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FREDERICO BARATA

A ARTE OLEIRA
/

DOS TAPAJO
I - Considerações sobre a cerâmica e dois típos
de vasos característicos

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Publicação n.· 2

INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA DO PARA


Séde provisória: MUSEU GOELDI

BEL~M-PARÁ-BRASIL
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1950

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DEDALUS - Acervo - MAE
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CERÂMICA

A chamada cerâmica de Santarém, dos antigos Tapajó, se bem


que em certos detalhes apresente pontos de contacto com outras ao Vale
,
possue uma característica extrema de ineditismo em dois tipos de va-'
sos que, atendendo à forma, denominarei "de cariátides" e "de gargalo".
Há outras peças como ídolos com a base em forma de "crescente"
fruteiras, pratos, vasos zoomorfos, miniaturas de vasos, etc., que sã~
nítidamente da mesma civilização ou cultura. No estado atual dos nos-
sos conhecimentos arqueológicos, porém, o que identifica realmente .a
cerâmica tapajônica, sem flagrantes similitudes com outras manifes-
tações artistico-oleiras da Amazônia, são os dois tipos citados. (FIGS.
1 e 2).
Diz-se, comumente, que a cerâmica de Santarém se diferencía das
demais pela abundância e riqueza dos ornatos esculpidos e a ela ade-
rentes, que lhe dão um aspecto "barroco". Outras manifestações artís-
ucas da Hiléia, infelizmente ainda não suficientemente conhecidas e
estudadas, como a de Oriximiná (FIG 3), que deve ser um estágio da
mesma cultura (1), são, todavia, tanto ou mais "barrocas" do que ela.
Penso, por isso, que uma das suas principais característícas é a da for-
ma original dos dois tipos de vasos citados.
Habitualmente classifica-se como "cerâmica de Santarém" toda a
enorme quantidade de fragmentos achados naquela cidade, em Alter do
Chão e nas vizinhanças. E' essa uma dassificação arbitrária e estou
convencido de que naquela região, cheia de "terras pretas" preferidas
pelos indios, numerosas fcram as tribos que se instalaram, em épocas
diversas, sendo quase impossível, a não ser por um critério artístico,
estabelecer qual tenha sido efetivamente a produção oleira dos Tapa-
jó. Entre os fragmentos há enormes diversidades e àqueles que com
eles se familíartsam fácil é distinguir diferenças fundamentais na pre-
NA CAPA E NO FRONTESpICIO: paração do barro e principalmente no estílo, comprovando não terem
sido fabricados por oleiras de uma só cultura ou do mesmo povo.
Do pouco que se sabe dos Tapajó, uma coisa é certa: eles não en-
Reprodução fotográfica de um vaso «de gargalo,. 1.0 tipo. dos terravam os seus mortos em urnas funerárias. Moiam-Ihes os ossos, pa-
Tapajó, enconlrado em Santarém. Aldeia, ao serem feitas excaveções ra adícíoná-los às bebidas que sorviam em vasilhames de barro (2).
para a construção da Uzlna de Eletrlcldade,-Coleção Museu Nacional. Sua cerâmica era assim toda de superfície e fácilmente se misturava
Rio de Janeiro, com outras, anterior ou posteriormente depositadas nas áreas de terra

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PUBL. N0. 2 A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA

FIG. 2 - Vaso tipieo -de gargalo •• 1.. tipo. Santarém. Aldela.-


Altura, t 6 crnsr largura, 27 crns. - Cal. Robert Brown. na Fundação
Brasil Central. Rio de Janeiro.

FIG. J - Vaso típico -de corrétídes». Santarém, Aldeia.- Altura,


18 cms: largura: 28 cmsr diametro de boca, 16 ems. - Coleção Raber! Pelo contrário, esses constituem exceções, como exceções são, nos ce-
Brown, na Fundação Brasil Central, Rio de Janeiro. mitérios de Marajó, no Pacoval do Arary, no Camutins ou no Monte
Carmelo, as maravilhosas urnas pintadas e conhecidas como de Anajás,
preta em que êles e outros indigenas instalaram suas aldeias ou fizeram ou '3JS tangas e os vasos gravados em "champ levé", com extraordinárias
suas lavouras, e acabaram de misturar-se, depois de dizimadas e extin- decorações geométricas. Por toda a parte o que abunda é a louça or-
tas as tribos, pela enxada dos civílízadcs sempre com predileção pelas dinária, lisa ou pobremente ornamentada. E se a impressão mais gene-
terras pretas, consideradas superiores para a agricultura.
ralizada é a de que as oleíras de Santarém ou as de Marajó só faziam
A pesquisa estratigráfica do terreno, que tão ótimos resultados ci- as soberbas peças que se exibem nos Museus, isso se deve a que os cole-
entíficos produz nos "aterros artificiais" ou "mounds", de povos que cionadores ou coletadores só por elas geralmente se interessam, despre-
praticavam o enterramento secundário, depositando os mortos ou os res- zando as milhares de outras desprovidas de sentido deecratívo ou de
tos dêles em grandes urnas, torna-se assim, no caso dos Tapajó, proble- beleza ornamental para o gôsto comum. A verdade, contudo, é que as
mática ou inútil, tais os erros a que póde conduzir em virtude do ama-
peças de luxo, em relação às quantidades de louça encontradas num
nho secular e continuado das terras pretas nas quais, por essa razão
mesmo cemitério ou aldeiamento antigo são excepcionais e raras (3).
mesma, sempre a cerâmica surge completamente revolvida e fragmenta-
No caminho de Belterra, depois da chamada "zona colonial" de Santa-
da e até às vezes queimada e enegrecida pelo fogo dos roçados.
rém ,fiz uma vez, em 1947, penosa viagem em companhia do meu ami-
Restam-nos assim, como elementos vantajosos de identificação, a
técnica, ou melhor, o estilo artístico, e sobretudo a forma. E' claro que go Silvio Braga para examinar uma "terra-preta" que um cabcclo me
daí não se deve inferir que só os vasos com as ricas formas reproduzi- indicara como possuindo tanta "panela de indio" que êle mal podia tra-
das nas Figs. 1 e 2 tenham sido os fabricados pela cultura tapajôníca balhar o roçado, pois em toda parte onde metia a enxada topava com

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PUBL. N0. Z A ARTE OL'EIRA DOS TAPAJO -FRED'ERICO BARATA

FIG. 4 - Dois vaias .de gargalo> (2.0 upe ) , com penas Introdu-
zidGl nOI furos da «aba» .. mostrando como possivelmente faziam os
Tapajó a ornamenlação plumória da cerâmica de cerimonial. (ver
ligo. 26 e 28) - Coieção Iloberl Bro"n, na Fund. BrasU CeDlrDl. lUa
dé Janeiro.

montes de cacos. A verdade não fõra muito exagerada. Mas os cacos


eram lisos, excessivamente miúdos e quase nenhum apresentava orna-
mentação, embora fossem de oerâmíca velha.
E' a louça rica, de esmerada confecção, a que notabilisa determina-
das civliizações artísticas indigenas. E se é certo que não é pela cerâmica
ordinária, mas pelo trabalho de exceção das suas oleiras, que se iden-
tifica a cerâmica dos ''mound-builders'' de Marajó, deve ser justo, do .
mesmo modo, que para a identificação da civilização artístíca dos Ta·
pajó se procure o que de melhor, mais típlco e mais original produzi-
FIG. 3 - Fragm~tos de valas de Oriziminó (Trombetas).- De- ram. E o seu ponto alto e inconfundível foi atingido, não há dúvida,
senhadOI por Ano Nogueira Perres, detenhllta-chefe do Instituto Agro-
nômico do Norte. - Coleção do cutor, nesses vasos que denominei "de gargalo" e "de carráttdes'', ricos de ror-

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FIG. 6 - Pé d~ voso (trlpode), apresentando níude manifestação


de edual1smo». A cara antropomorfo permanece figurada quer na po..
slção normal 16 esquerda), quer na Inversão da peça (6 direita). _
Altura 7 cms, - Coleção Robert Brown, na Fundação Brasil Central,
Rio de Janeiro.

ma e exuberantemente enfeítadcs com figurinhas e relevos zoomorfos


ou antropomorfos, por vezes de surpreendente realismo e apendículados
ao todo com majesto.sa pompa.
Pcder-se-á dizer que as formas de alguns vasos se repetem dema-
siado, emprestando-Ihes uma certa monotonia. A repetição, entretanto,
é unicamente de estilo e cada vaso é diferente de outro quanto aos de-
talhes, quanto aos tamanhos, quanto ao número de ornatos e quanto às
estilizações laterais, escultóricas e predominantes.
Não têm razão, assim, os que teimam em afirmar ter sido a cerâ-
mica dos Tapajó feita em série e em fôrmas ou por molde (4).
Já houve quem a comparasse a um catalogo zcológíco (5), tama-
nha é a quantidade de representações zoomorfas com que a ornamen-
tavam , Em verdade essas representações não são só de animais, mas
FIG. 5 - Outro vaso «de gargalo» (2.0 ttpo). tombem enfeitado
com penas. Desenhado pelo pintor Manoel Pasta na, mostra uma rica também antropomorfas ou esquisitamente estilizadas. Por isso, quan-
decoração pictôrlca e na projeção ao lodo. Q forma da tartaruga que
a oleira representou com exatidão. - Coleção de Robert Brown. na
do nos habituamos ao convívio frequente com a cerâmica antiga dos
Fundação Brasil Centrol, Rio de J.meiro. Tapajó sentimo-Ia como uma linguagem, às vezes bem expressiva, que

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FIG. 7 - Cabeça de cariáttde antrcpcmorfe ou símíesca, com a


mesma manifestação de «dualtsmo», conservando a representação de-
selada tanto na posição normal (á esquerda) como na peça Invertida
(_ direita ).-Altura: 3,5 cms.-Coleção do autor.

FIG. 9- Fragmentos de VasOI -de eartátídes», antropo-zcomorfos.


Elementos ornamentais compostos de duas cabeças num mesmo corpo,
uma zoomorfa e outra antropomorfa. O primeiro fragmento. á esquer·
d. e ao alto, com 6,5 cms. de altura, tem vestlglos de tintas amarela e
vermelha, mostrando que o vaso era pintado. - Desenhos de Pelter
Paul Hilbert, etnologo do Museu Goeldl. - Coleção do autor.
FIG, 8 - Ornato de vaso com outra curiosa manilestação de
.duaUsmo •. Representação slmlelca, de mascara ou possivelmente sn-
tropomorla. Invertida a peça (á direita), muda-se 4 expressão Iísíoac- vam também as orelhas, para o uso de enormes brincos, em forma de
mlc. mas a representação perdura, com 01 olhos erguidos e a bôca
aumentada.-Altura: 7,5 cms. - Coleção do autor. discos, feitos de barro ou provavelmente de madeira; que se tatuavam;
embora não com a frequência de outras tribos, e que andavam completa-
nos vai contando hábitos, crenças, gostos, lendas, preferências e costu- mente desnudos. Muitos dos seus costumes identificamos também atra-
mes desse povo extinto. vés da cerâmica, associando as suas estilizações às narrativas lacôníeas
Os fragmentos da louça tapajônica podem até permitir-nos, com dos cronistas que dêles foram contempâneos ou lhes recolheram tradi-
um pouco de paciência e capacidade interpretativa, reconstítuír o tipo ções orais ainda bem vivas. As cariátides de certos vasos típicos, com
dos indígenas sua indumentária e modo de usar os atavios. Por êles figuras antropomorfas de sexo' feminino definido, que tapam os olhos
sabemos como penteavam os cabelos; como eram os seus cocares e tan- com as mãos, confirmam-nos que às mulheres era vedado tomarem parte
gas; que usavam pulseiras nos braços e nas pernas, estas últimas or- em certas cerimônias que nem podiam ver e eram privativas dos ho-
namentadas e apertadissimas, provocando deformações; que deforma- mens (6).

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PUBL. N°. 2 A ARTE OLEIRA DOS 'rAPAJÓ'- FREDERICO BARATA

FlG. II - PerUI e face de dois outros fragmentos antecpo-zee,


FIG, 10 - Pedil e Ieee de dois fragmentos de vasos «de cartátt- morfos de vasos «de carlátides», vendo-se no de baixo as asas já uni-
des», antr vpo-zcomcrfos. Elementos ornamentais simples e componentes das, penultima etapa da. «série evoluttva» que culmina na Fig. 12 com
de uma «série evolutiva» que se complete com os da Fig. 11. Vistos de a criação da carl.lIde antropomorfa. de mãos unldas.-Altura do frag.
perfil esses ornatos são zoomorfos e de frente antropomorfos. As asas mento superior: 6.5 cms; do Inferior: 5.5 cml.-Desenhos de Pelter Paul
vão se unindo progressivamente, ás costas da ave. até que. na visão Hílberr, etnologo do Museu Goeldl. - Coleção do autor.
frontal. ficam com mãos unidas. em representação antropomorfa. - Al-
tura do fragmento superior: 6 ems; do inferior: 8 ems. - Desenhos de
Pelter Paul Hilbert. etnologo do Museu Goeldi.-Coleção do autor. e perfe:tas dos grandes (8), que tudo indica terem sido feitos para brin-
co dos filhos, ou talvez, quando mais rústicos, pelas crianças imitando
Outros fragmentos falam-rios da delicadeza de alguns sentimentos, as mães oleiras (9). Em nossa mente, graças a esses vasínhcs podemos
ccmo do amor filial, pela abundância da fixação dos mesmos observados evocar uma cena familiar da vida tríbal: a oleíra, empenhada em seu
na natureza animal circundante, o que parece denotar uma identidade trabalho e cercada da prole, à qual entretinha deixando que manipulasse
com o próprio caráter (7). Assim vemos copiosas reproduções zoomorfas também o barro para distrair-se e, ao mesmo tempo, exercitar-se para
ou antropomorfas, como demonstrações de apreço ao amor materno, seja os misteres da idade adulta Da mesma maneira quer-me parecer que
quando reproduzem a onça lambendo uma das crias enquanto outra muitas das figurinhas antrcpomorfas que conhecemos e são chamadas
brinca a cavalo na cauda do felino; seja quando reproduzem o sapo ten- de "idolitos", bem como 0.51 apitos variadissimos, que tão belos silvos pro-
do às costas o filhote; seja quando mostram a própria mulher amamen- duzem, eram antes bonecas (como as tão populares dos Carajá) ou brin-
tando o filho ao seio. Esse apreço pela infância, ou amor filial, é evi- quedos que as mães fabricavam para gáudío dos filhinhos, com objetivo
dente ainda na quantidade de vasos minúsculos, miniaturas delicadas idêntico ao dc:s pais quando confeccionavam os arcos pequenos com os

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A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA
INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA DO PARÁ - PUBL. N.o 2

quaís os curumins deviam, brincando, treinar desde os primeiros anos


para as lides futuras da caça e da guerra.
Toda a cerâmica dos Tapajó é assim. Fala. Esclarece como uma
linguagem a quem com ela se habitúa e com suas variadissimas repre-
sentações se familiarisa. E' a única escrita que nos legaram e, para de-
cifrá-Ia, todas as conjeturas que tenham base aceítavel, comparativa ou
dedutiva, nos devem ser permitidas.

A cerâmica dos Tapajó era tão pouco conhecida, mesmo em tem-


pos recentes, que até 1923 não se tinha a menor idéia da forma comple-
ta de qualquer dos seus vasos típicos.
O VoI. VI dos Anais do Museu Nacional (1895), quase todo dedi-
cado à cerâmica amazônica, é paupérrimo de informações sobre a de
Santarém, à qual fazem vagas referências apenas Hartt, que a deno-
mina "louça de Taperinha ou dos moradores do alto" (10), Ferreira Pe-
na e Ladisláu Neto, este último reproduzindo equivocadamente um FIG. 12 - Á esquerda, uma carlátlde pura-
fragmento santarenense que descreve e classifica como de Marajó (11). mente antropomorfa. de mãos unidas [evcluçâc
da Idéia primitiva de csos], que se cpresento
A coleção Rhame, incorporada ao Museu Nacional, é fraquissima e mal como última etapa da "Iérle». despresodo pela
oleiro o perfU zoomorfo por ter logrado obter
dá uma noção da monumental variedade e das formas da louça dos Ta- uma torma nova á qual aquela interpretação
paió, pois não possue uma única peça inteira característica. se tornou desnecessária. Na figura á direita já
não se trata de carlátlde, mos de um boneco
Foi em 1923 que Curt Nímuendajú, trabalhando para o Museu de ou Idolo, bolado, em que a nova forma criada
se reproduz e vai assim se fixando como um
Ootteborg , revelou ao mundo cíentifíco, coletando peças completas e padrão cultural. - Altura de cada peça: 6,5
grandes fragmentos, o íneditísmo e a beleza dessa soberba arte primitiva. cm s, - Cal. do autor e cal. Mario Barato, Rio
de Janeiro.
Helen Palmatary (12), repetindo Linné (13), descreve a descoberta
da cerâmica de Santa:rém por Nimuendajú como meramente casual Contou-me na mesma ocasião Curt Nimuendajú que certo dia ten-
Segundo esses autores, em censequência de um temporal, a água da do localizado na Aldeia um terreno cheio de fragmentoa, começou' uma
chuva, com forte poder erosivo, deixou a descoberto considerável porção excavação e achou indícios de bôa cerâmica. Na manhã imediata, vol-
de terrenos altos, pondo à mostra fragmentos estilizados e às vezes lin- tando ao local para prosseguir no trabalhe, encontrou lá um português,
damente desenhados. Afortunadamente - acrescentam - estava em residente nas vizinhanças, que tudo inutilizára cavando ativamente. Ir-
Santarém, no momento, Curt Nimuendajú e, graças aos seus esforços, ritado, perguntou-lhe porque estava fazendo aquilo e obteve esta respos-
muito desse material foi salvo. ta: "estou procurando o tesouro; se o sr. póde achá-Io eu também pos-
Tal versão não é rigorosamente exata. Desmentiu-a, em palestra so". O buraco estava enorme e a cerâmica perdida. Com esse exemplo
comigo, em agosto de 1945, no Rio de Janeiro ,o próprio Curt Nimuenda- quiz Nimuendajú demonstrar-me o quanto é difícil preservar as nossas
jú. Tivera êle noticia, por um padre alemão seu amigo (do qual infeliz- riquezas arqueológicas, dada a incompreensão absoluta do homem do in-
mente não guardei o nome), de que em Santarém as crianças apare- terior, que ou tem medo dos objetos dos indios e os destróe, ou por eles
ciam frequentemente brincando com pelaços de cerâmica Indígena, aos tem desprezo.
quais chamavam "caretas" e que encontravam na cidade. Ficou inte-
ressado e logo que lhe foi possível dírígíu-se a Santarém, especialmente
para estudar a cerâmica que lhe fôra descrita como orígínalíssíma e di- O padre Ives d'Evreux, falando sobre os pequenos ídolos de for-
mas humanas, de s Tupinambá, e descrevendo a ação dos pagés, que cha-
ferente de todas as conhecidas. Verificou logo a sua importância e ini-
ma de feiticeiros, diz que eles enfeitavam esses ídolos com penas (14).
ciou pesquisas para as quaís, entretanto, não encontrou o menor apoio.

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PuBL. N°. 2 A ARTE OLElRA nos TAPAJÓ - FREDERIcoBARATA

Estou convencido de que os Tapajó faziam o mesmo com l'l. cerâ-


mica de cerimonial e de fundo místico ornamentando de penas, talvez
nos dias festivos, não só os ido Ias como certos vasos.
Chamou-me sempre a atenção, ao examinar fragmentes e peças
tapajônicas, o aparecimento de pequenos furos, em posições mais ou me-
nos regulares, e para os quais, a principio, não achava uma [usti rícatíva
aceítavel . Apesar de tanto cs ídolos como os vasos dos Tapajó possui- \.,..
rem bases planas, que lhes permitem perfeita estabilidade quando pou-
sados no chão ou em qualquer superfície, acho provavel que em algu-
mas peças fossem esses furos feitos para suspensão. Obj etos delícadcs,
é admissível que não pudessem ser guardados nos girá os comuns ou dei~
xados no sólo, ao alcance dos. animais e, portanto, que tivessem de ser
suspensos, pendurados nas cabanas, afim de assegurar-Ihes uma pro-
teção mais conveniente.
Furos há, contudo, que não podiam ter essa finalidade, como os
que estão simetricamente dispostos nos gargalos dos vasos (FIGS 4 e 5)
e que são por vezes até seis, número demasiado para receber cordões
ou fibras de suspensão. Do mesmo modo não parece que teriam esse
destino os que se vêem junto ao pavilhão auricular dos ídolos, bem como
em inumeras outras posições nos variados ornamentos zoomcrfos ou an-
tropomorfos que se apendiculavam às peças e, assim, não ofereciam
firmeza para, suspensos, aguentarem o peso do conjunto.
A explicação mais plausivel que encontro para êles é que realmen-
te foram destinados à introdução de decoração plumária, como Nimuen-
dajú constatou razerem ainda hoje os indios Palikour (15).
Não raro as cabeças de ídolos possuem apenas um furo later aI, nas
proximidades de cada orelha. Isso, nas peças ôcas, parece se conciliar
de preferência cem a primeira hipótese, tanto mais que bem estranhos
ncaríam esses objetos se em cada orifício se introduzisse horizontalmen-
FIG. 13 - Uma série de cariólides antropamorfas, mostrando a
te uma pena, com um resultado que foge à harmonia costumeira da de- moreho da Idéia evolutlva. partindo das asas do perfil zoomorfo já
abandonado, asas que estão ainda clararnente sugeridos nas primeiros
coração indigena. Já não acontece assim quando as peças são maciças, (comparar com as Flgs. 10 e 11). até que adquirindo a olelra liber-
pois não há comunicação entre um e outro orifício. Tenho motivos para dade interpreta Uva. já nas últimas as transformou em membros huma-
no s.-Desenhos de PellK Paul Hilbert. etnologo do Museu Goeldl-Co-
julgar que esses furos se destinavam a receber as extremidades de pe- leção do autor.
quenos cocares de plumária, em arco, especialmente conteccíonados pa-
ra os ídolos e que, imitando os usados pelos Tapajó, complementariam os indigenas amazônicos, tem atrás, nessa posição vertical, longas e vis-
com mais realismo a representação humana. As belas penas de arára tosas penas de arára.
e outr:as aves, possivelmente, só enfeitavam os vasos em cujos furos po- De qualquer maneira, o que se pode assegurar é que os furos das
diam entrar verticalmente, nessa posição se consorciando admiravel- cabeças de ídolos, como também os de muitos tipos de vasos, não podtarn
mente com o todo, como se póde ver nas FIGS. 4 e 5. ser para suspensão, pois nos blocos maciços de barro não atravessam de
Há cabeças de ídolos, todavia, que na parte superior (ou posterior, lado a lado e, portanto, não dariam passagem ao cordel.
quando as cabeças são chatas), possuem um terceiro furo, além dos
dois laterais referidos, os quais recebendo uma ou mais penas em posi- Estou certo, outrossim, de que a cerâmica dos Tapajó não W em
ção vertícal ainda melhor reproduziriam o cocar que quase sempre, entre muitos casos se enfeitava com penas, como era em geral pintada. A côr,

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fosse das penas ornamentais, fosse das tintas, casando-se com as for-
mas esquísítas e rebuscadas, dava-lhe a aparência de estranha beleza Nos fragmentos de ídolos é a ornamentação pictórica feita geome-
tr!cam~nte, numa perfeita imitação de tatuagens e indicando, desse mo-
que vívamente despertou a atenção dos cronistas.
do, que os Tapajó cobriam o corpo todo com elas, a exemplo -tos seus
E' verdade que os vasos típicos, "de cariátides" ou "de gargalo". vizinhos Mundurucú.
surgem aos nossos olhos, nas coleções particulares e nos Museus, sem
pintura alguma. Possúo, porém, muitos fragmentos colhidos por mim
em Santarém e limpos com paciência, em que são ainda bem nítidos os Chama a atenção, cutrosstm, ao estudioso da cerâmica dos Tap'a-
vestígios da pintura (ou decoração pintada), com participação do ver- Já, o constante aparecímento de ornamentos escultóricos que mudados
melho, do amarelo, do branco e do preto. Esses fragmentos são tantos de posição eontrnuam a 'representar a mesma figuração, antropomorra
que não deixam dúvida quanto à frequêncía de tal prática. Idoles e ou- ou zoomorfa.· Esse fenômeno, que se pôde denomtnar "dualismo", não
tros tipos de vasos se encontram, inteiros ou fragmentados, com a pin- sei que explicação terá. Por isso apenas o assinalo. As FIas 6, 7 e 8
tura perfeitamente conservada, como alguns que fiz desenhar da cole- mostram exemplos de três desses ornamentos que, invertidos, mantêm
ção Robert Brown (hoje da Fundação Brasil Oentral) e outros que tenho a mesma representação. Um é um pé de vaso Itrípodej , onde a figu-
em meu poder. Que usavam os Tapajó ídolos pintados foi constatado -ração antropomcrra é feita de modo a perdurar quando se o vire de
por Mauricio de Heriarte, que os visitou em 1662 (16). Por analogia, cabeça para baixo. Outro é, nas mesmas condições, uma cabeça antro-
como procediam os Marajó, temos de admitir que pintavam também 'Pomorfa ou simiesca, com tipo de caríâtíde . O terceiro é uma cara re-
Vasos. donda estilizada, de símío, de gente ou simples mascara, que na posição
Deduzo, da observação do vasto material que me tem passado pelas normal dír-se-:a silnbolisar a tristeza cem a sua bôca pequena e sobran-
mãos, que muitos vasos que comumente vemos lisos e na côr natural do celhas caídas. Quando se inverte exibe um ricto de alegria, <erguendo-
barro, foram coloridos depois do cosimento, com urucú e outras tintas se as sobrancelhas e alargando-se a bõca , Naturalmente que esta inte-r-
leves e vegetais, e por isso, tratando-se de cerâmica de superfície, não pretação. é um puro devaneio, mas o "dualtsmo" ou a intenção da 01e1-
resistiram à lavagem secular pelas águas das chuvas torrenciais de in- ra de manter a representação desejada em mais de uma posição, esta.
verno, quase diárias, que erosam violentamente o sólo de Santarém e patente. E como. são muitos os casos, nos fragmentos santarenenses, <em
adjacências. E' comum, em fragmentos dos quais se retire com cuidados que isso. se verifica, afasta-se a possibilidade de uma simples coíncídên-
especiais a terra preta aderente, e que se apresentam depois C'Omesse eía e o "duaiismo" me parece intencional ·e consciente.
aspecto de barro lavado e limpo, descobrirem-se traços de desenho a
côres ou pintura em pontos mais protegidos, como sob os braços dos VASOS ''DE CARIATIDES"
ídolos.
Alguns desses fragmentos tive ocasião de mostrar aqui em Belém, Os VlaJSOSque denominei "de cartâtídes" (FIGS. 1 e 14 a 18), dos
recentemente, a um amigo, o arqueólogo norte-americano Clifford Evans Tapajó, são constituídos de várias partes distintas, modeladas separa-
Junior, da Universidade de Columbía, que os fotografou em tecnícolor , damente e depois unidas entre si, das quais as mais destacadas são a
Naturalmente que esses elementos não bastam, por si sós, paro. inferior e a superior. A primeira é um suporte em f0l"mia de carretel
provar que toda a cerâmica dos Tapajó fosse pintada. Mas provam, como se dois pequenos prato.s tivessem sido ligados pelos fundos; a su-
sem dúvida, que pelo menos o era em grande proporção. perior tem a forma de uma cúía ou bacia, bem maior do que o suporte.
e um e outra ligam-se por intermédio de três cariátides antropomorfas.
A ação das águas pluviais sobre a cerâmica é tão forte que não só O suporte nunca é liso e apresenta decorações em geral geométri-
os ornatos pintados a fresco dela desaparecem. A própria camada de cas, de incisões e pontilhados feitos no barro quando ainda mole, deco-
verniz, tão característica em certas peças e muito mais fixa, também rações que variam de um para outro vaso, jamais se repetindo, todavia,
ordínár.amente se destróe, apesar de cosida ao fogo, e não são pou- embora por vezes se assemelhando. Esta variedade se manífsta também
cos os rragmentos que tenho visto e possúo onde o barro está áspero na forma do suporte ou carretel, que ora é pronunciadamente achatado,
como uma lixa, na côr natural, apenas em um ponto e outro mostrando, ora bastante alto.
pela permanência ocasional da camada vitrificada de verniz, que a peça A parte superior da bacía é ornamentada por processo semelhante,
inteira fôra originariamente com ela reeoberta e pintada. guardando as duas peças, num mesmo vaso, identidade de desenhos. As

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INST. DE ANTR. E ETN"OLOGIADO PARÁ - PUBL. N°. 2" A ARTE OLElRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARA"TA

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FlG. 14 - Vaso -de earláUdes'. Santa rem, Aldeia - Altura. 20


cms: largura, 28 em •. - Coleção Museu Goeldl, Belem, Pará.

FIG. 15 - Vaso .de "arlátlde ••. Santarem, Aldeill. - Altura mil-


incisões geométricas, contudo, nunca chegam à parte inferior da bacía ••Ima: 19 ems: largura, 24 cms: dlamelro de bôe8' U em •. - Col. Re-
bert Brown, na Fundação Brasil Cenlral, Rio de Janeiro.
que é sempre lisa e na qual se encaixam as cabeças das cariátides, que
são rígurínhas antropomorfas sentadas na borda do carretel. através de toda a cerâmica se verifica ter sido comum entre os Ta-
As cariátides são sempre três em cada vaso, todas tendo comumen- pajé (17),
te o sexo marcado por uma incisão ou pequeno buraco que as identifica As cariátides de um vaso diferenciam-se sempre das de outro. Mas
como femininas, ou pelas duas coisas simultaneamente, o pequeno bura- num só vaso as três são iguais, mantendo as mesmas atitudes.
co em cima, representando o umbigo, e a incisão em baixo, marcando o A representação dos membros superiores varia extremamente. Ora
sexo. As vezes há omissão completa dessa identificação, mas nunca se a figurinha tem as duas mãos vedando os olhos (18), ora tapando a bôca,
encontrou uma caríátíde com o falo ou qualquer indicação do sexo mas- ora estendidas para baixo e repousando nos membros inferiores; ora e
culíno , A representação do corpo é quase inexistente. Pode-se dizer que uma só das mãos que ccbre um dos olhos enquanto a outra fica sobre o
só possuem cabeça e braços, cem o tronco diminuto e os membros in- joelho, ora é uma só que tapa a bôca. Mas, sem exceção, num mesmo
feriores apenas sugeridos. A cabeça, grande e desproporcionada, tem vaso, as caríát.des são três e todas três idênticas e rigorosamente na
olhos, nariz e bôca perfeitamente marcados e as orelhas são formadas mesma postura.
de dois lóbulcs superpostos mostrando a existência de uma deformação Na bacía, pelo lado externo, são justapostos numerosos elementos
causada pelo uso de pendentes ou brincos no lóbulo inferior, uso que ornamentais. em relevo, fixados exatamente na parte em que se inicia

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INST: DE ÁNTR. ]!; ETNbLOGIÁ DO' PARÁ - PUBL. NO. 2' A ARTE DLEIRA ·Dos·TAPAJÓ -"F'REDERICO "BARATA

FlG. 16 - Vaso «de cariátides>. Santarem. Lavras. - Alt'Ura, I:!?


cms: largura maxim •• de ornato a ornat<l, 16 cms.-Coleção do autor

:1 concâVidadtt, o'Useja- na linha de limíte da bacia própríamerrte dita.


que é lisa, com a parte superior em que estão gravadas as íncísões geo-
métricas. Essa linha divisória, de resto, é marcada sistematicamente por
uma reíntrãncía QU sulco profundo que determina a ponto em que, se es-
treitándo um pouco mais, emerge da bacia lisa a borda superior ou bôca FIG. 17 - Vaso "de ccríéttdes ». Santarem. -
largura, 25 em •. - Cal. Robert BrowJl. na Fundação
Altura: 18 erns:
Brasil Centr ••1,
do vaso. Pela face ínterna não há ornamentação, salvo na beirada su- Rio de Janeiro.
perior: de algumas peças, na qual se encontram dois sulcos finos e pa-
ralelos, à mesma altura de outros idênticos que circundam o vaso por culiar. Neste trabalhuporém, d~, cunho meramente destritiVo, "não de •.
fóra. seja estender-me sobre essas possibilidades.
De dois generos são 'Os ornatos escultôrícos antropo-zoomorfos;
Todo o esforço representativo da oleíra parece se ter concentrado
compostos e simples, sempre dispostos alternadamente .
na parte plàstica ou escultóríca, seja nas caríátídes, seja nas figuras ni-
Os compostos se constituem de um corpo, mais ou menos estíli-
tidamente antropc-zoomorfas, de destacado relevo, que circundam a ba-
zado, com duas cabeças, uma antropomorra e outra zoomõrra, à êle li"
da em sua linha média, erguendo-se desta até um pouco acima da borda.
gadas (FIG. 1}). Os simples são fígurínhas que vistas de perfil são zoo-
Estâs figuras antropo-zoomorras díversírícam-se de um vaso para mortas e vistas de frente são antropomorras (FIGS. 10 e 11). QuAse
outro nas atitudes , tal como as cariátides , mas obedecem a u:m,...perma- sempre são quatro pares. Há vasos, porém, com cinco (FIO. ísi.
nente e ínvaríavel estílo de representação, que a deduzir da própria Estes elementos ornamentais simples são para mim do mais alto
constância deve simbolizar algo de muito importante para a vida tríbal, interesse. Graças a um estudo comparativo de abundante material, te-
possivelmente refletindo na símbíose de alma do homem com o animal, nho podido constatar na cerâmica dos Tapajõ um. certo sentido "evolu-
comum nas crenças primitivas, a manifestação de um totemismo pe- tivo", ou transformador, no modo de representar certos sêrês ou bbjétosl

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PuBL. NO. 2 A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA

partindo de formas singelas e passando gradatívamente a outras até


gerar uma representação nova. Pode-se dispô r uma série de fragmen-
tos de cerâmica tapajôníca em linha horízotal, na qual cada um re-
vela semelhanças e identidades com o vizinho mas vai sofrendo modi-
ficações tais que, ao chegar ao último, se apresenta uma forma inteira-
mente nova e na qual seria impossível reconhecer, sem a "série evolu-
tíva" assim disposta, a influência do padrão ou ponto de partida.
E' esse um fenômeno que, de resto, tem sido assinalado por nume-
tosos autores, chamado de desenvolvimento da fo.rma por F. Ward
Putnam, ao estudar certas manifestações oleiras de Costa Rica, e de
relações por William Holmes, ao descrever os vasos de Chiriqui. Onde,
porém, o encontrei melhor exposto foi em Franz Boas, que dir-se-ia es-
tar se referindo à cerâmica dos Tapajó quando analisa o significado do
ornamento primitivo (19).
, Com essas figurinhas simples ou isoladas, dos vasos "de caríátídes"
'~'~os Tapajó, formei uma série evolutiva em que partindo da represen-
h., . ção de uma ave (FIG. 10), a oleira chegou à confecção da própria
cariátide, ou figura puramente antropomorfa, daquela originada
(FIG. 12).
Possúo outros fragmentos, de tipos diferentes de vasos, que da mes-
ma maneira permitem a formação de séries evolutivas. A representação
realístíca final decorre sempre de formas singelas anteriores, cuja per-
manência se torna irreconhecivel, na última etapa, se não tivermos à
vista a escala inteira ou as diferentes gradações ou transformações.
Observando os desenhos das FIGS. 10 e 11, podemos ver como os FlG. 18 - Vaso «de cariátldes ». Santarem, Aldeia. Encontrado
perfis zoomorfos começam sem sugerir, ou sugerindo quase impercepti- perto do antigo Curro e ofertado em 1939, pelo sr. Paulo Rodrigues
dos Santos, á coleção do Museu Goeldt. - Altura: 10 cms: largura:
velmente, se vistos de frente, as representações antropomorfas, que se 16 em s,

vão acentuando lentamente com o alongamento e a união gradativos


das asas, até que estas se transformam, na visão frontal, em membro-s finalmente, adquirindo liberdade interpretativa ou técnica, as trans-
superiores humanos. A oleira, partindo de uma representação zoomor- forma em braços e mãos, ao mesmo tempo que indica as pernas e o sexo
fa, chega assim a uma outra puramente antropomorfa (FIG, 12), em para completar a caracterízação antropomorfa.
que foi desprezado o perfil zoomorfo por se ter tornado desnecessária essa Deduzo daí que a oleira devia ser impotente para suprimir a repre-
interpretação, criada que já está uma forma nova, de finalidade tam- sentação antropo-zoomorfa, originária, por ser esta um padrão cultu-
bém nova , que é a cariátide. . ral, de cuja influência ela própria não se podia eximir como membro da
O emprego da figuração míxta, antropo-zoomorfa, que à cariátide comunidade, e que tinha a obrigação de fazer figurar nos vasos que
deu origem" porém, perdura no mesmo vaso, associando-se na ornamen- confeccionava com finalidades de cerimonial e, portanto, místicas.
tação plástica os dois elementos, o originário e o transformado. Parece
Se como penso a dedução é cabível, grande ímportâncía assumirá
isso indicar que havia uma conveniencia ou imperativo, de significação
a identificação, na maior escala possível, dessas séries evolutivas na re-
totemísta ou mística, pana que permanecesse a representação primitiva
presentação gráfica ou plástica da antiga cerâmica indígena visando
ou antropo-zoomorfa.
isolar os padrões primitivos cuja sobrevivência, em fcrmas posteriores,
Nos desenhos de cartátídes, reproduzidos na FIG. 13, pode-se ob-
se tornará altamente elucídatíva para certos problemas de identidades
servar, ainda, como no início da série é flagrante a incapacidade da oleí-
e fílíações ou correlações' de cultura entre diferentes tribos. Ladisláo
ra para modífícar a idéia de asas, que permanece fiel ao padrão, até que,
Nto, aliás, teve a percepção dessas questões, ligadas à representação

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"':
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FlG. 19 - Vaso «de gargalo», 1.0 tipo. Santarem. Aldeia. Molar


largura de ornalo a ornato: 23 cms: altura, 15,5 ems. - Cal. Ilobert
Brown, na Fundação Brasil Central, Rto de Janeiro. FlG. 20 - Vaso «de gargalo., 1.0 tipo. Santa rem. Aldeia. - Al-
tura, 16 cms: molar largura de ornato o ornato: 28 ems. - Col. Ro-
bort Brown. no Fundação Brasil Central. Rio de Janeiro.
antropo-zoomorfa, também na cerâmica de Marajó, ao estudá-Ia em
1896 (20).
a variedade de ornatos esculpidos, em combinação com gravados (estes
Concluindo a descrição dos vasos "de cariátides". quero salientar em número muito menor), que poderiam servir para atestar a exatidão
que em todos êles, na linha de ligação entre a bacía e a bôca, algumas do conceito de Joyce, relativo ao "horror ao vasio" (21) de certas culturas
vezes logo abaixo dos ornatos escultóricos compostos e outras nas ime- artísticas indigenas. Esse conceito, que a sra. Heloisa Alberto Torres
diações, há sempre quatro furos, em distâncias iguais um do outro.
já relacionou com justeza à cerâmica de Marajó (22), aplica-se do mes-
Como os vasos, graças ao suporte em forma de carretel, onde estão sen-
mo modo à dos Tapajó, com a única diferença de que naquela os "va-
tadas as cariátides, têm uma estabilidade garantida, não me parece que
síos" se preenchiam com desenhos geométricos ou estilízados, pintados
esses furos fossem para a introdução de fios, afim de manter a peça em
ou gravados em "champ levé", equanto que nesta é aos relevos escultó-
suspensão. Acho mais aceítavel, como já disse, que se destinassem are-
ricos que cabe evitar os espaços sem ornamentação ou aproveitamento.
ceber as' penas vistosas e coloridas com que, possivelmente, eram os va-
sos enfeitados nos dias festivos. Daí a riqueza e originalidade dos vasos "de gargalo" de Santarém,
dos quais nos estamos ocupando e que são de dois tipos bem definidos. O
VASOS "DE GARGALO" primeiro tipo (FIGS. 19 a 23), sobresái pela conformação exótica de
tampada votiva que lhe é dada pelas duas "asas", alongadas para os
Os vasos "de gargalo" são os mais belos e mais ricos de sugestões lados e formadas por complicadas estilizações de cabeças de crocodilo
entre quantos produziu a arte aleira dos Tapajó. E' tão grande neles (FIGS. 19, 20, 21, 23 e 24) ou, menos ameudadamente, de cabeças de

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PUBL. N°. 2 A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA

FlG.22 - Vaso .de gargalo», 1.0 tlpo, Monte Alegre. - Com-


primento maximo: 26 crns: altura total: l\l em •. - Coleção do autor.
FlG. 21 - Vaso ,de gargalo>, 1,0 tlpo. Santarem. - Altura, 14
em •. - Col. Robert Brown, na Fundação Brasil Central, Rio de Janeiro. ao todo pelos pés. No ponto em que a mandíbula superior se curva para
baixo, logo acíma do canideo, ou há cabeças antropomorfas (FIG. 19) I

aves (FIGS. 22 e 25), dificilmente reconheciveis, e que tanto podem ser ou um passáro pousado, da familia dos papagáios (FIG. 20). Nos vascs
de mutum como de urubú-rei. em que as asas são estilizações de cabeças de grandes aves, há geralmen-
O corpo central do vaso, se despido de todos eIS ornatos, tem a for- te um passáro de asas abertas sobre o bico de cada uma (FIG. 22).
ma-de um fruto com quatro ou mais gomos, sempre pares e pouco pro- substituindo o "cãosinho". Na parte descendente da mandíbula superior
nunc ados, sobre cada um dos quaís se destacam os principais apendices também se ríxam, não 'raro, outras representações zoomorfas, aparente-
ornamentais que, vis-à-vis, são infalivelmente duas rãs e as duas gran- mente de lagartos (FIG. 19).
des asas estilizadas laterais. . O "gargalo" é o elemento característico e permanente. Nos vasos
As duas rãs, figuradas com bastante realismo, erguem-se sobre as do primeiro tipo acha-se colocado, como se fôra um chapéo, sobre uma
quatro pernas e ríxam-se no corpo do vaso apenas pelos pés. O campo cabeça antropomorfa que, maís dilatada, serve de ligação entre êle e o
intermediário, entre cada rã e as estilizações de crocodilo ou de aves corpo central, como está bem visível nas FIGS. 20 e 24. Nem sempre,
(asas), é ocupado por. cabecinhas antropomorfas (FIG. 19), por cobras porém, essa dilatação intermediária tem uma figuração antropomorfa.
estiLzadas (FIG. 2) ou por cabecinhas zoomorfas (FIG. 24). As vezes é ornamentada com estilizações caprichosas de rãs ou cobras,
Quando as asas são formadas por cabeças de jacaré estilizadas, na em relevo, ou ainda com simples incisões. Nesses casos a representação
mandíbula superior está quase sempre fixado um' quadrupede, com as- antropomorfa" de estilo idêntico, se transfere para a base ou suporte
pecto perfeito de um canideo, erguido como as rãs e como elas só fixado do vaso (FIOS. 21 e 22), mas sem que isso constitua uma regra geral,

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PUBL. NO. 2 A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA

FIG. 23 - Vaso «de garqaloR, 1.0 tipo. Sontarém. - Compri-


mento de bico a bico, 19 cms: largura de rã a rã. 14 cms: altura, 13
ems. - Coleção Museu Goeldi, Belem, Paró.

pois vasos há em que não aparece e tanto o gargalo, como a dilatação


intermediária e a base ou suporte, apresentam apenas decorações íncí-
sas e geométricas ou em baixo-relevo (FIG. 23).
FlG. 24 - Vaso «de gargalo" 1.0 tipo. Santarém. - Maior lar-
Os suportes têm comumente a forma de um prato invertido, com gura de ornato a ornato, 26 cmsr altura, 21 em •. - Cal. Robert Brown,
ornamentação de incisões ou em baixo-relevo, e variam na altura. Em na Fundação Brasil Central, Rio de Janeiro.
alguns vasos, duas cariátides zoomorfas repousando sobre o suporte é
que sustentam a peça inteira (FIG. 19), e em outros o suporte é supri- vaso é diferente dos demais. Comparem-se, por exemplo, os das FIGS.
mido e substítuído por um animal, como no vaso da FIG. 24, em que a 19 e 20, que são, apesar da manifesta identidade do estílo, um simétrico
oleíra figurou um jabotí ou tartaruga carregando a peça às costas. e o outro assímétrico .
Os "gargalos" não são nunca iguais, havendo-os com uma só aba A semelhança, assim, é unicamente de forma, decorrente da posi-
(FIOS. 20 e 22), com duas (FIGS. 19 e 24) e até com mais. SUladeco- ção sempre mantida dos elementos característicos: as duas rãs erguidas
ração é de desenhos geométricos incisos, salpicados de pequenos pontos, sobre as pernas, as asas altamente estilizadias e o "gargalo" que emerge
como de resto acontece na maioria dos suportes e bôcas, não só dos vasos de entre elas, ao centro do vaso.
"de gargalo" como dos "de cariátides".
Apesar de toda a multipliC'idade representativa que acabo de des-
crever, posuem os vasos "de gargalo" uma unidade de estílo realmente No segundo tipo de vasos "de gargalo" só este elemento é perma-
surpreendente. A primeira vista todos se assemelham e talvez daí de- nente (FIGS. 26 a 29) e a oleira abandonou a múltípla representação
corra a lenda de ter sido a cerâmica dos Tapajó feita por moídes ou em zoomorfa, tctêmíca ou distintiva do clã, para ilustrar, visivelmente,
fôrmas. Em verdade, máo grado a unidade de estílo e de técnica, cada mitos, lendas e crenças tribais.

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INST. DE ANTR. E ETNOLOGIA DO PARÁ - PUBL. NO. 2 A ARTE OLElRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA

FIG. 25 - Vaso «de gargalo., 1.° tipo, Sanlarém, - Altura, 12


ems, - CoI. Robert Brown, na Fundação Brasil Central. Rio de Janeiro.

o admíravel vaso reproduzido à FIG. 26, por exemplo, em que apa-


rece uma cnça comendo um jabotí pelo rabo, deve ser a fixação, na ce-
râmica, de uma dessas muitas lendas da literatura indigena do Vale,
em que os dois animais aparecem inseparáveis e como personagens prin-
cipaís (23).
Nas FIGS, 28 e 29 vemos um precioso par de vasos em que dois
bichos, um macho e outro fêmea, com os sexos definidos e fazendo
"pendant", possuem cabeças humanas ídentítícâveís pelos brincos nas
orelhas. Possívelmente mostram, plásticamente, que os Tapajó parti-
lhavam da crença tão difundida entre as tribos amazônicas, e à qual já
me referi anteriormente, da simbiose de origem e de destino do homem
e do animal (24).
Indubitavelmente de um animal com cabeça de gente, provida tam-
bém de brincos nas orelhas, é a figura modelada no vaso da FIG. 2T.
Na cerâmica dos Tapajó só as cabeças antropomorfas mostram-se com
brincos e nunca ví uma zoomorfa com esse adorno. E que se trata do
corpo de um animal verifica-se ainda pelas pernas, que não são feitas
com a técnica usada para representar os membros superiores ou inferio- FIG, 26 - Vaso «de gargalo., 2,0 tlpo. Santarém, Ald"lo,- Al-
res humanos. tura, 19,5 cms: largura, 14 cms. - CoI, Robert Brown, na Fundaçdo
'Brasl\ Central, Rio de Janeiro.

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lNST. DE A~TR. E ETNbLOGIA DO-PARÁ - PUB-L. NO. 2' A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ -FREDERIcoBARATA

o vaso da FIG. 5 reproduz, com aprecíavel realismo, uma tartaru-


ga, e é notável pelo estado em que se encontra a ornamentação pictórica.
pennitindo uma nítida visão das côres e do desenho. Os quelôníos ti-o
nham por certo um importante papel alimentar na vida dos Tapajó, e.
por isso mesmo, não podiam deixar (te estar presentes nos mitos e íen-
das da tribo. Sua pescaria, para enclausuramento nos currais de abas-
tecímento, come era comum entre tantos índios da Amazônia, possível-
mente inspirava festas invocativas de proteção, e é perfeitamente lógi-
co deduzir que para elas fossem confeccionadas as peças de cerimonial,
como a citada. Possúo um grande vaso, não pertencente à série dos que
aqui estou descrevendo, que representa uma tartaruga de cabeça para
baixo, com a intenção clara de evocar o episódio culminante da sua.
pesca, que é a "viração" ou inversão do animal, nos taboleiros ou praias
de desova, para ímpossíbílítá-Io de Iccomover-se ,
Os suportes dos vasos "de gargalo" do segundo tipo têm frequente-
mente, como os do tipo anterior, a rorma de um prato invertido (FIGS.
26, 27 e 28), mas às vezes a representação do animal se ccmpleta com as
patas e são estas que servem de base à peça (FIG. 29/.
Os "gargalos" têm sempre uma só aba, com a beirada recortada em
pétalas (seis ou oito), cada uma das quais exibe um, furo ao centro. Esses
furos, nitidamente visiveis nas FIGS. 26 a 29, não podem ter sido feitos
senão para. que nêles se introduzissem penas ornamentais. Os furos na
aba dos "gargalos" só aparecem nos vasos do segundo tipo e são nêles,
portanto, um elemento permanente e diferenciador. E' bem provavel que
nos "gargalos" do tipo anterior, por se acharem os vasos extremamente
enfeitados pelos apendices escultórícos, a decoração plumárta fosse dis-
posta de outra maneiro, ou até mesmo não se usasse, pois os furos estão
colocados nas asas, sob os olhos dos crocódilos estilizados, ou, se a estí-
Lização é de ave, nesse local e ainda no tôpo da cabeça (FIG. 22).

A muitos, talvez, possa parecer demasiado prolixa e detalhada a


descrição aqui feita dos vasos que reputo como os mais representativos da
cultura artística dos Tapaj Ó.
Tenho para mim, porém, que uma descrição minuciosa das peças
de cerâmica, acompanhada de reproduções fotográficas, será sempre de
real valia para proporcionar aos estudiosos comparações indispensáveis
e provocar novas e orientadoras interpretações.
Nesse ponto estou inteiramente de acôrdo com a tese desenvolvida
por Claude Levi-Strauss, de que essas interpretações podem ser sugeri- FlG. 27 - Vaso «de gargalo>, 2.0 tlpo. Santarém - Altura:
18,5 cms, largura: 15 ems. - Cal. Rabert Brown. na Fundaçào Brasil
das ao arqueólogo por uma comparação com o que revelam os trabalhos Central. Rio de Janeiro.

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A ARTE OLElRA DOS TAPAJÓ
rNST. DE ANTR. E ETNOLOGIÁ DO PARÁ - PUBL. NO'. Z FREDERICO BARATA

FIG. 28 - Vaso «de gargalo>, 2 o tipo. Santarém, AldeIa. - AI·


1vra: 12 cms: largura: 20 cms, - Animal de sexo feminino, iormQ um
.pendanh pelo, estilo fi pela ornamentação ídênttc os, com o da Flg.
Z9r-Cole9Õo R.obertllroWn, Da F\Rldação Bra.tI Central. RIo de Junelro.

etnológícos, facilitando-se o acesso aos mistérios do passado graças ao


conhecimento de um presente cheio ainda, pela força da tradição oral,
de sobrevivências de mitos e legendas das antigas culturas (25).
Filiei os vasos "de gargalo", sobretudo os do 1.0 tipo, às maníresta-
ções de "horror ao vasío". Toda a carregada e pomposa ornamentação
esculturada tapajônícã, porém, não deve resultar exclusívamente desse
sentimento dê íobia,. É1 lógico que reflete também outras preocupações
da oleira e cada motivo, esculpidO com mais ou menos realismo, há de FIG. 29 - Vaso .de gargalo>, 2.0 tipo. Santarém. _ AnImal de
t'star relacíonado cem os mitos ou crenças tríbaís, dando margem a um sexo masculino definIdo - Altura, 12,5 cms: largura, 19 ems, _ Col.
Robert Brown, na Fundação BrasU Central, RIo de JaneIro.
sem número de deduções.
Éfitêndó quê a estas não tios devemos furtar, quando nos possamos verdadeiros brazões familiares, ligados intimamente ao totemismo e à
basear em observações honestas é afastadas dó campo puramente .magí- divisão em clãs.
nativo ou Iíterárío , A medida que formos avançando no pesquisamento da Amazônia e
E como são pródigos em sugestões os vasos dos Ta.pajól no desvendamento dos mistérios que ainda encerram a arqueologia e a
Parece-me fórã de dúvida, por exemplo, que Os ornatos dos vasos etnologia destes três milhões semi-virgens de quilometros quadrados, te-
"de gargalo", quase todos zoomorfos, raramente antropomorfos, sejam nho a certeza de que esses e outros problemas se esclarecerão.

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t.
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INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA DO PARÁ - PUBL. N.O 2 A ARTE OLEIRA DOS TAPAJÓ - FREDERICO BARATA

Por enquanto, sugerindo-os apenas, não desejo avançar conclusões


que seriam apressadas e para as quaís não possuimos senão vagos e es-
parsos elementos comprobatórios.
Aquilo que no presente é mera especulação teórica, todavia, se
transformará em conclusões definitivas, quando maior conhecimento
arqueólogico tivermos da imensa área de influência dos Tapajó e de di- NOTAS
ferentes tribos amazônicas, estabelecendo correlações de estilo e de cul-
tura com as demais civilizações indígenas que vicejaram ao norte. (1) - A semelhança da eerâmíca de Santarém com a do Trombetas
E não foi senão pelo desejo de contribuir, com parcela míníma que (Ortximiná é o ant.go nome indígena do rio), já foi assinalada
seja, para facilitar a ampliação desse conhecimento, que me aventurei por Derby e Freitas, na sua viagem de 1876, segundo o depoi-
mento de Hartt. (Arch. do Museu Nacional, VoI. VI, página 62).
a este trabalho de divulgação, primeiro de uma série que o Instituto de (2) - MAURICIO DE HERIARTE. "Descrípçâo do Estado do Mara-
Antropologia e Etnologia do Pará editará, sobre a arte oleira dos Tapajó. nhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas", Vienna d'Austria
edição p. c. do Barão de Porto Seguro, 1874, páginas 36 e 37:
"Quando morre algum d'estes Indios, o deitam em uma rede, e
, lhe poem aos pés todos os bens que possui a na vida, e na ca-
beça a figura do Diabo feita a seu modo, lavrada de agulha
como meia, e assim cs poem em umas casas que tem feitas só
para elles, aonde estão a mirrar e a consumir a carne; e os
ossos moidos os botam em vinho, e seus parentes e mais povos
o bebem".
(3) - NIMUENDAJú. "Os Tapajó", BoI. do l'4us. Goeldi, VoI. X, 1948,
página 105: "Mas a grande maioria provem de peças lisas e' os
ornamentos são, como em toda parte, em numero muito inferior".
(4) - Essa afirmação roi prmeiramente difundida pela ilustre diretora
do Museu Nacional, sra. Heloisa Alberto Torres, numa confe-
rência que fez em 1929, na Escola Nacional de Belas-Artes do
Rio de Janeiro, depois publicada em livro. Dise ela: "Sobrepuja
a Marajó, quanto à fabricação, a olaria da civilização Tapajós-
Trombetas, conhecida cr m o nome de Santarém. Acredito fos-
se esta posterior ao apogeu da civilização de Marajó. De nível
artistico muito inferior ao da ilha, possue, em respeito à técnica
de fabricação e na Quantidade de produção, já industrializada,
um desenvolvimento consideravel. Em Santarém se encontram
as fôrmas que se empregavam na América Central e na cordí-
lheira para a fabricação da cerâmica. Manaió, centro essencial-
mente artístico, trabalhava a mão livre, tendo por só móvel a
mentalidade firme que a educação técnica rlgida lhe assegurava".
Dada a justa autoridade que tem a diretora do Museu Na-
cional, numerosos têm sido eIS autores que, dai para cá, no Bra-
sil e no estrangeiro, vêm repetindo esse equivoco, divulgando-o
já até sem citar a fonte. O último que o faz é Gastão Oruls, em
sua suntuosa "Hiléia Amazônica", Declara êle, referindo-se à ce-
râmica de Santarém: "Basta considerar que a maioria daquelas
peças se muito complicadas, se manto dificeis, seria frequente-
mente feita em série, por meio de moldes que repetiam, sem er-
ros nem desvios, não só, talvez, o corpo principal dos objetos
como, certamente, todos os adornos que lhe iam fazer depois a
decoração" .
E' esse um erro ou equívoco que se vai repetindo indefini-
damente e sem base. Nunca a cerâmica primitiva de Santarém

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foi feita em fôrmas ou por moldes. Nunca se encontraram mol- na atitude do pranto e da dôr. Tem sobre a cabeça um barre-
des ou fôrmas. em todo o vale tapajôníco, correspondendo ao te de forma moderna. que lhe oculta todo o crãneo: a mão es-
periodo pré-cabralíno ou contemporâneo do descobrimento. querda está apoiada sobre o lado correspondente da face co-
Tenho visto e examinado mais de vinte mil fragmentos e peças brindo-lhe o olho deste lado; a boca meio aberta exprime que
inteiras da velha cerâmica dos Tapajó e jamais encontrei ao aquele pranto não é mudo".' ,
menos dois pedacinhos exatamente iguais ou qualquer coisa que Trata-se de um equivoco que resulta do pouco conheci-
se parecesse com tôrma ou molde. mento que se tinha, à época em que isso escreveu o então di-
(5) - S. LINNÉ. "Les Recherches Archeologlques de Nímuendadú au retor do Museu Nacional, da cerâmica dos Tapajó. Essa rígurí-
Brésíl", Journal de Ia Societé des Amérícanístes de Paris: "C'est nha, reproduziãa em outra posição à pág , 326 é uma caríátíde
un véritable catalogue de toute Ia faune du bassín amazonique". dos vasos típicos de Santarém e nada tem de comum com Marajó.
(6) - Lê-se na "Informação" do capitão Antonio Pires de Campos. so- (12) - HELEN PALMATARY. "Tapajó Pottery" em "Etnologiska stu-
bre os indios Parecís, em 1723. publícada na Rev. Trim. do Inst. dies", Gotteborg, 1939, pág , 3. '
Bras., Tomo XXV, página 443: "... e tambem usam estes ín- (13) - SIGVALD LINNÉ. "Les Recherches de Curt Nimuendajú au
dios de idolos; estes taes têm uma casa separada com muitas Brésil", em "Journal de Ia Societé des Arnéricanistes de Paris"
figuras de varios feitios em que só é permitido entrarem os ho- Nouvelle Série, tome XX, trad. do suéco por Eva Métraux.
mens; as taes figuras são mui medonhas, e cada uma tem sua (14) - IVO D'EVREUX. "Viagem ao Norte do Brasil" (1613-1614). -
buzina de cabaça que dizem os ditos gentios, serem de figuras. Falando dos pequenos idolos, de formas humanas, e descreven-
e o mulherio observa lei tal, que nem olhar para taes cousas do a ação dos feiticeiros, diz: " ... avec les plumes ils paroient
usam e só os homens se acham nelas rr'aqueles dias de galho- l'idole ... "
ras, e determinados por eles em que fazem suas danças e se ves- (15) - NORDENSKIOLD. "Ars Americana", Paris, 1930 p.ág . 28:
tem ricamente". "D'aprés Nimuendajú, on y introduisait probablement un orne-
Betendorf, na "Crônica", narra costume idêntico entre os ment en plumes, á l'ocasion des fêtes, ccrnme le font encore les
Tapajó e, comentando essa narrativa, Nimuendajú atribue a Indiens Palikour ... "
isso a posição das caríátídes femininas tapando os olhos, no que (16) ~ MAURICIO DE HERIARTE. Ob. cít., página 36: "Te em idolos
chama "certos vasos sacrais" de Santarém. (Vol , X. do BoI. pintados "em que adoram, e a quem pagam dizimo das semen-
do Mus. Ooeldi, "Os Tapajó", pág. 101). teíras ...
(7) - A Laureano da Cruz não passou despercebido o grande amor (17) - NIMUENDAJú. BoI. Mus. Goeldi, VoI. X, pág , 101. - Descre-
que os indios da Amazônia dedicavam aos filhos. Falando da vendo cs Tapajó baseado nas indicações da cerâmica, diz:
província dos Encabelados, pcr exemplo, diz: "Quierem muchís- "Nos lóbulos das' orelhas usavam rodelas de medianas dimen-
simo a sus hijos, á cuya causa se criam con mucha libertad y de- sões. talvez de uma polegada, mais ou menos".
senvoltura". (Pág. 41). - HARTT. "Idolos dos Moradores do Alto", Anais do Mus.
(8) - IVES D'EVREUX. "Viagem ao norte do Brasil" (1613-1614): - Nac., Vol. VI) pág. 51: "O lóbulo da orelha tem sempre um or-
"As raparigas se empregam em ajudar suas mães, fiando algo- nato característico em forma de botão na frente e a cabeça é
dão como podem, e fazendo uma especíe de redêzinha como cos- furada atrás da orelha".
tumam por brinquedo, e amassando o barro com que imitam as (18) - NIMUEND'AJÚ. Ob. cít , Ver referência da nota anterior n.o 1).
mais habeis no fabrico de potes e panelas". (19) --. FRANZ BOAS. "EI Arte Primitivo", Fondo de Cultura Econo-
(9) - EVERARD F. 1M THURN. "Among the Indians of Guyana", mico, Mexico-Buenos Aires: - " ... podemos passar gradual-
London, 1883: "Another significant facts is that, while the In- mente a formas mais e mais convencionais, cada uma das quaís
dian women of Guyana are shapíng the clay, their children, apresenta uma clara semelhança com a que a precede, mas ter-
ímítatmg them, make small pots and goglets. Many of these mina em um desenho geometríco puramente convencional no
toy vessels may be seen in and about almost every Indian house. qual dificilmente se pode reconhecer a etapa inicial".
The large number of vessels too small for prat.cal use wnich (20) - LADISLAO NETO. "Investigações scbre a archeologia brasilei-
. occur in the American Mounda, and the object of which has long na", Anais do Mus. Nac., Vol. VI. - As cabeças de idolos que
been a question, were, judging by analogy, probably made by reproduz, de Marajó, e que classifica como representando "sa-
children of the mound-makers". crifices ou chefes de alta gerarchia ", "individuos ornados de
(10) - .CARLOS FREDERICO HARTT - "Contribuições para a Etno- elevadas mítras ou tíaras orientais", são apenas, a meu-ver, ma-
lbgia do Vale do Amazonas", Archívos do Museu Nacional, Vol. nifestações de antropo-zoomorr.smo idênticas às que assinalo
VI, pág , 50. nos ornatos dos vasos "de cariátides" de Santarém. Nas figs.,
(11) - LADISLAO NETO. "Investigações sobre a Archeologia Brasilei- reprcduzídas às páginas 322 e 323, o que Ladisláo Neto chama
ra". Anais do Museu Nacional, Vol. VI. - A figura 3 da Es- de "parte superior do thorax" são os bordos dos vasos em que
tampa XVII é assim descrita:" Grandeza natural. Amuleto or- se implantam essas cabeças de duplo sentido representativo,
namental de um vaso de Marajó representando uma mulher melhor visiveis ainda em muitas das figs. das Estampas I e IV.
acocorada sobre a borda de um vaso. E' uma figura expresiva, Refere-se ele ainda, à pág . 383 e seguintes, ao que denomina

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de "amphibomorphia" da cerâmica de Marajó. E' uma obser- presença da possibilidade de transformação dos homens em
vação interessante que revela uma presciência do antropo-zoo- animais ... "
morfismo: " ... todas essas cabeças em que temos visto a dupla (25) - CLAUDE LEVÍ-STRAUSS. "Le Serpent ·au corps rempli de pois-
feíçâo antropo-zoomorpha mais ou menos manifesta". sons", em "Actes du XXVIII Congrés International des Amerí-
Como não relacionou imediatamente Lasdisláo Neto essa canlstes", Paris, 1947, pág . 636: "Mais surtout il parait certaín
descoberta com as "cabeas de ídolos" que classificou como de que, dans ces regions de l'Amérique du Sud oú hautes et basses
"chefes ou sacrifices"? E' notavel o exemplo da fíg , reproduzi- cultures ont entretenu des contacts réguliers ou intermittents
da à pág , 384, "cabo de terrina", representando ao mesmo tem- pendant une période prolongée, l'etnographe' et l'archeologué
po um sáurio e, vista de topo, um animal que Ladisláo Neto peuvent se prêter concours pour elucicter des problêmes com-
chama de "classe diferente" mas que é, evidentemente. uma ca- muns. Le "serptent au corps rempli de poissons" n'est qu'un
ra humana assemelhada a muitas da cerâmica de Santarém, théme, parmi les ceritanes dont Ia céramique péruvienne, au
inclusive pelo prolongamento do nariz pela cabeça acima. Nord et au SUd, a multiplié, presque l'infini
á l'illustration.
Outros exemplos de ídolos de Marajó são citados e repro- Comment douter que Ia clef de l'ínterprétation de tant de mo-
duzidos nas figs. 6 e 21 da Est. III do fim do VoI. VI e na figo tifs encere hermétíques ne se trouve, á notre díspositíón et ímmé-
da pág . 403, em torno da qual divaga o autor vendo nela afin.- diatement accessible, dans des mythes et des contes toujours
dades com a deusa Hera dos antígcs gregos. Esta última não é vivants? On aurait tort de négliger ces méthodes, oú le present
um ídolo. porém pois ídolo se considera objeto isolado e esse é permet d'acceder au passé". (Comentando Métraux, sobre a re-
.nitidamente, fr,agmento da borda de um vaso do PacovaI. Seus presentação, na cerâmica antiga, de mitos e lendas das regiões
dois aparentes tôcos de braços muito se parecem, todavia, como andinas, que sobrevivem na tradição oral).
ocorre em certos estágios das séries evolutívas de Santarém,
com vestígios de asas que ainda sobrevivem do padrão inicial, ou
seja mais uma possível manifestação de antropo-zoomorfismo
dos marajoaras. Isso, de resto, é também verificavel na fig. 21
da R'lt. nr.
(21) ~ JOYCE. "Maya and Mexican Art", Londres, 1927. - Estudando
cs estilos escultóricos mexicanos, caracteriza-os pela "sobrecar-
ga ornamental e profusão de detalhes, que se explica pelo
horror ao vasio".
(22) --- HELOISA ALBERTO TORRES. "Cerâmica de Marajó", Rio,
1929: - " ... importa realçar que Marajó tem horror ao vasío,
Todo o campo é sempre COberto de decorações".
(23) - "Como o Jabuti matou duas Onças", "Como um Jabuti matou
uma Onça e fez uma gaita de um dos seus ossos" e "O Jabuti
engana a Onça" - lendas descritas por Ch. Frederico Hartt em
"M;ythologia dos Indíos do Amazonas", Arch. do Mus , Nac.,
VaI. VI.
- "Jabota, anta e onça", lenda caxinauá da região do alto Ju-
ruá, versão livre de Herbert Baldus, em "Lendas dos Indios do
Brasil", baseada na tradução literal de Capistrano de AbI'2u
publicada em "A Lingua dos Caxinauás", Rio: 1914.
- "História do Jaboti do Macaco e da Onca" lenda narrada
por Carlos Estevão de' Oliveira, em "Os Apinagés do Alto-To-
cantíns", BoI. do Mus. Nac., Junho, 1930.
- "O jabuti e a onça", texto original em nhehengatú, apre-
sentado pelo general Couto de Magalhães, em "O Selvagem",
Brasiliana, VoI. 52, série 5. a.
(24) - EURICO FERNANDES. "Crenças Zoomorfas e Zoomorfismo en-
tre alguns indios do Brasil": " ... Interpretando as crenças zoo-
morras como manifestacão de zoomorfismo e este como culto
no qual é dada a forma de animal à divindade, ou o sentido di-
vino a este ou aquele animal, quer por um princípio totêmico,
quer por simples anímísmo, uma vez que o animal é considera-
do como portador de uma alma imortal, quer ainda baseado na

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