sua
classe e riqueza, fora obrigado a fazer essa jornada, exclusiva-
mente para salvar a vida de sua família” (KOSTER, 2003:130).
Outro cronista, George Gardner, que percorreu vários trechos
de caatinga no início do século XIX, comentou a presença da
mandioca nos sertões, e que se constituía, juntamente com a
carne seca, no forte da alimentação dos habitantes. Na descri-
ção do cronista, a farinha era consumida de duas maneiras:
seca ou cozida (GARDNER, 1959).
Já o milho, desde os primeiros séculos de colonização, foi
adotado como alimento secundário pelos colonizadores e era
tratado como inferior e pouco nutritivo, sendo mais utilizado
na alimentação dos escravos e dos animais. Depois de seco,
era pilado em farinha grossa e usava-se seu produto resultan-
te - conhecido como fubá e xerém - no preparo de angus ou
mingaus.32 No século XIX, Pereira da Costa descrevia o fubá
como “polvilho de milho, do arroz, muito usado na culinária”.
Já o xerém era a “parte grossa do milho que ficava na peneira”
(COSTA, 1976:369, 795). Durante esse período o milho ainda
continuava sendo muito usado como ração de animais. Em suas
andanças pela caatinga, Koster descreveu que, por não haver

Em relação ao uso do milho na alimentação da sociedade colonial ver Mary Del


32

Priore, Renato Venâncio e Paula Silva (DEL PRIORE, VENÂNCIO, 2006; SILVA, 2005).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


80 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

capim, o milho era destinado como ração aos cavalos que os


comiam ensopado na água para facilitar a mastigação. Já na
alimentação humana o milho era pouco consumido: “surpreen-
deu-me verificar o limitado emprego do milho como manti-
mento, embora algumas vezes usado” (KOSTER, 2003:219).
Sobre o cultivo de algodão ele também era manifestado em
Alagoinhas: “Declarou a inventariante haver uma pequena lavra
de algodão (...)”. Provavelmente, depois de colhido ele era ma-
nufaturado em certos tipos de artefatos como “um engenho de
descaroçar algodão por completo, em bom uso, que avaliarão
em seis mil reis” e “uma prensa de [ilegível] algodão”.33
De acordo com Koster, as plantações de algodão passaram
a ocupar cada vez mais os espaços do interior pernambucano,
pois estes eram mais propícios para o cultivo devido ao solo
árido da região e a distância do litoral. Nesses locais a vegeta-
ção nativa era cortada, queimada e depois eram feitas covas na
terra, “de forma quadrangular, numa distância de seis pés uns
dos outros”, onde eram colocados, “comumente, seis sementes
em cada escavação”. Após nove ou dez meses de plantado, o
algodão era colhido e posto na máquina de descaroçar com-
posta por dois cilindros que “são dispostos a movimentarem-se
em sentido contrário, de forma que o algodão é posto em um
deles e levado para o outro, mas as sementes ficam porque a
abertura entre os cilindros não é bastante larga para facilitar-lhe
a passagem” (KOSTER, 2003:451-452).
Nesse caso, a máquina de descaroçar algodão descrita por
Koster possivelmente era o equivalente ao engenho de des-
caroçar algodão presente no inventário de Gonçalo Antunes.
Ainda segundo o cronista, depois desse tipo de operação res-
tavam algumas partículas de semente quebradas presas nas
fibras do algodão e que deviam ser retiradas. O problema era
que para essas partículas serem removidas batia-se no algo-
dão com “paus grossos, processo que muito danifica a fibra,
rebentando-a e como o valor da procura para o fabricante

33
IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
do Cavalcanti. Caixa 61.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 81

depende sobretudo do comprimento da fibra, tudo devia ser


feito para esse processo ser substituído”.34 Ora, pelo relato de
Koster, o preço do produto dependia do bom comprimento
da fibra do algodão, sendo assim, nada melhor do que utili-
zar uma prensa para comprimir o algodão valorizando-o mais
ainda, algo que, como mostra o inventário, era utilizado pelos
habitantes do povoado de Alagoinhas.
Além disso, no povoado de Alagoinhas o algodão era plan-
tado juntamente com o milho: “Declarou a inventariante haver
uma pequena lavra de algodão, constando ainda um roçado de
milho do ano passado (...)”.35 Koster afirmava em seus relatos
que nos sertões “o milho é comumente encontrado plantado
entre os algodoeiros” (KOSTER, 2003:451). Nesse sentido, ana-
lisando os trechos dos inventários e comparando-os com os
relatos do cronista, percebeu-se que as formas de cultivo e pro-
dução do algodão em Cimbres pouco diferem das outras áreas
dos sertões do norte do Brasil.
Em boa parte dos sertões das Capitanias do Norte do Es-
tado do Brasil, por conta da pobreza de determinados solos,
nem todas as terras se prestavam para a agricultura, sendo
algumas delas aproveitadas para a criação do gado. No sé-
culo XIX, Koster já relatava que os sertanejos que cuidavam
do gado eram chamados de vaqueiros e seu trabalho era tido
como pesado, exigindo coragem e grande força física nas ati-
vidades. Segundo o cronista as vacas eram tangidas de toda
parte, reunidas e colocadas para dentro de currais. Os be-
zerros não apresentavam dificuldades na sua captura, sendo
marcados na coxa com ferro incandescente como marca pri-
vativa de seu dono. Já a marcação do boi era considerada um
trabalho mais perigoso, chegando o vaqueiro a ser obrigado a
machucar o animal com uma longa vara (KOSTER, 2003:451).
Além de fornecer o couro para confecção de objetos, o gado
também proporcionava alimentos para os habitantes dos ser-
tões. Com isso, os moradores da região contavam para seu

Idem.
34

Idem.
35

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


82 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

sustento alimentos como carne seca, leite, queijo, coalhada.


Gardner relatou que nos sertões, o consumo do leite e seus
derivados eram mais abundantes nas estações chuvosas, onde
os habitantes faziam uso do leite para fazer queijo e coalhada
adoçada com rapadura (GARDNER, 1959).
Assim como outras localidades dos sertões de Pernambuco,
os habitantes de Alagoinhas e Pesqueira faziam uso da cria-
ção de gado em suas terras, como nos mostra os títulos de
gado vacum de Clara Coelho e Gonçalo Antunes: “Declarou
a inventariante haver quatro vacas (...), dois garrotes (...), um
novilho (...), um garrote (...), três bezerros”.36 Ao realizarmos
a contagem, constatamos que o gado de Gonçalo perfazia um
total de 11 cabeças.
Apesar da grande extensão de sua propriedade, devido à
quantidade de cabeças de gado pertencentes ao casal Gonça-
lo Antunes e Antonia Maria de Jesus, era provável que sessa
família fizesse uso das terras para uma criação somente de
subsistência e de pequenas trocas comerciais. Eles dificilmen-
te utilizavam o gado para comercializar em larga escala leite
ou outros tipos de produtos derivados. Isso porque, segun-
do Koster, as grandes fazendas de gado abarcavam cerca de
milhares de bezerros anuais e eram “evidentemente lugares
aceitáveis e lucrativos” (KOSTER, 2003:213-218). Já Clara Coe-
lho e Manoel Siqueira possuíam descritos no inventário “duas
mil cabeças de gado vacum”.37 Se nos apegarmos ao acima
citado relato de Koster, podemos aferir que esse casal, dife-
rente do de Alagoinhas, possuía criações propícias a realizar
vultosos negócios.
Em relação aos trabalhos realizados nos sítios e povoados
do termo de Cimbres, percebeu-se que a mão-de-obra escrava
foi bastante utilizada no desenvolvimento de variadas formas
de atividades. Na propriedade do casal Clara Coelho e Manoel

36
IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlan-
do Cavalcanti. Caixa 61.
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INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 83

de Siqueira, por exemplo, encontrava-se “as benfeitorias de


armazéns [e as] senzalas da morada de escravos no mesmo
sítio do Pesqueiro, tudo de taipa e madeira bruta”. Segundo
os cronistas Koster e Martius, nos sertões era comum a utiliza-
ção do trabalho escravo para cuidar da criação de gado e das
plantações de algodão.38
De acordo com Leila Algranti, os escravos das moradas bra-
sileiras realizavam uma série de atividades no dia a dia que
visavam o trabalho de limpeza da casa e seu entorno, alimenta-
ção, construção e fabricação de artefatos e utensílios. A alimen-
tação exigia cuidados com os animais, roças de subsistência e
preparação de comidas que seriam utilizadas nas refeições dos
colonos. A fabricação de artefatos e utensílios culminava na
elaboração de cestarias, cerâmicas, cujas técnicas os colonos
aproveitaram dos grupos indígenas.
A presença de escravos, como também de criações de ga-
dos e lavras de algodão nos inventários sugere que também
eram usados escravos nas plantações, no trato dos animais e
nos diversos afazeres domésticos das famílias da região. Aliás,
na sociedade dos sertões, segundo Martius, cabia aos escravos
também a função de cozer o barro e transformá-lo em ladrilhos,
telhas côncavas (MARTIUS, 1854). Sendo assim, provavelmente
as casas, roças, pastos e diversos tipos de utensílios dos ha-
bitantes de Alagoinhas e Pesqueira foram produzidos com o
auxílio da mão-de-obra escrava.
A declaração de títulos de escravos nos inventários propiciou
notar a quantidade de cativos que ambos os casais possuíam
e as diversas características relacionadas a eles: gênero, proce-
dência, faixa etária, estado civil.
Em relação à quantidade de escravos, o casal Clara Coelho
e Manoel de Siqueira possuíam uma significativa soma de 132
indivíduos. Já Gonçalo e Antonia eram proprietários de sete
cativos.

Nas viagens promovidas aos sertões, Koster e Martius visitaram diversas fazendas
38

de gado e algodão, onde presenciaram o uso do trabalho escravo nesses locais


(KOSTER, 2003; SPIX, MARTIUS, 1938).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


84 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

Sobre a procedência dos escravos pertencentes aos dois ca-


sais percebe-se que muitos vieram dos portos de Angola, na
África. É o caso de “José de Angola, casado, que apresenta
a idade de cinquenta anos, que avaliaram em trezentos mil
reis” e “Joaquina, Angola, solteira, que apresenta a idade de
cinquenta e dois anos, que avaliarão em duzentos e cinquenta
mil reis”, pertencentes a Gonçalo Antunes e Antonia Maria. Já
Clara e Manoel de Siqueira possuíam, dentre vários, “a negra
de gentio de Angola de nome Luzia de idade que apresenta ter
dezoito anos, vista e avaliada pelos avaliadores na quantia de
cento e vinte e cinco mil reis”.39 Aos olhos de Koster, para a so-
ciedade dos oitocentos, os negros procedentes de Angola para
o Brasil eram considerados os melhores escravos, pois eram
“comumente dóceis, e se podem perfeitamente encarregar dos
serviços da casa e do estábulo sem que deem muito cuidados,
e alguns demonstram grande dedicação, fidelidade e honestida-
de” (KOSTER, 2003:510).
Apesar dos relatos de maus tratos promovidos por certos
proprietários contra seus escravos na sociedade da América
portuguesa, existiram senhores que reconheceram a importân-
cia do seu cativo no momento de preparar o testamento, dando-
-lhes alforria. É o caso do falecido Gonçalo Antunes, que após
sua morte havia determinado a alforria do pardo Francisco e
do preto Joaquim de Angola pelos seus mais de quarenta anos
de serviços prestados “como fiéis escravos, sem que em todo
este tempo deixassem de reconhecerem as obrigações que lhes
competia como escravos...” e por “não demonstrando por tão
longo tempo a menor desafeição a seus senhores”.40

39
Existe uma ressalva em relação a uma comparação entre os valores e idades
dos citados escravos dos dois casais proprietários. Apesar de ter praticamente
metade da idade dos dois escravos pertencentes ao casal Gonçalo e Antonia, a
escrava Luzia, de propriedade do casal Clara e Manoel, possuía valor mais baixo
que os dois primeiros. Geralmente, naquela época, escravos adultos mais velhos
tinham seu valor reduzido frente aos adultos mais novos, o que não aconteceu
ao se comparar os exemplos acima. Estudos futuros podem contribuir para uma
melhor compreensão dessa exceção.
40
IAHGP. Testamento de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Caval-
canti. Caixa. 61.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: família, elite local e bens materiais em Cimbres,
nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836) 85

Em relação ao preto Joaquim, os trechos do documento aci-


ma se associam a visão de Koster sobre as características de
fidelidade, honestidade e dedicação dos negros de Angola. Se-
gundo o cronista, por conta dessas qualidades, eles “são os que
mais se esforçam para obter sua liberdade” (KOSTER, 2003:510).
Se o proprietário de escravos de Alagoinhas acreditava no dis-
curso vigente da época de fidelidade e honestidade em relação
aos negros procedentes de Angola, é difícil dizer, o fato é que
ele alega dar a liberdade ao escravo por conta da dedicação e
dos serviços prestados por seu escravo e manda alforriá-lo. Ao
que parece, além da fidelidade e dos bons serviços desenvolvi-
dos, outro fator também contribuiu para a alforria do escravo:
o tempo de trabalho junto à família, pois Joaquim possuía “a
idade de sessenta anos”.
Sendo assim, ao aferirmos sobre os bens descritos nos
inventários post-mortem e analisar a cultura material deixa-
da pelas duas famílias coloniais moradoras de Alagoinhas e
Pesqueira foi possível ter uma melhor percepção dos usos e
transformações dos espaços, das formas de moradia e da vida
em família desenvolvida em Cimbres, nos sertões de Ararobá.
Também ao compararmos a posse de bens materiais entre as
duas famílias, notamos que a família constituída pelo casal
Clara Coelho Leite dos Santos e pelo Sargento mor Manoel
José de Siqueira, era mais abastada do que a família de Gon-
çalo Antunes Bezerra e Antonia Maria de Jesus. Entretanto,
mesmo tendo um padrão financeiro menor que o da família
de Clara e Manoel, a família de Gonçalo e Antonia também
fazia parte da elite colonial de Cimbres, fato que é comprova-
do pela condição econômico-financeira suficiente para legar
bens materiais (lavras, objetos de ouro, escravos, morada co-
berta de telhas) a seus herdeiros.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014


86 Alexandre Bittencourt Leite Marques • Ana Lúcia do Nascimento Oliveira

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IAHGP. Testamento de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Ca-


valcanti. Caixa. 61.

IAHGP. Inventário post-mortem de Antonia Maria de Jesus. Acervo Orlando


Cavalcanti. Caixa. 64.

LAPEH – UFPE

Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste go-
verno: a saber, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, o se-
guinte. Freguesias de que se compõem as cinco Comarcas Eclesiásticas. Mar-
tinho de Melo e Castro. A.H.U., PE, p.a., Caixa 73, 25 de setembro de 1782.

Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste go-
verno: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, divididas nas
cinco Comarcas Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro. A.H.U., PE, p.a.,
Caixa 88, 25 de setembro de 1788.

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o
tombamento estadual1

Geraldo José Marques Pereira2

Resumo: O artigo faz uma retrospectiva do hospital como instituição de cura.


Uma revisão, também, do que foi um morredouro. Aponta o incêndio do
Hôtel Dieu como o divisor de águas, permitindo uma mudança no enfoque.
Foi Jacques Tenon o responsável pela transformação da tipologia nosocomial.
O Hospital Pedro II insere-se nessa perspectiva, sendo construído no Recife
a partir de um projeto de José Mamede Alves Ferreira. Peculiaridade interes-
sante foi o baile que se ofereceu ao Imperador Pedro II, com o objetivo de
se angariar fundos, de cujo evento há informações em seu diário. Inaugurado
em 10 de março de 1861, passou a funcionar de logo. É o primeiro prédio
construído na cidade com essa finalidade, seguindo o estilo pavilhonar. Dessa
forma, foi tombado pelo Conselho Estadual de Cultura, em 2008.

Palavras–chave: Arquitetura Hospitalar, Hospital Pedro II (Recife), História


da Medicina, Tombamento Estadual.

Pedro II Hospital in Recife: a historical survey and the listing of a mo-


nument

Abstract: This article looks back to the hospital history as a healing place,
also reviewing its image of a death or unhealthy place. It points out the fire
at Hôtel Dieu as a hallmark for a new perspective. It was Jacques Tenon

Artigo recebido em maio de 2014 e aprovado para publicação em junho de


1

2014. Texto produzido a partir do parecer de tombamento do bem histórico,


aprovado em sessão do pleno do Conselho Estadual de Cultura, em reunião de
25 de março de 2008 e homologado por ato do Senhor Governador do Estado de
Pernambuco, Eduardo Campos, através do decreto 31.573.
Geraldo José Marques Pereira é médico, Conselheiro do Conselho Estadual de
2

Cultura, membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano


e da Academia Pernambucana de Letras.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014


92 Geraldo José Marques Pereira

the responsible for the nosocomial typology change. Pedro II Hospital was
built with this vision, designed by José Mamede Alves Ferreira. An interes-
ting fact was the ball that was offered for the Emperor Pedro II, aiming to
gather enough money, which was later informed in his diary. Opened on
Mach 10th 1861, the hospital started immediately its activities and was the
first building in Recife with this purpose, following the pavilion style. In
2008, the Hospital was listed as a Cultural Heritage Monument by the State
Council of Culture.

Keywords: Hospital architecture, Pedro II Hospital (Recife), History of Me-


dicine, Cultural State Heritage.

O hospital como organização de destinação social existe


desde a Grécia de Asclépio e a Roma Antiga – a Roma de Es-
culápio –, quando várias instituições dedicadas ao deus dos sa-
beres da cura acolhiam os pobres, os velhos e os enfermos. Na
China e no Ceilão, bem como no Egito de antes de Cristo, há
referências, de igual forma, à existência de hospitais (BRAGA,
2000). Os templos de Saturno, como eram chamados no Egito,
serviram de berço ao ensino médico (CAMPOS, 1943). Nesses
lugares há alusão a hospedarias, hospitais e hospícios – todos
com a mesma raiz latina –, nos quais certas pessoas conside-
radas pias patrocinavam os cuidados ou se encarregavam elas
próprias dos peregrinos, dos insanos, das crianças, dos pedintes
e dos doentes (BRAGA, 2000). Os hospitais serviam de abrigos
para os enfermos, os estropiados e os miseráveis e de albergue
para os peregrinos, acolhendo, sempre em primeiro lugar, os
carentes (MAGALHÃES, 2005).
Na Idade Média, entretanto, no mundo islâmico, particular-
mente, existiam 34 hospitais com orientação peculiar, bem distin-
ta da que vinha se exercitando, isto é com o objetivo também de
uma prática terapêutica, além das destinações sagradas ligadas
à salvação da alma. A literatura mostra que o Sagrado Alcorão
serviu de fonte à prática da hipocrática arte, a partir das tradições
proféticas que estabeleciam os princípios capazes de valorizarem
o conhecimento e a busca da cura para as moléstias. Assim, al-
gumas recomendações para a atenção à saúde integravam esse
elenco de normas; recomendações que se traduziam em dietas a

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014


O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 93

serem seguidas, remédios naturais a serem tomados e tratamen-


tos simples para a dor de cabeça, a febre, a dor de garganta, a
conjuntivite e outras moléstias mais (RAGIP, 2000).
Advertências também para se evitar o contato com pacientes
já infectados por doenças consideradas transmissíveis, como a
lepra, por exemplo, abstendo-se, então, a pessoa de frequen-
tar áreas sujeitas a epidemias ou pragas. Mas, todo o arsenal
terapêutico voltado para o corpo não dispensava as preces e
a recitação de versos do Alcorão, constituindo-se, assim, na
medicina espiritual dos mulçumanos. É interessante entender
que os islâmicos prezam, particularmente, o hábito da leitura,
tanto é que primeira palavra do Alcorão, revelada ao profeta
Muhammad foi: “Lê” (SURATA 96:1). E mais, estão bem expli-
citadas nesses ensinamentos da religião a importância e a va-
lia do conhecimento, pelo menos a tirar pela citação a seguir:
“Poderão, acaso, equiparar-se os sábios com os insipientes?”
(SURATA 39:9; RAGIP, 2000).
Os hospitais, em geral, eram estruturas diferentes das atuais,
com características mais estáticas e menos dinâmicas, asilos
ou casas de recolhimento, como se vem comentando, voltadas
mais à salvação das almas, do que propriamente consagradas à
cura das injúrias orgânicas (BRAGA, 2000; OUYAMA, 2006). Isso
se estendeu até o século XVIII na Europa, mas no Brasil essa
forma de reclusão para os loucos, os indigentes e os expostos
chegou aos dias dos anos 1800 e esteve presente até começos
do século XX, senão até meados do mesmo período, em alguns
lugares do País. (SANTOS FILHO, 1991; MIRANDA, 2004; PE-
REIRA, 2007). Somente aos poucos a instituição hospitalar foi
assumindo um papel diferente no contexto nacional, contando
com a presença regular de médicos e de outros profissionais e
servindo, prioritariamente, à assistência médica; lugar voltado à
prática da clínica e da cirurgia, no qual o objetivo sempre é o
da cura. O hospital era um lugar até então voltado aos pobres
e um ambiente onde se esperava a morte. Um morredouro!
(FOUCAULT, 1979; MENEZES, 2003).
As travessias de Portugal ao Brasil eram longas, demoradas.
Basta dizer que Mem de Sá passou 8 meses para chegar à Ba-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014


94 Geraldo José Marques Pereira

hia. Os viajantes – passageiros e tripulantes – desembarcavam,


com muita frequência, enfermos, especialmente com doenças
carenciais, sobretudo o escorbuto. Por isso, foi recomendado
que se dispusesse nos portos de enfermarias ou mesmo de
hospitais, embora alguns navios contassem com nosocômios à
bordo, como sucedia com as armadas portuguesa e espanhola
deslocadas para enfrentar o invasor batavo. (SANTOS FILHO,
1991). Os jesuítas contribuíram, sobremodo, para o enfrenta-
mento das doenças no Brasil, com a instalação de enfermarias
nas aldeias e o envolvimento sempre de um irmão leigo – o
irmão enfermeiro –, o qual, particularmente, cuidava dos en-
fermos. Ainda hoje, nas comunidades jesuítas do Brasil, existe
a figura do irmão enfermeiro, conforme diz o Pe. Ferdinando
Azevedo, em comunicação pessoal. A iniciativa de fundar as co-
nhecidas Santas Casas de Misericórdia, muitas vezes, partiu des-
ses discípulos de Santo Inácio, como foi o caso da instituição
do Rio de Janeiro, fruto da ação de José de Anchieta ou da ação
empreendedora do Padre Antônio Vieira, que no Maranhão –
em São Luiz – instalou a Misericórdia (SANTOS FILHO, 1991).
Dessa maneira, esses organismos, no mais das vezes, vieram
em socorro – pode-se dizer –, às ações dos jesuítas, os quais,
isoladamente, não davam conta da quantidade de doentes que
precisavam acudir, notadamente durante as epidemias. Assim,
os sacerdotes da Companhia de Jesus deram continuidade à
obra da Rainha Leonor de Lencastre (SANTOS FILHO, 1991).
Há dúvidas sobre a criação da primeira Santa Casa de Miseri-
córdia no Brasil, se a de Olinda, cujo referencial é o de 1539
(PEREIRA DA COSTA, 1951) ou se a de Santos, cuja referência
é o ano de 1547. Sucede que é de Serafim Leite a informação
de que até o ano 1549 nada havia na cidade portuária de São
Paulo. O historiador jesuíta chega a citar Leonardo Nunes, que
faz alusão ao fato de que tendo chegado em 1550 à então “To-
dos os Santos”, soube que não havia ali um hospital (SERAFIM
LEITE, 1938-50). Há referências, também, a dois hospitais no
Recife no século XVII, durante a ocupação holandesa, numa
iniciativa do conde Maurício de Nassau. Uma alusão a pelo
menos um hospital na área urbana do Recife, em trabalho de

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014


O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 95

Heloisa Meireles Gesteira: “[...] Marcgrave realizou mais viagens


pelo interior do continente do que Piso, que era médico e con-
centrou suas atividades no Recife, trabalhando num hospital
dentro do núcleo urbano” (GESTEIRA, 2004). A citação literal
de parte de um documento holandês dá conta do esforço em se
instalar estabelecimento assim: “[...] fez necessária a fundação
de um segundo hospital” (WÄTJEN, 1921).
O chamado “Compromisso da Irmandade”, notadamente
aquele das ainda hoje intituladas Santas Casas de Misericórdia,
recomendava como obrigação da corporação os cuidados com
todo pobre que fosse disso necessitado e na eventualidade do
falecimento, que se realizasse um sepultamento digno e cristão.
O hospital de caridade, então, era visto como o lugar para o
qual eram levados os doentes carentes, para que a morte os
levasse em paz, sem que se cogitasse, propriamente, da cura ou
de algum procedimento terapêutico capaz de minorar a dor e o
padecer. Era, assim, uma antessala da morte! “Dizia-se, portan-
to, que o hospital era um morredouro, mas num sentido positi-
vo, de lugar onde o pobre encontraria a ‘Boa Morte’, ou seja, a
morte assistida pela piedade e pela benemerência” (OUYAMA,
2006). Outros autores trataram da temática, isto é, da institui-
ção hospitalar encarada como morredouro e assim discutem
a questão e o enfoque que se deu até o século XVII (BRAGA,
2000; MENEZES, 2003).
A partir do século XVIII o hospital assume, também, um
lugar onde se pode observar mais atentamente o paciente, pos-
sibilitando tirar conclusões a partir dos sinais e dos sintomas;
lugar, sobretudo, no qual o saber vai sendo acumulado e assim
transferido. A pesquisa torna-se possível graças à investigação
dos casos em particular, sobretudo pela correlação entre os
diversos achados e os vários enfermos. A partir desse século,
como já se comentou, o hospital passa a ter uma destinação
especificamente voltada para a cura das doenças e dos doen-
tes. A instituição alcança a individualidade necessária e reque-
rida, sendo objeto de comparações de natureza arquitetônica,
como se discute adiante e mais, passa-se a trabalhar os índices
de mortalidade e aqueles de resolutividade. Os médicos e as

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014


96 Geraldo José Marques Pereira

enfermeiras começam a se preocupar com a trajetória seguida


pelos lençóis e pelas roupas em geral e a chamada infecção
hospitalar alcança um nível de inquietação tal, que é objeto de
estudos e de apuração cientifica sistematizada (BRAGA, 2000;
OUYAMA, 2006; TOLEDO, 2002; Idem, 2006).
A ocorrência de guerras seguidas e sofridas estimulou a prá-
tica da cirurgia e serviu para demonstrar a importância de pro-
fissionais treinados nos cuidados com os feridos, prontos para
intervenções invasivas diante da necessidade bem estabelecida
e da indicação bem definida. É quando se inicia um pensar
terapêutico, cujo objetivo passa a ser o corpo doente, mais do
que a alma ameaçada. Comente-se, todavia, a título apenas de
se ilustrar a discussão, que no Brasil o desenvolvimento da
assistência e os avanços da medicina não acompanharam o
progresso no mundo, senão a partir do século XIX. Quiçá a pos-
teriori! Os hospitais do País tiveram, inicialmente, dois objetivos
específicos, aquele de natureza militar, voltado à recuperação
dos soldados feridos ou doentes e a dos leprosários, nos quais
eram isolados os morféticos que tanto amedrontavam os cida-
dãos dos oitocentos. Acrescente-se a essas formas de atender
aos necessitados, a benemerência das irmandades e a filantro-
pia de alguns grupos, como a dos hospitais construídos por
portugueses (CAMPOS, 1943; MIRANDA, 2004).
Contudo, o conceito de hospital moderno ou de hospital
terapêutico nasceu a partir de um episódio trágico, o grande
incêndio do Hôtel-Dieu, registrado em 1772, ocorrência depois
da qual se travou uma abrangente discussão a propósito das
iniciativas a serem adotadas, objetivando resgatar a instituição,
considerando a importância que tinha para a cidade de Paris,
haja vista servir a centenas de pacientes. Eram consideradas as
seguintes opções a serem adotadas: a restauração e a reforma
do antigo prédio, a divisão do edifício em pequenos hospitais
ou ainda, a transferência para outro local, fora do ambiente
urbano. Escolheu-se a reconstrução da edificação original em
1781, embora tenha havido uma proposta do arquiteto Bernard
Poyet, no sentido de se edificar um prédio circular na Ilha dos
Cisnes, a partir de um documento em que se opunha à restau-

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 97

ração em causa: Sur la Nécessité de Transférer et de Reconstruire


l’Hôtel-Dieu (SILVA, 2001; TOLEDO, 2006).
Em 1785, diante da proposta de Poyet, que não aceitava so-
lução diferente para a velha casa francesa, o Barão de Breteuil,
Secretário da Casa Real de Luiz XVI, propôs à Academia Real de
Ciências fosse nomeada uma Comissão de alto nível para solu-
cionar definitivamente a questão. Desse colegiado participavam
personalidades do porte de Lavoisier, Laplace, Bailly, Coulon,
Tillet, Lassone, Daubenton e d’Arcel, além de Jacques René Te-
non. A Comissão rejeitou a proposta de Poyet, mas patrocinou
um amplo e prolongado debate sobre a assistência hospitalar
na França. De forma semelhante, mesmo que isoladamente,
John Howard, filantropo inglês, dedicou-se à temática, viajando
pela Europa e visitando prisões, abrigos para mendigos, hos-
pitais, asilos e leprosários. Publicou, inclusive, um ensaio sob
o título: État des prisons, des hôpitaux et des maisons de force
(CAMPOS, 1944; SILVA, 2001; OUYAMA, 2006).
Coube, todavia, ao médico Jacques René Tenon reunir os di-
versos relatórios que produziu a propósito dos vários hospitais
franceses e estrangeiros, inclusive ingleses, selecionados para
a visitação e para a pesquisa, publicando, então, o seu próprio
documento – Mémoires sur les Hôpitaux de Paris –, em 1778,
sendo a última parte dessas memórias dedicada ao que deveria
ser o novo Hôtel-Dieu. O autor passou a considerar certos deta-
lhes que não eram objeto de preocupação anterior, tais como a
funcionalidade da construção, a ventilação, que tanto favorecia
e favorece a salubridade e a iluminação, tida também como
fonte de saúde e de recuperação dos doentes. Assim sendo,
Tenon sugeriu hospitais que fossem divididos em pavilhões,
os quais estariam separados uns dos outros por pátios ou por
jardins internos, contando com três andares, preferentemente
(TOLEDO, 2002; PEREIRA, 2008 a; Idem, 2008 b).
Ambientes distribuídos por sexo e por doenças, como for-
ma de se evitar o contágio e especialmente o cruzamento de
infecções no recinto das enfermarias, com a recomendação
expressa de se ter um paciente por leito, haja vista a frequên-
cia com que dois indivíduos dividiam o mesmo leito hospita-

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98 Geraldo José Marques Pereira

lar. O autor, médico de origem, reformulou o hospital como


tipologia propriamente e como instituição, aproximando, des-
sa maneira, a arquitetura da ciência de Hipócrates. Criava,
então, um estilo peculiar, usado durante muitos anos no Brasil
e noutros países: o estilo pavilhonar. Isto é, aquele que se ca-
racteriza pela presença de pavilhões e pela construção que se
espalha no terreno, ocupando o espaço no sentido mais hori-
zontal que vertical. Modernamente, as instituições, sobretudo
em função da carência de espaço, adotaram um estilo mais
vertical – o monobloco – e menos horizontal. Vale salientar,
entretanto, que o Hospital das Clínicas, da Universidade Fede-
ral de Pernambuco, cujo projeto é de Mário Russo, arquiteto
italiano que morou no Recife por alguns anos, é misto, mes-
clando as duas formas (CABRAL, 2006).
O Hospital Lariboisière, de 1854, em Paris, é considerado o
primeiro empreendimento nosocomial edificado sob as nor-
mas de Tenon. O prédio seguiu rigorosamente as regras esta-
belecidas por aquele médico que modificou a ciência arqui-
tetônica, na perspectiva das propostas e dos princípios que
daí por diante nortearam os projetos hospitalares. Normas, em
parte já comentadas, e claramente respeitadas no projeto do
Lariboisière, que recomendam sejam os prédios divididos em
blocos de até três pavimentos, os quais devem convergir para
um pátio central retangular, um grande e belo jardim, no caso
em particular. Pavilhões separados uns dos outros por um pá-
tio interno, facilitando a iluminação e permitindo a ventilação
ou concorrendo para a convivência de funcionários e pacien-
tes. Tudo como fora anteriormente recomendado. Passou-se,
então, a enxergar a instituição sob uma ótica diferente, aquela
da cura, das intervenções terapêuticas ou cirúrgicas. Afastava-
-se dessa maneira a ideia antiga, quase medieval ainda, de
que o ambiente hospitalar era um lugar apropriado à morte,
onde os doentes deveriam esperar o próprio óbito: um mor-
redouro, como já discutido. Foi de Tenon, ainda, a iniciativa
de recomendar adotassem os hospitais gestores médicos, haja
vista a finalidade da instituição: curar doentes. Há uma simila-
ridade grande entre o projeto arquitetônico do Lariboisière e

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 99

o do Hospital Pedro II, desde o desenho da planta baixa aos


arcos romanos e à disposição das enfermarias.
Mas essas ideias que afloravam, em tudo modernas, porque
inovadoras, levantadas por Jacques René Tenon, continuam
sendo perseguidas na atualidade pelos profissionais de agora:
arquitetos, engenheiros e médicos. Dessa forma, Tereza Cristina
Marques Dalla insiste, em pleno século XXI, com a humaniza-
ção do ambiente hospitalar quando escreveu a dissertação de
mestrado intitulada: “Estudo da qualidade do ambiente hospi-
talar, como contribuição na recuperação de pacientes”. De tal
forma tem interesse no aprimoramento da qualidade de vida do
paciente e de outros que transitam nas instituições, que começa
as considerações de contextualização com uma citação de um
dos maiores poetas da língua portuguesa: Fernando Pessoa.
Diz o poeta: “O universo não é uma ideia minha. A minha ideia
do universo é que é ideia minha”. Sendo assim, conclama a
sociedade como um todo ao aprimoramento das condições de
vida e de sobrevida no Universo. Defende, então, um desenho
da ambiência que se vem estudando, capaz de oferecer uma
percepção positiva e, sobretudo, receptiva a doentes, acompa-
nhantes, médicos e pessoal da enfermagem ou de outras cate-
gorias profissionais (DALLA, 2003).
No que toca ao Brasil, a literatura especializada refere-se a um
repetido descaso das autoridades portuguesas e brasileiras com
a assistência à saúde, sem políticas para o setor que trouxes-
sem resultados satisfatórios. Mesmo assim, a iniciativa de alguns,
especialmente daqueles ligados à religião católica, fez instalar
hospitais em algumas cidades, relatando-se, como já foi aludido,
como a primeira dessas instituições a Santa Casa de Olinda, de
1539, hoje extinta (PEREIRA DA COSTA, 1951; KHOURY, 2004).
Pioneirismo, aliás, disputado pela Santa Casa de Misericórdia de
Santos, fundada em 1543, ainda funcionando nos dias que cor-
rem. Descaso, também, com a educação do povo, haja vista o
atraso com que foi criado o ensino superior no País, sendo que a
primeira universidade – a Universidade do Brasil – só no século
XX foi fundada, no centenário da independência, assim mes-
mo com a finalidade de se oferecer um título honorífico a um

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100 Geraldo José Marques Pereira

soberano europeu. Ao contrário dos portugueses, os espanhóis


dedicaram um interesse diferenciado à hoje chamada atenção à
saúde e em 1628 a América espanhola contava com 89 hospi-
tais, destacando-se 18 dessas unidades no Peru, em especial o
Hospital Real de Santo André, com 500 leitos e o Grande Hos-
pital de Cuzco, fundado em 1555, com 300 vagas. Tardiamente,
porém, os portugueses levaram em consideração a importância
das doenças trazidas pelos imigrantes, o custo da falta de higiene
da população em jogar nas praias e nas ruas os excrementos e a
promiscuidade com os animais, estimulando, então, a criação de
estabelecimentos destinados ao recolhimento das pessoas enfer-
mas. Antes disso eram poucas e insuficientes as instituições com
essa destinação especifica. Além do que algumas das medidas
sanitárias implantadas não deram certo, à semelhança da vacina-
ção antivariólica de 1804, que não obteve o êxito esperado, afora
a falta de um programa de vacinação para a população, nunca
implementado. Parece oportuno, também, lembrar que as medi-
das de saúde pública eram de responsabilidade dos proprietários
das moradias e menos do governo.
É num cenário diferente, de maior atenção às pessoas e de
um cuidado redobrado com a população necessitada, que sur-
ge o Hospital Pedro II, cuja pedra fundamental foi assentada
em 25 de março de 1847, tendo sido inaugurado a 10 de mar-
ço de 1861, um domingo, quatorze anos depois da solenida-
de inicial, em tudo, muito pomposa. É a primeira construção
no Recife com uma destinação específica na área de saúde.
Construção, aliás, pioneira, também, no estilo pavilhonar, du-
rante muito tempo adotado em vários hospitais da Europa e
das Américas. Estilo que serviu de modelo às novas instituições
construídas a seguir, no Estado e no País. Edificação cujo pro-
jeto nasceu das mãos de um engenheiro pernambucano, José
Mamede Alves Ferreira, autor também de outros importantes
prédios no Recife, como o Ginásio Pernambucano, a Casa de
Detenção e o Cemitério de Santo Amaro. Mamede estudou em
Lisboa e em Paris, circulando pela Europa e se inteirando das
mudanças mais recentes nas concepções prediais em geral, mas
no enfoque hospitalar também.

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 101

O edifício está situado no lugar conhecido como Coelhos,


tendo sido elevado a 1,25 metros do nível do terreno. Conta
com uma fachada de 115 metros e uma altura de quase 20
metros, o que traz imponência ao prédio. Dispõe de um pátio
central medindo 39 metros de largura e 45,50 metros de fundo.
Para este ambiente convergem os pavilhões e as respectivas
passagens de circulação da instituição. A aludida área está con-
tida por uma galeria de 2,85 metros de vão, ventilada e ilumi-
nada por arcadas romanas no pavimento térreo e por janelas
envidraçadas nos andares superiores. Concluída a construção,
conforme previsto no projeto, seriam 56 arcadas ao todo, em
dez blocos de enfermarias, cinco em cada lado do terreno, os
da direita reservados às mulheres e os da esquerda para os
homens. Blocos, como aludido, que convergem para o pátio
central, separados por jardins internos. Sucede que não se ter-
minou o prédio! Quando da inauguração existiam três desses
blocos terminados, apenas, sendo dois deles à esquerda e mais
duas enfermarias no pavimento térreo. Em 1906 houve uma ex-
pansão que concluiu o segundo bloco da direita e acrescentou
mais uma enfermaria no térreo do mesmo lado. Trata-se, então,
de uma edificação com três pavimentos, em cujos pavilhões es-
tão dispostas as enfermarias, todas dedicadas a algum santo ou
santa da Igreja, a semelhança da Enfermaria Nossa Senhora do
Bom Conselho. Enfermaria em cujas dependências trabalhou o
autor do texto, no terceiro andar do prédio, à direita de quem
chega e tem acesso ao hospital. Ali funcionava a enfermaria de
Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP), sob a tutela do Prof.
Ruy João Marques, ilustre médico e humanista pernambucano.
Na fachada principal o grande pórtico de acesso foi ornado
com duas colunas que sustentam um entablamento, em cujo
centro foi posta a figura da caridade, em fina cantaria lisboeta.
Surgiram diversas iniciativas para se angariar fundos, ob-
jetivando a construção, como certas subscrições populares, à
semelhança da que teve como objetivo instalar ali um abrigo
da mendicância, logo depois transferido para outra instituição.
Foram criadas, também, vinte loterias de cem contos de réis
anuais, com o rendimento destinando-se, especificamente, às

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102 Geraldo José Marques Pereira

obras. Mas, nessa perspectiva, um acontecimento mostrou-se


sui generis: um baile oferecido ao Imperador Pedro II nas de-
pendências do hospital, antes mesmo da inauguração. A 22 de
dezembro de 1859, a Associação Comercial de Pernambuco
recebeu a sociedade para uma festa em homenagem ao man-
datário imperial que visitava a Província, quando comparece-
ram cerca de 2.000 pessoas, lotando o recinto. O Imperador
Pedro II registrou, então, em seu diário: “O novo hospital é
obra magnífica, e o desejo de aproveitar o que já está feito
para o baile, por ocasião da minha visita à Província, fez com
que a obra se adiantasse bastante... Ao menos o baile foi aqui
útil, ainda que indiretamente”.
A instituição, inaugurada a 10 de março de 1861, como já foi
referido, dispunha de uma capacidade para 200 a 250 doentes,
podendo chegar a 300 em tempos de epidemia. Na abertura do
hospital 115 pacientes foram recebidos ali, todos provenientes
do Hospital São Pedro de Alcântara. E dois dias depois dessa
instalação solene, o Dr. Praxedes Pitanga fazia a primeira cirur-
gia na sala de operações, quando interveio num paciente italia-
no, sanando-lhe uma hérnia estrangulada, depois de ter ouvido
em conferência os médicos Sá Pereira e Carlos Frederico, que
concordaram com a indicação e assistiram o procedimento. O
paciente foi anestesiado com clorofórmio. Naquele hospital,
nos primeiros anos, pontificaram outros ilustres profissionais da
medicina, além dos já citados, dentre os quais Morais Sarmento,
Lobo Moscoso, José Soriano de Souza, Malaquias Gonçalves,
etc. Há de se destacar, porém, o Dr. José Francisco Guimarães,
experiente cirurgião, pois foi o primeiro a usar a anestesia ge-
ral, a princípio com éter e depois com clorofórmio.
Há alguns detalhes interessantes no “Regulamento para o
Serviço Sanitário do Hospital Pedro II e dos Estabelecimentos
a Cargo da Santa Casa de Misericórdia do Recife”, publica-
do em 1898, que merecem comentários à parte. Um desses, a
preferência que o documento sugere e até recomenda pelos
serviços de enfermagem prestados pelas Irmãs de Caridade,
como, aliás, era um costume em vários países de tradição cató-
lica no mundo e durante muito tempo predominou no Recife,

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 103

também. Note-se, todavia, no artigo 7º do aludido “Regulamen-


to”, a exceção que se abre ao Hospital Pedro II, admitindo-
-se, em particular, a contratação de enfermeiros – enfermei-
ros e não enfermeiras –, além de serventes. O texto desce a
uma riqueza de detalhes em diversos trechos, prevendo, por
exemplo, a possibilidade de desentendimentos, rixas e até de
espancamentos entre os empregados ou fâmulos do serviço,
estabelecendo que se faça denúncia ao Provedor, mas através
do Mordomo. Destaque-se, de igual forma, o cuidado com a
higiene, conforme está no inciso 21, do parágrafo 6º, do artigo
8º, cabendo ao Diretor Médico o fiel cumprimento dessa nor-
ma. Entretanto, o que chama a atenção ainda mais é o contido
no inciso 23, do mesmo parágrafo e do mesmo artigo, ainda
como sendo um compromisso daquela autoridade médica: a
organização, a cada mês de janeiro, de uma estatística geral
dos doentes tratados durante o ano anterior, com vistas à apre-
sentação ao Provedor de tais informações. Isso parece uma
antecipação dos atuais estudos epidemiológicos, daqueles que
investigam as taxas de mortalidade e, sobretudo, as informa-
ções de resolutividade. A prática, em realidade, já existia antes
do “Regulamento” de que se vem tratando, haja vista a tabela
sem título inserida à página 14 do “Relatório sobre a Santa
Casa de Misericórdia do Recife”, de 1880. Entre 1860 e 1880,
foram internados no Hospital 45.521 doentes, dos quais 34.010
obtiveram alta, enquanto 10.903 faleceram. Significa dizer, em
termos aproximados, porque os totais nem sempre correspon-
dem à soma das parcelas, que a resolutividade foi superior a
75% e a mortalidade chegou a 24%, números que para a época,
certamente, tinham uma significação valiosa (SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA DO RECIFE, 1898; RELATÓRIO SOBRE A SAN-
TA CASA DE MISERICÓRDIA DO RECIFE, 1880).
O “Regulamento” de que se vem tratando, pelo interesse que
desperta e pelas peculiaridades de que trata no Capítulo IV, cuida
em citar as obrigações do chamado “Médico Assistente”, sendo
uma dessas a de velar pela salubridade da carne verde que en-
trava para consumo. O profissional em causa deveria, por reco-
mendação do regimento, residir nas proximidades da instituição,

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104 Geraldo José Marques Pereira

para atender das seis da tarde às seis da manhã do dia seguin-


te às urgências, pelo que se depreende que não havia médico
de plantão, senão este. Essa providência só apareceu no século
XX, conforme longo depoimento que o autor ouviu do médico
Dr. Henrique Mattos de Oliveira, um homem hoje centenário e
que deu a vida profissional inteira, quase, ao atendimento em
sua clínica ginecológica do aludido estabelecimento filantrópico.
Médico, aliás, adiante-se de logo, que foi o pioneiro em Pernam-
buco, quiçá no Nordeste, da laparoscopia ginecológica, isto é,
da utilização de equipamento para visualização das vísceras atra-
vés da parede abdominal. A leitura do “Regulamento”, sobretudo
na parte referente ao “Médico Assistente”, mostra o quanto este
funcionário era sobrecarregado, acrescentando-se às obrigações
rotineiras, o compromisso de ser o lente da Escola de Enfermei-
ros. A informação, entretanto, mostra a vinculação do Hospital
com o ensino, desde muito cedo. Existiam, ainda, como previsto,
os médicos substitutos e os médicos adjuntos, sendo os últimos
de exercício voluntário, sem remuneração, senão quando subs-
tituindo o colega imediatamente superior. Havia, também, um
cirurgião-dentista, a quem cabia tratar dos doentes e dos funcio-
nários, além das parteiras e das parteiras substitutas, sem esque-
cer do farmacêutico. Chama muito a atenção o papel das irmãs,
as quais preenchiam todo espaço hospitalar, da admissão do pa-
ciente ao necrotério, incluindo, especialmente, as enfermarias.
E chama mais atenção o poder do Provedor ou do Mordomo, a
cuja ordem, de um ou de outro, os doentes seriam internados
sem questionamento (SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RE-
CIFE, 1898; OLIVEIRA, 2008).
Vale salientar que no depoimento antes aludido, colhido em
casa do médico Henrique Mattos de Oliveira, o entrevistado fez
uma longa exposição em torno do funcionamento da instituição
objeto desse ensaio, sobretudo, na primeira metade do século
XX. Explicou a hierarquia que se tinha nas enfermarias, a qual
reconhecia como a autoridade local mais importante o Chefe de
Clínica, seguido pelo 1º assistente (substituto do Chefe), pelo 2º
assistente e pelo 3º assistente, além do chamado assistente extra-
numerário, figurante voluntário desse elenco médico. Honorários

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 105

mesmo recebiam o Chefe de Clínica e o 1º Assistente, embora


fosse um pagamento, que se pode dizer, simbólico, porque ir-
risório. O Dr. Mattos de Oliveira, como sempre foi conhecido,
teve uma formação larga, com estágios e cursos fora do País,
especialmente na Alemanha, na França, no Japão e em Nova Ior-
que. A facilidade com que se relacionava com as pessoas, gente
importante, dos consulados e representantes de instituições in-
ternacionais, serviu como porta de entrada para essas viagens
custeadas pelos países que o convidavam. Assim também pôde
obter algumas ajudas para a sua clínica, a Enfermaria Santa Ma-
ria, no primeiro andar do Hospital Pedro II, como sucedeu com
a Misereor, organização católica alemã contra a fome e a doença
no mundo. Foi da Misereor que recebeu o laparoscópico para o
procedimento antes aludido, de seu pioneirismo, além de outros
apetrechos cirúrgicos. Embora tivesse uma retribuição pecuniária
extremamente modesta, o Chefe de Clínica – o Dr. Mattos em
particular – podia fazer clínica privada em seu ambiente de tra-
balho, atendendo em consultório e operando algumas de suas
pacientes melhor aquinhoadas, para as quais dispunha de dois
quartos. É interessante o fato de que as salas cirúrgicas eram in-
dividualizadas e a Enfermaria Santa Maria dispunha de uma em
particular (OLIVEIRA, 2008).
As relações que manteve com a Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE), em acordos de parceria, envolvendo a Santa
Casa de Misericórdia e particularmente o Hospital, foram, como
relatou o entrevistado, quase sempre tumultuadas. De início,
quando várias enfermarias do nosocômio acabaram cedidas à
academia, lutou bravamente para não entregar a sua – a Santa
Maria –, chegando a participar de uma certa reunião, para a qual
sequer tinha sido convidado, quando soube que o Provedor ti-
nha doado o seu espaço para uso da UFPE. Bateu o pé, para
dizer como o nordestino usa fazer, negando a transferência e se
negando, também, a receber, sem concurso, um cargo de pro-
fessor. Não queria subordinação ao catedrático. Assim, manteve
as atividades de forma independente por muito tempo, durante
duas décadas, aproximadamente. Quando o Hospital das Clínicas
foi terminado na Cidade Universitária e estava na hora de se fa-

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zer a transferência dos serviços todos, sob protesto de vários dos


professores, dentre os quais o autor destas linhas, o Dr. Mattos de
Oliveira novamente se insurgiu contra as soluções apresentadas
pela Universidade e pôde permanecer por três anos no velho
prédio, às expensas da instituição acadêmica (OLIVEIRA, 2008).
A mudança de um estabelecimento para outro foi traumática
e tumultuada, como atestam os jornais da época. Uma consulta
ao Diário de Pernambuco (DP), que circulou a 6 de junho de
1982, disponível na Internet, traz uma matéria com o título: “Crise
do Pedro II: Apenas Interesses Contrariados”. Uma reportagem
que se refere ao fato de ter a secretária do Diretor recebido
um telefonema anônimo, dando conta de um ferimento à bala
na pessoa da esposa daquela autoridade universitária. Mas, dá
conta, também, do embate que se travava em várias reuniões,
entre os contrários à mudança e os que se apresentavam favorá-
veis à transferência. O centro da matéria, porém, é, justamente,
o fato de que interesses pessoais estavam sendo contrariados.
Na realidade, o autor dessas linhas é testemunha, havia um sis-
tema, quase se pode dizer, de feudos, isolando os serviços e
distinguindo as clínicas ou as disciplinas. Os antigos catedráticos
eram senhores de seus espaços e não admitiam a utilização dos
equipamentos e dos leitos por docentes de outras cadeiras. Isso
isolava a equipe – o catedrático e seus assistentes –, ocasionan-
do, tantas vezes, impasses desnecessários. De mais a mais, era
no mínimo curiosa a existência de salas de cirurgia, como relata
o jornal, com entrada e saída para o corredor, no qual transita-
vam médicos, enfermeiros, pacientes e acompanhantes. Um dos
impasses à transferência foi a nomeação pelo então Reitor – Prof.
Geraldo Lafayete – de um Diretor sem vinculação alguma com a
academia, o que motivou pedidos reiterados de afastamento do
mesmo. Numa das vezes, o Diário de Pernambuco, de domingo,
1º de agosto de 1982, ora disponível em versão digital, estampou:
“Mestres Exigem Substituição de Diretor”.3
Até 1982 a Universidade Federal de Pernambuco foi a insti-
tuição mantenedora do Hospital, em função de convênio com

3
Diario de Pernambuco, 6.vi.1982 01.viii.1982.

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Um resgate histórico e o tombamento estadual 107

a Santa Casa de Misericórdia do Recife. Assim, desde 1920, por


iniciativa do médico Octávio de Freitas, fundador da Faculdade
de Medicina do Recife, o Pedro II passou a servir como campo
de prática aos alunos do Curso Médico. Nesses anos todos, que
reúnem quase seis décadas, foi tido como referência em Per-
nambuco e no Nordeste. Era comum, então, pacientes ambula-
toriais e de consultório dos profissionais locais serem levados a
discussão clínica nos diversos serviços de que dispunha. A ins-
tituição é reconhecida, ainda hoje, como o celeiro de formação
dos mais destacados professores, clínicos gerais e cirurgiões do
Recife e de várias das capitais da Região. Concluído o Hospi-
tal das Clínicas no Campus Universitário, foram transferidos os
doentes e os equipamentos disponíveis em condição de uso,
sob protesto de vários professores, como referido. Protesto,
aliás, que repete, de certa forma, a reação dos então docentes
da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal de Pernam-
buco, quando obrigados a ocupar a nova sede, construída pelo
arquiteto italiano Mario Russo, para onde os antigos integrantes
do corpo docente foram, quase se pode dizer, à força.
O Hospital Pedro II daí por diante atravessou um período de
crise, de verdadeiro abandono das instalações, haja vista não
ter mais a destinação original. Inicialmente, e durante pouco
tempo, abrigou o Museu da Medicina, depois transferido para
as dependências do Memorial da Medicina. Em função de um
convênio celebrado com a Secretaria Estadual de Saúde, passou
a receber uma das gerências do Sistema Único de Saúde (SUS),
com ocupação parcial do andar térreo. Durante algum tempo,
também, acolheu o Nesc – Núcleo de Estudos em Saúde Coleti-
va –, que integra hoje o sistema de pós-graduação e pesquisas
do Ministério da Saúde. Nesse intervalo de tempo houve algu-
mas tentativas de ocupar o prédio enorme com shoppings ou
outras formas de utilizar o espaço para a exploração polivalente
do comércio. Tentativas, como se nota, infrutíferas, haja vista a
atual situação da instituição e a atual destinação do nosocômio.
O Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira
(IMIP), entretanto, conseguiu obter, a partir de um convênio com
a Santa Casa de Misericórdia, contando com a interveniência da

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108 Geraldo José Marques Pereira

Cúria Metropolitana, a autorização para ali se instalar e voltar


a oferecer ao velho estabelecimento a finalidade original. Um
grande esforço vem sendo desprendido pela direção do IMIP, no
sentido de obter os recursos necessários à restauração do edifício.
Para tanto, o amparo da Lei Rouanet foi definido e as doações
se sucedem; doações de médicos ou aquelas dos almoços anuais
(feijoadas) custeados pelos convivas nos jardins internos do Hos-
pital Pedro II, repetindo, de certa forma, o jantar ao Imperador
no século XIX. Assinale-se o interesse das esferas de governo, do
Governo Estadual e da Prefeitura da Cidade do Recife, destinan-
do verbas para o processo de restauro. Restauro, aliás, levado a
efeito sob a liderança do arquiteto Jorge Passos, profissional re-
conhecido como experiente e culto, conhecedor profundo dessa
seara tão peculiar: a da recuperação de monumentos históricos
O IMIP pretende situar ali alguns dos serviços que presta à so-
ciedade e mais, escolas técnicas especializadas na área de saúde.
Por ter sido o primeiro prédio levantado na cidade e no
estado com uma destinação especifica na área de saúde, em
função, também, do pioneirismo em torno do estilo pavilhonar.
Pelo projeto de autoria de José Mamede Alves Ferreira, autor de
outras obras importantes no Recife. Julgando o que representou
e representa para a classe médica de Pernambuco e do Nordes-
te, haja vista o papel na formação de escolas e de profissionais
do mais elevado gabarito, verdadeira elite da medicina local e
regional. E pela iniciativa do Instituto de Medicina Integral Prof.
Fernando Figueira em restaurar o edifício, o que homenageia
o fundador da instituição, realizando um sonho do ilustre per-
nambucano, trazendo novas possibilidades de atenção à saúde
nos limites do Estado e do Nordeste, dando, pois, uma ocupa-
ção ao prédio. E finalmente, pelo interesse da sociedade e do
Estado na preservação dos monumentos históricos, patrimônios
da cultura. Sendo assim e por tudo isso: fui de parecer favorá-
vel ao tombamento estadual. Decisão colegiada tomada a partir
do parecer, através da Resolução 001/2008, de 25 de março de
2008, contando, a seguir, com a homologação do Exmo. Sr. Go-
vernador do Estado de Pernambuco, pelo Decreto nº. 31.573,
de 27 de março de 2008.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014


O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE
Um resgate histórico e o tombamento estadual 109

Foram respeitados os limites da Zona Especial de Preserva-


ção do Patrimônio Histórico Cultural 18 – Sítio Histórico Hospi-
tal Pedro II –, a ZEPH 18, instituída pela Prefeitura da Cidade do
Recife (PCR), através da Lei 16176/96. Atendeu-se, igualmente,
ao que está definido como recomendações da PCR, inseridas
no mesmo diploma legal, respeitando-se a Zona de Preserva-
ção Rigorosa – SPR e a Zona de Preservação Ambiental – SPA.
Tombou-se, assim, o edifício original, construído segundo o
projeto de José Mamede Alves Ferreira, restaurando-se o prédio
dentro dos padrões propostos.

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SERÁ MESMO DE NOSSA SENHORA,
O MORRO DA CONCEIÇÃO?1

Jamerson Kemps

Resumo: O presente artigo pretende apresentar a relação que se estabelece


entre a Igreja Católica e seus fieis na comunidade do Morro da Conceição,
importante centro de peregrinação da cidade do Recife, por intermédio de
uma análise simbólico-hierárquica que considera a ocupação espacial dos
vários grupos religiosos dessa comunidade em torno da imagem da Santa
de Nossa Senhora da Conceição. A partir de pesquisa de campo etnográfica,
análise de discurso e métodos quantitativos, observou-se que as disputas,
tensões e conflitos que envolvem a história dessa centenária comunidade
superam o campo político e ideológico e se apresentam em termos de ocu-
pação física e territorial quando da construção de prédios, igrejas e monu-
mentos que fizessem referência à hierarquia religiosa.

Palavras-Chaves: Antropologia, História, Catolicismo e Hierarquia, Morro


da Conceição.

Is it really Our Lady’s, the Conceição Hill?

Abstract: This article aims to present the relationship established between the
Catholic Church and its worshipers in the Morro da Conceição, important pil-
grimage center of Recife, through a symbolic-analytic hierarchy process which
considers the spatial distribution of the various religious groups in this com-
munity around the image of the Holy Conception. From ethnographic field re-
search, discourse analysis and quantitative methods, it was observed that dispu-
tes, tensions and conflicts involving the history of this centuries-old community
outweigh the political and ideological field and present themselves in terms of
physical and territorial occupation during the construction of buildings, chur-
ches and monuments which made ​​reference to the religious hierarchy.

Keywords: Anthropology, History, Catholicism and Hierarchy, Morro da


Conceição.


1
Artigo recebido em fevereiro de 2014 e aprovado para publicação em maio de 2014.

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114 Jamerson Kemps

Introdução: recordando a história do Morro da


Conceição e o que deu início às tensões
O bairro do Morro da Conceição fica localizado na zona nor-
te da cidade do Recife, região periférica que concentra grande
número de moradores. Sua ocupação urbana se deu logo após
a chegada do monumento em homenagem a Santa de Nossa
Senhora da Conceição, em 1904, uma estátua de 5.50m de al-
tura, com peso de 1.806 quilos. Todavia, apesar desse processo
ter se dado no início do século passado, a ocupação massiva do
morro, tendo como ponto de partida os arredores da estátua, só
se deu de fato, nas décadas seguintes.
A ocupação citada não difere muito das demais áreas de mor-
ro do Recife. Casa Amarela e mais especificamente, o Morro da
Conceição, tiveram o seu boom demográfico intensificado nas
décadas de 1950 e 1960, período marcado por um incoerente
projeto desenvolvimentista. Essas décadas transformaram profun-
damente a imagem urbana recifense. Pessoas vindas do interior,
que já se encontravam em dificuldades sociais, além de morado-
res das regiões ribeirinhas do Recife, ameaçadas por repetidas
inundações e incluídas na política de erradicação de Mocambos
do então governador-interventor Agamenon Magalhães, consti-
tuíram nos altos e córregos da zona norte, o que foi tido como o
maior assentamento popular contínuo da América Latina.
Atualmente, o Morro da Conceição é servido por uma única
linha de ônibus, de mesmo nome, que transporta a comunidade
de ida e volta até o centro da cidade, com intervalos de saída
em torno de vinte minutos. Percebe-se que os ônibus não saem
cheios, já que seus moradores são levados a concentrar suas ati-
vidades ali mesmo, no morro, a partir do comércio informal e na
proximidade com igrejas, escolas e outras instituições de convi-
vência social. Por fim, encontramos na praça central a maior con-
centração de atividades. Também nela se localiza a paróquia da
Igreja Católica, local onde atuam os vários grupos ligados à ma-
triz, nos fazendo considerar “a simples proximidade entre casa e
templo de denominação religiosa influencia diretamente a procu-
ra pela instituição por parte da comunidade” (MARZAL, 2000:68).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 115

Frente à realidade exposta, a comunidade passou a se organi-


zar efetivamente e surgiram movimentos populares que expres-
savam a insatisfação dos moradores com a cobrança de impostos
pela moradia na região, por parte da Imobiliária Pernambucana,
criada na década de 1940, e que passara a cobrar taxas aos
moradores pelo uso do espaço, alegando serem as famílias pro-
prietárias da empresa, também donas das terras. Nesse contexto,
surge o Movimento Terras de Ninguém, procurando por meios
judiciais dar posse de terra aos moradores contra a imobiliária
citada. Esse processo perdurou, mas teve um desfecho positivo
para os moradores, em virtude da concessão das posses durante
o governo Arraes, ainda na década de 1960.
Notemos que o Morro da Conceição constituiu-se como
espaço público-religioso a partir de processos sociais que re-
fletiam a consciência das questões que envolviam a comuni-
dade. Todavia, podemos perceber que as reivindicações desta
comunidade também passaram por questões que foram além
da posse da terra, já que serviços básicos como fornecimento
de água, saneamento e limpeza só passaram a ser disponibili-
zados a partir da década de 1980, período que é simbolizado
pela formação do Conselho de Moradores do Morro, obser-
vando, para introdução a problematização de nosso trabalho
que, aliado a muitos de todos esses processos reivindicatórios,
sempre procurou estar o padre Reginaldo Veloso. Ele entrou na
comunidade em 1968, ficando na paróquia até 1989, quando
foi desligado pelo então arcebispo dom José Cardoso Sobrinho.
Através de seu trabalho, direcionado pelas ideias da Teologia
da Libertação, e muito influenciado por dom Hélder Câmara,
pe. Reginaldo estimulou ainda mais a participação dos leigos
nas atividades da igreja e comunidade.

A declaração do dogma e o início da devoção

À procura por documentação que pudesse melhor nos mu-


niciar a respeito do processo que inicia a devoção à Santa da
Conceição, no Recife, chegamos, entre outros, as cartas redi-

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116 Jamerson Kemps

gidas pelo então arcebispo dom Luís Raimundo da Silva Brito


(arcebispo entre 1901-1915). Analisando-as, encontramos re-
ferências ao cinquentenário comemorativo da Anunciação do
Dogma da Imaculada Conceição, pronunciado pelo Papa Pio
IX, em 08 de dezembro de 1854, sendo encomendada uma es-
tátua a firma francesa Vaillant Nast et Cie.
Quando da chegada da imagem no antigo Oiteiro da Boa
Vista, hoje Morro da Conceição, ainda não havia urbanização
ou ocupação irregular, nem tampouco igreja no morro (Foto
1). Naquele momento, cabia apenas à Igreja Católica garantir e
reforçar a declaração do dogma e sua devoção.

Foto 1: Pátio onde se localizava a imagem, na década de 1930 (acervo: FUNDAJ).

Como estratégia para reforço de tal simbolismo, decidiu-se


criar a Comissão Diocesana, ligada diretamente à comissão pon-
tifícia e às comissões paroquiais, responsável por desenvolver
um programa geral que, entre as datas de 08 de dezembro dos
anos de 1903 e 1904, realizasse atos religiosos e de caridade a
cada dia oito, dos meses envolvidos neste período, concluindo-
-se com a Festa da Conceição, no final do mesmo.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 117

Em sua primeira festa de devoção, as comemorações ficaram


limitadas apenas às solenidades eclesiásticas do dia 08 de dezem-
bro e à sua véspera. Contudo, o Oiteiro da Boa Vista, que já no
primeiro ano passava a ficar conhecido como da Conceição, pas-
sou a acostumar-se com a presença de muitos fiéis. Sob a organi-
zação da Confraria de São Vicente de Paulo procurou-se convidar
todos os pernambucanos a saudarem a Santa Imaculada. Clérigos
de toda a hierarquia do estado, suas matrizes, paróquias, capelas
e fiéis foram convocados a reunirem-se em prol da celebração,
especulando-se a participação de cerca de vinte mil pessoas.
Com o passar dos dois primeiros anos de devoção à Santa,
o então arcebispo dom Luís Raimundo decidiu-se por construir
a Capela do Morro, pequeno prédio em estilo gótico que ficou
conhecido como a Torre. O monumento foi erguido sob a dire-
ção do engenheiro Rodolfo Lima e apresentava o que havia de
moderno e ousado para a época. A capela media vinte e cinco
metros de altura e foi inaugurada no dia 14 de junho de 1906,
estando ligada à freguesia de Nossa Senhora da Saúde, no Poço
da Panela, hoje paróquia de Casa Forte (Foto 2).

Foto 2: Capela do Morro da Conceição na década


de 1930 (acervo FUNDAJ).

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118 Jamerson Kemps

Igreja e comunidade: suas lideranças

O Conselho de Moradores do Morro, sempre esteve atrela-


do aos trabalhos desenvolvidos pelas Comunidades Eclesiais
de Base (Ceb’s), à paróquia do morro e à Arquidiocese de
Olinda e Recife, em um momento no qual todas estas eram
seguidoras da Teologia da Libertação. No início da década de
1980, o conselho passa a ganhar respeito e espaço político por
exigir das autoridades públicas daquele momento – o prefeito
da cidade, Gustavo Krause e o governador Marco Maciel – me-
lhorias sociais e urbanas para o Morro da Conceição, contra-
pondo-se às determinações políticas de um período marcado
ainda pelo Regime Militar e pelo Populismo (SOUZA, 2006).
Como consequência, outras importantes organizações foram
criadas a partir do Conselho de Moradores, dentre elas: gru-
pos de alfabetização, de mulheres, de meios de comunicação
do próprio bairro, de saúde, comissão de barreiras e a organi-
zação não governamental, CERVAC (Centro de Reabilitação e
Valorização da Criança).
Quanto à construção de qualquer edificação no Morro,
observamos que se inicia em 1975, no que tange à políti-
ca hierárquica e eclesiástica, o processo de desmembramen-
to do conjunto religioso que compunha o então abrangente
bairro de Casa Amarela, incluindo-se o Morro da Conceição,
para efeito de criação de uma paróquia. Esse processo veio a
consolidar-se no ano posterior, no arcebispado de dom Hél-
der Câmara (1964-1985), sendo o padre Geraldo Leite Bastos
(1975-1977), o primeiro vigário da paróquia. É ainda neste
período, e tão somente neste momento, que se constrói o
prédio da igreja paroquial.
Observemos que se passaram mais de sete décadas para que
algo parecido com uma igreja católica fosse construído no Mor-
ro, pois, mesmo tendo sido construída anteriormente, a Torre
não possuía estrutura para a celebração de qualquer atividade
religiosa, servindo apenas como monumento de representação
institucional. Também fazemos a ressalva de que as celebrações
religiosas concentravam-se na Igreja da Harmonia, antiga e im-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 119

portante paróquia do bairro de Casa Amarela, responsável pela


comunidade religiosa do Morro até o seu desmembramento.
Para a construção da primeira igreja, tal prédio requisitava as-
pectos de modernidade e simplicidade, tentando trazer harmonia
entre os dois símbolos já existentes (o monumento da Santa e a
Torre), o que fisicamente e simbolicamente não aconteceu, como
veremos adiante. Nos anos que se seguem, as comunidades vizi-
nhas, ligadas à matriz, passaram também a se organizar na cons-
trução e reforma de suas igrejas, bem como no estabelecimento
de centros comunitários que atendessem às demandas locais de
caráter político e social, estando as mesmas diretamente ligadas
aos assuntos religiosos e vice-versa, sendo sob este viés adminis-
trativo, que se estrutura a Igreja Católica da região metropolitana,
regida pela batuta do arcebispo dom Hélder Câmara.
Difícil seria imaginar que dom Hélder não tenha se tornado
um dos principais propagadores da Teologia da Libertação no
Brasil, de tal maneira que o arcebispo ficou conhecido pela for-
ma como acolhia as pessoas e os movimentos sociais diversos.
Já na década de 1970, período em que foi indicado ao Prêmio
Nobel da Paz, era comum assisti-lo em palestras universitárias
nacionais e internacionais, como também, em setores sindicais
ou de classes populares, onde desfilava seu carisma.
Diferentemente de seu antecessor, encontramos o arcebis-
po dom José Cardoso Sobrinho, caracterizado como conserva-
dor e centralizador. Logo no início do seu arcebispado (1985-
2009), dom José promoveu o que hoje conhecemos como um
‘choque de gestão’, dividindo a igreja entre aqueles que o
apoiavam e aqueles que não estavam em sintonia com sua
doutrina, consolidando dessa forma, um período de crise na
hierarquia da arquidiocese.
Direcionando estas informações à paróquia do Morro da Con-
ceição, temos de um lado, pe. Reginaldo Veloso, que fora desli-
gado por dom José e que veio a criar a Igreja de Resistência e Fé;
e do outro lado, a igreja oficial e aqueles que afinam seu discurso
ao do arcebispo, seja devido à sua identificação teológica, seja
por simples submissão a algo que é considerado mais relevante,
no caso, a hierarquia eclesiástica da Igreja do Vaticano.

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120 Jamerson Kemps

Nessa lógica dicotômica se insere a gestão do padre Cons-


tante Danielewicz (1990-1997), catarinense de descendên-
cia polonesa que conseguiu assumir a paróquia em 1990, só
depois que uma ação judicial deu reintegração de posse do
terreno e estrutura paroquial à igreja do bairro, ação garan-
tida pela Polícia Militar frente aos protestos dos membros da
comunidade que haviam tomado posse das chaves do local.
Destacamos que esse acontecimento se deu como represália
às ações do arcebispo dom José, quando da execução das
mudanças na paróquia do Morro no ano de expulsão de pe.
Reginaldo, em 1989. Naquele momento, alguns membros da
comunidade, logo ao se informarem do envio de um novo
padre, decidiram fechar as portas da igreja com correntes e
cadeados de forma que só estes pudessem ter acesso a ela,
indicando que a mesma seria administrada pelo povo e para
o povo (FERREIRA, 1990).
A partir dessas informações, desenvolvemos uma análise
socioantropológica acerca do envolvimento destas lideranças
com seus fiéis, uma vez que os mesmos se apresentam e são
identificados como líderes, àqueles que, pelo seu carisma, de-
vem guiar seus seguidores em conjunto, orientados por uma
doutrina ideológica e teológica. Quando falamos em carisma,
nos valemos de uma definição weberiana que o classifica como
virtude indefinível, denominado como conjunto de dotes pes-
soais que impõem um indivíduo aos outros, fazendo com que
estes o obedeçam, tornando suas ordens indiscutíveis justamen-
te porque emanam dele (WEBER, 1989).
Identificamos que estas lideranças gozam de tal representa-
tividade, seja em virtude de suas realizações passadas, seja por
estarem se valendo de um simbolismo institucional estruturado,
classificado como rotinização do carisma, caso de padre Josivan
Sales, pároco oficial da igreja no período da pesquisa. Desta
maneira, percebemos que pe. Reginaldo Veloso, mesmo se va-
lendo de um carisma pessoal que o credencia como líder, haja
vista que o mesmo além de reverenciado, também é consultado
sobre variados assuntos sociorreligiosos locais, necessitou da
formação de uma nova instituição religiosa que funciona como

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 121

uma igreja paralela a oficial para que o mesmo fosse credencia-


do como líder religioso e padre. Enquanto que do lado de pe.
Josivan Sales, a instituição oficial o serviu como instrumento de
reafirmação desta liderança, o que associado a suas habilidades
pessoais, o garantiram em tal posição.

Campo religioso e polos de sociabilidade

A partir de nossa pesquisa de campo, baseada em métodos


qualitativos e quantitativos, foi possível identificar o que ca-
racteriza o campo sociorreligioso desta comunidade católica.
Diferentemente das hipóteses mais tradicionais que percebem
o Morro da Conceição dividido dicotomicamente entre aque-
les que seguem a comunidade criada pelo padre Reginaldo
Veloso e aqueles que se ligavam à igreja oficial, a partir da
nossa análise de dados, pôde-se perceber a existência de um
terceiro polo de convivência e devoção religiosa que não só
se apresentava como maior, mas também como autônomo em
relação aos outros dois polos.
A partir disso, a comunidade passou a ser classificada,
naquilo que consideramos serem os três polos de vivência
católica do Morro da Conceição: sendo o primeiro, aquele
ligado à igreja oficial e seus representantes; o segundo, que
está ligado à igreja criada pelo pe. Reginaldo Veloso e seus
seguidores; e o terceiro polo, aquele que se identifica com
as práticas do chamado catolicismo popular, dada a caracte-
rística autônoma de devoção de seus fiéis para com a Santa
da Conceição e de independência em relação às lideranças
religiosas dos dois polos anteriores.
Percebemos que seus membros visitam, convivem ou moram
no Morro, sem necessariamente estarem ligados a membros dos
grupos religiosos ligados aos outros polos. Os representantes
autônomos são devotos, peregrinos e pagadores de promessas,
bem como, representantes do ainda desestruturado turismo re-
ligioso local. Esses, indiferentes a qualquer querela histórica,
política, simbólica ou institucional, compõem o maior número

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122 Jamerson Kemps

de pessoas encontradas no cotidiano do campo religioso estu-


dado, fator fortemente evidenciado quando da realização da
representativa Festa do Morro da Conceição, imponente cele-
bração que ocorre anualmente, entre os dias 29 de novembro
e 08 de dezembro, e leva milhares de devotos autônomos às
ladeiras da comunidade.
A constatação acima pode ser verificada no gráfico que
se segue (Gráfico 1). Nele, percebemos que na correlação
que se dá entre a moradia na comunidade e a participação
em algum grupo, a partir da amostra de 472 fiéis católicos
do Morro da Conceição, apenas 7% (sete) dos entrevistados,
disseram fazer parte do segundo polo, aquele que está ligado
a Igreja de Resistência e Fé, liderada por pe. Reginaldo Ve-
loso, enquanto que os 33% identificado com a igreja oficial,
dividem-se dentre os cerca de dez grupos ligados ao primei-
ro polo, obtendo-se uma média de 3,3% de participação dos
fiéis por grupo desse polo. O que nos indica perceber que
cerca 60% dos fiéis católicos do Morro da Conceição, não
estão vinculados a qualquer grupo e terminam por compor o
terceiro polo por nós já classificado.

Gráfico 1: correlação entre a participação em grupos e habitação no Morro da Conceição

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Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 123

Nesse contexto de observações, ressalvamos que a relação


existente entre praticantes de uma religião e instituição regula-
dora, também foi pensada por estudiosos que viram no estágio
de modernização social um iminente processo de secularização
da sociedade. Em um momento anterior, defendeu-se a ideia de
que com a modernidade, os indivíduos passariam de um está-
gio de submissão àquilo que é tido como desconhecido, sobre-
natural e sagrado para um estágio de autonomia e controle de
suas ações mundanas. Pensava-se que com o desenvolvimento
dos meios de comunicação e da produção científica poder-se-
-ia obter uma formação social que levasse os indivíduos a um
estágio de independência religiosa e institucional.
Contudo, na contramão desse processo, também passou
a ser observado um conjunto de realizações, modificações e
fortalecimentos daquilo que pode ser chamado como práti-
ca religiosa. Ora, como negar o surgimento de dezenas de
instituições que se propõem religiosas? Ou como negar a re-
vitalização de denominações religiosas centenárias frente às
mudanças comportamentais de seus fiéis? E ainda, como se
analisar o nível de autonomia atingindo pelos indivíduos que
procuram se utilizar de instrumentos próprios para o estabe-
lecimento de comunicação divinal?
Como define Peter Berger (1985), a experiência religiosa de-
sempenha um importante papel, seja como fator de integração
social, seja como direcionamento de vida. Berger reavalia sua
tese sobre o processo de secularização na sociedade moder-
na, considerando que este aspecto não deve ser predominante
em relação a outros fatores. Para ele, a ideia de modernidade,
aquela advinda do Iluminismo, não deve ser tomada como re-
gra ou condição essencial para o processo de formação de uma
secularização uniforme, pois não se pode afirmar que vivemos
em um mundo secularizado, uma vez que o mundo de hoje
seria tão religioso quanto antes.

A secularização a nível societal não está necessaria-


mente vinculada à secularização no nível de cons-
ciência individual. Algumas instituições religiosas per-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014


124 Jamerson Kemps

deram poder e influência em muitas sociedades, mas


crenças e práticas religiosas antigas ou novas perma-
neceram na vida das pessoas, às vezes assumindo no-
vas formas institucionais e às vezes, levando a gran-
des explosões de fervor religioso (Idem, 2001:10).

Ainda sobre a ideia de secularização, encontramos nos tra-


balho de Daniele Hervieu-Léger (1997) uma outra análise da
relação entre religião e sociedade. A autora preocupa-se em
não só entender a religião como instrumento simbólico, mas
também, melhor analisar a categoria secularização. Para ela,
os processos sociais pelos quais vêm passando a humanidade
remetem os indivíduos, e o mundo moderno, a uma perda de
unidade e sentido, aquilo que Marc Piault (2003) havia classifi-
cado como um campo de investigação do religioso que parece
estar se reconstruindo a partir da renovação de crenças e de
pertencimentos religiosos sobre as quais já se tinha enunciado,
precipitadamente, o desencantamento.

Revela-se de muito significativo na relação ambiva-


lente que os novos movimentos religiosos cristãos
mantêm com a tradição das igrejas e confissões no
espaço das quais se inscrevem. [...] Seu espontaneís-
mo religiosos introduz elementos de ruptura com
o conjunto das crenças, das doutrinas, dos saberes,
das normas e das práticas obrigatórias que a própria
instituição define como sendo o corpo da tradição,
cuja integridade ela preserva e cujas apropriações ela
controla. É nesta direção que se pode considerar que
estes fenômenos contribuem para o processo de des-
regulação institucional que acompanha o movimento
geral da secularização (HERVIEU-LÉGER, 1997:45).

Sabemos que o cristianismo sempre ocupou um importante


espaço na formação cultural da sociedade ocidental. No caso bra-
sileiro, a Igreja Católica serviu de instrumento para afirmação de
um modelo social imposto pelos colonizadores portugueses e

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 125

ainda ocupa um espaço de destaque dentre as demais religiões2.


Todavia, há de se considerar que o catolicismo passou por um
importante período de revisão eclesiástica, quando na década de
1960, realizou-se o Concílio Vaticano II, evento que, como obser-
vou Reginaldo Prandi (1997:30), “de um lado significou importan-
te passo na direção de uma elaboração teológica para os proble-
mas sociais, a Teologia da Libertação; de outro, formou a trilha
mais conservadora que veio a dar na Renovação Carismática”.
Em estudos recentes, Antonio Pierucci (2004) preocupou-
-se em entender como os efeitos da modernidade e seculariza-
ção poderiam de fato transformar o cenário religioso brasileiro.
Constatou que foi o catolicismo que saiu como maior perdedor
nesse processo, pois viu sua hegemonia eclesiástica ceder espa-
ço não só para o culto a outras denominações, como também,
presenciou o crescimento de uma parcela da população que se
dirigia não só para uma experiência ritualística individualizada,
mas principalmente, para a autodeclaração de não necessitar
de algum tipo de prática religiosa.

A par de uma oferta religiosa mais diversificada, esta-


mos vendo formar-se em nossa terra um contingente
cada vez mais numeroso de desencaixados de qual-
quer religião, desfiliados de toda instituição religiosa,
desligados de toda e qualquer autoridade religiosa-
mente constituída (Idem:17).

Sobre a temática proposta, as pesquisadoras Cecília Mariz e


Maria das Dores Machado (1998) preocuparam-se em revelar
algumas das estratégias utilizadas pelas instituições religiosas
tradicionais no intuito de promover uma maior institucionali-
zação de suas ações, ou até mesmo, um resgate desse controle
frente às mudanças sociais vigentes. Uma das principais preo-
cupações das autoras foi observar que, no caso dos católicos,


2
Comparando dados quantitativos, temos que em 1940, 95,2% da população se de-
claravam católica. Já com base no Censo de 1970, encontrávamos um percentual
em torno dos 92%. Em 1991, o percentual caiu vertiginosamente para 83,3% da
população e em 2000 identifica-se 73,8% da população brasileira como católica.

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126 Jamerson Kemps

o levantar de uma bandeira que apontava para a necessidade


de ligação de seus fiéis a uma instituição pareceu ser o melhor
argumento frente aos processos iminentes de secularização e
divisão de fiéis. Nesse caso, o que se viu foi o fortalecimento de
alguns dos grupos de leigos que serviram como instrumentos
fundamentais para tal retomada, pois a queda evidente na pro-
porção de católicos parece estar sendo acompanhada por um
relativo reavivamento religioso.

Se, por um lado, percebe-se esta ‘banalização das


fronteiras’ na crescente dificuldade, por parte das re-
ligiões tradicionais, em regular e manter seus adep-
tos dentro dos ‘limites seguros e estáveis de seus
sistemas de crenças’, por outro, esta se explica pela
crescente subjetivação da religião. O indivíduo não
mais atribui autoridade a uma instituição para limitar
ou definir o conteúdo de suas crenças. O pluralismo
religioso é, assim, reforçado, mas ganha um caráter
distinto desde que o papel da instituição é enfraque-
cido (Ibidem:37).

Diante desse quadro de novas formações, onde religião e


modernidade tencionam-se sem exclusão e às vezes, com re-
forço do religioso, procuramos perceber qual seria o formato
desse novo perfil católico brasileiro? Pesquisas recentes vêm
apontando para o que já foi levantado neste trabalho e indicam
para uma diversidade de práticas religiosas dentro do próprio
catolicismo. Faustino Teixeira (2005) parte para uma classifi-
cação que condicionaria o catolicismo como: 1) santorial; 2)
erudito ou oficial; 3) o dos reafiliados, marcado pela inserção
em um ‘regime forte’ (Ceb’s, Renovação Carismática, etc); e 4)
um midiático emergencial.
Essas formas de atuar do catolicismo brasileiro remetem-
-nos diretamente ao que passamos a identificar como os po-
los de vivência católica presentes na comunidade do Morro
da Conceição. Essa comunidade, devido a sua importância e
simbolismo sociorreligioso e político, esteve sempre inserida

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 127

em uma espécie de laboratório de prática de pesquisa que


comprovaria todas as mudanças ocorridas na religião. Frente
às mudanças estruturais e estruturantes, precisou a comuni-
dade católica se autoidentificar, ressalvando-se que isso não
necessariamente a condicionou a uma prática religiosa homo-
gênea. Observa-se que sua sociabilidade é marcada por con-
flitos, disputas e tensões que se acirram ao ponto de dificultar
a simples tentativa de se classificar a comunidade católica do
Morro da Conceição, já que diferentes grupos clamam por
essa titularidade.

Sociabilidade e conflito no Morro da Conceição


Tomando o argumento de Émile Durkheim (2003:192) de
que “a religião é sempre e a pleno título uma forma operante
de conhecer e organizar a vida e o mundo e que por isso é uma
ideologia em sentido amplo”, objetivamos interpretar como a
devoção à Santa da Conceição é disputada por igreja e devotos,
questionando até que ponto sua representação simbólica e ima-
gética aproxima ou afasta os grupos de fiéis católicos no Morro
da Conceição. Considerando as diferentes formas de atuar dos
citados fiéis católicos, destacamos o que ressalva Marc Piault:

O modelo hierarquizado e centralizado da Igreja Ca-


tólica, usualmente transposto para as representações
e as práticas políticas, é desconstruído por intermé-
dio de comunidades que questionam as modalidades
práticas por meio em que a fé se expressa no cotidia-
no (2003:368).

Percebemos que um dos aspectos que sempre gerou contro-


vérsias, trata da construção do prédio da Igreja Católica no Mor-
ro. Deveremos notar que tal instituição passou por um longo
período, sem a representação física de si mesma na comunidade.
À medida que convivíamos com a comunidade ligada a esta ins-
tituição, deparávamo-nos com acontecimentos passados ligados

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014


128 Jamerson Kemps

à construção e às reformas pelas quais a mesma passou, além de


encontrarmos informações que tratavam de sugestões ideológicas
e arquitetônicas que provocaram intrigas e disputas entre as lide-
ranças. Nesse sentido, vimos que a construção de um prédio que
pudesse ser conhecido como o de uma Igreja Católica, somente
se deu após longo tempo da chegada da imagem da Santa da
Conceição. Anterior à construção, a devoção dos fiéis concentra-
va-se apenas, e diretamente, à contemplação da imagem, o que
significa dizer que mesmo que de identificação com a liturgia
católica, Nossa Senhora da Conceição não possuía ou necessitava
de qualquer instrumento que viesse regular ou nortear a sua rela-
ção para com os fiéis, em específico, naquela localidade.
Certamente, mesmo que houvesse respeito ou temor por
parte do fiel diante da imagem, cabia unicamente ao exame
de consciência do mesmo, elaborar os limites e meios de sua
relação com a divindade. Por que não pensarmos que uma
vez aberto o canal de diálogo e imperado por tanto tempo tal
aspecto de liberdade, não veio o fiel católico a acostumar-se
com este aspecto de comunicação autônomo, dando base a
principal característica de devoção que caracteriza o terceiro
polo, identificado com o catolicismo popular? Esta caracte-
rística é uma marca indelével da forma devocional dos cató-
licos brasileiros, já que estão sempre a atravessar fronteiras
de classes sociais e práticas religiosas consideradas oficiais
ou não (THEIJE, 2001; REESINK, 2005), facilitando a popu-
larização da Santa da Conceição com outras denominações
religiosas que se fazem presentes no Morro, dando forma ao
sincretismo religioso local.
Sabemos que ainda no arcebispado de dom Luís Raimun-
do, preocupou-se o mesmo em edificar algo que simbolizasse
a presença permanente da Igreja Católica na comunidade. Já
vimos que tal edificação, conhecida como Torre, foi minuciosa-
mente construída em consoante alinhamento horizontal à ima-
gem, mas ao mesmo tempo que possuía 25 metros de altura,
apresentava-se mais alta, maior que a imagem, representando
uma maior hierarquia da Igreja perante a Santa. De toda forma,
essa capela não agrupava os requisitos mínimos de uma cons-

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Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 129

trução que pudesse receber qualquer quantidade de fiéis em


seu interior, certamente porque tal liderança religiosa ainda não
tivesse a dimensão do tamanho que viria a ter o culto a Nossa
Senhora, no Morro da Conceição.

Construções, reformas e contrarreformas

O recifense não está ligado às suas igrejas só por de-


voção aos santos, mas de um modo lírico, sentimental:
porque se acostumou à voz dos sinos chamando para
a missa, anunciando incêndio: porque no momento de
dor ou de aperreio ele ou pessoa sua se pegou com
Nossa Senhora, fez promessa, alcançou a graça; por-
que nas igrejas se casou, batizaram seus filhos e nestas
estão enterrados avós queridos (FREYRE, 2000:114).

Um primeiro aspecto a ser por nós destacado sobre esta con-


flituosa e disputada relação entre as representações simbólicas é
a observação de que já no ano de sua construção preocuparam-
-se a arquidiocese e a nova paróquia em construir um prédio
que viesse a complementar a antiga representação da igreja. Tal
construção foi erguida de forma que envolvesse lateralmente a
antiga Torre, dando forma a uma espécie de quadrado que dava
base ao monumento de estilo gótico, uma vez que tendo a ca-
pela se tornado paróquia na década de 1970, fazia-se importante
e necessário a construção de um prédio maior. Finalmente, um
prédio fora construído e, devido a sua simples e modesta apre-
sentação, ficou conhecido como Galpão (Foto 3).
Posteriormente, vários foram os religiosos que se preocupa-
ram em dar um melhor aspecto à Igreja do Morro alimentando-
-a de uma maior valorização institucional. Dentre eles, pe. Re-
ginaldo Veloso sempre esboçou a preocupação em construir
um santuário, alegando que a antiga construção ameaçava ruir
e que um espaço maior, com um ambiente mais amplo, aco-
modaria melhor os fiéis. Quanto a isto, descobrimos que muito
se credita o episódio do afastamento do padre às suas inten-

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130 Jamerson Kemps

ções direcionadas à necessidade de reforma da primeira igreja


a partir da elaboração de um projeto que concebia a igreja no
formato de uma ‘Asa-delta’ (Foto 4).
Vislumbramos que permitir a construção de um santuário,
tão ansiada pelo pároco, ou até mesmo permitir uma reforma e
ampliação da igreja que contemplasse suas sugestões, só viria a
fortalecer a imagem de pe. Reginaldo junto a sua comunidade,
bem como em outros segmentos sociais como o político e mi-
diático, o que levaria ao arcebispo dom José mais insatisfação,
além de dificultar a realização dos processos de mudança que
o mesmo havia definido para a arquidiocese e, em particular,
para o Morro da Conceição.

Foto 3: Igreja-Galpão, construída em torno Foto 4: Reforma que construiu o teto em forma de Asa-delta
da Torre. A foto também evidencia a presen- e manteve a entrada voltada para a antiga Torre (acervo:
ça da polícia, logo após a expulsão de pe. antigo pároco).
Reginaldo (acervo: liderança comunitária).

Quanto às reformas, após a saída de padre Reginaldo, insta-


lou-se um vitral por trás do altar da igreja. Observemos que nes-
se lugar, tradicionalmente se encontra o púlpito, local onde se
adora a imagem de Jesus Cristo. Contudo, a colocação do vitral
naquela igreja em específico, possibilitava uma maior visualiza-
ção da imagem da Santa da Conceição para os que estivessem
dentro do prédio, destacando-se simbolicamente a importância
que a imagem deveria ter junto à própria instituição religiosa.
No que se refere ao teto da igreja em formato de uma Asa-delta,

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 131

identifica-se outra simbologia arquitetônica adequada às carac-


terísticas comunitárias e culturais do Morro. Na entrevista com
pe. Josivan Sales, obtivemos a seguinte explicação:

Na construção dessa igreja, em 1979 (obra posterior


a construção do Galpão), a arquiteta foi uma suíça e
um artista famoso daqui, Corbiniano. Ele fez uma obra
pro Morro: uma tampa do sacrário. Então, a Asa-delta
e essa tampa seguiram como uma inspiração que se
vê ainda hoje: os meninos soltando pipa. O Morro da
Conceição é alto e as crianças soltam pipa. A pipa sim-
boliza algo que a arquitetura gótica e cristã realizou.
Esse movimento pensava em pontas que procuravam
o alto; algo de leveza que elevasse seu coração ao céu.
Como não se pensa em fazer uma igreja gótica aqui,
pensou-se em algo que nos elevasse ao Deus e tivesse
algo do Morro. Então, o artista fez a tampa do sacrário
com um anjo no formato de uma pipa. A asa-delta
leva você pro céu pelo vento. Ela possibilitaria uma
ventilação boa e depois indicaria de alguma forma que
você elevasse os olhos como o gótico faz; além disso,
a ponta se direciona a imagem de Nossa Senhora da
Conceição. Quando se chega ao morro, olhando para
aquela ponta você iria diretamente à imagem.

Esta nova construção deveria alinhar a imagem da Santa da


Conceição com a antiga Torre. Também houve preocupação
em, além do alinhamento horizontal, atingir-se o alinhamen-
to vertical, haja vista a altura dos monumentos anteriores. O
que sabemos é que nenhum dos dois objetivos foi alcançado,
pois os órgãos municipais responsáveis pelo controle e uso
do solo identificaram empecilhos técnicos no projeto, assim
como nem todos aspectos da reforma agradaram a maioria do
Morro, levando-nos ao entendimento de outro conflito simbó-
lico, uma vez que desde o início de sua construção, muito se
discutiu sobre se a igreja a ser erguida deveria ter suas partes
e dimensões voltadas para a imagem da Santa da Conceição

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132 Jamerson Kemps

ou para a antiga Torre. Essas preocupações e debates carre-


gam consigo uma pesada carga de representação simbólica e
hierárquica, na qual os representantes da Igreja Católica são
levados a refletir se a instituição deveria estar subordinada à
representação de Nossa Senhora ou se não deveria a mesma
submeter-se a tal instituição.
Percebemos que esta querela simbólica estendia-se a um ter-
ceiro ponto: o da consideração de que, uma vez dado início a
construção do atual santuário – mesmo sem a certeza de datas e
recursos – deveria ainda a instituição preocupar-se em definir se
a imagem permaneceria no local de origem ou se seria a mesma
removida para o interior do novo prédio. Ora, claro que muitos
dos argumentos defendidos pela segunda alternativa partiam da
certeza de que, desta forma, garantir-se-ia a preservação do mo-
numento. Contudo, não estaria a instalação da imagem no interior
da igreja, mais uma vez envolvida pela preocupação das lideran-
ças religiosas em organizar simbólico-hierarquicamente a devo-
ção a Nossa Senhora da Conceição pelos seus fiéis católicos? Ob-
servemos o que disse um dos fiéis entrevistados a esse respeito:

Nossa Senhora não sabe mais o que fazer, coitada!


Ela joga pro filho dela, mas o filho vai e repassa:
Não, a comunidade é sua. Ela fica no meio, pois, são
duas pessoas assim: Reginaldo, a Igreja da Resistência
puxa pra um lado; dom José puxa de outro.

Notemos que o discurso aponta para uma disputa exis-


tente entre os católicos, considerando que a igreja oficial e a
igreja do segundo polo procuram tomar para si o simbolismo
que envolve a imagem. Todavia, com a pesquisa de campo,
deparamo-nos com a decisão do padre Reginaldo de que não
caberia aos seus seguidores realizarem qualquer demonstra-
ção de devoção a Santa da Conceição, em qualquer espaço
que representasse a instituição oficial, ocorrendo o mesmo
quando da realização da Festa do Morro.
A respeito da relação entre ocupação do espaço físico e a
representação de Nossa Senhora, analisemos o que disse o pa-

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Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 133

dre da igreja oficial sobre a preocupação do atual projeto do


santuário, alinhando-o à imagem e à Torre:

Se passarmos uma linha do centro da Torre ao centro


da imagem, essa linha não cortará o centro da igreja.
Então, no projeto dissemos que a porta da igreja deve
estar reta com a porta da Torre e o vitral deve estar
reto com a imagem. Mas havia um problema: com o
tamanho da igreja, ela emendaria totalmente o espaço
da mureta. Então fizemos assim: baseado numa li-
nha doutrinal ou artística, a igreja decide se subjugar.
[...] As pessoas vêm ao Morro não para visitar o San-
tíssimo Sacramento, o que seria oportuno o católico
fazê-lo, mas o faz por causa de Nossa Senhora da
Conceição. Pensamos inclusive em colocar o sacrário
na frente da imagem, mas teriam pessoas que ignora-
riam; então o sacrário da igreja do Santíssimo, como
pede a Igreja do Vaticano II, foi colocada num outro
ponto. O ponto central da igreja vai à direção do altar
que segue em direção à imagem, pois o central desse
santuário é a imagem.

Com base nessas informações, não só se torna evidente a


consciência e preocupação institucional quanto a predomi-
nante adoração à imagem por parte do fiel em detrimento da
igreja, como também vem a reforçar o argumento no qual se
destaca a importância da devoção autônoma e direta voltada
à Santa da Conceição como característica do catolicismo no
Morro. Todavia, mesmo consciente desta característica, a Igre-
ja Católica continuou a preocupar-se em ordenar a relação
devocional, conforme análise da continuação da entrevista,
quando questionamos se houve preocupação em se colocar a
igreja de frente ou de costas para a imagem:

Eu sei que se construiu um galpão entre a Torre e a


imagem, e antes a missa era celebrada dentro da Torre.
Veja bem, a igreja estava de frente para a imagem. Mas,

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134 Jamerson Kemps

se você pensar direitinho, como as pessoas ficavam


de frente para o padre, elas ficavam de costas para a
imagem. Já com a igreja de 1989, colocou-se a igreja de
costas para a imagem, mas como havia o vitral, as pes-
soas ficavam de frente para ela. Então, ao se recuperar
aquele antigo vitral, a imagem fica de alguma forma
dentro da igreja. Nas igrejas católicas, atrás do altar, há
algo chamado de retábulo; nós não queríamos fazer
o retábulo aqui porque seria colocar outro elemento
de veneração em relação à imagem. Em outras igrejas
seria impensável não ter decoração no centro do altar,
mas aqui, nossa decoração será a imagem.

Pela construção do santuário

Ao aproximar-se de Maria, o peregrino deve sentir-se


chamado a viver aquela dimensão pascal, que gradual-
mente transforma a sua vida (...) do encontro comu-
nitário e pessoal com Maria, estrela da evangelização,
os peregrinos serão impelidos, como os apóstolos, a
anunciar com a palavra e o testemunho de vida as ma-
ravilhas de Deus (...) Maria é o templo de Deus, não o
deus do templo (St. Ambrósio 1999, At. 2, 11).

No início de nossa pesquisa de campo, a notícia da cons-


trução de um grande santuário no Morro preocupou-nos por
considerar que tal processo mudaria muito da rotina de nosso
objeto de estudo, afinal, não seria a Antropologia uma espécie
de calçada de subúrbio acadêmica, no sentido de estar sempre
atenta aos movimentos cotidianos da comunidade? Contudo,
passamos a considerar que tal aspecto poderia ser utilizado
como uma nova variável, a partir da qual se pudessem testar
as dificuldades que os processos de mudanças físicas e arqui-
tetônicas sempre trouxeram á igreja no Morro. Sendo assim,
passamos a questionar o que poderia significar a construção
do Complexo Santuário de Nossa Senhora da Conceição para

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Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 135

sua comunidade local e como a influência arquitetônica dessa


mudança poderia se refletir na geração de novos conflitos?

Foto 5: Maquete do novo Santuá-


rio (acervo pessoal).

Ao participarmos de uma das reuniões de elaboração do


projeto (Foto 5), percebemos que havia uma preocupação de
que o mesmo contemplasse as contribuições das pessoas que
conviveram ou convivem com aquela comunidade. Nesse senti-
do, perguntamos ao padre Josivan, como o atual projeto pode-
ria contemplar a tantos diferentes anseios e necessidades.

O projeto foi pensado por um grupo chamado Equi-


pe do Projeto Santuário formado por oito pessoas das
mais representativas da paróquia, bem como vende-
dores, romeiros etc. Depois se tentou tomar as ideias
dos antigos santuários aqui do Morro. Por exemplo, o
povo sempre pergunta: por que derrubaram o vitral
que existia na época de pe. Reginaldo Veloso? E os
jardins que também existiam em seu tempo e no de
pe. Constante? Havia questões sobre os acendedores;
salas-ambientes para as diversas necessidades etc.
Pensou-se: precisamos de quê? O grupo disse: uma
igreja pra muitas pessoas. Temos outras questões: na
Festa são dez mil, mas depois são menos. Decidiu-se
por uma de mil pessoas. Outras coisas: queria-se co-
locar a Santa dentro, outros queriam fora. Disseram:

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136 Jamerson Kemps

não, é melhor colocar fora, porque quando a igreja


estivesse fechada, as pessoas iam querer entrar e a
igreja não pode ficar aberta 24h. Depois, na Festa é
muito movimento ao redor da imagem, então seria
um caos dentro da igreja.

Em todos os aspectos do trecho apresentado podemos per-


ceber como o pároco preocupou-se em nos passar o contexto
de construção do projeto como um processo onde o santuário
representasse a unificação de todos os que compõem a comu-
nidade católica do Morro da Conceição, pois não só na sua
composição se deveria ouvir variados segmentos da comuni-
dade local e católica, como também, em sua funcionalidade,
deveria representar o santuário a possibilidade de Igreja e Santa
estarem juntos perante seus arrebanhados. Como justificativa
ao projeto apresentado para captação de recursos do novo san-
tuário, tínhamos que o mesmo deveria explicitar as duas faces
de convivência sociorreligiosa do Morro, ligadas a religiosidade
e perfil mariano da comunidade, e a face que se ligaria à comu-
nidade no que tange questões sociais, exercício da cidadania,
geração de trabalho e renda.
No ano de 2006, o projeto, revisto várias vezes, previa
uma igreja maior, com capacidade para mil pessoas. Previa
também a construção da Casa de Acolhimento ao Peregrino,
bem como, a Fábrica da Santa, nas quais seriam desenvolvi-
das obras sociais voltadas para a comunidade. Interessante
observar que também consta no projeto o plantio de doze
Palmeiras Imperiais no entorno da imagem, continuando a
mesma do lado de fora da igreja e ao lado do acendedor de
velas. A justificativa para o plantio dessas árvores, verificamos
no próximo trecho da entrevista:

As palmeiras acompanham um movimento que é cir-


cular, mas ela não fecha. Se eu olhar a igreja de cima,
vejo que o palco da Torre também é circular. Atrás
da imagem também há circularidade não só de ele-
mentos arquitetônicos, mas elementos naturais. Pri-

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Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 137

meiro: essas palmeiras tentam dar uma ideia de que a


imagem está dentro da igreja porque elas lembrarão
colunas quando estiverem grandes, colunas de igreja;
mas ao mesmo tempo, não é um elemento artificial,
não é de concreto pra que deixe a imagem fora. Ela
vai dá sombra e a impressão de que a imagem está
dentro da igreja estando fora. É uma ideia que em-
bora seja minha, é uma ideia que vários arquitetos e
paisagistas barrocos colocaram. O número de doze
é por ser um número simbólico para a teologia ca-
tólica: as doze estrelas da coroa de Nossa Senhora;
as doze tribos de Israel, no Antigo Testamento, e os
doze apóstolos do Novo Testamento.

Neste recorte, percebemos quanto os que se encontram


como responsáveis pela gestão da instituição religiosa preo-
cupam-se com a representação simbólica de controle de seus
fiéis. De antiga querela eclesiástica a viés orientador do projeto
do santuário, seus responsáveis preocupam-se em englobar e
controlar a massa de fiéis católicos devotos de Nossa Senhora
da Conceição. Observemos outro trecho de entrevista, agora
com o então secretário paroquial:

Uma coisa que foi certa foi esse negócio do projeto


pra que a imagem ficasse fora da igreja. Então, houve
o conselho dentro da comunidade mais Pe. Sérgio
e Pe. Josivan, e se achou de não colocar a imagem
dentro, porque se você a colocasse dentro, você esta-
ria privando ela, e quando foi colocada aqui há cem
anos atrás, ela não foi pra ser de uma pessoa ou de
tal grupo. Então, quer dizer: a imagem pertence ao
povo. Já viu a imagem dentro da igreja com as portas
fechadas, à noite? Tem gente que não entra na igreja,
como o pessoal de Resistência, mas adoram a ima-
gem do lado de fora dos portões. Se colocasse dentro
da igreja, que horas iriam ver a imagem? Seria forçar
o povo a entrar na igreja pra ver; seria uma polêmica.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014


138 Jamerson Kemps

Neste trecho, aponta-se para a tentativa de se promover a


unidade entre instituição, fiel e a Santa Conceição. A fala do se-
cretário alinha-se à de pe. Josivan no que se refere ao respeito
pelo que se faz e já foi feito por pe. Reginaldo Veloso e seu gru-
po. Diante disso, procuramos pe. Reginaldo e o entrevistamos
sobre a construção do novo santuário, sua relação com a igreja
e comunidade católica do Morro, no sentido de perceber se o
mesmo se sentia contemplado.
Olha, eu nem estou sendo chamado em causa, levado em con-
sideração, e por uma questão, eu diria até simbólica, uma questão
de princípios, coerência, eu não me sinto com nenhum interesse
em contribuir, em estar trocando opiniões e está ligado na coisa.
Eu espero que seja uma coisa da melhor possível pro povo, dese-
jo, mas eu não me considero como uma pessoa que tenha alguma
coisa a dizer ou que tenha que participar de alguma maneira.
Podemos observar que tanto os padres envolvidos em nossas
análises, bem como muitos dos agentes sociais envolvidos nesse
processo de sociabilidade religiosa, possuem argumentos e posi-
cionamentos diversos quanto à execução da construção de mais
uma obra institucional. Enquanto o pároco da igreja oficial apre-
sentava-se como representante de uma igreja engajada na unida-
de de todos os fiéis católicos que convivem com a paróquia do
Morro da Conceição, temos que o líder do segundo polo defende
o não envolvimento de seus seguidores em qualquer ação que
aponte para esta unificação, ao mesmo tempo em que paralelo às
determinações dos dois grupos, encontra-se uma massa de católi-
cos caracterizada pela sua autonomia, continuando a exercer sua
devoção a Nossa Senhora da Conceição à sua maneira.

Considerações finais

Passados cento e dez anos da chegada da imagem de Nossa


Senhora ao Morro da Conceição, verificamos o quanto essa
representação de devoção e fé religiosas esteve permeada por
uma série de querelas que transpassam o campo religioso e se
relacionam com os campos político, ideológico e simbólico.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014


Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição? 139

Procuramos com esta comunicação apresentar um perfil socior-


religioso da comunidade católica do Morro da Conceição em
virtude da relevância que a mesma possui na cidade do Recife,
não só em termos religiosos, mas também políticos e culturais.
A partir da observação desse contexto, conseguimos melhor
entender como sua sociabilidade passou a se desenvolver a
partir das relações do que classificamos como os três polos de
vivência católica, identificando antagonismos entre os dois pri-
meiros polos, mas também, práticas de congruência entre eles
e o catolicismo popular.
De toda forma, faz-se importante ressalvar que atualmente, a
comunidade é administrada por um novo pároco, assim como
a própria Arquidiocese de Olinda e Recife, hoje comandada
por Dom Fernando Saburido. Nesse sentido, será de suma im-
portância perceber qual o impacto que seu arcebispado cau-
sará nas relações sociorreligiosas do Morro, considerando que
o mesmo trabalhou com Dom Hélder Câmara e que todos se
encontram inseridos dentro de um complexo e dicotômico sis-
tema de alternância eclesiástica e administrativa que prevalece
na Igreja Católica e sua sede no Vaticano, terminando por in-
fluenciar diretamente a formação do catolicismo no Brasil, e
mais especificamente, no Morro da Conceição.

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OS CAVALCANTI DE
ALBUQUERQUE DE PERNAMBUCO
E A POLÍTICA ENTRE O PRIMEIRO
REINADO E AS VÉSPERAS DO
DOMÍNIO DO PARTIDO DA PRAIA1

Paulo Henrique Fontes Cadena2

Resumo: Na década de 1830, os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco


eram acusados, nas páginas do Diário de Pernambuco, do domínio político
da Província. Conseguiriam subir ao Senado Imperial, na mesma década,
dois dos seus membros. Neste artigo estudaremos a trajetória política dos
irmãos Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Suas-
suna), Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque
(Visconde de Albuquerque), Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albu-
querque, Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Barão de
Muribeca) e Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Visconde
de Camaragibe) entre o Primeiro Reinado e as vésperas do domínio do Par-
tido da Praia em Pernambuco (1844).

Palavras-chave: Império do Brasil, Cavalcanti de Albuquerque, Pernambuco.

Cavalcanti de Albuquerque Family in Pernambuco and the politics be-


tween the First Reign and the beginning of Praia Party’s influence

Abstract: In 1830, the ‘Cavalcanti de Albuquerque’ family of Pernambuco


was  mentioned, in the pages of the Diário de Pernambuco,  because of
their political domain on the Province. They were able to send to the Impe-
rial Senate in the same decade two of their members. This article will discuss
the political trajectory of the brothers Francisco de Paula Cavalcanti de Al-
buquerque (Viscount of Suassuna), Antonio Francisco de Paula e Hollanda


1
Artigo recebido em maio de 2014 e aprovado para publicação em junho de 2014.
Doutorando em História da Universidade Federal de Pernambuco.
2

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


142 Paulo Henrique Fontes Cadena

Cavalcanti de Albuquerque (Viscount of Albuquerque), Luiz Francisco de


Paula Cavalcanti de Albuquerque, Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque (Baron of Muribeca) and Pedro Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque (Viscount of Camaragibe) between the First Reign and the
eve of the Praia Party domain in Pernambuco (1844).

Keywords: Empire of Brazil, Cavalcanti de Albuquerque, Pernambuco.

Pelos idos da década de 1830, os Cavalcanti de Albuquerque


conseguiam incomodar a política provincial de Pernambuco e
faziam jogos bem armados na Corte. Se as denúncias anti-Caval-
canti foram tantas, do alto do Senado eles observavam os seus
adversários. O caminho traçado fora longo. Taunay lembrara
que “dentre as famílias senatoriais nenhuma houve tão larga-
mente representada como a nordestina e sobretudo pernam-
bucana dos Albuquerques e Cavalcantis” (TAUNAY, 1978:160).
No sábado, 9 de julho de 1831, na primeira página, o Diário de
Pernambuco apresentava as suas críticas ao domínio Cavalcanti
de Albuquerque em Pernambuco:

Temos poupado até aqui os nomes dos Senhores Ca-


valcantes em diversos papéis, que temos publicado;
mas já não é possível guardar essa atenção: eles não
pecam por ignorantes. Como não temos parentes,
nem dependemos, nem estamos ligados a família al-
guma, não podemos ser acusados de querer tirar de
uma para dar a outra, não queremos sim, que uma
família prepondere e domine a nossa província, ou
outra qualquer do Brasil, e não é para com isso ga-
nharmos para fins particulares.3

O principal foco da historiografia sobre a época que antecede


a Insurreição Praieira tem sido a oposição aos Cavalcanti de Al-
buquerque, como era o caso dos praieiros, ou até mesmo os di-
tos “cavalgados”, tais como os seguidores de Borges da Fonseca,
os escravos e a “populaça” do Recife. A proposta deste trabalho

3
APEJE, Diário de Pernambuco, 9 de julho de 1831.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 143

é estudar os Cavalcanti de Albuquerque identificando as suas


trajetórias, compreendendo os problemas políticos entre os dias
do Primeiro Reinado até 1844, as vésperas do governo praieiro,
reconhecendo algumas alianças e o rompimento das mesmas.
Desde os fins do século XVIII, os Cavalcanti de Albuquerque
buscavam chegar ao poder. A tentativa de conseguir o Foro de
Fidalgo Cavaleiro de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquer-
que, não fora acertada.4 Mesmo se mostrando ser um dos ho-
mens mais ricos de Pernambuco, com três engenhos de fazer
açúcares, não conseguia o Foro de Fidalgo Cavaleiro: nem por
serviços e nem por sangue. Todavia, como bem lembrou Hespa-
nha, os sentimentos de raiva, advindos da ganância por cargos e
até pelo sentimento de terem sido esquecidos pelo Rei, levavam
os homens da Colônia a revoltarem-se (HESPANHA, 2010:52).
Foi assim, que em 1801, os filhos de Francisco Xavier – Luiz
Francisco, José Francisco e Francisco de Paula – confundiam
as palavras poder e liberdade. Faziam uma conspiração contra
Portugal, mesmo que fosse mental, como indicou Pereira das
Neves (NEVES, 1999:439-481). Tudo ficara em perpétuo silên-
cio, pelas manobras daqueles dias. Todavia, a liberdade era,
nesse momento, interesse pessoal dos Cavalcanti de Albuquer-
que. A liberdade estava diretamente ligada ao poder.
Não se sentindo intimidados pelas prisões em 1801, conti-
nuavam buscando a nobilitação e espaços no poder. Em 1817,
os Cavalcanti de Albuquerque se desentendiam mais uma vez
com a Coroa. E vinha outra vez a ideia do libertar-se para
alcançar o poder. Mas, era mais uma tentativa frustrada. Os
cálculos para as ações de 1817 não foram precisos: além da
liberdade perdida por Francisco de Paula - que ficara conhe-
cido por Coronel Suassuna -, pelo seu irmão Luiz, e por seu
filho Francisco de Paula, nos cárceres da Bahia, ficavam pri-
vados da vida de José Francisco (filho do Coronel Suassuna).
O Real Erário confiscara toda a safra do Engenho Suassuna (1
conto e 642 mil réis), os animais, instrumentos para o fabrico

LAPEH – AHU_ACL_CU_015, Cx.224, D.15122. Pedido de Foro de Fidalgo Cava-


4

leiro de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


144 Paulo Henrique Fontes Cadena

do açúcar, os móveis avaliados em 95 mil e 300 réis, um terre-


no nos Afogados, dentre outros bens. Muito mais coisas foram
retiradas das mãos do Coronel Suassuna e vendidas em leilão:
parte da Ilha de Joana Bezerra, e até “um retrato da posse do
Réu insurgente Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque
que sendo ele da pessoa do Governador e Capitão General da
Capitania de Moçambique José Francisco de Paula Cavalcanti
irmão do Réu por sete mil réis”.5
Quem arrematou o retrato, oitenta livros velhos, 19 vacas de
leite, 42 ovelhas grandes e 5 pequenas, a renda de três anos
do Engenho Suassuna com fábricas de gado e escravos fora
Guilherme Patrício Bezerra. Não custa nada lembrar que era
ele o marido de Dona Francisca Maria Joaquina Cavalcanti de
Albuquerque, filha natural do Coronel Suassuna.6
O coronel Suassuna morria em 1821, deixando várias dívidas,
sobrando apenas 4 contos 165 mil 832 réis para dividir entre
todos os filhos vivos7: Francisco de Paula Cavalcanti de Albu-
querque (futuro Visconde de Suassuna), Antonio Francisco de
Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque (futuro Visconde
de Albuquerque), Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albu-
querque, Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque
(futuro Barão de Muribeca), Pedro Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque (futuro Visconde de Camaragibe). Ainda havia
os herdeiros da já falecida filha Dona Maria Luiza Francisca de
Paula Cavalcanti de Albuquerque, que fora casada com José Cas-
tor Barboza Cordeiro. Não sobrava uma imensa fortuna.
O engenho Suassuna era descrito, no inventário do Coro-
nel Suassuna, como velho, muitas vezes. Até algumas das suas
peças não podiam ser mais usadas.8 Todavia, era na década de

5
IAHGP, Caixa 5, 669, 1817, Inventário de Dona Maria Rita de Albuquerque e Mel-
lo, senhora do Engenho Suassuna, p. 44.
6
IAHGP, Caixa 5, 669, 1817, Inventário de Dona Maria Rita de Albuquerque e Mel-
lo, senhora do Engenho Suassuna, p. 44 verso.
7
IAHGP – Caixa 023, TJR1, 1821 – Inventário de Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque: Senhor do Engenho Suassuna, pp. 55 verso – 57 verso.
8
IAHGP – Caixa 023, TJR1, 1821 – Inventário de Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque: Senhor do Engenho Suassuna, pp. 29 e 94.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 145

1840 que o engenho mostrava a sua imponência (CADENA,


2013:85). No entanto, nesse tempo, Francisco de Paula, o filho,
já havia sido presidente da Província de Pernambuco, Ministro
da Guerra, Deputado na Província e era Senador. O projeto do
poder pela política dava certo e lhes era muito rentável.
Em 1822, quando ascendia ao governo de Pernambuco o
“Governo dos Matutos”, já estava lá Francisco de Paula, que
não mais sairia do poder em Pernambuco, com exceção do
período entre 1828 e 1832. Mas, entre 1826 e 1844, ele as-
sumira a Presidência da Província, pelo menos sete vezes,
além do cargo quase eterno de vice-presidente (CARVALHO,
1998:111). Percebendo o ano de 1835, um dos quais Francis-
co de Paula assume as rédeas pernambucanas, os registros
da polícia civil sobre a segurança da província não são dos
melhores. E nem as condições das celas que acondicionavam
os presos. Assaltos, desordens, arruaças, tudo isso havia sob
os olhos de Francisco de Paula. Nunes Machado, então chefe
de polícia, dava-lhe notícias sobre as situações complicadas
quanto aos acontecimentos violentos nas ruas. Chama atenção
– além de alguns pedidos de afastamento por problemas de
saúde9 – Nunes Machado reclamar a Francisco de Paula por
não ser atendido em suas súplicas.10
Todavia, Hollanda Cavalcanti, a 27 de novembro de 1824,
dava notícias a Pedro Francisco, por carta, e dizia: “O Mano
Francisco continua a governar a sua casa; e com que arte, e
com que probidade. Quão feliz que nós somos. Este irmão
merece um cantinho no nosso Oratório”.11 Talvez por governar
tão bem o que era de posse de sua família, esquecesse, em
alguns momentos que lhe convinham, de segurar às rédeas os
problemas que afligiam a Província. Pode-se até pensar que
Francisco de Paula estava mesmo era se importando com seus

APEJE – PC2, p. 348.


9

10
APEJE – PC2, p. 191.
11
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
223 – Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de
Paula Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Caval-
canti de Albuquerque.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


146 Paulo Henrique Fontes Cadena

interesses, e que a expressão “governar a sua casa” seja relati-


va, sim, ao governo de Pernambuco.
Hollanda Cavalcanti, depois de ter andado por Moçambi-
que, ajudando o tio José Francisco, volta para Pernambuco
em 1824. Lutando contra a Confederação do Equador, estava
do lado de Pedro I, e segundo Marcus Carvalho, por isso,
recebia apoio real nas eleições que se dariam mais tarde, à
Câmara (CARVALHO, 2002:49). Também era um militar de
vasta experiência.
No ano de 1846, quando era Ministro da Fazenda, Hollanda
Cavalcanti discursara na Câmara dos Senhores Deputados e
dissera que “eu mesmo já negociei com escravos”.12 Colocava
que como seu emprego em África não o havia dado fortuna,
“comprei alguns escravos e os trouxe para o Rio: comprei-os
na melhor boa fé, como qualquer homem trata o mais licita-
mente que se pode fazer”.13 Tal fala confirma uma informa-
ção dada por Antonio José de Lima Leitão, que o escrevera
de Moçambique aos 5 de janeiro de 1820. Ao ser acusado de
revolucionário junto ao tio de Hollanda, Leitão pedia uma
defesa junto ao Rei e que “dou a V.S. por esta minha carta
todos os poderes de se concertar com o nosso amigo Manoel
Joaquim da Silva Porto para tudo que julgarem dever convir-
-me, e para dele receber, sendo-lhe preciso, parte, ou todo o
produto da minha metade dos negros que vivos chegarem”.14
Com isso, percebemos que Hollanda Cavalcanti comerciara,
também, em África, além de ministrar aulas de Matemática e
servir como militar.
Luiz Francisco não acompanhara os irmãos militares Hollan-
da Cavalcanti e Francisco de Paula. Seguiria a carreira jurídica
e do emprego público. Diria ele em 1825, aos irmãos mais no-

12
Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 25 de junho de 1846. p. 455. Dis-
ponível em: imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?se/CodColecaoCsv=A&Data
in=25/6/1846. Acesso em 16 de nov. de 2013.
13
Idem.
14
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
223 – Moçambique, 5 de janeiro de 1820: Carta de Antonio José de Lima Leitão
para Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 147

vos: “este emprego me dá uma subsistência independente da


minha família, e espero ser útil a vocês, quando se formarem”.15
A ajuda que pensava em dar Luiz Francisco aos irmãos Pedro
Francisco e Manuel Francisco não era financeira, todavia, de
lhes conseguir, também, algum lugar na malha clientelar. O em-
prego público era tão importante, na visão desse irmão, que se
preocupava, ainda em 1831, que Manuel Francisco “se conserve
por hora sem emprego público; a nossa vez nos há de chegar
sem fazer para isso muito empenho”.16
Sendo o diploma de direito uma das condições para aqueles
que pretendiam chegar aos altos postos (CARVALHO, 2003:125),
como afirma José Murilo de Carvalho, com os irmãos Pedro e
Manuel não seria diferente. Pelos dias iniciais do rompimento
entre Brasil e Portugal, Pedro Francisco ainda estava em Por-
tugal, estudando. Mas, com a separação, Pedro e Manuel vão
estudar direito em Göttingen. Talvez o rompimento não fosse
apenas político com Portugal, mas também, educacional e ideo-
lógico (CADENA, 2013:94).
Em 27 de novembro de 1824, Hollanda colocava a Pedro
Francisco: “Árduas são a maior parte dos sacrifícios que a so-
ciedade exige de nós: e entretanto a tua Pátria precisa muito
de pessoas que saibam o Alemão, e eu folgaria muito de te ver
Alemão bem Alemão”.17 Entretanto, já em 1º de novembro do
mesmo ano, Hollanda dissera: “continuem vocês a distinguir-se
nos seus estudos que é o maior serviço que podem prestar a
sua Pátria”.18 Era este distanciamento de Portugal que se pre-

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa


15

223 – Recife, 11 de maio de 1825: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de


Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
16

223 – Rio de Janeiro, 08 de junho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Caval-
canti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
17

223 – Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de


Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Ca-
valcanti de Albuquerque.
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
18

223 – Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


148 Paulo Henrique Fontes Cadena

tendia, sem esquecer do serviço à pátria, nos postos ligados ao


Estado, ao qual estariam fadados a servirem.
Em 1826, iniciam as discussões sobre a abertura dos cur-
sos jurídicos no Brasil. A elite muito se interessava em ver
seus filhos, agora mais facilmente, formados nas leis, sem a
necessidade da separação obrigatória pelo Atlântico. Perce-
bendo isso, Luiz Francisco ia montando Pedro Francisco para
ser professor dos cursos jurídicos que se fundavam no Brasil,
e dizia: “Você pelo seu diploma está habilitado para obter/
com preferência a qualquer outra pessoa/ uma das cadeiras
de Política, que fazem parte dessas escolas”.19 Pedro Francisco
o foi. Nesse posto, além de lecionar para os filhos da elite
– os futuros possíveis governantes – ainda teriam bons ven-
cimentos sendo funcionários públicos. Ainda mais, os favores
eram uma boa moeda de trocas, passando em favores de não-
-reprovação e proteção.
Um exemplo disso é a carta recebida por Pedro Francisco,
quando já lente do curso jurídico de Pernambuco, em 1837, en-
viada por Miguel Calmon du Pin, o futuro Marquês de Abrantes:

Consta por aqui, que o Sr. José Ignácio Accioli, de


uma boa família desta Província, se tem armado
por lá um casamento; e que, para coagi-lo a isso,
o ameaçam até com RR no seu último exame, vis-
to ser ele estudante do 5º ano nessa Academia de
Olinda. E posto que eu não dê crédito a ameaças
tão indignas, todavia sendo mui possível o empre-
go d’alguma violência em negócio tal, vou rogar-lhe
encarecidamente, que proteja ao jovem Bahiano, de
quem falo, e interponha todos os seus bons ofícios
a fim de que ele não seja sacrificado, e roubado às

Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Manuel Francisco de Paula


Cavalcanti de Albuquerque.
19
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Cai-
xa 223 – Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1826: carta de Luiz Francisco de
Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 149

esperanças que tem dado à sua família natural. É


favor que espero do meu amigo.20

Não era apenas um favor a Abrantes, mas, a “uma boa famí-


lia” da Bahia. A citada proteção deve ter rendido alguns bons
pagamentos em alianças políticas e negociações.
A primeira legislatura à Câmara dos Senhores Deputados
dava-se entre os anos de 1826 e 1829. Das 13 vagas pernambu-
canas, temos Luiz Francisco e Hollanda Cavalcanti assumindo
duas delas. A atuação de Hollanda Cavalcanti era intensa. As
brigas com o deputado Bernardo Pereira da Vasconcellos eram
frequentes. Ainda nas sessões de 1826, Hollanda reclamava con-
tra os taquígrafos, e não era sem razão. É perceptível nos Anais
do Parlamento Brasileiro, as inúmeras vezes em que as falas do
deputado pernambucano são suprimidas. A expressão “não foi
ouvido” é abundante. Talvez fosse uma briga ou até questão
política mesmo o não registrar os pronunciamentos “holande-
ses”. Os reclames de Hollanda deveriam ser tantos que incomo-
davam. Se não o calavam nas sessões presentes, o calavam nas
páginas do registro (CADENA, 2013:101). Hollanda também se
pronunciaria contra o Imperador, nas emendas oferecidas ao
voto de graças às Falas do Trono de 1828. Mas, mesmo assim,
ainda estaria no Ministério que era dissolvido por Pedro I, nos
dias anteriores à sua abdicação (CARVALHO, 1998:111).
Com a saída de Pedro I e a chegada da Regência Provisória, os
Cavalcanti de Albuquerque não se alinhavam com a política de
então. Aos 8 de julho de 1831, Luiz Francisco escrevia uma carta
a Pedro Francisco, informando que “renunciamos não só o Mi-
nistério mas todos os empregos”.21 Luiz Francisco falava por um
grupo: “Irmão e primos somos aqui deputados da oposição”.22

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa


20

223 – Bahia, 2 de abril de 1837: Carta de Miguel Calmon du Pin para Pedro Fran-
cisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
21

223 – Rio de Janeiro, 08 de julho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Caval-
canti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
22

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


150 Paulo Henrique Fontes Cadena

Nesse momento, havia a aliança entre os Cavalcanti. Junto com


Luiz Francisco e Hollanda, estavam Sebastião do Rego Barros e
Francisco do Rego Barros: os primos. Dessa forma, percebemos
o que Carvalho e Câmara quiseram dizer com “os Cavalcanti
e seus aliados não agiam quase como um partido apenas na
Província. Também era assim no Parlamento” (CÂMARA, CARVA-
LHO, 2008:14). Se não funcionavam como partido, acionavam o
poder como um forte grupo de interesses regionais e familiares.
Por volta de 1833, os Cavalcanti conseguiam estar na Câmara
dos Deputados, na Corte, com a vice-presidência de Pernambu-
co, e ainda estava Hollanda como juiz de paz e Luiz Francisco,
desembargador da relação. Iam montando a problemática do po-
der. Ao que parece, era, Hollanda, um estrategista político, o líder
da parentela Cavalcanti na Câmara (CADENA, 2013:111-112).
O Ato Adicional teria as suas discussões pelos dias de 1834.
Eram criadas as Assembleias Legislativas Provinciais. A Regên-
cia Una substituiria a Trina, através de eleição. O Diário de Per-
nambuco publicava, aos 26 de fevereiro do ano seguinte, a lista
dos 36 deputados provinciais. Nela estavam Pedro Francisco,
Francisco de Paula e Luiz Francisco. Manuel Francisco aparece-
ria, mais tarde, entre os suplentes.23 Nos tabuleiros dos jogos do
poder, as peças se armavam.
Enquanto isso, na Corte, ia se delineando a paisagem da
eleição regencial. Não seria sem discórdias que os moderados
chegariam ao nome do Padre Diogo Antonio Feijó para a candi-
datura (SOUSA, 1988:209). Pensou-se muito em Luiz Francisco
como candidato opositor ao religioso, todavia, sairia, na verda-
de, Hollanda Cavalcanti.
Por volta de abril de 1835, iam publicando-se as prévias
eleitorais. Talvez por isso, para contornar as perdas, em 6
de junho de 1835, Luiz Francisco apresentava à Câmara dos
Deputados um projeto de maioridade para Pedro II. Mas, aos
19 de junho, o projeto não era admitido à discussão. Todavia,

223 – Rio de Janeiro, 08 de julho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Caval-
canti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.
23
APEJE, Diário de Pernambuco, 26 de fevereiro de 1835.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 151

aos 9 de junho, sairia o nome de Feijó como regente, mesmo


quem em Pernambuco, Feijó tenha obtido 179 votos contra
os 354 de Hollanda, mostrando a força dos Cavalcanti na pro-
víncia. No entanto, a pequena diferença de 575 votos que ha-
via entre Feijó e Hollanda, na contabilidade geral, mostrava a
grande divisão política pela qual passava o Império, naquele
momento (CADENA, 2013:128-130).
Mesmo com tudo isso, Pernambuco estava sob o poderio
Rego Barros – Cavalcanti. A província estava nas mãos de Fran-
cisco de Paula. Na Assembleia local, estavam eleitos além do
próprio Francisco de Paula, Pedro Francisco, Manuel Francisco
e Luiz Francisco. No Rio de Janeiro, Hollanda, Sebastião e Fran-
cisco do Rego Barros comungavam os interesses.
Por 1837, o governo de Feijó não ia bem. As articulações de
Bernardo Pereira de Vasconcellos para o Regresso iam desgas-
tando o governo, além das revoltas que iam aparecendo nas
províncias. Tanto os jornais quanto os deputados, criticavam o
governo do padre de Itu (SOUSA, 1988: 221 – 222). Inclusive
Hollanda, que diria: “como se pode resistir às seduções em um
governo, como o nosso, cheio de seduções”.24 Da forma indica-
da por Cascudo, nesse momento, Hollanda perdera um pouco
do predomínio político, “mas conservava o prestígio de sua
sugestiva combatividade borbulhante” (CASCUDO, 1938:163).
Entretanto, pelos dias do segundo semestre de 1837, Hollan-
da já não tinha mais a companhia do seu irmão Luiz Francisco
na Câmara. E aos 23 de março de 1838, o Echo da Religião e do
Império noticiava a sua morte, ocorrida aos 13 de março:

O Desembargador Luiz Francisco de Paula Cavalcanti


de Albuquerque, Deputado Provincial e Geral, fale-
ceu no dia 13 do corrente! Ótimo pai de família, ci-
dadão de todo estimado por suas qualidades cívicas,
Magistrado de uma reputação ilibada, orador atilado,

Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 08 de julho de 1837. p. 63. Dis-


24

ponível em http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Dat
ain=8/7/1837. Acesso em 09 de maio de 2011.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


152 Paulo Henrique Fontes Cadena

e sensato [...]. A Pátria perdeu nele para sempre um fi-


lho de grandes esperanças, e o partido da Legalidade
um dos seus mais decididos propugnadores!!! Voou
à morada dos Justos, donde era digno. Pernambuco!!
Guarda o depósito de suas cinzas, que serão sempre
abençoadas na recordação dos seus serviços.25

Em fevereiro de 1837, eram marcadas eleições para uma


vaga no Senado, por Pernambuco. Os candidatos seriam Pedro
de Araújo Lima, Hollanda Cavalcanti e seu irmão, Francisco de
Paula. Hollanda saía o mais votado com 292 votos, seguido de
Francisco de Paula (206) depois, Araújo Lima (186). Todavia, a
carta imperial indicava Pedro de Araújo Lima senador do Impé-
rio (CASCUDO, 1938:165-166). Com essa atitude, Feijó mostrava
as suas pretensões. Já queria se desfazer da Regência. Como
não se dava, pessoalmente, bem com muita gente, e não que-
ria dar “a seus adversários políticos o prazer de dizerem que
o haviam enxotado da regência” (MELLO MORAES, 1861:36),
buscava escolher, para seu lugar, alguém com sobriedade polí-
tica. E no dia 18 de setembro indicava Araújo Lima Ministro do
Império. No outro dia, Feijó deixava a Regência nas mãos do
pernambucano. Era a vitória do Regresso, a subida ao poder
do futuro Marquês de Olinda. O ministério nomeado por Araú-
jo Lima trazia Vasconcellos com ministro da Justiça e Império.
Ainda vinham Sebastião do Rego Barros na Guerra e Maciel
Monteiro nos Negócios Estrangeiros.
Devemos perceber, nesse momento, o que Marcus Carvalho
e Bruno Câmara já haviam indicado: no nascimento dos Par-
tidos Políticos no Brasil, havia Cavalcanti de Albuquerque dos
dois lados, o que beneficiava os jogos políticos nas buscas pelo
poder. Hollanda ficava ao lado dos progressistas, e os seus ir-
mãos faziam coro com os Regressistas (CÂMARA, CARVALHO,
2008:14). Nesse processo, Araújo Lima nomeava para a Pre-
sidência de Pernambuco, Francisco do Rego Barros. Era uma
solução que não causaria tantas tensões. Afastava Francisco de

25
APEJE, O Echo da Religião e do Império, 23 de março de 1838.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 153

Paula do poder direto, mas deixava o seu primo no poder. Com


essa forte coalizão de primos e irmãos, até 1842, não havia mui-
ta diferença entre conservadores e liberais, em Pernambuco,
mesmo que cada um tivesse a sua atuação em espaço próprio
(CAVALCANTI JUNIOR, 2001:38-39).
Por esses dias acontecia, então, o auge da concentração de
poder da política pernambucana nas mãos de uma família, don-
de os “cavalgados” deveriam pedir por clemência, favores aos
Cavalcanti. Era o coroamento de um longo caminho de tra-
jetórias paralelas que se uniam, nesse momento, pelo poder.
Apenas pelo interesse do poder. A “populaça” ficava fora das
estratégias: só entrava aliciada por algum benefício, quando
era necessário. Senhores abastados tomavam para si cargos
públicos e abusavam das suas posições. Todavia, aos poucos,
Rego Barros vai se distanciando dos primos, e dando as mãos à
Araújo Lima. Era uma estratégia para ir consolidado seu espaço
político. Como indicara Corrêa de Oliveira, Francisco do Rego
Barros era o representante da política de Araújo Lima em Per-
nambuco (OLIVEIRA, 1988:76).
Até então, Araújo Lima era regente interino. Depois de mui-
tas discussões, foram marcadas eleições para o dia 22 de abril
de 1838. Araújo Lima e o grupo do Regresso tinham total inte-
resse de manter-se no poder. E ainda mais: o jogo estava quase
ganho. A maioria parlamentar era de apoio regressista (CADE-
NA, 2013:144).
Nesse mar turvo e conturbado, aparecia a figura de Hollanda
Cavalcanti como candidato da oposição. Ligar-se-ia a uns restos
de votos e até das propagandas das eleições anteriores. Em Per-
nambuco, fazia pouco tempo que fora candidato a uma vaga
senatorial. (CASTRO, 2010:75).
Em janeiro de 1838, a lista tríplice das eleições senatorias de
Pernambuco subiam para as mãos de Araújo Lima. Hollanda
Cavalcanti era escolhido dentre os três candidatos: Antonio Joa-
quim de Mello, um antigo revolucionário, Hollanda e Francisco
de Paula. Não era sem interesses que Araújo Lima chamava
Hollanda para o Senado. Sabia bem que ele era uma faca de
dois gumes, mas, reconhecia que na orquestra imperial, Hol-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


154 Paulo Henrique Fontes Cadena

landa tocava violino e viola com a mesma desenvoltura. Cami-


nhava entre todos os grupos, sem problemas. Era mesmo, um
defensor dos seus interesses. A subida de Hollanda ao Senado
pode até ter sido alguma barganha quanto às eleições que se
aproximavam (CADENA, 2013:145).
Hollanda entrava na arena das eleições regenciais com poucas
chances. O que vamos percebendo é que a aliança existente se
faz entre o ramo Rego Barros e Araújo Lima. O futuro Marquês de
Olinda sustentava os Rego Barros em Pernambuco, e eles se re-
solviam com os seus primos Cavalcanti quando necessário fosse.
Não parece que houve uma aliança contínua entre esses ramos
familiares. As estratégias políticas de união apareciam quando
eram necessárias, quando o jogo estava deixando de ser contro-
lado por alguma mão Rego Barros – Cavalcanti. Mas, mesmo sem
o apoio dos primos, Hollanda saia vitorioso em Pernambuco.
Muita gente escreveu nos periódicos. Os pseudônimos apa-
reciam aos montes, defendendo o melhor candidato. Entretanto,
eram correspondências que se pediam publicação. Os jornais da
época queriam deixar claro não ter nenhuma influência em suas
ideias. É essa imparcialidade dos periódicos, tentando não aderir
a nenhum dos dois principais candidatos, que nos leva a crer
que não estava sendo fácil para os pernambucanos escolherem
entre os dois chefes da província. Dizia o Diário de Pernambuco:
“sentimo-nos animados dos mais vivos desejos de sustentar a es-
colha de ambos os cidadãos em quem reconhecemos igualmente
mérito e capacidade”.26 Para o Echo da Religião e do Império,
indicar um nome era imprudência, “pois então não queremos
comprometer o nosso candidato, nem advogaremos o triunfo de
nenhum dos que estão indigitados”.27 Tudo isso era o reflexo da
divisão Cavacanti – Rego Barros, desse momento.
Aos 6 de outubro, era confirmado Pedro de Araújo Lima
como regente do Império, com 4.308 votos. Seguindo vinha
Hollanda, com 1.981. Mas, em Pernambuco, Hollanda vencia:

26
APEJE, Diário de Pernambuco, 18 de abril de 1838.
27
APEJE, O Echo da Religião e do Império, 20 de abril de 1838.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 155

285 contra 183 de Araújo Lima.28 Todavia, em Pernambuco,


continuava tudo igual. Francisco do Rego Barros permanecia
na Presidência da Província.
Em 1839, novas eleições para o Senado, por Pernambuco.
Saíram eleitos Francisco de Paula (519 votos), Tomás Antônio
Maciel Monteiro (384) e Antônio Joaquim de Mello (370). Aos
29 de setembro de 1839, era chamado Francisco de Paula, que
tomaria assento em 1840 (PEREIRA DA COSTA, 1966:169). A
força dos Cavalcanti de Albuquerque ia aumentando. Agora,
Hollanda e Francisco de Paula estariam no Senado, defenden-
do os interesses da família.
Ao mesmo tempo, a Regência já estava desgastada. Mas, só
em 1843 o menino Pedro se tornaria maior. Os liberais iam se
armando para propor a maioridade. Para Basile, “a mística e o
prestígio que revestiam a monarquia, personificada na figura do
Imperador, eram essenciais para restabelecer a ordem que o Re-
gresso tanto pregara” (BASILE, 2009:95). O interessante é que,
no Clube da Maioridade, Hollanda Cavalcanti assumia a vice-
-presidência. E um dos membros era Francisco de Paula. O que
vai parecendo é que os irmãos Cavalcanti de Albuquerque não
estavam, mesmo, se alinhando com a política de Araújo Lima.
A causa da maioridade ia ganhando adeptos, e, como disse
Kidder: “Lima, em desespero de causa, agarrava-se com todas
as forças ao poder que lentamente lhe escapava das mãos”
(KIDDER, 2008:272). Em julho de 1840, caía Araújo Lima, e su-
bia um ministério junto com o Imperador. Assumia a pasta da
Marinha, Hollanda; e a Guerra, Francisco de Paula. Assim, com
os dois irmãos no ministério, em Pernambuco, tudo permanecia
como dantes. Francisco do Rego Barros seguia na Presidência
da Província, mesmo que fosse gente de Araújo Lima. Mas, ao
mesmo tempo, era primo dos Cavalcanti, e se resolviam em fa-
mília. Todavia, nesse momento, aparecia a figura de Nunes Ma-
chado, posicionando-se contra a maioridade. Tal atitude pode

Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 06 de outubro de 1838. p. 63. Dis-


28

ponível em http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Dat
ain=7/10/1838. Acesso em 09 de maio de 2011.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


156 Paulo Henrique Fontes Cadena

ser reflexo das boas relações de Nunes com Rego Barros, que
mesmo sendo primo de Hollanda e Francisco, era apadrinhado
de Araújo Lima. Ficava clara a cisão nas alianças. Mas, iam se
resolvendo em família (CADENA, 2013:163-164).
Quando Araújo Lima colocou Francisco do Rego Barros, Ba-
rão da Boa Vista, na presidência da Província de Pernambuco,
um grupo de bacharéis se posicionara ao lado dele. Dentre
eles, estavam Joaquim Nunes Machado, Urbano Sabino e Anto-
nio Affonso. Eram esses os futuros líderes do Partido da Praia
(MARSON, 1987:191). Fora através dos arranjos de Boa Vista e
dos Cavalcanti, que esses jovens bacharéis conseguiam subir a
Assembleia Geral em 1838. Mas, Boa Vista, aos poucos, como
disseram Bruno Câmara e Marcus Carvalho, ia se distanciando
ainda mais dos seus primos. Buscava seu próprio espaço po-
lítico. O problema era que Pedro Francisco ia ofuscando Boa
Vista com sua influência entre os conservadores da província
(CÂMARA, CARVALHO, 2008:15).
A partir de 1842, a política conciliatória do Barão da Boa Vis-
ta ia se desfazendo. Poucos cargos para uma grande parentela,
não dava para quem queria. Como lembrou Marcus Carvalho:
“a distribuição de favores e benesses, contudo, não é ilimita-
da. Alguém sempre fica excluído” (CARVALHO, 2009:161). Nas
eleições gerais de 1842, subiam a Assembleia Geral Pedro Fran-
cisco, o Barão da Boa Vista e Sebastião do Rego Barros. Os
jovens bacharéis ficavam fora da Assembleia Geral e dos Cargos
Provinciais (CADENA, 2013:166).
Com tal desconforto, nascia o Partido Nacional de Pernam-
buco, ou da Praia, como costumaram chamar os “guabirus”,
pejorativamente. Brigavam por parcelas do poder, e metiam a
“populaça” no meio de toda essa confusão. Dessa forma, Nunes
Machado se articulava, na Corte, com Aureliano de Souza Couti-
nho, o desafeto de Hollanda: “o Ministro do Império com quem
nunca tive nem quero ter relações”.29 A aliança entre Aureliano

29
IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa
223 – Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1833: carta sem remetente (talvez Hollan-
da) para “Meu Mano e Amº do C.”.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 157

e a Praia era, senão, o interesse do primeiro, em enfraquecer os


Cavalcanti, tanto em Pernambuco quanto no Parlamento.
Por 1843, as eleições provinciais ainda apontavam um tanto
do prestígio dos Cavalcanti e também dos Rego Barros, na pro-
víncia. Com todas as incertezas, com todas as tramóias, Pedro
Francisco (670 votos) e Francisco de Paula (601 votos) encabe-
çavam a lista dos deputados provinciais, seguidos por Sebastião
do Rego Barros (559 votos). Manuel Francisco também assumia
a sua vaga, ocupando espaço no poder: vinha em sétimo lugar
(464 votos). Nunes Machado só apareceria em trigésimo oitavo
(303 votos). Dessa forma, como era 36 o número de deputados
à Assembleia, Nunes Machado não assumia vaga.30
Mesmo com tudo isso, os praieiros se fortaleciam, e o modo
mais simples de vencê-los era, ainda, a força e a repressão,
além das falsificações. Ter uma maioria na Assembleia Provin-
cial também era muito importante. Numa aliança que outrora
estava concentrada entre Rego Barros e Cavalcanti de Albu-
querque, agora, cada um ficava lutando pela sua nau, num mar
de desesperos e guerras. No outro ano aconteceriam as elei-
ções para a Assembleia Geral. O desespero seria ainda maior
para os seguidores do Barão da Boa Vista. E, em 1844, mesmo
com todas as tramóias eleitorais, quem saía vitorioso era o gru-
po da Praia. Alguém que assinava “O Miguel” escrevia para
Hollanda, em 13 de setembro de 1844, e alertava: “Vou com
fundada esperança de que o mal que hoje sofre Pernambuco há
de produzir o bem de reunir todos os membros da tua família,
e por termo ao fracionamento que existia: com efeito, se o não
fizerem, serão altamente imbecis, altamente criminosos”.31
No final, subiam 13 deputados à Corte. Urbano Sabino Pessoa
de Mello e Joaquim Nunes Machado foram segundo e terceiro da
lista, respectivamente. Pedro Francisco saía em décimo, enquanto
o Barão da Boa Vista em décimo segundo. O resultado final fora
a solidificação do poderio do Partido da Praia em Pernambuco,

APEJE, Diário Novo, 30 de setembro de 1843.


30

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa


31

223 – Recife, 13 de setembro de 1844: Carta de “O Miguel” para Hollanda.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


158 Paulo Henrique Fontes Cadena

formando uma bancada forte. Mas, era apenas em 1845, com a


queda de Hollanda Cavalcanti do ministério, que os praieiros
conseguiriam a subida de Chichorro da Gama para Pernambuco.
Segundo Nabuco, “é a presidência de Chichorro (1845-1848) que
assinala o pleno domínio da Praia” (NABUCO, 1997:95). Assim,
quando as forças Cavalcanti de Albuquerque – Rego Barros não
se uniram, a Praia jogara suas fortes ondas contra as sólidas es-
truturas, carcomendo as suas bases. Quando tiveram de dividir
os apoios, perderam: os “guabirus” eram encerrados em suas
tocas. Mas, como todo bicho esperto, ficava alerta. Em 1848, vol-
tavam a se unir mais uma vez. Voltavam ao poder.
Para conseguirem realizar o projeto de estar na maior parte
dos espaços do poder, abraçando com todos os tentáculos as
malhas que iam do juizado de paz ao Senado – projeto antigo
da família, calcado desde os dias do Brasil colônia de Portugal
– que chega ao auge nos dias do século XIX – os Cavalcanti de
Albuquerque, em certos momentos, fizeram algumas alianças
com os seus aparentados. O que nos parece é que as mes-
mas possuíam a característica de não serem perenes: faziam-se,
desfaziam-se e refaziam-se ao sabor dos interesses. Percebemos
três grupos distintos trabalhando paralelamente, que se unem
nos períodos de necessidade, atuando por Pernambuco, nos
dias do Império do Brasil. Não era necessário que os três gru-
pos estivessem na mesma aliança, ao mesmo tempo, como é o
caso dos dias da Regência de Araújo Lima, donde é perceptível
a aproximação de Francisco do Rego Barros, do Regente, e cer-
to afastamento do grupo “holandês”, mesmo que Araújo Lima
tenha elevado ao Senado os dois irmão Cavalcanti de Albu-
querque no período da sua Regência, refletindo a extrema com-
plexidade dessas alianças. O certo é que tanto os Rego Barros
como Araújo Lima, além dos Cavalcanti de Albuquerque pos-
suíam ambições próprias. Quando o ego era ferido, ou ameaça-
do, os elos se rompiam, ou talvez, pelo menos, se afrouxavam.
Eram grupos paralelos que buscavam cada vez mais poder, e
tantas vezes, se esbarravam nos limites uns dos outros. Se no
início do Império do Brasil, os primos Cavalcanti e Rego Barros
eram um grupo coeso, e tinham a proximidade do experiente

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 159

Araújo Lima, aos poucos se distanciavam pelos interesses pró-


prios. Quanto mais espaço Pedro Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque (Visconde de Camaragibe) ganhava na política
pernambucana, mais Rego Barros ia se afastando, pelo compro-
metimento da extensão do seu poderio. Araújo Lima, que não
atacava os Cavalcanti e nem os Cavalcanti a ele, mesmo quando
os interesses eram prejudicados, percebia nos dias de 1848, que
os adversários, naquele momento, dele e do grupo “holandês”
eram comuns: uniam-se. Nos dias do reinado de Pedro II, tanto
os irmãos Cavalcanti de Albuquerque quanto Araújo Lima e os
Rego Barros continuavam no poder. E com o mesmo jogo de
sempre. O Partido da Praia já havia se esfacelado. O interesse,
agora, quando todos iam se assentando no Senado, eram os
benefícios: quanto mais, melhor. Enquanto todas essas tramas
iam sendo tecidas nos corredores da Corte, em Pernambuco, o
Barão de Muribeca (Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque) continuava perseguindo os espaços do poder.
Era peça importantíssima no jogo. Ia mantendo sua cadeira na
Assembleia Provincial de Pernambuco.

Referências
Documentos Manuscritos

Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate –


Laboratório de Pesquisa e Ensino de História – UFPE

AHU_ACL_CU_015, Cx.224, D.15122. Pedido de Foro de Fidalgo Cavaleiro


de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano

Livro Polícia Civil 2.

Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


160 Paulo Henrique Fontes Cadena

Caixa 5, 669, 1817 – Inventário de Dona Maria Rita de Albuquerque e Mello,


Senhora do Engenho Suassuna.

Caixa 023, TJR1, 1821 – Inventário de Francisco de Paula Cavalcanti de Al-


buquerque, Senhor do Engenho Suassuna.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Moçambique, 5 de janeiro de 1820: Carta de Antonio José de Lima Leitão
para Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de
Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Menuel Francisco de Pau-
la Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de
Paula Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula
Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Recife, 11 de maio de 1825: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1826: carta de Luiz Francisco de Paula
Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Rio de Janeiro, 08 de junho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula
Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Rio de Janeiro, 08 de julho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula
Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de
Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1833: carta sem remetente (talvez Hol-
landa) para “Meu Mano e Amº do C.”.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado
e as vésperas do domínio do Partido da Praia 161

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223


– Bahia, 2 de abril de 1837: Carta de Miguel Calmon du Pin para Pedro Fran-
cisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 –


Recife, 13 de setembro de 1844: Carta de “O Miguel” para Antonio Francisco
de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque.

Documentos Impressos

Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano

Diário de Pernambuco, 9 de julho de 1831.

Diário de Pernambuco, 26 de fevereiro de 1835.

Diário de Pernambuco, 18 de abril de 1838.

Diário Novo, 30 de setembro de 1843.

O Echo da Religião e do Império, 23 de março de 1838.

O Echo da Religião e do Império, 20 de abril de 1838.

Câmara dos Deputados

Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 25 de junho de 1846. p. 455.


Disponível em: imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?se/CodColecaoCsv=A&D
atain=25/6/1846. Acesso em 16 de nov. de 2013.

Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 08 de julho de 1837. p. 63.


Disponível em http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv
=A&Datain=8/7/1837. Acesso em 09 de maio de 2011.

Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 06 de outubro de 1838. p. 63.


Disponível em http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv
=A&Datain=7/10/1838. Acesso em 09 de maio de 2011.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014


162 Paulo Henrique Fontes Cadena

Bibliografia

BASILE, Marcello. 2009. “O laboratório da nação: a era regencial (1831 –


1840)”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial: volume
II (1831 – 1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, pp. 53 – 119.

CADENA, Paulo Henrique Fontes. 2013. Ou há de ser Cavalcanti, ou há


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FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem
do Brasil Holandês1

Daniel de Souza Leão Vieira2

Resumo: A maior parte da literatura ligada à História da Arte que se dedi-


cou a Frans Post (1612-1680) se limitou a tomar sua produção imagética de
forma a reproduzir os discursos do realismo e do exotismo. Por outro lado, a
pouco numerosa historiografia que cita sua obra – ou somente usa suas ima-
gens - terminou por se restringir a considerá-la ilustração de textos escritos
ou como simples reflexo da “vida cotidiana”. Em ambas as perspectivas, a
ausência de problematização da relação entre história e imagem no interior
da produção visual de Post constitui quase que a regra geral. A partir desse
debate, propomos uma análise formal da tela O carro de bois (1638), para,
após a comparação iconográfica com suas telas e desenhos “brasileiros”,
proceder a uma interpretação da relação entre essa e os imaginários ho-
landeses sobra a terra do Brasil, relativos a diferentes ideologias de Estado.

Palavras-chave: Paisagem Política, Cultura Visual, Imaginário Social, Brasil


Holandês, Frans Post.

Franz Post and the Ox Cart: The imaginary of Dutch Brazilian landscape

Abstract: Most of Art History literature on Frans Post (1612-1680) was li-
mited to the discourses of realism and exoticism. On the other side, his-
toriography that mentions or reproduces his images only considered it as
illustration of written documents or mere visual records of everyday life.
Both perspectives lack the question about the relation between history and
image within his visual production. From this debate, we propose a formal
analysis of Ox cart (1638), in order to, after an iconographical comparison
to his “Brazilian” canvases and drawings, proceed to an interpretation of

Artigo recebido em maio de 2014 e aprovado para publicação em julho de 2014.


1


2
Doutor em Humanidades pela Universiteit Leiden. Professor Adjunto do Departa-
mento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014


166 Daniel de Souza Leão Vieira

the relation between them and the Dutch imaginaries about Brazilian land,
linked to different State ideologies.

Key-words: Political Landscape, Visual Culture, Social Imaginary, Dutch


Brazil, Frans Post.

A fonte visual e a construção


do conhecimento histórico

Diante da imagem, o historiador está diante de um rasgo do


tempo. Ou antes, de um rasgo que acentua a diferença entre
o próprio tempo do historiador e o tempo da sociedade que
produziu a imagem. E na esteira da ampliação dos domínios
da História, a imagem tem se tornado um objeto cada vez mais
estudado no Brasil.
Entretanto, e apesar da atualidade do tema, a problematiza-
ção e o desenvolvimento de uma crítica das imagens com fins
de investigação histórica ainda carecem, teoricamente, de uma
maior sistematização e estruturação. Ao contrário de uma longa
tradição historiográfica, familiarizada com a crítica acerca das
fontes escritas, muito da atual produção da disciplina histórica
ainda demonstra pouca intimidade com esse novo objeto e/
ou nova fonte que é a imagem (BURKE, 2001; KNAUSS, 2006).
Por conta disso, o estatuto do objeto imagético e do registro
visual permanece incerto no interior das delimitações teórico-
-metodológicas da disciplina da história.
Apesar de certas correntes teóricas terem invalidado a pos-
sibilidade de seu estudo histórico, ao relacioná-la à questão
do anacronismo (DIDI-HUBERMAN, 2006), concordamos com
a postura acadêmica que afirma que a imagem pode e deve
ser estudada historicamente, desde que seja problematizada e
submetida à crítica (BURKE, 2001). Em outras palavras, desde
que sua produção e recepção sejam relacionadas ao estudo das
relações de poder (BRYSON, 1992 [1983]; FREEDBERG, 1989)
e às práticas sociais no interior de uma cultura visual (EVANS,
HALL, 1999; DIKOVITSKAYA, 2007).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014


FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 167

Esse encontro, entre o historiador com os pés no presente


e o objeto que contém os traços da sociedade passada que o
criou, ocorre com todo tipo de artefato produzido ao longo da
história. Daí porque esse pode ser passível de vir a constituir
fonte com a qual o historiador pode construir um entendimento
sobre a História.
A questão crucial é que a imagem visual3, pela sua lingua-
gem própria, construída por iconicidade4, sugere ao historiador
desavisado a visualização imediata de uma realidade empírica
tal como deve ter sido no passado. Não cabe aqui, neste texto,
propor uma investigação sistemática dos pressupostos teóricos
que têm levado alguns historiadores a se deixar seduzir pelo
mimetismo da imagem. Mas, por outro lado, não podemos dei-
xar de apontar algumas questões relacionadas a esse problema.
A produção de imagens é uma atividade humana muito anti-
ga. A pedra tumular, na Grécia Antiga, era chamada de “sema”.
Como essa geralmente vinha com a impressão de marcas que
a adornassem inclusive para a identificação dos mortos, é que
as imagens resultantes dessas mesmas marcas passaram a ser
chamadas de “semeia”, no grego. Depois, esses termos foram
generalizados para todo tipo de marca visível ou sinal gráfico,
constituindo-se, por figura de linguagem, em radical para toda
a delimitação de um léxico em torno da semântica e mesmo da
ideia de signo (DEBRAY, 1993:24).
Muito antes das semata gregas terem aparecido, os grupos
humanos já pintavam paredes de abrigos e cavernas, como
atestam os conhecidíssimos exemplos de Altamira e Lascaux.

É importante frisar que a imagem e o visível não são necessariamente coinciden-


3

tes. Para uma tipologia das “famílias de imagens” (gráficas, óticas, perceptivas,
mentais ou mesmo verbais), ver MITCHELL, 1986:10.
A expressão “iconicidade” é um neologismo derivado da palavra “ícone”, adap-
4

tação para o português da expressão grega eikon. Tem havido um certo engano
no uso desse último vocábulo por parte da historiografia brasileira, mesmo em
autores sérios como PAIVA, 2004:14; e MENESES, 2012:244, uma vez que ambos
tomam eikon e “imagem” como sinônimos. Em verdade, o termo grego para
imagem é eidolon, daí derivando a nossa palavra “ídolo”. O termo grego eikon
se refere à noção de semelhança. Para um debate sobre esses conceitos, ver RI-
COEUR, 2007:27-34.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014


168 Daniel de Souza Leão Vieira

A produção de imagem é, portanto, muito mais antiga do


que o aparecimento da própria escrita. Daí supormos, inclu-
sive, um uso social muito mais amplo de imagens do que da
escrita, com implicações socioculturais muito vastas para a
relação entre o produzir imagens e o próprio fazer histórico
(KNAUSS, 2006).
O conhecimento da escrita, restrito a elites mercantis, polí-
ticas e religiosas, permitiu lentamente uma hierarquização das
linguagens. Já a filosofia de Platão tomava a imagem (eidolon)
como cópia das coisas (ousia), sendo essas últimas já tomadas
como cópias das ideias (eidos) (RICOEUR, 2007:27-34). Esse
preconceito logocêntrico permeou a construção dos paradig-
mas filosóficos e sociais no Ocidente, tornando a linguagem
verbal escrita em produção privilegiada, relegando, assim, a lin-
guagem visual e a imaginação a degraus inferiores na pirâmide
que constitui o edifício da epistemologia.
Não é à toa, portanto, que a tradição da erudição crítica, se-
guindo a filologia e desembocando na emergência oitocentista
do método histórico, tomou como fonte histórica apenas os
documentos escritos, oriundos de instituições como o Estado,
reproduzindo o seu conteúdo e narrando os feitos dos seus
heróis. Ao assim proceder, essa tradição tornou dicotômica a
distinção entre o arquivo, relativo ao historiador, e o museu,
ligado ao historiador da arte, desconhecendo que ambos os
corpora foram monumentalizados pelo mesmo tipo de prática
social: o colecionismo.
Esse panorama só começou a mudar quando à concepção
factual e singularizante da história foi contraposta outra, pro-
blematizadora e estruturante. É conhecida demais, na oficina
do historiador, a “revolução” que a dita Escola dos Anais pro-
vocou, não só na historiografia francesa mas na historiografia
de um modo geral, para que precisemos aqui recontá-la. Basta
apontar que, graças a essa reviravolta no método histórico – a
história como objeto de problematização, tal como nas ciên-
cias sociais, houve um alargamento do campo de investigação
do historiador. Esse se deu não só pela ampliação da tipolo-
gia dos objetos de estudo, mas também pela inclusão de um

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014


FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 169

número cada vez maior de fontes. Esse processo foi acompa-


nhado, como era de se esperar, também por um aumento e
mesmo o refino de procedimentos metodológicos.
Nesse sentido, emergiu no horizonte cultural ocidental um
novo lugar para as fontes visuais. No Brasil, essa tendência
também tem sido observada: a produção historiográfica a par-
tir do uso de fontes visuais tem crescido. Assim, em 2006 o
III Simpósio Nacional de História Cultural, que teve lugar na
Universidade Federal de Santa Catarina, dedicou-se ao tema
“Mundos da Imagem: do Texto ao Visual”. Suas apresentações
em mesas redondas e conferências foram depois reunidas no
livro Imagens na História (RAMOS, 2008:12). Esses textos pu-
blicados integraram um conjunto muito maior de trabalhados
apresentados no encontro, dos quais 62 foram sobre cinema, 60
sobre artes visuais (pintura, grafite, desenho, gravura, aquarela,
caricaturas, escultura), 49 sobre fotografia, 6 sobre televisão,
5 sobre publicidade e 23 ainda sobre diversos outros tipos de
imagem, como mapas, monumentos, rótulos de produtos, HQ’s,
cartazes, cartões-postais, material digital na internet, etc, perfa-
zendo um total de 205 trabalhos (SILVA, 2010:71).
Entretanto, e apesar dessas iniciativas, alguns objetos de in-
vestigação histórica permanecem chasse gardée de historiogra-
fias refratárias a essas reviravoltas metodológicas do século XX.
O Brasil holandês, por exemplo. Alguma coisa já tem sido feita
no sentido de introduzir problemas de uma etno-história sobre
a obra de Albert Eckhout, muito embora se trate de contribui-
ções da antropologia social e da história da arte. A recorrência
ao exemplo dos estudos de Eckhout se justifica aqui porque a
obra desse pintor está diretamente relacionada com a produção
paisagística de Post para o período nassoviano do Brasil holan-
dês, uma vez que seus temas são correlatos, e seus tratamentos
fazem referências ao tema um do outro.5
Não tardou então a surgir novos trabalhos sobre os regis-
tros holandeses sobre o Brasil, como o livro editado por Ernst

Sobre Eckhout, cf. MASON, 1998; RAMINELLI, 1999; DE VRIES, 2002; BUVELOT,
5

2004 e BRIENEN, 2006.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014


170 Daniel de Souza Leão Vieira

van den Boogaart, Johan Maurits van Nassau-Siegen. A Hu-


manist Prince in Europe and Brazil, por ocasião do tricente-
nário da morte de Maurício de Nassau, em 1979; e o levanta-
mento bibliográfico e iconográfico realizado por P. Whitehead
e por M. Boeseman, Um retrato do Brasil holandês do Século
XVII: Animais, plantas e gente pelos artistas de Johan Maurits
de Nassau, em 1989. Os livros de Van den Boogaart e o de
Whitehead e Boeseman, acima citados, suscitaram questões
acerca da imagem nos registros que os holandeses fizeram
sobre o Brasil que foram se tornando ponto de partida para o
estudo de Frans Post a partir de outros saberes: uma história
da arquitetura (MEERKERK, 1989, 2006), uma história natu-
ral (TEIXEIRA, 1995, 2002, 2006), e uma etno-história (BOO-
GAART, 1979).
Em relação a essa última, no entanto, os trabalhos se con-
centraram mais sobre a obra de Eckhout, por conta da própria
natureza de sua construção imagética. Assim, uma análise ico-
nográfica das figuras humanas associada à problematização de
uma história cultural da representação do Outro permitiu que
as imagens de Eckhout fossem novamente investigadas, como
atestam os trabalhos citados à última nota.
Sobre os estudos acerca da imagem em Post, porém, não
houve um desenvolvimento semelhante. Há uma dificuldade
em transpor esse campo e introduzir esse debate na iconogra-
fia de paisagem, a despeito de Frans Post ter produzido suas
imagens sob as mesmas circunstâncias e para o mesmo patrão.
A maior parte da literatura ligada à História da Arte que
se dedicou ao paisagista holandês se limitou a relacionar sua
produção imagética aos discursos do realismo e do exotismo.6
Enquanto, de outro, a pouco numerosa historiografia que cita
sua obra – ou somente usa sua produção visual - terminou
por se restringir a considerá-la ilustração de textos escritos
ou como simples reflexo da “vida cotidiana”.7 Em ambas as
perspectivas, a ausência de problematização da relação en-

6
Cf. LEITE, 1967; SILVA, 2000; e LAGO, 2006.
7
Cf. Dutch Brazil, 1997; e NOVAIS, 1997.

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FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 171

tre história e imagem no interior da produção visual de Post


constitui quase que a regra geral.8
Entretanto, pouco a pouco, e depois do seminal artigo do
historiador neerlandês Ernst van den Boogaart (2004), alguns
trabalhos têm surgido na tentativa de tanto historicizar a pro-
dução visual de Post quanto usá-la como fonte visual para o
estudo de objetos históricos específicos.9
É no sentido da introdução dessa problemática que justi-
ficamos aqui um estudo de caso que permita historicizar a
produção visual de paisagem sobre o Brasil holandês a fim de
disponibilizar subsídios de análise de imagem para a prática
da pesquisa histórica. É importante frisar que este estudo de
caso se funda num amplo movimento de reconsideração das
imagens produzidas nos Países Baixos do século XVII, mo-
vimento esse que englobou tanto a ampliação do escopo do
estudo da arte a partir da noção de cultura visual, como na
perspectiva de Svetlana Alpers ([1983] 1999), quanto na inter-
pretação da sociedade por uma história da cultura, como em
Simon Schama ([1987] 1992).10
Nesse sentido, diante da tela O carro de bois, executada por
Frans Post (1612-1680) no Brasil do ano de 1638, o historiador
não deve supor que está simplesmente diante da paisagem de
Pernambuco daquela era remota, mas de uma produção visual
que guarda os vestígios do processo social do olhar. E tendo-
-a visto, Post pôde conceber estratégias visuais para compor
uma representação pictórica a partir de suas impressões e es-
tímulos percebidos. É justamente esse processo semiótico, da
percepção do empírico à representação simbólica, que per-

Para uma apreciação crítica dos autores citados às duas últimas notas, cf. VIEIRA,
8

2010.
ORAMAS, 1999; PESAVANTO, 2004; OLIVEIRA, 2006; SOARES, 2009; VIEIRA,
9

2009, 2011, 2012a, 2012b e 2012c; BOOGAART, 2011; OLIVEIRA, 2012; e ERKAN,
2012.
10
Para não nos alongarmos sobre um assunto que exigiria um minucioso exame,
não entraremos aqui no debate sobre arte e cultura nos Países Baixos do século
XVII. Para tal debate, com suas respectivas implicações sobre o conceito de pai-
sagem, ver VIEIRA, 2013.

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172 Daniel de Souza Leão Vieira

mite ao historiador vislumbrar as tramas sociais imbricadas à


fabricação da imagem.
Assim, o quadro em questão não é uma mera janela para
um real transparente, tal como considerado por uma histo-
riografia preocupada com o factual, nem tampouco é uma
epifania metafísica, imperativo categórico de uma filosofia da
estética; mas, antes, constitui um rasgo no tempo para que o
historiador investigue as relações de poder que o produziram,
o fizeram circular e o significaram através de complexas ope-
rações de recepção.

O carro de bois:representação de lugar


e de prosperidade açucareira em Sirinhaém

Imagem 1: Frans Post. O carro de bois. Óleo sobre tela, 62 x 95 cm. Datado e assinado: “F. Post 1638 8 / 15”.
Paris: Musée du Louvre.

A segunda pintura (conhecida por nós, hoje) que Frans


Post executou, ainda ao tempo em que esteve no Brasil, é
O carro de bois (Imagem 1). O quadro foi dado de presen-
te em 1679 por João Maurício, Príncipe de Nassau-Siegen, a
Luís XIV, Rei de França, e seguiu como parte integrante das

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FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 173

coleções reais até que foi encontrado, no Museu da Marinha,


por Pedro Souto Maior, em 1911. Hoje, pertence ao Museu do
Louvre, em Paris.
No primeiro plano de sua composição, a vegetação arbustiva
conduz o olhar do espectador até os dois troncos: uma acácia
e um ipê (SOUSA-LEÃO, 1973:23). Da primeira, descem vários
cipós; no segundo, duas espécies de bromélias descansam. O
rio, separando os planos, delineia a colina que lhe segue, da
outra margem, paralela, descendo em direção ao mar.
Na suave encosta da colina está um conjunto arquitetônico,
provavelmente composto pela casa-grande, a senzala, o enge-
nho e, um pouco mais acima, a capela. À beira do rio, o gado
descansa em uma área cercada. A crista da colina está toma-
da pela mata, que, mais homogênea, possivelmente indica um
fragmento original da Mata Atlântica (Imagem 2).

Imagem 2: Detalhe de Frans Post, O carro de bois.

Tomando vantagem da posição alta na colina, e com isso,


sem abandonar a condição de “pé no chão”, Post criou uma
vista que apresenta o terreno em larga amplitude. Se a Vista

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174 Daniel de Souza Leão Vieira

de Itamaracá, primeira tela pintada no Brasil por Post, está


mais associada ao perfil, então O carro de bois é já um pa-
norama (VIEIRA, 2012b:76-77). Considerando sua produção
enquanto a segunda de uma série, foi-nos possível levantar a
hipótese de que Frans Post tentou submeter a João Maurício
uma outra estratégia visual de representação de paisagem.
Enquanto, de um lado, A vista de Itamaracá é uma represen-
tação de paisagem como topografia; por outro, O carro de
bois é uma representação de paisagem por alegoria. Enquan-
to a primeira opera por identificação precisa entre o sítio
representado e sítio observado, a segunda monta a paisagem
do sítio representado por indeterminação ao sítio observado.
A vista de perfil era mais apropriada para representar sítios
costeiros, abordando-os frontalmente, de acordo com uma ico-
nografia relacionada a relatos de viagem; enquanto o panorama
era mais indicado para explorar visualmente terrenos levemen-
te ondulados, como os de amplas porções de terra no interior.
Não é à toa, portanto, que essa segunda tela tem sido mais
relacionada à convenção da pintura holandesa de paisagem
(LAGO, 2006:90).
Supõe-se que essa pintura, O carro de bois, trata da lo-
calidade da vila de Sirinhaém, na atual Zona da Mata Sul
de Pernambuco. O problema aqui é que, diferentemente da
semelhança iconográfica entre a tela e o desenho sobre Ita-
maracá, a composição de O carro de bois não corresponde
exatamente à composição do desenho dedicado a Sirinhaém,
sendo os pontos de vista seguramente diferentes. Ademais,
o conjunto arquitetônico que aparece na pintura não corres-
ponde às construções assinaladas nem no desenho de Post
nem no mapa que lhe corresponde no livro de Caspar Bar-
laeus (Imagem 3).

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FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 175

Imagem 3: Frans Post, Serinhaim, gravura em cobre, 31 x 50 cm. Assinado e datado: “F. Post 1645”. In:
BARLAEUS, 1647,Tabula 12.

De volta à Holanda, em 1645 Frans Post executou uma série


de composições em desenhos para servir de base à feitura das
pranchas para impressão de gravuras que foram publicadas no li-
vro de Barlaeus (1647). Das sete telas sobreviventes (de um con-
junto de dezoito que Post pintou no Brasil), sabemos que cinco
apresentam composições que correspodem às composições dos
desenhos. Entretanto, duas telas apresentam composições dife-
rentes. É o caso de O carro de bois, associada ao desenho que
representa Sirinhaém; e Fort Frederik Hendrik, associada ao de-
senho que representa a Cidade Maurícia e o Recife. Essa posição,
de relacionar O carro de bois ao desenho de Sirinhaém, foi de-
fendida, em um quadro comparativo das composições das telas
e dos desenhos, por Pedro e Bia Corrêa do Lago (1999).11

Esse argumento foi retomado em LAGO; DUCOS, 2005; e em LAGO, 2006. Sem-
11

pre que precisar fazer referência ao assunto, citaremos a última publicação.

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176 Daniel de Souza Leão Vieira

De fato, a própria situação geográfica sugerida na pintura


levanta dúvidas se se trata do mesmo sítio representado no
desenho. Por exemplo, se o mar pode ser visto, bem próximo
à linha do horizonte e à direita da composição na tela, então, a
vista é orientada para o norte, o que impediria a visada frontal
de Sirinhaém. Mas se o sítio representado realmente correspon-
de à vila de Sirinhaém, então a vista está orientada para o oeste
e, então, não se poderia ver o mar.
Além disso, a última colina, defronte do mar, sendo um pou-
co mais alta que a precedente, é muito semelhante ao motivo
de outro desenho de Post, contendo aspecto de descrição oro-
gráfica do cabo de Santo Agostinho. No entanto, esse acidente
geográfico, tão distante ao norte de Sirinhaém, não poderia ser
observado do mesmo ponto de vista que ele adotou para a
composição em questão (Imagens 4 e 5).

Imagens 4 e 5: À Esquerda: Detalhe de Frans Post, O carro de bois; à direita: Detalhe de Frans Post, Caput S.
Augustini, 31 x 50 cm, gravura sobre cobre. Assinado e datado: “F. Post 1645” In: BARLAEUS, 1647, Tabula 37.

Voltemos, entretanto, a O carro de bois. Em sua composição,


três escravos africanos parecem transportar caixas de açúcar,
sob a coberta do couro de boi. Considerando a interpretação
que Van den Boogaart sugeriu para essa imagem, pode se as-
sumir que se trata de um registro visual de todo o processo de
fabricação do açúcar (2004:312).
De acordo com essa sugestão, poderíamos hipotetizar que
Post pintou uma casa-grande e uma senzala no plano de fun-
do, a fim de criar uma imagem que representasse o complexo
arquitetônico como forma de ocupação da paisagem. Assim, ele
poderia fazer ver uma distinção entre os grupos sociais a partir
dos diversos tipos de habitação; e até mesmo a relação da si-
tuação dessas “formosas aldeias”, no dizer do jesuíta Manuel de
Morais, no entorno da “Mattam do Brasil”, como chamavam no

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FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 177

século XVII a Mata Atlântica na altura de Pernambuco. A mata


representada no alto do morro deve ser entendida, portanto,
não como fronteira agrícola, mas como parte constituinte des-
se complexo agropecuário, uma vez que fornecia madeira de
corte, tanto para a construção de equipamento quanto para o
abastecimento de combustível para as fornalhas do engenho.12
Havia também uma associação entre a criação de gado e a pro-
dução açucareira, uma vez que o gado podia ser usado com
diversas finalidades: moer o engenho, transportar a cana e/ou
as caixas de açúcar, e fornecer couro.13
Da descrição dessas atividades, implícitas nos motivos do
plano de fundo, o espectador poderia voltar ao primeiro pla-
no, seguindo o carro de bois, que trazia as caixas de açúcar,
de forma a acompanhar a última etapa produtiva, antes que,
chegando ao porto mais próximo, pudesse ser embarcada para
a Europa, direto para a mesa do burguês. Nessa cena, os escra-
vos aparecem novamente como que naturalmente integrados à
paisagem e a todo esse trabalho, como sugeriu Rebecca Parker
Brienen (2006:136-139). Eles não aparentam reclamar de suas
tarefas. Antes, se beneficiando do vagar com que os bois pu-
xam o carro, eles parecem se divertir. O escravo sentado sobre
o carro até toca uma flauta.
O tema aqui, o de trabalho e abundância relacionados ao
elogio à fertilidade da terra, e associado ao transporte de car-
gas por força animal, como nas gravuras flamengas, de Pieter
Brueghel, Plausticum Belgicum e Solicitudo Rustica,14 foi, no
entanto, relativizado ao meio tropical: ao invés das faias, freixos
e olmos europeus, vê-se uma acácia e um ipê, espécies grandes
e fortes que poderiam exemplificar tipos vegetais próprios de
uma área de vegetação de floresta ombrófila densa. Pelo porte,

Sobre a expressão de Manuel de Morais, ver MELLO, 1998[1975]:217; já a ex-


12

pressão “Matam do Brasil” foi usada por Johanes de Laet, quando esse editou
postumamente os manuscritos de Georg Marcgraf para a publicação de Historia
naturalis Brasiliae em 1648. A esse respeito, ver VIEIRA, 2012c.
Sobre a preferência pelo boi ao cavalo na moagem da cana, ver MELLO,
13

1998[1975]:327.
Reproduzidas em LEVESQUE, 1994; figuras 16 e 17.
14

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178 Daniel de Souza Leão Vieira

essa vegetação só podia surgir em região de solo fértil. Nesse


sentido, a referência a essas espécies e ao seu meio constituía
um conjunto de motivos iconográficos que constróem a paisa-
gem através da conotação de fertilidade. O sítio onde se loca-
liza a vila de Sirinhaém está precisamente na borda dessa área:
o ponto em que a várzea do rio deixa de ser influenciada pela
maré vazante, e o manguezal cede ao capão de mata ciliar, e
esse à “mata verdadeira”.15
Em O carro de bois, Frans Post usou, no entanto, outra lógica
para construir a relação entre a espacialidade da representação
gráfica e a sugestão de localidade específica do Brasil holandês.
Se, por um lado, os elementos típicos foram mais desenvolvi-
dos, na relação entre a fecundidade do lugar com as espécies
representadas no primeiro plano; por outro, a manipulação da
topografia observada foi estendida a um grau tão grande que
tornou praticamente impossível associar essa imagem a uma
localidade específica. Daí que, sublinhando a verossimilhan-
ça da colina encimada pela mata, no ponto preciso em que
ocorre um declive abrupto na direção do rio, os Correia do
Lago (2006:88-91) defenderam a ideia de que se trata mesmo
da vila de Sirinhaém; enquanto Van den Boogaart (2004:312-
313), atendo-se mais à temática, propôs que a imagem não era
a representação de uma localidade específica, mas uma visão
da várzea pernambucana, produtora de açúcar. A questão é
que ambos os autores estão certos, embora tenham caído nas
armadilhas de Post, e de sua montagem visual, ao transpor, na
peculiaridade dessa composição específica, os estímulos senso-
riais da topografia observada em paisagem representada.
De fato, o tema da tela é a imagem de abundância e fertili-
dade da terra, só que Post usou observações da topografia de
Sirinhaém, para, misturando-as com o aspecto visual do Cabo
de Santo Agostinho a projetar-se no mar, no canto à direita e
bem rente à linha do horizonte, formular um panorama estili-

15
Do tupi “caa”, mato, mata; e do tupi “etê”, verdadeiro, referindo-se à mata não
inundável, em terra firme, e sempre verde. Cf. verbete “caaetê” in: Dicionário
Houaiss; p. 538.

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FRANS POST E O CARRO DE BOIS:
O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 179

zado do suikerrijke [rico em açúcar] Pernambuco: de sua área


produtora, na encosta dos morros arredondados que sobem na
direção oeste formando o planalto da Borborema, às planícies
inundáveis da costa, em sua indicação portuária, etapa final do
açúcar no Brasil.
Mas para fazer tal panorama, Post precisou tomar a posição
na colina que, ficando ao lado do rio, lhe daria visada frontal
para Sirinhaém. Daí não se vê o Cabo de Santo Agostinho, até
porque para tanto, Post teria que dar as costas à vila. Isso indica
que essa ficcionalização da paisagem foi resultado de finaliza-
ções posteriores em estúdio, onde ele pôde fundir as observa-
ções feitas em lugares diferentes, em tempos diversos. Mas essa
síntese se deu ao custo de uma identificação mais difícil da lo-
calização de Sirinhaém e de sua situação em relação ao todo da
região, que deve ter frustrado as expectativas de João Maurício,
uma vez que essa estratégia visual de terra ficcionalizada não se
repetiu mais nas telas subsequentes, por nós conhecidas.
Ademais, a própria estratégia visual da composição da tela
foi descartada no momento em que Post teve que incluir Siri-
nhaém na série de desenhos feitos para a preparação das pran-
chas do livro de Caspar Barlaeus. Nessa, além das mudanças
assinaladas para com Itamaracá (o zoom ótico mais distante,
as figuras humanas mais diminutas, e a inclusão da simbologia
no brasão oficial), a própria faixa topográfica foi mudada, pois
que Post precisou tomar outro ponto de vista, para representar
Sirinhaém de forma fácil a uma identificação visual, tal como
requerido pela topografia oficial de Nassau. Ao invés da colina
ao norte da vila, Post tomou um ponto a leste, situando-se de
forma a observar a longa estrutural do terreno onde se situa a
vila numa diagonal.
A dificuldade maior para localizar essa mudança na compo-
sição da topografia tem duas razões: a primeira é que o novo
ponto de vista fica próximo a um olho d’água, de forma que o
espectador confunde-a, no primeiro plano, com o próprio rio
Sirinhaém, a despeito de a legenda remeter o espectador à re-
presentação do rio no plano ao fundo. Ademais, o rio, por con-
ta da profundidade naquele trecho, não pode ser atravessado

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180 Daniel de Souza Leão Vieira

como fazem o cavaleiro e o carro de bois, trazendo sua dama,


na composição do desenho.
A segunda razão é que o mapa no livro de Barlaeus, pen-
dant da vista topográfica de Post, está gravado, erradamente,
ao reverso: a igreja, a oeste e à direita, e a casa fortificada do
governo, a leste e à esquerda no mapa, apareceriam em ordem
reversa no desenho de Post, que, tomado do leste, mostra pri-
meiro a igreja de São Roque para depois fazer ver o prédio do
governo. Tomando o rio como terceiro acidente para uma trian-
gulação, verifica-se que o desenho de Post está correto, e que,
portanto, o mapa está gravado ao reverso (Imagem 6).

Imagem 6: Georg Marcgraf[?], Civitas Formosa Serinhaemensis, gravura sobre cobre em 31 x 50 cm. s/d e
s/a. In: BARLAEUS, 1647, Tabula 13.

Os cinco quadros subsequentes não foram criados de acordo


com essa manipulação da topografia. No recurso aos elementos
etnográficos e naturais como motivos num primeiro plano, e
relacionados à faixa topográfica, ora em justaposição ora em

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O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 181

sobreposição, os demais quadros seguem, no entanto, a mesma


lógica. Esses motivos foram usados como convenção simbóli-
ca para estabelecer a referência de forma a tornar possível ao
espectador relacionar a topografia do Brasil holandês a uma
descrição da terra e dos habitantes do Brasil, tal qual se vê em
outras imagens que Nassau mandou fazer, como o mapa mural
de Georg Marcgraf.

Historicizando a representação
de paisagem no Brasil Holandês
A análise formal e iconográfica dos desenhos que Frans Post
preparou, em 1645, para as gravuras do livro Rerum per oc-
tennium in Brasilia, 1647, de Caspar Barlaeus, sobre o gover-
no de João Maurício de Nassau no Brasil, demonstrou que as
composições foram feitas nos moldes das vistas topográficas
de lugares pátrios, relativas à cultura visual neerlandesa do sé-
culo XVII. Tratou-se, portanto, da estruturação de uma visão
da Nova Holanda através de uma retórica visual associada à
paisagem política.
Porém, os resultados dessa análise põem um problema histo-
riográfico, uma vez que a representação da topografia da Nova
Holanda, construída como imagens da Pax Nassoviana, não
tinha correspondência com a realidade social vivida. Ao contrá-
rio de seus antecedentes iconográficos - as séries de gravuras
paisagísticas holandesas relacionadas ao contexto da Trégua
dos Doze Anos com a Espanha, de 1609 a 1621, o conjunto
de vistas topográficas de Frans Post representava uma paz que
não existia de fato. Sabe-se que o período histórico de que elas
tratam – o governo de Nassau, não deixou de conhecer confli-
tos armados, pois que eram constantes as incursões dos guer-
rilheiros luso-brasileiros, pelo menos até fins de 1640. Para não
mencionar o fato de que Frans Post executava os desenhos e
ajudava Jan van Brosterhuyzen a preparar as gravuras ao tempo
em que o território representado caía sob o cerco dos insurre-
tos pernambucanos (BOOGAART, 2011:236-271).

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182 Daniel de Souza Leão Vieira

Como compreender esse deslocamento de sentido, entre um


real vivido e uma realidade representada? Essas imagens opera-
vam a visibilidade do projeto político orangista do stadhouder
[lugar-tenente] Frederik Hendrik para a legitimação de poder
dos neerlandeses no Brasil e no Atlântico, uma vez que, assegu-
rando a posse do território que ia do São Francisco ao Potengi,
mantinha-se uma cabeça-de-ponte crucial para a geopolítica
neerlandesa no Atlântico.
Portanto, para que possamos entender a paisagística em
Fran Post, é preciso se ater a três variáveis presentes no con-
texto histórico de então: 1) o papel da topografia na cultura
visual neerlandesa de meados do século XVII; 2) a relação
desse repertório visual ao momento político dos Países Baixos
Unidos; e 3) o imaginário do “Brasil holandês” no interior des-
sa paisagem política de fins da década de 1640. É na reflexão
que busca entender a natureza da relação entre as práticas
sociais e as construções simbólicas que concebemos uma his-
tória das imagens, nas encruzilhadas de um objeto constituído
entre continuidades iconográficas, descontinuidades políticas
e diferenças atlânticas.
Quando Frans Post viajara para o Brasil, no início de 1637,
a linguagem visual do “realismo” já estava associada ao imagi-
nário de topografia pátria na paisagística neerlandesa. A sua
primeira tela, Vista de Itamaracá, já apresenta essa característi-
ca. E se a segunda tela, O carro de bois, representa a paisagem
pernambucana em alegoria de abundância açucareira sem fazer
menção à topografia, tratou-se, como vimos a pouco, de uma
estratégia que não voltou a se repetir nas telas que ele pintou
depois e que chegaram até nosso conhecimento hoje.
A estratégia de representar a paisagem típica sem especifi-
cidade topográfica correspondia a uma construção imaginária
de lugar que operava outra visão política para o território da
colônia. A simplificação no emprego dos motivos açucareiros,
por exemplo, era uma forma estilizada de evocar o Suikerrijk,
um território, literalmente, “rico em açúcar”. No sentido desta
análise, essa estratégia visual, relativa ao período da paz nas-
soviana no Brasil, corresponde ao panorama encontrado na

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O imaginário da paisagem do Brasil Holandês 183

composição de O carro de bois, de 1638, na qual a manipula-


ção do observado extrapolou a conformação visual do sítio de
Sirinhaém a fim de fazer sugerir genericamente a paisagem do
Suikerrijk. Se essa mesma estratégia não se repetiu ao longo
da produção subsequente de Post para João Maurício, o foi
como indício de que não se tratava da paisagem política que
o governador-general queria para a Nova Holanda, tal como
condizente com a ideologia orangista do Stadhouder Frederik
Hendrik. Daí porque a prancha do livro de Barlaeus que é
correspondente a esse tema representa Sirinhaém nos mesmos
modos da linguagem visual de vista topográfica. O mesmo não
aconteceu nas vinhetas do mapa de 1647, elaborado a partir de
levantamento geográfico de Georg Marcgraf e editado por Joan
Blaeu, e não por Claes Jansz. Visscher (VIEIRA, 2011).
Herman Wätjen (2004[1938]) argumentou que, quando do
debate de se saber o que viria a ser melhor para o negócio do
Brasil holandês, se manter o monopólio do comércio à Com-
panhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie, ou
W.I.C.) ou se abri-lo à livre iniciativa dos particulares, entre
1637 e 1638, a decisão ocorreu sob o embate de pelo menos
duas posturas divergentes. Assim, baseado na observação de
Wätjen, podemos afirmar que a Câmara da Zelândia era domi-
nada pelo grupo a favor do monopólio da W.I.C., enquanto a
Câmara de Amsterdã, pelos grupos em prol do livre comércio.
Apesar de, por um lado, Wätjen ter afirmado que João Mau-
rício fora “cético” em relação a esse debate; por outro, Jonathan
Israel sugeriu que as impressões do governador-general termi-
naram por pesar a balança em favor do livre comércio (ISRAEL,
1989). Em 1638 ficara decretado que a W.I.C. retinha o mono-
pólio sobre alguns outros produtos, mas o açúcar, o produto
mais rentável da colônia, esse ficara aberto ao livre comércio.
Ora, esse interesse no livre comércio, que tinha relação com
a proposta republicana e civil para a paisagem política do Brasil
holandês, emergiu pela primeira vez, na obra de Frans Post, na
tela O carro de bois, de 1638, ano em que um regime de chuvas
benfazejas trouxe uma excelente safra, justamente coincidindo
com a promulgação da abertura do comércio do açúcar à livre

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184 Daniel de Souza Leão Vieira

iniciativa.16 Num contexto tido como promissor, o imaginário da


terra abundante foi associado à paisagem ficcionalizada na tela
de Post. Daí que o uso da luz na composição de O carro de bois
apresenta um aspecto ainda mais úmido do que a composição
sobre Itamaracá. O céu é homogeneamente cinza e há ausência
completa de sombras, naturais ou projetadas, tanto para as fi-
guras humanas do primeiro plano quanto para as edificações e
outros elementos visíveis no plano de fundo. Aqui, a paisagem
indica um dia de inverno.17 Nesse sentido, não só Frans Post
parece preocupado em exercer controle sobre a observação da
natureza como também representar a paisagem do Pernambu-
co através da cor local: a alegoria de abundância nos tons do
“inverno” austral.
Barlaeus já havia comparado a estação chuvosa na Nova Ho-
landa ao verão holandês, destacando a terra em Pernambuco
como “ameníssima” e “salubérrima” (BARLAEUS, 1980:21). Essa
descrição de paisagem amena em Barlaeus é condizente com
os tons da composição de Frans Post, mas apresentam uma
representação da terra do Brasil que se opõe a outra, isto é,
ao relato de que o calor na região é demasiado e limitador das
forças produtivas das populaçoes europeias, tais como encon-
tramos no relatório de Adrian van de Dussen (Cf. BOOGAART,
2004:321) e mesmo no texto erudito de Guilherme Piso. O mé-
dico de Leiden, ao elencar os vários frutos que a terra dá, con-
clui sobre eles que é “como se a natureza benigna os desse para
alívio dos mortais tão duramente causticados pelo sol, impondo
um freio ao derramamento dos humores.” (PISO, 1948:6).
Nesse sentido, Post não estava meramente reproduzindo,
ainda que fielmente, como querem seus críticos de arte, o as-
pecto visível da terra pernambucana. Antes, ele estava selecio-

16
Sobre os dados acerca das safras, cf. MELLO, 1998[1975]. Sobre a relação entre a
tela de Frans Post e a safra de 1638, cf. LAGO, 2006.
17
Sousa-Leão já havia sublinhado essa característica da “primeira fase” da obra de
Post. Fazendo uma comparação entre a obra desse último e a de Eckhout, ele
escreveu: “In fact, they only have in common, a gray, rainy sky, with muddy wa-
ters, both preferring the wintry season to paint when the cashews were ripe, the
papayas and kapok trees and bloom.” (1973:25-26).

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nando, dentre várias possíveis, as características observáveis


da terra que mais convinham para construir uma representa-
ção de abundância e fertilidade através do recurso retórico ao
topos da amenidade.
Porém, se por um lado João Maurício deixara que os inte-
ressados decidissem a sorte do debate em torno do Monopólio
vs. Comércio Livre; por outro, afinado com a proposta política
do orangismo de Frederik Hendrik, o Governador-General não
podia permitir que tal imagem viesse a ser a imagem oficial da
Nova Holanda. Daí porque todas as telas subsequentes de Post
que chegaram até hoje demonstram um retorno à estruturação
imaginária da terra em vistas topográficas. Daí porque a com-
posição do desenho para representar Sirinhaém abandonou a
estratégia visual da composição da tela de O carro de bois,
aproximando-se mais da iconografia de topografia, com sua
implicação de identificação com lugares pátrios no interior de
um corpo político soberano.
Em ambos os casos, seja no discurso mercantil e civil que
perpassava a representação da Nova Holanda como ameni-
dade exótica de terra estrangeira, seja no discurso orangista-
-nassoviano topográfia pátria e abundante, a imaginação da
terra do Brasil em alusão ao topos do paraíso deve ser en-
tendida como o efeito de realidade que procurou mitigar um
imaginário colonialista.

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ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA
FAZER “A CRUEL GUERRA”:
Os governadores de Pernambuco,
a câmara das Alagoas e as “entradas”
nos Palmares na segunda metade do
século XVII1

Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo2

Resumo: O crescimento de Palmares foi, certamente, uma das maiores in-


quietações dos governadores da capitania de Pernambuco na segunda me-
tade do século XVII. O recrutamento, o armamento e o abastecimento das
“entradas” nem sempre contou com o auxílio do erário régio, necessitando,
pois, estes agentes, do amparo dos poderes locais da Capitania. Através de
um olhar administrativo sobre a montagem do conflito, propõe-se, neste ar-
tigo, investigar a dinâmica das redes governativas e o papel das câmaras na
mobilização local de haveres para a montagem das expedições. Para tanto,
evidenciam-se as ações políticas da câmara da vila de Alagoas do Sul e suas
relações com os governadores da Capitania nesse contexto.

Palavras-Chave: Palmares, Governabilidade, Câmaras, Alagoas do Sul, Go-


vernadores, Capitania de Pernambuco Post bellum.


1
Artigo recebido em junho de 2014 e aprovado para publicação em julho de 2014.
Mestre em História pela UFPE. Doutorando pelo Instituto de Ciências Sociais da
2

Universidade de Lisboa. Bolsista CAPES/Programa de Doutoramento Pleno no Ex-


terior. Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de doutoramento pleno no ex-
terior e pelo financiamento da pesquisa. Este artigo é fruto de duas comunicações
anteriores, publicadas nos anais do IV Encontro Internacional de História Colonial
e nos anais do IV Encontro Nacional de História da UFAL, bem como de alguns
trechos de minha dissertação de mestrado, “O senado da câmara de Alagoas do
Sul: governança e poder local no sul de Pernambuco (1654-1751)”, devidamente
ampliados e revisados. Sou grato a Alex Rolim pela revisão atenta e contribuições
valorosas a este texto, isento-o de qualquer omissão ou erro, que caem, portanto
em minha inteira responsabilidade. Da mesma forma, sou grato (a)ao parecerista
anônimo(a) pelas contribuições oferecidas ao aprimoramento do artigo.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


194 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

Ordinances, acts and taxes to make “the cruel war”: the governors of Per-
nambuco, the chamber of Alagoas and the “entradas” in Palmares in the
second half of the seventeenth century.

Abstract: The development of Palmares was, certainly, one of the greatest


concerns for the Pernambuco governors in the second half of seventeenth
century. The recruitment, armament and supply of troops was not always fi-
nanced by the royal funds of the province, therefore these agent needed the
province’s city councils support. Through an administrative interpretation of
the conflict’s background, this article highlights the dynamics of the provin-
ce governance frameworks and the participation of the city councils on the
local mobilization of resources for the support of the expeditions. Thus, the
analysis is focused on the political actions of Alagoas do Sul council and its
relationship with the province governors at the time.

Keywords: Palmares War, Governability, City Councils, Alagoas do Sul, Per-


nambuco Governors, Post bellum.

A importância das Câmaras para a defesa das possessões


portuguesas no mundo tem sido destacada por diversos auto-
res. Desde o clássico e pioneiro estudo de Charles Ralph Boxer,
Portuguese society in the tropics (BOXER, 1965), aos trabalhos
mais recentes, como os de Evaldo Cabral de Mello (MELLO,
1975), Maria Fernanda Bicalho (BICALHO, 2003) e Wolfgang
Lenk (LENK, 2014), as edilidades tem sido apresentadas como
espaços de ativa mobilização de recursos e estratégias nos mais
diversos conflitos. Se a maioria desses autores tem posto em
relevo a atuação das câmaras das maiores praças do mundo
português, tais como, Salvador, Rio de Janeiro, Goa e Olinda,
propõe-se investigar, neste artigo, a participação da câmara de
Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul,3 uma pequena vila da
Capitania de Pernambuco, na mobilização de informações, in-
teresses e recursos para as entradas feitas aos Palmares na se-
gunda metade do século XVII.
Não dispondo a administração central da Coroa, na maior
parte do tempo, dos recursos necessários para lidar com as
ameaças à soberania portuguesa, a estratégia mais adotada em

3
Doravante abreviada para “Alagoas do Sul”.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 195

Portugal, desde o século XIV (MAGALHÃES, 2011:13), consistia


na transferência dos ônus de “sustento e manutenção de ma-
rinheiros e soldados”, bem como das fortalezas à alçada dos
poderes municipais (BICALHO, 2003:198-199). Exemplos dessa
prática podem ser encontrados desde o século XIV, com as
sisas lançadas às câmaras do reino por D. Dinis. As sisas eram
“tributos sobre tudo aquilo que se vende e compra” arrecada-
dos pelas câmaras e destinados a custear as despesas militares
(MAGALHÃES, Idem, Ibidem).
Se no território reinol, pode ser verificada uma articulação
mais direta entre os soberanos e a rede concelhia, nos espaços
ultramarinos, onde a ausência do monarca estava representada
em diversos agentes (vice-reis, governadores, capitães-mores
e, até mesmo, câmaras), a direção dos conflitos acabava por
recair em mãos de mediadores. Indispondo de farto auxílio da
Real Fazenda e de recursos próprios, os governantes (muitas
vezes inexperientes nos palcos de guerra ultramarina) costu-
mavam contar com a colaboração e a experiência dos poderes
locais para o recrutamento de tropas e para a aquisição de
mantimentos, armas e munições. Para os reforços que a Bahia,
por exemplo, enviou à Pernambuco na Guerra de Restauração
(1645-1654), o governo-geral para além de contar com o apoio
da câmara de Salvador na aquisição de dinheiro, rações, arma-
mentos e munição, obteve contribuições das pequenas vilas
da capitania de Ilhéus, como Cairu e Boipeba, na obtenção de
farinha e mantimentos.
Como denunciou Sílvia Lara, Palmares teria sido historiogra-
ficamente interpretado apenas como um símbolo de reação de
escravos contra o sistema escravista, um caso excepcional que
explicaria a si próprio. Tendo o foco da maioria dos autores, até
a década de 1990, recaído sobre a construção de uma heroici-
dade para resistência de um único mocambo, Palmares perdeu
sua conexão para com as análises de um “contexto histórico
colonial mais amplo” (LARA, 2010:3). Interpretado meramente
como uma luta de escravos contra seus senhores, as análises
não incluíam, por exemplo, os atritos entre as autoridades colo-
niais e o governo metropolitano, ou entre aquelas e os poderes

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


196 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

presenciais existentes na Capitania (Idem, ibidem: p. 3). Diante


da problemática sugerida, as relações entre os governadores e
os poderes locais, encarnados nas câmaras, constituem o prin-
cipal objeto de investigação deste artigo.
Pensada no contexto de ação, a “Guerra dos Palmares” não
foi, de fato, uma única guerra, mas uma multiplicidade de in-
cursões violentas, e nem sempre bem coordenadas entre si, que
ganharam, no discurso de diversos agentes, a característica de
uma guerra (LARA, 2010:3). Tais incursões foram movidas por
diversos polos de ação militar, ora encabeçados pelas câmaras,
ora pelos Governadores da Capitania, ou pela ação de particu-
lares, como os Senhores de Engenho (MENDES, 2011).
As câmaras da Capitania tiveram papel importante em dois
momentos. De início, assim como a câmara de Natal na Guerra
do Açu (ALENCAR, 2011:791), a vereança das vilas mais próxi-
mas aos mocambos auxiliou a construir um discurso, perante os
governadores da Capitania, que justificasse a necessidade de se
encarar as expedições contra os mocambos como uma Guerra,
e não mais como meras excursões de recaptura de cativos fugi-
dos.4 O aparecimento desse discurso acompanhou, de um lado,
o crescimento de Palmares e, de outro, os interesses econô-
micos mais diversos possíveis. De acordo com John Thornton,
entre o ante bellum e o post bellum5 os mocambos passaram
de pequenas comunidades de cativos fugitivos, contraponto da
sociedade escravista, a verdadeiros reinos organizados em tor-
no de tradições angolanas, modificadas pelo contexto social da
4
Por não dispormos das cartas originais escritas aos governadores, mas, somente,
de menções a elas, não nos debruçaremos sobre a construção desse discurso.
Basta citar, a título de exemplo, uma menção do próprio Brito Freyre. Quando or-
denou ao cabo que marchasse contra os mocambos, em 1664, dizia: “das Alagoas
me escreveu a câmara e o capitão-mor que [os palmaristas] saltearam algumas
casas dos moradores e levaram seus escravos”. BCUC, Códice 31, fl. 55.
5
Doravante, será utilizada a periodização proposta por Evaldo Cabral de Mello
para tratar da história das Capitanias do Norte da América Portuguesa no sécu-
lo XVII. Para ele, o período da invasão e da guerra contra os neerlandeses é o
principal marco da história dessa região no século XVII, de maneira que o autor
divide a periodização em: “ante bellum”, isto é, antes da Guerra (1534-1630),
“período neerlandês” (1630-1654) e “post bellum”, o período posterior à expulsão
dos neerlandeses em 1654.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 197

América (THORNTON, 2010:50-51). Já os interesses econômi-


cos, recaíram sobre os ganhos obteníveis com a reescravização
e venda da população palmarista, e (especialmente nas fases
finais das guerras) sobre a obtenção das terras dos mocambos
– “pomo da discórdia” entre as elites locais e os veteranos do
Terço dos Paulistas.
Num segundo momento, quando os governadores passaram
a estar envolvidos com as principais excursões, as câmaras do
sul de Pernambuco ficaram responsáveis por algumas ativida-
des de recrutamento de tropas e pela arrecadação de manti-
mentos junto aos moradores. Como observou Laura Mendes, os
governadores contaram com o auxílio da Real Fazenda na aqui-
sição de armas, munição, fardamento e pagamento do soldo
das tropas de primeira linha, mas a aquisição de mantimentos
e cativos – para seu carreto mata adentro – foi feita por meio
da expedição de ordens e do lançamento de fintas aos poderes
locais da Capitania, recorrendo, naturalmente, ao poder cama-
rário (MENDES, 2013:80).
Diante disso, a participação da câmara de Alagoas do Sul
será investigada, de um lado, a partir das cartas enviadas pelo
governador à vila6 e, de outro, através das medidas adotadas
pela câmara para dar cumprimento ao conteúdo dessas car-
tas7. Pretendemos demonstrar, com o estudo, que a capacidade
de comando dos governadores, quando exercida à distância,
dependia de negociações e, consequentemente, da disponi-
bilidade de colaboração dos poderes locais. Além disso, é
nosso objetivo sublinhar os impactos sociais e econômicos da
cobrança das fintas dos palmares sobre o setor produtivo de
Alagoas do Sul.

Essas cartas ficaram registradas na Coleção Conde dos Arcos, hoje guardada na
6

Biblioteca Central da Universidade de Coimbra. Cf.: BCUC, Cód. 31 e 32.



7
As iniciativas da câmara para dar cumprimento às ordens dos governadores serão
tratadas a partir do Segundo Livro de Vereações da Câmara de Alagoas do Sul,
único do século XVII que restou em toda a Capitania, que tem suas datas-limite
entre 1668 e 1680, guardando doze anos de vereação. Arquivo do IHGAL, 00006-
01-02-01 Segundo Livro de Vereações da Câmara da Vila de Santa Maria Madale-
na da Lagoa do Sul (1668-1680) (doravante abreviado para “Segundo Livro de
Vereações...).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


198 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

O artigo encontra-se dividido em cinco partes. Na primeira,


ressaltamos o peso da guerra dos palmares no conjunto da co-
municação política dos governadores com as câmaras do sul da
Capitania, comparando essa comunicação com aquela estabele-
cida entre o governador e outras vilas. Na segunda parte, apon-
tamos para a importância da câmara enquanto canal de comu-
nicação e coordenação entre o governador, os militares e os
campanhistas, além de cotejarmos a dinâmica de recrutamento
das tropas. Em seguida, tratamos da questão do lançamento e
da cobrança das diversas “fintas dos palmares” no termo da vila.
Na quarta parte esboçamos os principais impactos dos esforços
de “guerra” para os habitantes da vila. Por fim, sublinhamos a
existência de outras formas de tributação que, juntamente aos
esforços de guerra, contribuíram para um contexto de sobre-
carga fiscal. Vale ressaltar que este não é um estudo voltado a
compreender as expedições, os mocambos ou a guerra, mas as
atividades administrativas, nomeadamente, a mobilização para
a Guerra em escala municipal.

Comunicação política

Para Angelo Panebianco, a comunicação política pode ser


definida como “o conjunto das mensagens que circulam den-
tro de um sistema político, condicionando-lhe toda a atividade
desde a formação das demandas e dos processos de conversão
às próprias respostas do sistema”. Seria algo parecido com o
“‘sistema nervoso’ de toda a unidade política”, ou os canais
de mensagem que veiculam a ação política (PANEBIANCO,
1998:200). Ora, pensar “unidade política” numa sociedade po-
liticamente multicentrada como a do Antigo Regime, requer,
portanto, uma adequação do conceito, acompanhada de uma
delimitação maior acerca do “sistema político” a ser investigado
(HESPANHA, 2009:53). Nas linhas seguintes, trataremos unica-
mente do governo da Capitania de Pernambuco, limitando-nos
a considerar a comunicação de seus maiores representantes
na segunda metade do século XVII: os governadores e capi-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 199

tães-generais. Se os investigadores da História Contemporânea


tem se utilizado da comunicação política para tratar das rela-
ções entre o Estado e a sociedade civil, por meio dos veículos
de mass mídia, a natureza das relações políticas da sociedade
de Antigo Regime – marcada pela universalidade do direito e
pela indistinção entre as duas esferas (HESPANHA, 1992:19)
– não nos permitiria partir do mesmo pressuposto (NUNES,
2013:251-264). Valemo-nos, então, da comunicação política
para compreender as estratégias de articulação internas à rede
governativa da capitania, isto é, das cartas, bandos e provisões
expedidos pelos governadores às câmaras. Nesta perspectiva,
a comunicação dos governadores com os poderes locais da
Capitania tem importância fundamental para a compreensão da
governabilidade em exercício nos contextos de ação que foram
as “guerras contra os palmares”.
Residindo a maior parte do tempo na vila de Olinda ou no
porto do Recife (em ocasião da chegada das frotas) as relações
dos governadores com as vilas mais distantes se davam por
meio de cartas. Através daquelas que foram enviadas às câma-
ras (preservadas por meio de cópias na Coleção do Conde dos
Arcos da Biblioteca da Universidade de Coimbra) foi possível
criar nove tipologias de assunto.8 São elas: jurisdição militar,
donativos, cargos e provimentos, justiça, administração passiva,
comércio, impostos, conflitos de jurisdição e outros. Na Tabela
1, estão representadas, na coluna da esquerda, as nove tipolo-
gias e, nas colunas à direita, as expressões percentuais dos as-
suntos na totalidade de cartas enviadas para cada uma das vilas.
Na última linha, encontra-se a quantidade de cartas enviadas e
a representatividade percentual individual em meio ao total de
cartas enviadas às câmaras.

Tal esforço de categorização apresenta uma pequena imprecisão: uma mesma


8

carta apresenta mais de um assunto, e um mesmo assunto pode ser enquadrado


em mais de uma categoria como, por exemplo, uma resposta que Francisco de
Brito Freyre deu à uma carta da câmara Alagoas do Sul, datada de 1661 em que
solicitava a isenção do pagamento do soldo das tropas de primeira linha da Ca-
pitania, assunto que se inclui nas categorias “Jurisdição Militar” e “Administração
Passiva”. Cf.: BCUC, Cód. 31, fl. 56.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


200 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

Tabela 1 - Comunicação Política enviada pelos governadores às câ-


maras da Capitania (1654-1746).

VILAS DA
CAPITANIA
NO SÉCULO
XVII
PORTO ALAGOAS
ASSUNTOS OLINDA IGARASSU SIRINHAÉM PENEDO
CALVO DO SUL
Jurisdição 18% 5% 32% 39% 36% 31%
Militar
Donativos 13% 43% 26% 26% 29% 16%
Cargos e 5% 9% 6% 7% 13% 4%
Provimentos
Justiça 4% 9% 2% 2% 6% 3%
Administração 1% 19% 4% 2% 6% 12%
Passiva
Comércio 7% 5% - 5% 4% 11%
Impostos 11% - 4% - - 3%
Conflitos de 9% - 10% 7% - -
Jurisdição
Outros 32% 10% 16% 12% 6% 20%
Total de 139 20 48 39 41 50
Cartas (39%) (6%) (15%) (12%) (13% (15%)

Fonte: “Disposições dos governadores de Pernambuco”. BCUC, Cód. 31 e 32.

A partir da tabela, duas questões podem ser levantadas. A


primeira está relacionada à diferença visível nos ritmos de co-
municação entre os governadores e as câmaras. O total de cartas
enviadas à câmara de Olinda, a mais proeminente da Capitania
neste período, supera o de qualquer outra câmara investiga-
da, ocupando 39% de toda a comunicação política dos gover-
nadores com as câmaras. Essa diferença pode ser explicada
pela expressividade política da câmara de Olinda, representada
nas suas competências supramunicipais (que só foram tolhidas
no primeiro quartel do século XVIII). Tais competências esta-
vam ligadas, principalmente, ao controle sobre alguns aspectos
da administração fazendária da Capitania, como o pagamento
dos soldos da tropa regular e a jurisdição sobre a arrematação
dos contratos de diversos subsídios (ACIOLI, 1997:60; MELLO,

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 201

2003). Além disso, Olinda administrou o maior centro urbano


da Capitania, o Recife, até 1711. Logo, questões como as cons-
truções públicas, os aluguéis das casas e estabelecimentos co-
merciais, a imposição de preços sobre certos gêneros e alguns
aspectos do abastecimento das frotas estavam ligados às suas
rotinas administrativas. Grande parte dessas atribuições estava
associada à própria atividade administrativa dos governadores,
que requeria o amparo do poder municipal, o que também ex-
plica a maior dispersão percentual dos assuntos.
A segunda questão diz respeito à categoria “jurisdição mili-
tar”, muito mais expressiva nas cartas enviadas às câmaras mais
próximas dos mocambos – 32% em Sirinhaém, 39% em Porto
Calvo, 36% em Alagoas do Sul e 31% em Penedo – do que nas
câmaras de Olinda (18%) e de Igarassu (5%), um pouco mais
distantes, mas, ainda assim, afetadas pela existência daquele
contraponto da sociedade escravista. É importante, no entanto,
ressaltar uma diferença entre a natureza do conteúdo das cartas
dessa categoria. Se os assuntos militares tratados com a câmara
de Olinda envolviam a dinâmica de pagamento e manutenção
das tropas, a comunicação com as câmaras do sul de Pernam-
buco é composta, basicamente, de delegações para a prepara-
ção dos comboios e aparelhagem das entradas aos Palmares,
além de informações sobre as manobras das expedições. Essa
diferença ilustra certa especificidade no relacionamento das câ-
maras com o governador. Por suas grandes responsabilidades
supramunicipais e fiscais, a câmara de Olinda teria competên-
cias semelhantes às que a Provedoria da Real Fazenda passou
a assumir a partir de 1727, enquanto que as câmaras menores,
ao sul, seriam visadas para cederem contribuições in natura,
além de prestar todo tipo de auxílio aos campanhistas, como
veremos adiante.9
Através dessas cartas, percebemos que as edilidades ficaram
responsáveis por três questões fundamentais no processo de

Reflexões mais aprofundadas a respeito da comunicação política dos governado-


9

res estão sendo desenvolvidas na tese de doutoramento, defendida junto ao ICS


da Universidade de Lisboa, mas foram razoavelmente esboçadas na dissertação
de mestrado. Cf.: CURVELO, 2014:135-167.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


202 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

mobilização dos moradores para o conflito. Em primeiro lugar,


a “rede concelhia” formalizou a existência de um canal de co-
municação entre os governadores e os oficiais da milícia e da
ordenança, possibilitando a aquisição de informações acerca
das manobras em ambas as partes. Segundo, alguns governa-
dores delegaram às câmaras a responsabilidade direta pelo re-
crutamento de tropas, ou, ao menos, quiseram contar com sua
colaboração para a mobilização. Por fim, a terceira e principal
delegação está relacionada à aquisição de suprimentos para a
manutenção das forças invasoras. Focando em Alagoas do Sul,
aprofundamo-nos nessas três questões nos próximos tópicos.

Redes de informação e recrutamento

Em um conflito, a existência de redes de comunicação en-


tre os polos de comando é essencial para a operacionalização
das manobras. Era comum que os governadores escrevessem
às câmaras informando as intenções de atacar os mocambos
e os movimentos que as tropas estavam fazendo. A execução
dessas ordens poderia ser direcionada à própria vereança de
Alagoas do Sul ou esta poderia servir simplesmente como canal
de transmissão das ordens aos capitães-mores e outros oficiais.
Quando o governador Francisco de Brito Freyre escreveu,
em dezembro de 1661, explicando o regimento que dera a um
cabo que partia para os mocambos, tratou de ordenar que a
câmara de Alagoas do Sul mandasse o “seu capitão do cam-
po”, isto é, o capitão do mato a serviço da vereança, ir “com
alguns homens correr essa campanha10 desde o rio S. Miguel
até Santo Antonio Grande três ou quatro léguas para dentro da
praia”, pois que quando os palmaristas tomavam conhecimento
da chegada das expedições desciam “para baixo a beira mar, e
para que de todas as maneiras nos não escapem, convém fazer

10
O significado de “campanha” que melhor se ajusta ao contexto é o de “campo, ou
campos, por onde anda o exército”, segundo Raphael Bluteau. BLUTEAU, tomo
2, pp. 83-84.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 203

esta diligência”. Vemos assim, um agente subordinado ao poder


camarário sendo designado para tomar parte das manobras de
rapto dos habitantes dos mocambos.11 Em outra ocasião, Jerô-
nimo de Mendonça Furtado ordenava que a Câmara informasse
ao Capitão Gonçalo Moreira, que ele deveria ajuntar “um bom
golpe de gente” para ir correr os campos em “uma até duas lé-
guas ao redor dessa vila”, pelo mesmo motivo alegado por Brito
Freyre.12 Em tal situação, a Câmara atuou apenas um canal de
transmissão de informações a este oficial.
Ainda na carta de Brito Freyre, de 1661, pode ser apontada
a importância da edilidade enquanto canal de geração de in-
formação, pois o governador ordenava que “de tudo o que se
obrar, me despachem vossas mercês aviso para me aliviarem
do grande cuidado com que fico sobre a expedição dessas
tropas”.13 Seria essencial para o governador conhecer os suces-
sos e as ações militares da expedição que, naquele momento,
se dirigia aos mocambos. Esse conhecimento dependia das car-
tas enviadas pela Câmara de Alagoas do Sul, transformada, de
tal forma, em espaço gerador de informações acerca da guerra.
Com relação ao recrutamento percebemos dois padrões di-
ferenciados nas cartas dos governadores: essa responsabilidade
poderia ser delegada de forma direta ou indireta à vereança.
Na mesma carta de 1661, Brito Freyre ordenou à Câmara que
formasse por ela mesma uma “tropa de mancebos solteiros e
alguns casados mais suficientes dessas Alagoas que [...] façam
número de 150 até 200 homens, com os quais marche o capitão
Simão Mendes em demanda desses mocambos”.14 A maneira
como a Câmara procedia a esse recrutamento, entretanto, é
desconhecida, já que essa responsabilidade só lhes foi delegada
uma única vez. Contudo, é provável que o recrutamento envol-
vesse a colaboração com os oficiais da milícia e da ordenança
local, ou mesmo com o Capitão-Mor. Alguns anos mais tarde,

BCUC, Cód. 31, fl.65v.


11

Idem, Ibidem, fl. 158v.


12

Idem, Ibidem fl. 65v.


13

Idem, Ibidem.
14

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


204 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

em 1665, Jerônimo de Mendonça Furtado escrevia à Câmara


para que informasse ao Capitão-Mor que estava sendo prepa-
rada uma nova expedição para atacar os mocambos e que ele
deveria fazer uma “mostra a essas companhias de auxiliares
ou ordenanças” fazendo “uma lista dos soldados capazes de
tomar armas para a jornada”.15 Mais uma vez, a Câmara apenas
transmitiu a ordem, sem se responsabilizar diretamente pelo
cumprimento da mesma.
No Segundo Livro de Vereações, isto é, entre 1668 e 1680,
encontram-se registrados três bandos 16 oferecendo vantagens
àqueles que se alistassem. Um foi lançado pelo governador
Fernão de Souza Coutinho, e os outros dois pelo governador
D. Pedro de Almeida. No primeiro bando, de outubro de 1672,
Coutinho prometia que nenhum criminoso que se juntasse às
tropas pudesse ser preso, nem remetido para as tropas do so-
corro de Angola. E para “os homens nobres que forem à jorna-
da sobredita serão preferidos aos [de]mais nos lugares e ofícios
e honras da República como defensores dela”.17 Com o propó-
sito de motivar o alistamento e a inserir os “principais da terra”
na mobilização, este primeiro bando oferecia, sobretudo, vanta-
gens políticas. Para os criminosos e “vadios”, a participação nas
expedições poderia ser a porta de entrada para a (re)integração
à sociedade local ou, ao menos, a dispensa do recrutamento
forçado para os “presídios” da Capitania (SILVA, 2001:99, 155-
162). E, para as elites locais, formalizava o combate aos mo-
cambos como um serviço digno de remuneração, em forma de
cargos e ofícios (MARQUES, 2012:87-126).
Já os dois bandos lançados por D. Pedro de Almeida, ofe-
reciam vantagens econômicas diretas, através da garantia de
concessão dos “espólios” mais almejados nesta fase da guerra:

15
Idem, fl.194.
16
A definição mais aproximada de “Bando” que se pode ter para a época está no
dicionário de Raphael Bluteau. Segundo ele: “Deriva-se do antigo vocábulo ale-
mão, Bam, que significa pregão; do Bam dos alemães fizeram os italianos o seu
Bandire, que quer dizer ‘Publicar por bando’, como quando se declara publica-
mente um decreto, uma lei”. In: BLUTEAU, tomo 2, p. 31.
17
Segundo Livro de Vereações... fl.31 e v (intervenção do autor).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 205

os próprios habitantes dos mocambos. Em outubro de 1674,


informava aos moradores de Alagoas do Sul, por meio da Câ-
mara, que ele mandara “prevenir a gente que [...] era necessá-
ria de soldados pagos, índios, homens pardos da ordenança e
pretos do terço que foi de Henriques Dias” para compor uma
entrada.18 Por sua vez, ele oferecia como vantagem “as peças
que [se] tomarem tirando os quintos do dito Senhor [o Rei] as
quais há de se repartir [com] o Cabo que mando”.19 No segun-
do Bando, de 1678, este governador enfatizou a urgência de
se mandar uma entrada para se extinguirem os mocambos de
uma vez por todas, e ampliou os benefícios para os participan-
tes, prometendo todas as “presas” que se tomassem na entrada
sem a cobrança dos quintos régios. Se a divisão dos palmaristas
violentamente aprisionados nestas expedições aparece como
principal interesse econômico para os campanhistas, na fase
final da Guerra, as terras de Palmares tornaram-se o principal
espólio de conquista e, com o tempo, o “pomo da discórdia”
entre os sertanistas e a “nobreza” das vilas próximas.
Mesmo que não tenha participado diretamente do alista-
mento dos “voluntários” locais, a Câmara continuou a ter um
papel importante nesse processo por divulgar e, nesse senti-
do, aproximar os habitantes das decisões tomadas pelos go-
vernadores da Capitania. A difusão das informações acerca do
recrutamento aparece como uma das principais responsabi-
lidades da vereança nessas ocasiões. Jerônimo de Mendonça
Furtado preocupou-se em enfatizar isso num bando de 1664,
ordenando que a Câmara fixasse cópias dele “nas portas das
igrejas de todos os engenhos para que venha a notícia de

Idem, fl. 53v. e 54. É lamentável que os Livros de Matrícula das Ordenanças e das
18

Tropas Auxiliares estejam perdidos, pois só com eles poderíamos ter noção de
quantas pessoas se alistaram para aquela empresa e a que grupos sociais elas
pertenciam. No entanto, os trabalhos de Kalina Vanderlei Silva, que têm enfatiza-
do a composição mestiça e pobre dos corpos militares de Pernambuco, permitem
deduzir que as tropas recrutadas em Lagoa do Sul não eram diferentes. Cf. SILVA,
2001 e 2010.
Idem. Por “peças”, devem ser entendidas as pessoas que habitavam os mocam-
19

bos, a quem se intencionava escravizar ou reescravizar (intervenção do autor).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


206 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

todos, e não tenham ignorância que alegar”.20 Por serem es-


paços muito frequentados, entrevemos nessa questão que os
meios de fazer com que o conteúdo das ordens tivesse o mais
amplo e veloz mecanismo de circulação, num mundo marca-
damente rural, passavam pela utilização da “malha paroquial”
a favor da malha administrativa.

As “fintas dos Palmares”


Apesar da participação da Câmara na rede de informações e
no recrutamento de tropas, a principal responsabilidade dele-
gada pelos governadores recaía sobre a arrecadação de manti-
mentos para as tropas. Isso se dava pelo lançamento de fintas
que eram arrecadações in natura feitas com os moradores de
uma dada jurisdição, seja para o provimento de carnes, de pei-
xe, de farinha ou mesmo de cativos. As fintas não tinham um
tempo de duração estabelecido e, é bem provável, que elas
fossem cobradas até que se conseguisse ratear a quantia esti-
pulada entre os habitantes. Segundo Evaldo Cabral de Mello,
durante a Guerra de Restauração (1645-1654), elas “recaíram
principalmente sobre o setor de subsistência, representando
destarte uma técnica de transferência de parte do ônus da guer-
ra para aquele segmento da população que vivia à margem
do setor açucareiro” (MELLO, 1975:154). Ora, numa localidade
que, em 1655, só possuía seis engenhos e, desde o ante bellum,
se especializara como fornecedora de gêneros de subsistência
(farinha, peixe, carne e gado vacum) à Olinda, essas contribui-
ções deveriam ter uma abrangência significativa.21
Em algumas fintas, os governadores exigiram que a Câmara
arrecadasse cotas fixas de mantimentos (400 alqueires de fari-
nha, por exemplo) e, em outras, estipularam o recolhimento da

20
BCUC, Cód. 31, fl. 151.
21
Para a lista desses seis engenhos, ver: “Uma relação dos engenhos de Pernambu-
co em 1655”. In: MELLO, 1981: I, 233-243; quanto à primeira vocação econômica
da localidade ser voltada à subsistência, ver: AZEVEDO, 2002.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 207

maior quantidade possível de determinado gênero.22 De início,


uma análise dos montantes angariados durante a mobilização
para a guerra apresenta um problema basilar: é uma arrecadação
feita por uma sociedade pouco monetarizada e cujas formas de
organização política nem sempre lidavam com registros numé-
ricos precisos (MELLO, 1975:131). Se em algumas cartas estão
registrados os montantes ideais de recursos a serem arrecadados,
não se encontrou nenhum registro, no Livro de Vereações, que
descrimine sua arrecadação efetiva. Em outras palavras: sabe-se,
eventualmente, o quanto os governadores exigiram, mas não se
sabe exatamente o quanto a Câmara e os fintadores conseguiram
recolher junto ao setor produtivo. Esse problema limita as abor-
dagens quantitativas que lidem com esforços de guerra. Dessa
feita, alguns questionamentos como: a porcentagem do total da
população que foi realmente mobilizada para o conflito e qual a
porcentagem de recursos retirados do montante total da produ-
ção social, ainda ficam sem resposta.
Francisco de Brito Freyre parece ter sido o primeiro gover-
nador a solicitar a arrecadação de mantimentos para as tropas
que seguiam em direção aos mocambos. Em 1661, após descri-
minar o contingente de homens que estava se preparando para
a entrada, solicitou à Câmara de Alagoas do Sul que “para a
ração que há de levar esta gente, façam vossas mercês um lan-
çamento para todos os moradores, pois é em benefício seu e da
conservação de suas vidas e fazendas”, de modo que quando a
tropa estacionasse em Alagoas do Sul, para se reunir e marchar,
os oficiais da Câmara tivessem prontos “ao menos 400 alquei-
res de farinha e conduto deste respeito, que uma e outra coisa
pode estar em casa de seus donos”.23 A grande diferença entre
esta carta de Brito Freyre e as de todos os outros governadores
que se seguiram é que no caso da Câmara ter de arcar com a
compra ou o transporte de farinha, os oficiais deveriam tomar

Lenk encontrou uma tendência semelhante para a arrecadação de mantimentos


22

na Bahia durante a guerra holandesa. A única diferença é que as ordens de ar-


recadação poderiam ser feitas pela Câmara de Salvador às câmaras menores da-
quela Capitania, algo que não acontece no nosso caso. Cf: LENK, 2013:430-431.
BCUC, Cód. 31, fl. 65v.
23

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


208 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

“por lembrança o que importam [os gastos] para os mandar


pagar da minha Fazenda, visto que da de Sua Majestade não
há efeitos nenhuns”. Nesse sentido, Brito Freyre se propunha a
ressarcir a câmara pelos gastos que fizesse.
Durante o governo de Jerônimo de Mendonça Furtado, uma
das estratégias arquitetadas para conter o crescimento dos mo-
cambos foi o deslocamento do Terço de Filipe Camarão, com-
posto de índios e caboclos, para as proximidades dos Palmares,
ocupando o assentamento de um mocambo já arrasado, acerca
de 18 ou 20 léguas de Alagoas do Sul. Para esse intento, Furta-
do ordenou à Câmara, em novembro de 1664, que fornecesse
“sementes” aos índios do Terço “para fazerem suas plantas e
lavouras de roças”. Durante os primeiros meses, em que não pu-
dessem colher frutos, a vereança deveria assistir a estes homens
com “uma ração ordinária de farinha, fazendo-lhes toda a boa
passagem e favor [...] para que com mais vontade folguem de fi-
car vizinhando com esses moradores”.24 Em 1665, o terço acabou
sendo deslocado para as cabeceiras de Porto Calvo, devido à fal-
ta de sucesso de uma bandeira comandada por Cristóvão Lins.25
Entre 1668 e 1680, há registro de, ao menos, oito ordens so-
licitando a arrecadação de mantimentos e, em algumas, a con-
cessão de escravos para o carreto deles. Em 1668, o governa-
dor, Bernardo de Miranda Henriques, lançou uma ordem para
o recolhimento de farinha. Dois anos mais tarde, seu sucessor,
Fernão de Souza Coutinho, enviou uma carta ordenando à Câ-
mara que observasse “os mantimentos que poderão lançar a
esses povos”, sem com isso estabelecer cotas fixas 26 e, em 1672,
voltou a admoestar os oficiais da câmara a arrecadarem víveres
junto aos moradores. Em outra carta, Souza Coutinho orde-
nou que a Câmara nomeasse um Escrivão do Almoxarife dos
Mantimentos, a fim de acompanhar este oficial e “lhe assistir a
fazer recibos e mais papéis pertencentes aos oficiais que leva
na forma que é estilo nos almoxarifados”, bem como “as listas

24
Idem, fl. 158v.
25
Idem, fl. 194.
26
BCUC, Cód. 31, fl. 254.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 209

da infantaria para onde se há de socorrer de mantimentos”, po-


dendo ser este mesmo escrivão o próprio Escrivão da Câmara
ou “Tabelião que for mais experiente”.27
Em 1674, Dom Pedro de Almeida, enviou um bando aos
oficiais da Câmara de Alagoas do Sul, ordenando que se en-
tregasse ao mesmo “trezentos alqueires de farinha mais todo
o peixe que se pudesse fazer” para a “entrada que intenta
fazer sobre a guerra dos negros dos palmares”.28 E no ano de
1677, esse mesmo governador, exigia à Câmara que arrecadas-
se escravos junto aos moradores para realizar o carregamento
de um comboio de mantimentos que partiria de Porto Calvo
naquele mesmo ano.
Já o governador Ayres de Souza de Castro rogou víveres à
câmara em três cartas. A primeira, de julho de 1678, foi despa-
chada pouco tempo depois de esse governador ter concluído
os “tratados” com Ganga Zumba em que este se comprometia a
deixar o mocambo do Macaco e ir para o aldeamento de Cucaú,
nas cabeceiras de Sirinhaém. Nesse mesmo bando, Souza de
Castro solicitava à Câmara que arrecadasse farinha “tirada pelo
povo” a fim de suprir Cucaú para nos “primeiros dias lhes servir
de sustento” enquanto não pudessem colher de suas próprias
roças. O segundo, de 1679, reconhecia que, apesar dos acordos
firmados com Ganga Zumba, alguns palmaristas ainda resistiam
nos mocambos, sendo necessária nova entrada e com isso, o
lançamento de uma nova arrecadação para o recolhimento de
mantimentos. A terceira foi escrita em 1680, exigindo o envio
mensal de 50 alqueires de farinha e, provavelmente, um lote
único de “quinhentas arrobas de carne, quinhentos curimãs,
duas mil tainhas e cinquenta negros para o carreto deles” para
abastecer o Arraial que, futuramente, seria batizado de Nossa
Senhora das Brotas.29
Afinal o que significavam 400, 300 ou mesmo 50 alqueires
de farinha para o abastecimento de uma tropa? Segundo Cabral

Idem, fl.275.
27

Segundo Livro de Vereações... fl.132.


28

Segundo Livro de Vereações.... fl. 132.


29

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


210 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

de Mello, cada soldado consumia, em média, um alqueire de


farinha por mês (MELLO, 1975:197.). Na época, um alqueire
correspondia aos atuais 32 litros, que correspondem a mais de
224 quilos de farinha. Logo, os 300 alqueires solicitados por
D. Pedro de Almeida, por exemplo, poderiam abastecer 300
homens durante um mês de campanha, ou 150 durante dois
meses. Adiante retomaremos os impactos que essas fintas po-
deriam ter no cotidiano da população.
A última carta solicitando mantimentos foi escrita por D. João
de Souza, nono governador da Capitania, em julho de 1683, na
qual informou que estava prestes a empreender uma “cruel guer-
ra para que de todo fiquem extintos” os mocambos, pelo “que
esta senão pode conseguir sem os efeitos prontos para o susten-
to das tropas”. Por meio da Câmara, ordenou aos habitantes que
concorressem “com o que lhes for possível da sua parte”, sem
estabelecer qualquer cota fixa. É intrigante notar que na década
de 1680 apesar de partirem várias expedições contra os mocam-
bos, não há registro de nenhuma outra carta requerendo man-
timentos à edilidade. De acordo com Laura Mendes, nas fases
finais do conflito, a “exaustão” das vilas do sul no fornecimento
de tantos haveres se tornou um discurso recorrente em diver-
sas correspondências, o que teria contribuído para a diminuição
do lançamento das fintas por parte dos governadores (MENDES,
2013:93). Mas, afinal de contas, quem teria passado a arcar com
o abastecimento das tropas a partir de então? Mendes responde a
essa questão, quando aponta para as contribuições da câmara de
Olinda que, “em 1683, pagou mensalmente o dinheiro destinado
às rações para a ajuda na despesa da Guerra dos Palmares” e,
dois anos mais tarde, recebeu ordem régia para auxiliar o Terço
dos Paulistas (MENDES, 2013:95).

Os impactos econômicos das fintas

Pode-se perguntar: além de receber as ordens e publicá-las,


o que fazia a Câmara para cumpri-las? A principal medida era
proceder à nomeação de fintadores para percorrer a vila e seus

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 211

termos recolhendo o que fosse necessário junto aos morado-


res. Em algumas situações, a rede de fintadores instituída para
a arrecadação do Donativo para o Casamento da Rainha de
Inglaterra e Paz com Holanda foi utilizada para a cobrança das
fintas dos Palmares. Em outras, os fintadores costumavam ser
escolhidos entre os homens que circulavam nos lugares hon-
rosos da república, especialmente no cargo de almotacé. Havia
dois benefícios para aqueles que serviam de fintadores: um
econômico, já que recebiam uma “comissão” pelo serviço;30 e
um político, já que esta serventia proporcionava status e, com
ele, mais condições para a perpetuação desses homens nobres
no grupo da governança da terra (CURVELO, 2014:93).
A Câmara também ordenava, em vereação, que se procedes-
sem às “vistorias” nas roças dos lavradores a fim de que cada
um contribuísse com alguma quantia de macaxeira para fazer
farinha. Entretanto, essa prática só foi registrada duas vezes,
uma em 1669 31 e outra em 1680.32 Nesta última, a vistoria foi
ordenada para dar cumprimento ao bando de Ayres de Souza
de Castro. Nela, é interessante notar que não havia uma quota
fixa por lavrador, mas uma variação “conforme as roças que se
achassem no termo da vila”, sendo necessário fintar “os homens
que tivessem roças suficientes para fazer farinha para a guerra
dos Palmares, porquanto não [a] havia nem para o povo”.33 Com
isso, entrevemos que este gênero poderia faltar mesmo para
os habitantes, ainda que a produção de farinha fosse uma das
principais atividades econômicas da vila.
As dificuldades não se resumiam apenas à obtenção de
mantimentos, pois a própria Câmara se queixou a Fernão de

Essa comissão fica evidente quando se observa um Rol da Finta que se fez na
30

povoação do Cabo de Santo Agostinho, que além dos nomes de quase 350 mo-
radores que contribuíram, traz a indicação de 30 réis (comissionados de um total
de 996.780 réis) “Pelo que se deu ao comissário que Vossa Mercê foi consignado
pelo trabalho de correr com esta finta dando quitações e tudo o mais”. Ver FREI-
TAS, 2004:57.
Segundo Livro de Vereações..., fl.5
31

Idem, fl.59-60.
32

Idem, Ibidem.
33

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


212 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

Souza Coutinho, em 1672, que estavam faltando sacos para


armazená-los.34 Mas, seria a falta de sacos um entrave ou ape-
nas uma desculpa dos edis para o atraso no envio dos manti-
mentos? A documentação consultada não permite esclarecer a
provocação, mas as queixas posteriores sobre o atraso podem
apontar para sua validade.
Além das vistorias, a vereança estabelecia penas às pessoas
que se negassem a contribuir com as fintas. Na primeira vereação
de março de 1678, o procurador da câmara requeria ao juiz ordi-
nário que “desse execução a todas as pessoas que foram notifica-
das para darem negros e carne e peixe para o comboio dos Pal-
mares” aplicando as “penas que referidas foram nos mandados”.35
Ainda no cumprimento das ordens dos governadores, a Câma-
ra se responsabilizava por institucionalizar acordos com as elites
locais, colaborando para a formação de certa comunidade política
entre os habitantes da vila e de seu termo, onde, além de tornar
pública a divulgação das ordens dos governadores, convocava
os ajuntamentos. Nessas ocasiões a edilidade abria espaço para
que se reunisse parte da “gente nobre” das três freguesias que a
conformavam (Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia e São
Miguel) com a finalidade de coletar opiniões sobre alguma maté-
ria, ou elaborar algum requerimento ou reclamação conjunta. Em
1676, por exemplo, a “gente nobre” se reuniu com o capitão Fer-
não Carrilho para deliberar as condições de uma entrada que este
faria aos mocambos e outro ajuntamento fora convocado no ano
anterior, para fazer presente aos moradores a intenção do Capitão
de Armas, Estevão Ribeiro Parente de vir até Pernambuco comba-
ter os Mocambos.36 Os ajuntamentos criavam, então, as condições
de cooperação interna, isto é, entre os próprios habitantes.
O transporte era um dos maiores problemas da Guerra. O
autor anônimo da “Relação das guerras feitas aos Palmares de

34
BCUC, Cód. 31, fl. 276.
35
Segundo Livro de Vereações..., fl.191v. Apesar disso, não há registro da aplicação
das penas, que provavelmente ficariam registradas no Livro do Judicial e Notas,
perdido ou destruído, no nosso caso.
36
Segundo livro de vereações... fl. 37v.

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ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 213

Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida”


enfatizava que uma das maiores dificuldades que se enfrenta-
vam naquelas ocasiões era:

a dificuldade dos caminhos, a falta das águas, o des-


cômodo dos soldados, porque como são monstruosas
as serras, infecundas as árvores, espessos os matos,
para se abrirem é o trabalho excessivo porque os es-
pinhos são infinitos, as ladeiras muito precipitadas e
incapazes de carruagens para os mantimentos, com
que é forçoso que cada soldado leve às costas a arma,
a pólvora, balas, capote, farinha, água, peixe, carne e
rede com que possa dormir, com que a carga que os
oprime é maior que o estorvo que os impede.37

Se a sobrecarga e o estorvo dos equipamentos nas costas


dos campanhistas era motivo de preocupação para o cronis-
ta anônimo, os esforços dos cativos para carregar tudo isso
não foram, ironicamente, levados em consideração. Em 21 de
agosto de 1677, Fernão Carrilho esteve presente em um ajun-
tamento convocado pela câmara de Alagoas do Sul, junta-
mente com o procurador da câmara de Porto Calvo, para se
comprometer a pagar pelos cativos fintados aos moradores
e que morressem transportando o comboio de mantimentos
que estava levando.38 Distribuir o peso da carga entre um
número, provavelmente, pequeno de pessoas acarretaria sua
sobrecarga e, consequentemente, estafa e talvez a morte. Daí
se explica a preocupação dos oficiais da Câmara em firmarem
um “termo de obrigação” com Fernão Carrilho para que ele
pagasse, com os palmaristas capturados, por cada escravo que
morresse transportando esses comboios.39 Preparar os carre-

“Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governa-


37

dor D. Pedro de Almeida”. In: CARNEIRO, 2011:163.


Idem, Ibidem, fl. 165 e 165 v.
38

Arquivo do IHGAL 00007-Cx-01-Pac-02-a-Diversos - 96 cópias extraídas do 2º


39

Livro de Vereações da Câmara de Alagoas do Sul, fl. 53v.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


214 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

gamentos não era tarefa fácil. Além da dificuldade de cobrar


os alimentos junto aos produtores, era necessário encontrar,
aliás, fintar, gente para transportá-los.
Da mesma forma que a câmara de Alagoas do Sul serviu como
principal instituição capaz de lidar com o cumprimento e o regis-
tro dos bandos dos Governadores na vila, ela também garantia
o espaço para formalizar a relutância dos habitantes no cumpri-
mento dele. O exemplo mais claro se deu em vinte de dezembro
de 1677, quando os Oficiais da Câmara chamaram o “povo” da
vila para mostrar uma carta do Governador, D. Pedro de Almeida,
endereçada ao capitão-mor, João da Fonseca, pedindo que a vila
mandasse escravos para um comboio que sairia de Porto Calvo.
O termo de vereação, feito nessa sessão, representava, perante o
governador, a vontade dos trinta e sete moradores ali reunidos.
Estes diziam que “não davam negros para o tal comboio e sendo
que os obrigasse a dar os seus escravos [estes] desprezariam a
terra e iriam fora da terra”, isto é, seus cativos fugiriam na primei-
ra oportunidade de se embrenhar nas matas.40
Essas situações mostram que não só a vereança, mas os
habitantes também tinham dificuldade para arcar com os cus-
tos das expedições e dar conta do cumprimento dos acordos
que eram feitos. Na “Relação das Guerras”, o autor anônimo
afirma que os Mocambos ameaçavam a conservação de toda
a capitania por se espalhar do Rio São Francisco até o Cabo
de Santo Agostinho, ficando “eminentes Ipojuca, Sirinhaém,
Alagoas, Una, Porto Calvo, São Miguel, povoações aonde se
recolhem mantimentos para todas as mais vilas e freguesias,
que são a beira mar”, estando os “gados, farinhas, açúcares, ta-
bacos, legumes, madeiras, peixe e azeite” entre os principais.41

40
Idem, fl.184 v. A respeito de “desprezar” e “ir fora da terra”, Edison Carneiro en-
tendeu que os próprios moradores estavam ameaçando deixar a vila. Mas ao que
parece, estavam receosos de que seus escravos a desprezassem e, por ventura,
escapassem para os mocambos. Tratava-se antes de mera precaução contra mais
fugas de seus cativos do que ameaças de abandono e despovoamento da vila.
CARNEIRO, 2011:83.
41
“Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governa-
dor D. Pedro de Almeida”. In: CARNEIRO, 2011:161.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 215

Mesmo que a Capitania de Pernambuco fosse abastecida por


essas vilas, havia queixa de que o peixe e a farinha poderiam
faltar em Alagoas do Sul.
No ano de 1674, o procurador apresentava uma queixa do
“povo” à vereança, de que havia pessoas que compravam fari-
nha e a “atravessam para a venderem por mais preço”,42 o que
os oficiais acordaram para que morador algum assim fizesse,
sob pena de pagar 6.000 réis e ir preso. No ano seguinte outro
procurador da câmara apresentou para pauta uma queixa de
que o “povo” da vila “passava mal de mantimentos e se em-
barcava muita farinha para fora da terra”,43 o que resolveram
os oficiais da câmara que se pusessem editais na vila para que
ninguém pudesse embarcá-la, sob pena de o proprietário ser
preso, multado em 6.000 réis e a farinha confiscada, aplican-
do-se a mesma pena a qualquer um que a embarcasse. Em
1676, apresenta-se outra queixa dessa vez a respeito da falta
de peixe, já que os “os homens que pescam com redes nestas
lagoas não queriam vender peixe ao povo só pelo mandarem
ao Recife”.44 Da mesma maneira, se registraram queixas contra
o uso das redes de arrasto que, por serem lançadas nos canais
em que entrava o peixe em épocas de reprodução, acabavam
com ele.45 Esses casos mostram que peixe e farinha eram gêne-
ros que chegavam escassear em alguns anos e, por conta disso,
tinham um valor considerável para os habitantes. Portanto, é
bem provável que eles sofressem privações ao serem fintados
nesses gêneros. É interessante perceber que essas queixas coin-
cidem com alguns dos anos em que foram lançadas as fintas na
vila (isto é, nos de 1674, 1675 e 1676). Isso leva à possibilidade
de conectar as queixas sobre a falta desses gêneros com a arre-
cadação das fintas e, consequentemente, à possibilidade delas
terem sido feitas num momento crítico, no qual a escassez era

Segundo Livro de Vereações... fl.140. Ao que parece, comprava-se farinha em


42

alguma freguesia próxima e se acrescia o preço pela cabotagem.


Idem, fl.156 v.
43

Idem, fl.159 v.
44

AHU, Pernambuco Avulsos, cx. 130, D. 9837, fl. 29 v..


45

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


216 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

agravada, de um lado, pela saída comercial dos gêneros e, de


outro, pelas cobranças das fintas dos Palmares. Imagina-se que
um terceiro fator, o climático, poderia afetar a produção e, as-
sim, o abastecimento interno da farinha, entretanto, não foram
encontradas evidências a este respeito.

O quadro de sobrecarga tributária do post-


-bellum: uma conjuntura agravante
Além das contribuições para as fintas, os habitantes de Ala-
goas do Sul arcavam com as consequências do “quarto de sécu-
lo” de ocupação e guerra neerlandesa, marcada, na localidade,
pela destruição de casas e de diversas unidades produtivas. Du-
rante guerra, a vila ocupou uma posição de passagem para as
tropas, tanto neerlandesas quanto luso-brasílicas, situação que
tornava o incêndio de canaviais e engenhos algo recorrente e,
inclusive, bastante citado nos relatórios e correspondências ofi-
ciais das autoridades da WIC.
Além das unidades produtivas e dos domicílios, os oficiais
da câmara atribuem aos neerlandeses a culpa pela destruição
da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. A reconstru-
ção deste templo, em 1672, foi financiada com tributos sobre as
aguardentes, vinho, azeite e sal, lançados pela vereança.46
Como se não bastassem essas contribuições, em 1678, o Ou-
vidor-Geral da Capitania de Pernambuco, Lino Camelo, deixou
a cargo da câmara a arrecadação de mais uma contribuição: a
reforma da cadeia pública, que se encontrava arruinada, para a
qual, se tentou lançar uma finta. E no ano seguinte, os oficiais
mandaram reunir dezenove homens bons da vila para notificá-
-los dessa decisão. Estes formalizaram o protesto num “termo
de ajuntamento”, dizendo que:

não estavam em tempo de fazerem a cadeia porquanto


estavam devendo a finta da Senhora Rainha da Grã

46
Segundo Livro de Vereações... fl. 29.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 217

Bretanha e paz de Holanda e juntamente deviam muita


parte do custo da Igreja Matriz porquanto o fez povo
sem Sua Alteza dar ajutório para a dita obra e estava o
povo muito atrasado com as entradas dos Palmares.47

Além dos gastos com as reedificações de suas casas, pro-


priedades, da Igreja Matriz e cadeia, os habitantes arcavam com
uma despesa muito maior: o Donativo para o Dote da Rainha
de Inglaterra e Paz com Holanda, que em alguns anos (no
mínimo os de 1679 e 1680) fora revertido para o custeamento
da Guerra contra os Palmares.48 Quando somamos todos esses
tributos às arrecadações in natura, feitas através das fintas, vi-
sualizamos o quadro de “sobrecarga tributária”, característico
do post-bellum na Capitania.
Diante disso, cabe a pergunta: será que as iniciativas de
mobilização que partiam dos governadores tiveram comple-
ta eficácia e foram aceitas sem relutância nos espaços locais?
Certamente que não, e ao menos um governador reconheceu
isso. Em fevereiro de 1678, D. Pedro de Almeida escreveu ao
Conselho Ultramarino relatando seu procedimento em relação
à Guerra contra os Palmares. Falando da iniciativa de solicitar
mantimentos às câmaras, relatava:

tratei com diligência que as câmaras da jurisdição


deste governo assistissem para uma nova guerra com
os bãotimentos[sic] necessários para a gente que a
ela enviasse; dificultoso me foi concordá-las neste
voluntário pedido, por estarem costumadas a seme-
lhantes despesas, e pelas impossibilidades com que
no tempo presente se acham.49

Idem, Ibidem. Apesar da queixa, os homens ali reunidos deixaram uma contribui-
47

ção de 170.000 réis.


Idem, fl.62.
48

AHU, Pernambuco Avulsos, cx. 11, d. 1103. (04 de fevereiro de 1674) (grifo do
49

autor).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


218 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

O trecho “por estarem acostumadas a semelhantes despe-


sas” deve ser destacado, pois os habitantes forneciam gêneros
(especialmente farinha) para o abastecimento de tropas, desde
a ocupação e a guerra contra os neerlandeses, e D. Pedro de
Almeida demonstra não estar alheio a essa situação. Por outro
lado, fica evidente a prática de se requisitar essas cotas “even-
tuais” de mantimentos à vila, constituindo uma das principais
formas de tributação do período considerado. Vale ressaltar
que, de um lado, é comum encontrar pedidos semelhantes de
víveres, gado e cativos sendo feitos pelos governadores às câ-
maras de Sirinhaém, Porto Calvo e Penedo, mas, de outro, não
encontramos pedidos semelhantes para as vilas de Olinda e
Igarassu (ao menos não com tanta frequência). É provável que
Olinda e Igarassu, por estarem mais afastadas dos Palmares,
fossem poupadas das contribuições para a montagem dos com-
boios de mantimentos.
Mesmo reconhecendo as dificuldades, Almeida diz que
suas “persuasões, com geral beneplácito” fizeram com que as
câmaras “não duvidassem por respeito algum o que necessa-
riamente lhes pedia para sossego e quietação destes povos,
e serviço de Vossa Alteza”.50 Dessa maneira, ele fez crer ao
Conselho Ultramarino que suas iniciativas de encetar a mobi-
lização das vilas tinham sido bem sucedidas. No entanto, as
queixas sobre a falta de suprimentos não são raras nas folhas
de serviço daqueles que lutaram contra em Palmares, o que
aponta um choque entre os discursos dos governadores e dos
veteranos da guerra51 e sugere falhas no fornecimento desses
víveres, por conseguinte.

50
Idem, Ibidem.
51
Só para citar alguns: Lázaro Coelho de Eça, Manuel Cubas Frazão, João da
Fonseca, Manuel Lopes, Manuel Nunes. Cf. AHU, Alagoas Avulsos, cx. 2, d. 145.;
AHU, Pernambuco Avulsos, cx. 10, d. 1022; cx.12, d. 1212 e d. 1230 (ver referên-
cias completas ao final).

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de
Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII 219

Considerações finais

Em meio a toda a dinâmica de mobilização para o conflito,


duas observações podem ser feitas. De um lado, a colaboração/
negociação entre o Governador e os poderes locais era indis-
pensável para que a guerra pudesse acontecer, já que armas,
munições, tropas e mantimentos, não poderiam ser mobiliza-
dos em um único espaço, ainda que se possa pensar que as ini-
ciativas de organização pudessem, na maior parte das circuns-
tâncias, partir de um centro, nesse caso, Olinda. As ordens dos
governadores precisavam ser levadas, transmitidas e efetivadas
pela mediação de algum agente ou instituição que, no caso
analisado, encarna-se na Câmara.
Constatamos que as principais medidas tomadas pela ve-
reança para dar cumprimento às ordens dos governadores
eram: sua publicação no espaço da vila, a nomeação de fin-
tadores e escrivães do almoxarifado dos mantimentos, a rea-
lização das vistorias e a imposição de penalidades àqueles
que se negassem a contribuir com elas. Está claro que essas
ações permitiram a ressonância dos poderes do governador
a léguas de Olinda. Dito de outra forma: a reverberação do
poder de comando dos governadores em espaços distantes
do termo de sua residência estava condicionada à disponibi-
lidade de recursos locais e à possibilidade dos poderes exis-
tentes, nesse sentido concorrentes com os dele, cumprirem
ou descumprirem suas ordens.
Por outro lado, viu-se que a Câmara não atuava como uma
mera correia de transmissão (involuntária, e acéfala) das ordens
do governador. Pelo contrário, quando alguma delas afetava os
interesses dos produtores locais, era a Câmara que recebia suas
queixas e servia como um espaço para normatizar o descum-
primento, às vezes causado pelos impactos das fintas sobre o
abastecimento interno ou sobre a estrutura social da vila.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


220 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo

Referências
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AHU, Alagoas Avulsos, Cx. 2, D. 145.

AHU, Pernambuco Avulsos, Cx. 10, D. 1022

AHU, Pernambuco Avulsos, Cx. 12, D. 1212 e D. 1230.

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Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014


OLINDA: UM ROTEIRO1

José Luiz Mota Menezes2

Resumo: No interesse de criar um roteiro para ver Olinda, o autor escreve


sobre a história da cidade, onde destaca os acontecimentos mais interessan-
tes do seu desenvolvimento urbano. Acentua, no correr do texto, a presença
das casas de religiosos, quer os da Companhia de Jesus, quer os de outras
ordens. Descreve as principais influências artísticas, definidoras da arqui-
tetura dos edifícios e das moradias. Conclui o texto com uma sugestão de
roteiro artístico e histórico.

Palavras-chave: Urbanismo, Arquitetura, História urbana, Brasil.

Olinda: an itinerary

Abstract: Aiming to create an itinerary to visit Olinda, the author writes about
the history of the city, and calls attention to the most important facts of its
urban development, including the presence of some houses, belonging to The
Society of Jesus or other religious orders. The article describes the main artistic
influences, as architecture definers of family houses and other buildings. At
the end, the author suggests an artistic and historic itinerary through the city.

Keywords: Urbanism, Architecture, Urban History, Brazil.

História
A criação de Olinda provavelmente ocorreu entre 1535 e
1537, respectivamente o ano em que Duarte Coelho, dona-
tário da Capitania de Pernambuco, tomou posse do território

Texto recebido e aprovado para publicação em abril de 2014.


1

É professor emérito do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universi-


2

dade Federal de Pernambuco e Presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e


Geográfico Pernambucano.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


226 José Luiz Mota Menezes

a ele doado por D. João III na Carta de Doação. Ao chegar


a Olinda, desde Itamaracá, o donatário, na parte mais alta de
um dos morros que pontilham a topografia da cidade, cons-
truiu sua torre forte em pedra e cal. A Carta de Doação, tam-
bém chamada de Foral, datada de 1537, conforme citação do
historiador José Antônio Gonsalves Mello, refere-se a este ano
não como o da fundação da Vila, mas sim da repartição da-
quelas terras doadas, com a distribuição de lotes, delineando
assim o desenho urbano da vila.
Na determinação desse desenho das ruas, largos, adros e
praças, parece-nos ter predominado uma maneira de pensar
bem ao modo dos engenheiros militares portugueses, chamados
hoje, em texto notável de uma arquiteta paraense (MALCHER,
1997), verdadeiros agentes do urbanismo, onde se encontra
presente um raciocínio lógico e que constitui uma antevisão
daquele do filósofo Descarte. A necessidade de ligar ponto a
ponto e as facilidades de ir de um lugar a outro pelo caminho
mais simples e, ainda, certa distância entre teorias e traçados,
definiram as relações espaciais que terminaram por constituir
uma bela imagem da vila vista em desenhos, aquarelas e gravu-
ras do primeiro e segundo século.
A escolha do local que sediou o assentamento originário
desta importante cidade histórica brasileira, segundo alguns
historiadores, não foi um feito isolado, tendo havido relação
entre a sede da Capitania, seu porto e os lugares de fabrica-
ção do açúcar. O lugar da administração e dos homens a seu
serviço e dos demais moradores da vila; o lugar de embarque
e desembarque, portanto da ligação com o resto do mundo;
e o lugar da plantação, inclusive no melhor terreno, o fértil
massapé, tão decantado por estudiosos da produção açuca-
reira. Aquela terra fértil e poética, de deslumbrante paisagem
natural, viria a ser então a sede de um complexo de produção
de riqueza.
Dentro do projeto civilizador de Duarte Coelho, a vila, os en-
genhos e o porto interligavam-se por longos e estreitos cami-
nhos, na água e em terra, todos materializados em um mapa
do cartógrafo C. Golijath. Tal como uma aranha, tece seus fios,

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


Olinda: um roteiro 227

se interligaram todas as partes do território, de acordo com as


necessidades de sobrevivência. Os caminhos fluviais, constituí-
dos pelos Rios Beberibe e Capibaribe, eram importantes vias de
escoamento da produção de açúcar, esta armazenada em caixas
de madeira que após transporte pelos rios se guardavam nos ar-
mazéns da Aldeia dos Arrecifes até ao embarque para a Europa.
A riqueza gerada pela produção do açúcar no século XVI le-
vou os habitantes de Olinda, salvo os mesquinhos e avarentos,
a uma vida de luxo. Sobre isso, no seu Tratado da Terra e Gente
do Brasil, padre Fernão Cardim conta, entre outras coisas, que
naquela vila as cerimônias de casamento eram pomposas, os
proprietários de terra usavam esporas de prata para as mon-
tarias e as pessoas abusavam do vinho e dos desregramentos
morais, cometendo graves pecados. Entre a sociedade local,
composta de gente de várias etnias e ocupações, existiam fun-
cionários a serviço do governo, profissionais diversos como sa-
pateiros e alfaiates, proprietários de lojas, negociantes de toda
espécie, ourives, trabalhadores de engenhos e aqueles que
viviam de sua própria fazenda, geralmente os cristãos-novos.
Olinda abrigava todos e eles se entreolhavam, essencialmente
os cristãos-velhos diante dos novos, numa fiscalização perma-
nente, uns dos outros, por conta de um possível e real exercício
de hábitos e práticas vinculadas ao judaísmo.
Imaginar aquela Olinda da segunda metade do século XVI,
onde o açúcar permitiu tanto luxo e muita quebra de regras mo-
rais, é um exercício dos melhores, uma reconstrução da vila sob
a luz da gente que a definiu tão bela e radiosa naquela centúria.
De Olinda, o europeu conheceu poucas imagens desenha-
das e pintadas, mas soube de sua riqueza e fama. Por conta,
entre outras causas, da grande produção de açúcar, passou a
ser a segunda vítima da Companhia das Índias Ocidentais, so-
ciedade organizada com fins lucrativos que, depois de conquis-
tar a Bahia em 1624, desta capitania foi expulsa um ano mais
tarde. A empresa tomou Pernambuco em 1630, conquistando a
Vila de Olinda. No alto do colégio da Companhia de Jesus, os
invasores ergueram sua bandeira e então o luxo e as riquezas
desse burgo de Duarte Coelho acabaram de vez.

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


228 José Luiz Mota Menezes

Existem duas importantes gravuras que nos permite conhecer


os aspectos da cidade naquela época. Uma é a de Claes Janszoon
Vischer, feita a partir de anotações do lugar, sem maior identifi-
cação das edificações então existentes. A imagem de Olinda e
do Recife ilustra o relatório do Almirante Lonck sobre a tomada
da vila. O gravador, não conhecendo a arquitetura dos edifícios
da vila os representa como construções da Europa, mais signifi-
cativamente da Holanda. A outra, intitulada Marim de Olinda de
Pernambuco, de artista anônimo, fixa uma vista da Vila no for-
mato clássico da época, ou seja, em perfil. A gravura se encontra
ilustrando o livro escrito pelo diretor da empresa J. de Laet sobre
a história do empreendimento mercantil holandês. Em termos da
veracidade da representação da Vila de Olinda podemos informar
que quando das restaurações da Sé de Olinda, da Igreja de Nossa
Senhora da Graça e do Palácio dos Bispos (em 1630 existia ape-
nas a Câmara), em 1972-78, os indícios encontrados sob os rebo-
cos de elementos da arquitetura, desconhecidos nos edifícios an-
tes dessas restaurações, comprovaram a precisão do representado
pelo gravador dessa segunda imagem. Assim, a estampa passou a
ser de grande interesse para o conhecimento da Vila de Olinda e
a povoação do Recife no início da terceira década do século XVII.
Outro documento relevante para o conhecimento da história
urbana de Olinda é o mapa inserido no livro de autoria de Gas-
par Barléus, impresso em 1647, em Amsterdã, Holanda, onde o
autor louva a presença do conde João Maurício de Nassau, na
qualidade de governador da Conquista Holandesa (1637-1644).
Esse mapa é semelhante ao realizado pelo cartógrafo C. Goli-
jath, sendo uma das partes de um conjunto de quatro folhas
que juntas fixam Recife e Olinda, representando as ruas e os
edifícios principais desse último assentamento urbano.
Comparando aquele mapa e a gravura do livro de J. de Laet
podemos chegar, com a ajuda da estampa de Post, a algumas
conclusões sobre aquele aspecto da vila de Olinda.3

3
No interesse de identificar melhor os comentários foi confeccionada ilustração
que tomou por mapa referencial a Cidade de Olinda, no final do século XIX, e
sobre ela se lançou as informações da estampa Marin d’ Olinda.

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Olinda: um roteiro 229

Os principais edifícios do Alto da Matriz e o casario represen-


tados na estampa, quando relacionados com o mapa, nos levam
a deduzir que a gradual apropriação das áreas da vila se deu a
partir de uma linha preferencial que começando na Igreja do Sal-
vador, passa pela Casa da Câmara ao seguir para a Igreja e Hos-
pital de Nossa Senhora da Misericórdia. Desse hospital se descia
a uma ladeira para o lugar dos Quatro Cantos e novamente se
subia outra ladeira e se atingia a Ribeira, onde estava a Igreja de
São Pedro e desta se tomava a direção do Pátio e Mosteiro de São
Bento. Tal linha, no sentido contrário, atingia as três únicas casas
por detrás da Matriz e chegava a Igreja e Colégio dos Jesuítas,
depois se descia para o Convento dos Franciscanos e deste se
continuava a descer até chegar ao Rocio, defronte ao Convento
dos Carmelitas. Esta forma anelar resultante, simples e direta in-
terligava o Rocio ao Alto da Matriz e desse, por sua vez, seguia-se
por um caminho para o Pátio do Mosteiro. Desse pátio se descia
para o Varadouro, porto fluvial no Rio Beberibe. Assim estava
fechado o anel de circulação da gente. A parte mais densamente
povoada da vila situava-se desde aquele alto até o Mosteiro dos
Beneditinos. Grandes vazios, sem construções, existem na estam-
pa e talvez revelem a real situação da vila, apesar da representa-
ção em desenho das ruas naquele mapa indicar uma definição
de quadras, que provavelmente não estavam todas ocupadas. Tal
adensamento da vila deve ter ocorrido depois da saída dos ho-
landeses. Na estampa, junto ao Rocio se pode ver um casario de
pequeno porte, nos indicando uma ocupação rarefeita do local.
No que diz respeito aos edifícios representados na estampa,
vale a pena algumas observações. Em primeiro lugar o Convento
dos frades carmelitas se encontra desenhado como incompleto,
tal como informam as crônicas e a própria análise atual da cons-
trução, onde as etapas construtivas dizem bem da interrupção
havida na obra e da reconstrução de partes destruídas, quando
da presença holandesa, e da reconstrução após 1654. Quanto a
Igreja ela é parcialmente concluída e no seu interior e exterior se
percebe bem claramente os dois momentos da construção. Por
longos anos não terá retábulos de talha em madeira e sim pin-
tados nas paredes. Esses exemplares de retábulos pintados são

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


230 José Luiz Mota Menezes

hoje documentos importantes na definição didática de períodos


da talha em Pernambuco. Um altar e retábulo em pedra calcária,
na capela sob a torre sineira merece ser destacado. Apesar de
manter aquela volumetria anterior, a quadra conventual, depois
de 1654, terá mais um andar após sua reconstrução. Isto se per-
cebe claramente em algumas fotos do que restava dele antes de
1910. Hoje, da enorme mole, construída e reconstruída, resta-nos
a Igreja, de grande porte e exemplar magnífico de um possível
Renascimento/Maneirismo de origem espanhol em Olinda.
Com relação ao Convento de Nossa Senhora das Neves dos
frades de São Francisco, representado na gravura, podemos di-
zer que estamos diante daquela pequena construção doada por
Dona Maria da Rosa, referida por Frei Jaboatão, hoje ainda visível
dentro de outra, resultante de ampliação posterior ao incêndio de
1631. Este convento ampliado contém no seu interior as partes
antigas, numa solução bem franciscana e vista em outras casas da
ordem. O convento tem desenho bem simples e fiel ao espírito
de pobreza que presidia as primeiras construções dessa ordem
no Brasil. Uma escala bem humana e que se vai alterar quando o
gosto Barroco e a afirmação da aristocracia do açúcar determinam
a pompa e a circunstância em todas as casas religiosas de Olinda.
Acima dos franciscanos, “botas sobre capuchos” na expressão
daquele cronista franciscano citado, a Igreja de Nossa Senhora da
Graça e o Colégio dos Jesuítas, o último reconstruído mais ele-
gante em 1661 por se lhe acrescentarem nas obras quase um me-
tro em altura, o que alterou sua volumetria. No interior da igreja
dois retábulos de cantaria salvaram-se daquele incêndio de 1631,
uma vez que executados em calcário e protegidos por abóbadas
de alvenaria. O altar-mor, também em pedra, foi desmontado,
provavelmente, nessa etapa de obras, (1654-1661) e substituído
por outro de madeira. Dele restou o que foi descoberto na res-
tauração que do monumento se fez entre 1972 e 1974. Partes dos
restos do retábulo desse altar foram encontradas em escavação
arqueológica. Entre outros trechos da decoração do retábulo te-
mos três imagens em pedra e um fragmento pequeno de outra,
decapitadas pelos holandeses. Hoje são as melhores peças do
século XVI/XVII que possui o Brasil. São em feitura sóbrias, ar-

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


Olinda: um roteiro 231

caizantes, e de fino lavor. Vestem-se à maneira bem medieval. A


igreja é um grande salão, espelhando bem as diretrizes da em-
presa missionária e evangelizadora de Inácio de Loyola.
A Sé de Olinda, incendiada e parcialmente demolida em
1631 e ao longo dos anos seguintes, foi refeita quando da saída
dos holandeses, sendo então aproveitada toda a pedraria que
se pode recuperar. Depois de 1654 suas oito capelas laterais,
apenas indicadas na estampa Marin d’ Olinda, foram termina-
das então com abóbadas de alvenaria. Na oportunidade de ser
elevada a Catedral em 1676 foi ampliada e uma enorme Sa-
cristia, com o Cabido no pavimento superior, foi construída e
decorada. Esta Igreja teve seu interior ornamentado de forma
muito lenta, diante do feito de terem sido sempre insuficientes
os meios pecuniários para a elaboração das talhas, da azuleja-
ria e das pinturas necessária. A sua aparência exterior, conhe-
cida por meio de fotografia de 1911, nos revela tal situação e
os tempos do edifício. A Sé nunca foi terminada de todo. Sua
presença, no alto da colina definia bem o caráter da cidade e a
situação privilegiada de sua localização. Hoje a Igreja Matriz do
Salvador do Mundo está desenhada da forma como se encon-
trava quando da invasão holandesa. Três naves, a central mais
alta e iluminada por frestas na diferença dos telhados, com a
demarcação das capelas situadas ao redor. Tal forma, desconhe-
cida de todos, foi comprovada pela obra de restauração nela
procedida em 1972. O Padre Fernão Cardim assim a descreve
em sua Narrativa Epistolar, em 1583. A preferência pelas três
naves é bem do tempo e se confirma em igrejas paroquiais da
península ibérica. A torre do lado Sul, representada na estampa,
não existia mais no século XIX, antes de infelizes remodelações
de 1911 e 1936. Acreditava-se nunca ter existido, mas a estampa
diz de sua presença em 1630 e as vistas panorâmicas de Olin-
da pintadas pelo artista Frans Post mostram tal torre arruinada.
Documentos encontrados confirmam tal representação.4


4
A documentação sobre as torres se encontra no Laboratório de Pesquisa e Ensino
de História (LAPEH), do Departamento de História da Universidade Federal de
Pernambuco.

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232 José Luiz Mota Menezes

A Casa da Câmara, desenhada com suas janelas dispostas


num volume coberto em duas águas, foi identificada, quan-
do de restauração procedida em 1972 no Palácio dos Bispos.
Esse prédio da Câmara foi absorvido por tal Palácio, sendo este
o resultado da anexação desse edifício a outro próximo, com
duas torres e um terreno vazio entre eles. A representação que
aquele gravador fez dessa Casa da Câmara é o único documen-
to gráfico merecedor de fé de tal construção.
Logo a seguir, depois da Câmara, se encontram a Igreja e o
Hospital da Santa Casa da Misericórdia e o Recolhimento de
Nossa Senhora da Conceição, este fundado por aquela mamelu-
ca D. Maria da Rosa, enriquecida pelo casamento com um rico
português. Na gravura em tela apenas se pode vê a cruz, que
encimava o frontão da primeira igreja.
Depois, a estampa representa um casario que, descendo a
Ladeira da Misericórdia, chegava aos Quatro Cantos e dai subia
até a Igreja de São Pedro, como dissemos. Esta Igreja se encon-
tra representada e sua cruz que estava ao alto da fachada é visí-
vel. Depois, essas moradias seguem até bem perto, como acon-
tece hoje, do Mosteiro de São Bento. Quanto ao casario, tinha
ele, naquela altura do século XVII, 1630, volumetrias e telhados
muito semelhantes. Os telhados dessas moradias tinham suas
águas para frente e para detrás. Eram construções com caracte-
rísticas bem afins com as das demais vilas e cidades do Brasil.
O Mosteiro de São Bento, pequeníssima construção, toda
reformulada depois de 1654, está representado bem de acordo
com o que as crônicas dizem a respeito. Desse mosteirinho se
tem ainda pedaços de um altar, em cantaria, de fino gosto, en-
contrados em escavações na atual portaria.
As únicas defesas da vila Duartina eram uma pequena forti-
ficação e uma cerca de pau a pique, ao longo do mar, uma vez
que os arrecifes naturais não deixavam nenhuma embarcação
maior chegar às praias do burgo. Tal paliçada nos parece ter
sido instalada antes de 1630 e mantida depois da invasão.
Logo após a conquista os holandeses constataram que a Vila
de Olinda tinha um perímetro urbano ocupado muito grande e
fortificá-la por inteiro pareceu tarefa impossível para quem ain-

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Olinda: um roteiro 233

da não conhecia nem dominava as matas, as olarias e as pedrei-


ras locais. O soldado Ambrósio Richshoffer, em seu Diário de
um Soldado da Companhia das Índias Ocidentais, contou, em
novembro de 1631, que as pedras aproveitáveis das edificações
mais sólidas foram levadas para novas construções no Recife,
que se tornou um assentamento desenvolvido, ganhando o títu-
lo de Vila no começo do século XVIII, sendo seu termo retirado
do território de Olinda (RICHSHOFFER 1997:123).
Diante daquela dificuldade de ser fortificada, Olinda foi
abandonada e um incêndio ateado pelos holandeses destruiu
a maior parte de suas moradias, igrejas e conventos. O pouco
que restou foi salvo pelas pessoas que ficaram na Vila, por
índios e alguns religiosos. Frans Post, pintor da comitiva do
governador João Maurício de Nassau fez vários desenhos, gra-
vuras e pinturas da cidade incendiada, retratando as ruínas em
vistas gerais e em detalhes.
Finalmente, em 1654, a Vila de Olinda começou a ser recons-
truída, tendo sido elevada à categoria de cidade em 1676, com
direito a Bispado. A recuperação quer das moradias e edifícios
religiosos e de outros usos ocorreu de maneira lenta. O Conven-
to e a Igreja do Carmo tiveram importantes detalhes resgatados
e outros acrescentados à arquitetura original. Em seus escritos,
Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão referiu-se às obras de am-
pliação do Convento dos Frades de São Francisco anos depois da
retirada dos holandeses, época em que também foi refeita a Sé
de Olinda, situada no alto de uma colina de onde se descortina
uma das mais belas vistas do Recife e do imenso mar.
Quando acontece a reocupação da vila, depois de 1654, a sua
parte alta e mais antiga, antes colmada de edificações, não será
mais alvo de interesse da gente que voltou a habitar a cidade. As
bicas, a água potável, ficavam na cota de 20 metros ou mesmo
menos em relação ao mar. Assim intensificou-se, se bem que
de forma lenta, como se disse, a reconstrução e as construções
novas nessa cota. O Alto da Sé, situado a 52 metros passou a
ser desprezado e a própria Casa da Câmara mudou-se para a
Ribeira, junto a Igreja de São Pedro, a segunda em importância
eclesiástica no burgo. Desta forma, aquele eixo inicial parte do

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234 José Luiz Mota Menezes

anel referido foi ampliado com a formação de outras ruas, antes


apenas delineada em um plano geral. Surgiu a Rua do Bonfim,
antes de Janniene. Com esta também a que dos Quatro Cantos
se dirigia para a Igreja de Nossa Senhora do Amparo, antes sim-
ples caminho, com casas apenas de um lado e que se configu-
rou com novos assentamentos do outro. Existiu assim uma mu-
dança naquele plano diretor em função do conforto relacionado
pela proximidade da água. Nos autos de um processo, de 1710,
realizado no interesse de identificar os proprietários de terras
na cidade, se colheram depoimentos que confirmam, diante do
vazio que se formou de construções no Alto da Sé, o quanto ele
era povoado nos primeiros dias da capitania.5

5
Depoimento de André da Cruz, de 81 anos, em 1710: “O Monte em que o Foral
fala ouviu ele testemunha sempre dizer era donde, hoje chamam a Rua Nova,
que foi a parte mais povoada desta cidade, e donde ele testemunha ainda viu
muitos edifícios derrubados, vindo para esta Capitania há 46 anos [em 1664, por-
tanto], e na dita parte ouviu dizer morava o governador e na mesma rua ainda ele
testemunha conheceu a cadeia velha, em cujas casas ao presente vive António
Lopes Leitão, e às fraldas do dito monte também ele testemunha viu nelas muitos
edifícios derrubados, assim para a banda do norte como para a banda do sul,
pegando uma rua por detrás do Palácio onde hoje vive o Bispo e ia sair à Igreja
da Conceição e daí para baixo até as outras era muito povoado”. Depoimento de
José de Sá e Albuquerque, capitão mor de Olinda e um dos primeiros genealo-
gistas pernambucanos, então aos 80 anos de idade: “O monte, em que se achava
a maior parte do povoado que esta cidade teve, foi donde hoje chamam a Rua
Nova, donde ele testemunha viu as paredes das casas que se dizia, foram dos go-
vernadores e na dita rua ainda existiam as casas que foram cadeia”. Depoimento
de Francisco Berenguer de Andrade, de 74 anos, afirmou que: “o monte em que
o Foral a princípio declara é aonde chamam a Rua Nova, donde ele testemunha
sempre ouviu dizer habitar o primeiro Donatário desta terra e povoador dela e
sua mãe (sic), Dona Brites” (MELLO, 1957). Ainda, segundo a Primeira Visitação
do Santo Ofício às Partes do Brasil (MENDONÇA, 1929) e as Confissões de Per-
nambuco, divulgadas por José Antônio Gonsalves de Mello (1984), considerando
os que foram chamados a depor junto ao Santo Ofício, moravam na Rua Nova,
entre 1593 e 1594: 1. Gaspar Fernandes e sua mulher Maria Francisca, ele barbei-
ro; 2. Antônia Bezerra, casada com Antônio Barbalho, dos da governança - em
casas fronteiras e coincidentes; 3. Balthazar Leitão, casado com Inez Fernandes;
4. João Nunes, mercador, em sobrado; 5. Mateus Fernandes, alfaiate; 6. Antônio
Correia, vinhateiro, morador defronte à casa de João Nunes; 7. Manoel de Oli-
veira, sisgueiro; 8. Henrique Afonso, Juiz Ordinário; 9. Diogo Fernandes, genro
de Branca Dias, mercador, casado com Ana; 10. Pero da Rua e Rafael da Matta,
este pedreiro; 11. Na Torre, morava Dona Breatiz D’ Albuquerque (MENDONÇA,
1929: 11, 26, 29, 59, 65, 74, 250-251, 335). Defronte à Misericórdia: 12. Gonçalo

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Olinda: um roteiro 235

Não apenas as igrejas e conventos citados floresceram com


maiores dimensões, também igrejas paroquiais e outras novas
foram construídas com as mesmas intenções por conta daque-
le interesse religioso dos aristocratas do açúcar. Desta forma,
o pequeno Mosteiro dos Beneditinos, visto em sua escala na
referida estampa, é muito ampliado, recebendo a igreja um be-
líssimo retábulo de talha, inteiramente dourado, e inspirado na
obra magistral de Frei José de Santo Antônio Vilaça, atuante
enquanto mestre de riscos no Norte de Portugal.
Não existem mapas de Olinda do século XVIII, mas estudo
recente envolvendo o exame da arquitetura presente nas anti-
gas ruas, revela o quanto se reconstruiu e construiu ao longo
de um século e meio. A ausência de maiores estímulos para tal
crescimento, Olinda, no final do século XVIII e princípios do
seguinte impressionou Maria Graham, escritora e aquarelista a
ponto dela assim se expressar quando a viu em 1817: “Fiquei
surpreendida com a extraordinária beleza de Olinda, ou antes,
dos seus despojos, pois se encontra atualmente em melancólico
estado de ruína” (VALENTE, 1957:108). Um estado de abandono
e desinteresse em ocupa-la o que, felizmente, como outra face
do processo, a salvaguardou de uma reocupação desordenada e
destruidora em relação às suas características quinhentistas, em
termos de desenho urbano, e das demolições ou modificações,

Dias, alfaiate; 13. Luís Antunes, boticário - defronte à porta da Misericórdia, casa-
do com Maria Alvarez; 14. Rui Gomes, pai de Luís Antunes, ourives e seu vizinho;
15. Maria de Faria, casada com Francisco Cordeiro, que vive de sua indústria,
vizinha de Luís Antunes (MENDONÇA, 1929:103, 122, 316, 444). Junto da Mise-
ricórdia, no local onde hoje é a Academia Santa Gertrudes, eram moradores: 16.
Catarina Fernandes, mulher de Manuel Roiz; 17. Felipe Cavalcanti; 18. Pe. Tomé
da Rosa Baracho, indicado no processo de Rui Gomes (MENDONÇA, 1929:23,
450). Na Rua de Palhais, hoje Rua Bispo Coutinho, moravam: 19. Branca Dias,
em uma casa de dois andares (a casa é vista na gravura Marim d’ Olinda); 20.
Beatriz Luís, casada com Fernão de Afonso, carpinteiro (a Rua é chamada então
do Salvador); 21. Fernão de Afonso, carpinteiro (deve ser a mesma casa anterior);
22. Joana, escrava de Branca Dias; 23. Brasia Monteiro, casada com Domingos
Monteiro (MENDONÇA 1929:32, 150, 281). Detrás da Matriz de Salvador (seria
também Rua dos Palhais?): 24. Gaspar Rodrigues e D. Hieronimo de Almeida.
Na Rua da Conceição (hoje Largo da Conceição): 25. Licenciado André Magno
de Oliveira; 26. Francisco Camello e seu pai Jorge Camello; 27. Leça ou Lessa,
sapateiro (MENDONÇA 1929:97, 216, 278).

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236 José Luiz Mota Menezes

sem grande cuidados, de suas igrejas e outras casas religiosas.


No século XIX, embora as cidades brasileiras já se encontras-
sem progredindo e recebendo grandes melhoramentos, Olinda
pouco se alterou, mesmo com a instalação dos Cursos Jurídicos
em 1827. A água potável e a iluminação só vieram mais tarde,
com a Companhia de Santa Tereza.
Nos últimos anos desse século, quando os banhos de mar
foram indicados por salutares, as praias de Olinda passaram a
ser frequentadas, principalmente as próximas do antigo Rocio e
desde esse até o Fortim de São Francisco. Em tal busca de saú-
de, amarrada às cordas e essas a dois paus fincados nas areias, a
gente tomava, das seis ou menos horas até, no máximo, às oitos
horas, os banhos salgados, o que motivou a condução dos tri-
lhos da maxambomba, o trenzinho a vapor, seguir para Olinda
desde a Encruzilhada, hoje um bairro do Recife. Tal condição
provocou, quando o veraneio não foi fortuito, mas programa
permanente das famílias, a compra de casas próximas à orla do
mar. Tal interesse coincide com o Ecletismo na arquitetura, que
revestiu os exteriores de velhas casinhas. Maneira de maquiar
que deu origem, ao se comparar tal processo ao do confeiteiro,
ao título de “bolos de noivas” para tais construções.
O interesse pelos banhos salgados e os acessos facilitados
às praias, primeiro pelo trem urbano, depois pelos carros elé-
tricos, os bondes, levaram os proprietários de sítios às mar-
gens do mar e do Rio Beberibe a lotearem suas terras. Com
isso, a partir de 1932, o município de Olinda teve grande
expansão e o pouco que restava da área coberta de mata pas-
sou a sofrer constantes invasões. Embora tais loteamentos não
interferissem na visão da cidade nem fossem feitas grandes
intervenções na sua área antiga, elaborou-se legislação espe-
cífica para preservá-la. Mais tarde, no entanto, por falta de
controle administrativo e urbano, os antigos mangues do Rio
Beberibe que envolviam a parte sul da cidade, começaram a
ser aterrados e ocupados por mocambos e casas de pequenas
dimensões. Acrescente-se a tal fato a invasão, sobre o leito de
antigo braço do Rio Beberibe, que formava o antigo Cais, o
Varadouro das Galeotas, na área do Loteamento Umuarama.

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Olinda: um roteiro 237

Esse varadouro, o que se vê primeiro ao chegar à cidade des-


de o Recife, tem, por força de tais ocorrências e do mau gosto
da nova arquitetura, um péssimo aspecto.
As intervenções e transformações ocorridas ao longo dos
anos definiram duas Olindas distintas. A primeira, tomba-
da nacional e internacionalmente, é considerada Patrimônio
Mundial pela UNESCO. A outra se constitui de duas subpartes:
os edifícios e casas junto ao mar, de melhores aspectos, e as
casas populares, organizadas em lotes urbanos regulares e
irregulares, decorrentes, às vezes, de invasões desorganizadas
ao longo do Beberibe.
Olinda praticamente não tem indústrias. A população dispõe
de um comércio de porte na área das praias e de pequenos mer-
cados e lojas. Em decorrência do turismo, o comércio informal
se apropriou do Alto da Sé e dos pontos de maior fluxo turístico.
Olinda foi considerada, pelo Conselho Consultivo do Institu-
to do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, um conjunto ur-
bano dos mais notáveis. Com a criação, pela UNESCO, da figura
que define os Bens Culturais como Patrimônio da Humanidade,
Olinda foi escolhida para tal título. Um perímetro tombado foi
então definido, vinculado ao da antiga Vila de Olinda, com o
seu desenho urbano quinhentista; a volumetria das edificações
ainda está mantida com as mesmas características dos primeiros
tempos; além da excelência de seus edifícios religiosos. Depois
passou a ser regulamentado o sistema de proteção, pelo muni-
cípio, segundo zonas rigorosas e ambientais.

Percursos temáticos: roteiro de visita

O perímetro urbano tombado da cidade é aquele vinculado


ao da antiga Vila de Olinda, com o seu desenho quinhentista,
com as características da volumetria das edificações originais e
com a excelência de seus edifícios religiosos.
Visitar Olinda é usufruir da poesia contida na sua paisa-
gem urbana e da riqueza dos exteriores e interiores de suas
edificações. É percorrer suas ruas estreitas e tortuosas, mas

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


238 José Luiz Mota Menezes

carregadas de força telúrica. É viver o contraste entre o velho


e o novo, com a sensibilidade capaz de reconhecer valores
nos dois tempos.
O roteiro ideal para se descobrir a cidade começa passando
por caminhos antigos e dentro do seu sistema anelar de for-
mação. Muitos são os monumentos e lugares a serem visitados
Muito há que ser visto e apreciado, pois como disse Carlos Pena
Filho “Olinda é só para os olhos, não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz é lá que eu moro. Diz somente: é lá que eu vejo”.
Começando pela Praça da Abolição, antigo Rocio, nos depa-
ramos com a monumental Igreja de Santo Antônio do Carmo,
com exterior em cantaria e pedra calcária obtida nas proximi-
dades de Olinda. Seu interior, assim como a parte inferior da fa-
chada principal, tem composição de arquitetura fiel ao gosto do
Renascimento. Gosto que reflete a presença da União Ibérica
e sensivelmente a Espanha. As tribunas, centradas no andar in-
ferior, em cada eixo de capela, não se concluem, faltando-lhes
os capitéis das pilastras. As pilastras que separam as capelas
intercomunicantes são da Ordem Jônica, a mesma que decora a
capela-mor da Igreja dos Jerônimos, no Restelo, em Lisboa. Na
capela do transepto, há um altar pintado, fingindo uma talha
decorativa da primeira metade de 1600. Na primeira das capelas
encontra-se um altar e retábulo em pedra calcária muito bem
trabalhado e possivelmente construído antes de 1630. O altar-
-mor tem seu retábulo em madeira, cobrindo outro também
pintado e da mesma época daquele do transepto.
Saindo da Igreja do Carmo e subindo a Ladeira de São
Francisco, chega-se ao Convento dos Frades de São Francis-
co, conjunto que reúne as Ordens Primeira e Terceira em um
mesmo edifício, ao qual se soma aquele anterior a 1630 e sua
ampliação de 1654. O convento e as igrejas são ornamentados
em talhas, pinturas e azulejos, a maioria do final do século
XVII e início do XVIII. Um grande arco entalhado ao gosto
do reinado de D. João V separa as igrejas das duas Ordens. A
sacristia guarda pinturas retratando frutos da terra, azulejos da
primeira metade dos anos 1700 e talha de fino gosto. Ao sair
do convento, encontra-se à sua frente o belíssimo cruzeiro em

Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014


Olinda: um roteiro 239

pedra. A sacristia da Ordem Terceira tem forro pintado bem


ao gosto das obras do gênero do Norte de Portugal e afim
com as de Minas Gerais.
Da Ladeira, desvia-se para o conjunto do Seminário Maior,
construção anterior ao domínio holandês e que foi o antigo co-
légio da Companhia de Jesus. Trata-se de uma edificação que
começou a ser construída em 1576, incendiada em 1631 e re-
construída de 1654 a 1661. A Igreja de Nossa Senhora da Graça,
restaurada em 1972, conta com dois retábulos de pedra, peças
ornamentais mais antigas de Olinda. Seu interior é o de uma
igreja-salão, refletindo o modo de construir dos jesuítas. Sua fa-
chada principal tem sóbria composição com um enorme óculo,
a única entrada de luz natural para o interior, além da imensa
porta. As aberturas laterais, do lado Sul, são seteiras. As escul-
turas que ornavam o altar-mor foram encontradas decepadas e
enterradas dentro da Capela de Nossa Senhora das Angústias,
na lateral sul da igreja.
Outra igreja incluída no roteiro de qualquer turista é a do
Salvador do Mundo, a Sé. Alvo do incêndio de 1631 resistiu ao
fogo por ser toda de cantaria. Suas pedras trabalhadas ficaram
guardadas até 1654, época em que foi reconstruída e, igual-
mente, tempo da construção das outras capelas ao redor das
naves. Sofreu remodelações em 1911 e em 1936, tendo sido
novamente restaurada no período de 1972 a 1978. Embora
não possua mais azulejos, talhas e pinturas que ornamenta-
vam seu interior, o resgate da linguagem da arquitetura Chã,
de extraordinária composição, é o maior legado obtido por
essa última intervenção. Há relação entre as capelas interco-
municantes e as três naves e, em jogo de luz, o sol varre o in-
terior da igreja de Leste a Oeste, terminando por lhe iluminar
a frente principal até o altar-mor, hoje desaparecido. O Alto da
Sé, o centro primitivo da cidade, abriga um comércio informal
relativamente organizado.
No outro extremo da colina, situa-se a Igreja de Nossa Se-
nhora da Misericórdia, do antigo Hospital da Santa Casa da
Misericórdia. O ornamento da igreja data da primeira metade
do século XVIII e no seu interior se encontram rica talha e be-

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240 José Luiz Mota Menezes

líssimas pinturas representando as ladainhas de Nossa Senhora.


Ao seu lado, no final de um grande pátio, está o Recolhimento,
dedicado a Nossa Senhora da Conceição e fundado por D. Ma-
ria da Rosa, mameluca que foi casada com um rico português e
que muito auxiliou na colonização. Consta que após enviuvar
ela doou aos franciscanos, em 1585, um pequeno convento,
onde antes era tal recolhimento. O espaço arquitetônico do
antigo hospital ainda existe por detrás da igreja.
Descendo a Ladeira Saldanha Marinho, ao lado da Igreja de
Nossa Senhora da Misericórdia chega-se ao Largo de Nossa Se-
nhora do Amparo, onde estão duas outras igrejas, ambas ante-
riores a 1630: a de Nossa Senhora do Amparo e a de São João
Batista. A primeira, remodelada nos séculos XVIII e XIX, ainda
mantém a estrutura das paredes. Recentemente restaurada pelo
município, guarda em seu interior uma talha de 1700 e um con-
junto de azulejos de 1600, na parte superior da cabeceira da
nave. A portada de sua fachada principal é em calcário e data
de 1645, quando Pernambuco estava sob domínio holandês. A
Igreja de São João Batista, que escapou do incêndio, tem dese-
nho simples e interior sóbrio. A igreja se encontra em uma rua
que vem desde aquele Largo do Amparo e lhe dá continuidade.
Desviando um pouco a rota, seguimos até o Bonsucesso,
onde se localiza a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, cons-
truída pelos negros e pardos de Olinda. Ao lado, encontra-se a
Fonte do Rosário, uma das bicas mais antigas da cidade.
Voltando ao Largo do Amparo, percorre-se a Rua do Ampa-
ro, estreita e longa, contornando o principal morro da cidade.
Nela estão os melhores exemplares de arquitetura destinada
à moradia de Olinda. São assentamentos de diversas épocas,
mas mantendo a mesma escala. Algumas dessas construções
pertencem a um tempo anterior e foram mascaradas para se
tornarem modernas. Em outras, funciona um mercado infor-
mal de venda e compra de artigos regionais e outras ativi-
dades de subsistência. Dois sobrados ainda remanescentes
destacam-se por terem balcões fechados por treliças, os mu-
xarabís, próprios da arquitetura ibérica seiscentista (existe ou-
tro balcão do gênero na Praça de São Pedro). Nessa rua, tam-

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Olinda: um roteiro 241

bém se encontra o Museu Regional, antiga casa de um padre,


considerada exemplo de residência do século XVIII. Vários
artistas, pintores, passaram a morar na rua.
Na altura dos Quatro Cantos, antigo centro de comércio de
Olinda e sede de algumas das casas comerciais dos cristãos-
-novos, recomenda-se subir em direção à Ribeira. Presume-se
que o nome originou-se de um mercado que vendia artigos
vindos da ribeira junto ao mar. O mercado é uma construção
de meados do século XVIII e suas pequenas lojas vendem arte-
sanato variado de Pernambuco e de outros estados do Nordes-
te. Segundo documentos históricos, em 1676, com a elevação
de Olinda à condição de cidade, a Câmara cedeu sua sede no
Alto da Matriz para residência do 1º Bispo, contanto que outra
fosse construída na Ribeira. Assim feito, da nova construção,
arruinada e demolida muitos anos depois, existe atualmente
apenas um trecho de parede. Nos primeiros anos de século XX
também foi demolida a Igreja de São Pedro, a segunda mais
importante da Olinda quinhentista, amplamente referida nas
Denunciações e Confissões de Pernambuco, quando da visita do
representante da Inquisição a Pernambuco, em 1583-84. Desta
igreja nada se sabe, a não ser que suas imagens acabaram leva-
das para outros templos religiosos.
Da Ribeira, seguindo pela Rua de São Bento, uma das mais
antigas da cidade, passando antes pelo antigo Paço, reforma-
do no século XIX e hoje sede da prefeitura municipal, chega-
-se no pátio do Mosteiro dos Beneditinos. O atual mosteiro
e a igreja resultaram das obras de reconstrução do pequeno
mosteiro anterior, iniciadas em 1654 e concluídas um século
depois. A igreja ainda é a mesma daquela época, com o in-
terior se destacando por duas grandes realizações dos mon-
ges beneditinos: a capela-mor e a sacristia. Na capela-mor,
ressalta-se o retábulo em talha dourada, de desenho atribuído
ao padre Frei José de Santo Antônio Vilaça, o mais notável
mestre de risco do norte de Portugal, mas executado por en-
talhadores de Olinda. Na sacristia, estão obras de José Elói e
de Francisco Bezerra, responsáveis pelas pinturas de Nossa
Senhora com o Cristo Morto e as cenas da Vida de São Bento,

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242 José Luiz Mota Menezes

respectivamente. Toda a pintura decorativa é de José Elói e a


criação do lavabo foi encomendada a mestre desconhecido de
Lisboa. O mosteiro, ao contrário, teve sua fisionomia exterior
novamente remodelada no século XIX.
Ao sair de São Bento, descendo a atual Rua 27 de Janeiro,
está a Praça de São Pedro e a igreja de mesmo nome, com des-
taque para o edifício de balcão de madeira em treliças, o So-
brado Mourisco. Saindo daí e passando pela Praça da Abolição,
o antigo Rocio, retornamos ao Recife, parando no Varadouro,
centro de compras e importante mercado de artesanato.
Dispondo de tempo, o turista deverá visitar outras ruas de
Olinda e outras edificações que não constam deste roteiro pri-
vilegiando o antigo anel que definiu a cidade no século XVI.
Uma nova opção inclui as Igrejas de Nossa Senhora do Monte,
do Bonfim (reformada no século XIX), da Boa Hora e, final-
mente, próximo à Ribeira, o Museu de Arte Moderna, instalado
em antiga prisão eclesiástica.

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Olinda: um roteiro 243

Referências
Bibliografia

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lém, Macapá e Mazagão. Lisboa: Universidade do Porto Editorial.

MELLO, José Antônio Gonsalves de. 1957. O chamado Foral de Olinda de


1537. Revista do Arquivo Público. Recife: volume 11, fascículo 28, pp. 39-58.

MENDONÇA, Heitor Furtado de. 1984. Denunciações e Confissões de


Pernambuco, 1593-1595: primeira visitação do Santo Ofício as partes do
Brasil. Recife: Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco.

MENDONÇA, Heitor Furtado de. 1929. Primeira visitação do Santo Ofí-


cio às partes do Brasil: Denunciações de Pernambuco, 1593-1595. São
Paulo: Paulo Prado, 1929.

RICHSHOFFER, Ambrósio. 1977. Diário de um soldado. Recife: Secretaria


de Educação e Cultura.

VALENTE, Waldemar. 1957. Maria Graham. Uma inglesa em Pernambuco


nos começos do século XIX, Coleção Concórdia. Recife.

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Companhia Editora de Pernambuco - abril de 2015.

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