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O MODELO POLÍTICO BRASILEIRO E SEUS DILEMAS DE

COORDENAÇÃO FEDERATIVA

Milton LAHUERTA1

O tema deste texto é o modelo político brasileiro e seus dilemas de coordenação


federativa. Pela própria complexidade do tema, faz-se necessário o resgate sintético de
alguns dos traços fundamentais que constituem a experiência brasileira durante o século
vinte, com foco naqueles que se revelaram mais importantes para a estruturação de seu
sistema político e que podem tornar mais compreensíveis as especificidades e os
dilemas que marcaram essa trajetória. Se for possível falar em um modelo político
brasileiro este se estrutura, exatamente, na confluência entre o sistema político – que
comporta uma dimensão institucional insofismável – e a cultura política que de fato se
formou no país ao longo de quase 120 anos de construção republicana. Nesse sentido,
no Brasil – ainda que com alguns surtos autoritários –, durante o século XX, se
vivenciou um processo ininterrupto de modernização (LAHUERTA, 2003) que mudou
radicalmente a face de sua sociedade e implicou a difícil transição de um rudimentar
sistema representativo oligárquico para uma democracia de massas avançada, baseada
em ampla participação e no reconhecimento crescente de direitos, mas repleta de
desigualdades sociais e regionais.

A proclamação da República, em 1889, e a elaboração da Constituição de 1891


estabeleceram os dois principais marcos institucionais que definiram o contorno do
sistema republicano brasileiro ao longo do século XX: o presidencialismo e o
federalismo. Desde seus primórdios, para se institucionalizar, o regime republicano teve
que encontrar fórmulas que permitissem compatibilizar duas lógicas contraditórias: uma
que tinha a pretensão de instituir um poder público no país, e outra, expressando o
particularismo de um poder privado, baseado no grande potentado rural, que
permaneceria forte, em grandes partes do território nacional, ainda por muito tempo.

Com a Constituição de 1891, o presidencialismo foi adotado no Brasil,


mantendo-se inalterado como sistema de governo até hoje, com exceção de um período
de 14 meses, entre 1961 e 1963, quando se realizou uma experiência parlamentarista.

1
Milton Lahuerta é professor de Teoria Política da UNESP – Campus de Araraquara.
De certa maneira, ao se adotar o presidencialismo como sistema de governo, no
momento de fundação da República, procurava-se manter uma linha de continuidade
com a perspectiva de não permitir a fragmentação do antigo território colonial e de
manter unidas todas as partes do novo país em torno de um projeto nacional que se
realizaria plenamente apenas no futuro. Para essa perspectiva, era no centro – até a
proclamação da República, representado pelo Imperador – que estava a possibilidade da
civilização e do progresso; nas províncias, como se dizia à época, estariam apenas os
interesses particulares, prisioneiros de uma hipoteca com o passado e partidários da
manutenção de relações sociais atrasadas. Portanto, na adoção do presidencialismo
mantinha-se a possibilidade de se afirmar a primazia do centro em relação às partes,
ainda que a dinâmica que estava em curso também identificasse a república com a
descentralização e com a valorização das partes.

Não obstante essa dimensão, a opção pela forma federativa respondia às


demandas por descentralização, expressiva de novas e velhas elites regionais que
questionavam o centralismo do Império, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo atraso
do país2 e seria radicalizada ao final da primeira década republicana, com a adoção da
política dos governadores como mecanismo de sustentação da República. Introduzido
no Brasil em 1889, detalhado e consagrado na Constituição de 1891, o federalismo foi
utilizado como fundamento da divisão territorial de governo no Brasil, em resposta a
questões políticas fundamentais, tais como “quem governa, como se governa e quem
deveria governar” (EVANS, 2001). Basta notar que nas seis constituições que
nortearam a vida institucional republicana brasileira, “as regras relativas ao federalismo
fizeram parte integrante do corpo constitucional” (Souza, 2005: 105). A importância do
federalismo na construção institucional do país chegou a um ponto que ele se tornou
uma clausula pétrea, quando a Constituição de 1988 estabeleceu que nenhuma emenda
constitucional pode abolir a “forma federativa de Estado”.

A experiência republicana brasileira – presidencialista e federativa –, ao longo


de seus quase 120 anos, gerou várias formas de relacionamento entre o centro e as
partes, oscilando entre centralização e descentralização, na exata medida em que

2 A primeira Constituição escrita do Brasil foi promulgada em 1824, após a independência de Portugal. Essa Constituição delegou
poderes administrativos às então 16 províncias. Embora as províncias não contassem com autonomia política formal ou informal,
essa delegação foi interpretada como abrindo o caminho para uma futura federação.
predominaram períodos mais ou menos autoritários ou democráticos3. Nessa trajetória,
com base nessa específica articulação entre federalismo e presidencialismo, teria se
constituído no Brasil um modelo político singular, que o distinguiria de outros sistemas
presidencialistas. A especificidade desse modelo se revelaria no fato de que os
Presidentes para governar o país teriam sido obrigados a formar um tipo de coalizão de
base regional4, mesmo nas situações em que o seu partido fosse majoritário. Seria
justamente o federalismo, instituído com a República, ao fortalecer as elites regionais e
o poder dos governadores dos Estados, que teria tornado necessário o estabelecimento
desse tipo de coalizão, sobrepondo-se ao longo do tempo àquelas formadas a partir da
lógica da competição partidária e orientando a formação das coalizões até hoje
(ABRANCHES, 1988). Com coalizões compostas assim não se constituiria uma base de
apoio consistente para a ação governamental, gerando sempre grandes dificuldades para
o presidente governar e abrindo espaço em demasia para a barganha fisiológica.

3 Ao contrário das de outros países, as constituições brasileiras têm tido vida relativamente curta e acidentada. Pelo menos duas
foram outorgadas (sem contar a que, designada "Emenda nº 1", foi imposta à Nação, em 17-10-1969, pela junta militar que poucos
anos antes assumira o poder). Ao longo da história do Brasil Independente, o país teve sete constituições (sendo uma Imperial e seis
republicanas), a saber:
I) Constituição Política do Império do Brasil, outorgada pelo imperador d. Pedro I, a 25.03.1824, alterada e modificada pelo ato
adicional de 1834 e interpretada pela Lei nº 105, de 12-05-1840;
II) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, a primeira da República, promulgada pela Assembléia Nacional
Constituinte, a 24-02-1891, profundamente emendada e republicada em 1926;
III) Constituição, com igual título, de 16-07-1934 – também elaborada por uma Assembléia Nacional Constituinte –, com pouco
mais de três anos de duração;
IV) Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada a 10-11-1937, pelo então presidente Getúlio Vargas (alcunhada a
“polaca”, explicitando a inspiração corporativista), com a qual inaugurou o chamado Estado Novo – durante o qual a Carta de 1937
sofreu 21 emendas;
V) Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 18-09-1946 por uma Assembléia Nacional Constituinte. Esta
Constituição recebeu numerosas emendas; a de nº 4, promulgada pelo Congresso em setembro de 1961, instituiu o sistema
parlamentarista de governo, revogada, menos de dois anos depois, pela Emenda nº 6. ;
VI) Com o golpe militar 31 de março de 1964, foram introduzidos no corpo da Constituição inicialmente quatro atos institucionais,
de maneira geral restritivos às liberdades. O último destes deu lugar à: Constituição do Brasil, promulgada pelo Congresso a 24-01-
1967. O desejo do então presidente Humberto Castello Branco com sua promulgação era o de institucionalizar a Revolução, abrindo
caminho para a reconciliação nacional e para a volta da normalidade do processo político. Essa Constituição, denominada
"castellista", sofreu as maiores vicissitudes, sob a forma de atos institucionais e complementares, baixados pelos presidentes Arthur
da Costa e Silva e Ernesto Geisel; e, entre os dois, pela junta militar, que assumiu o poder quando o presidente Costa e Silva,
enfermo, não o pôde exercer. No período de 1964 a 1988, foram editados, no total, dezessete atos institucionais e 105
complementares - espécie de leis quase-constitucionais, acima de todas as outras leis do País;
VII) Constituição da República Federativa do Brasil, ora em vigor, promulgada pela Mesa da Assembléia Nacional Constituinte a
05-10-1988, no bojo de um amplo e participativo processo de transição democrática, e que foi objeto de revisão, em 1994, conforme
o art. 3º das Disposições Transitórias.
4
O que teria sido bastante reforçado na chamada “República Velha” (1889-1930) pela inexistência de partidos nacionais. Os
partidos tinham atuação no plano estritamente estadual e a formação do governo federal se fazia, essencialmente, através da
composição com a oligarquia vitoriosa nos estados.
A dificuldade de se formarem coalizões estritamente partidárias teria sua
explicação na fragilidade crônica dos partidos, que se originaria, por sua vez, na
sobrevivência do poder tradicional (de base regional e local), através de uma relação de
compromisso com o poder público que se fortalecia. A questão aqui é a do descompasso
entre o poder político e o poder social. Um grupo social em declínio é sobre-
representado em função da capacidade de transformar o controle social que exerce sobre
trabalhadores, e sobre seus dependentes e agregados, em votos e em recursos políticos5.

Tal mecanismo, que orientaria as formações das coalizões durante boa parte da
história republicana, permaneceria vivo até hoje e, paradoxalmente, teria se fortalecido
com as medidas de ampliação da cidadania adotadas pela Constituição de 1988.
Conforme veremos ao longo do texto, o sentido geral que orientou a elaboração dessa
carta constitucional foi o de ampliar o demos, através do reconhecimento irrestrito do
direito de votar e da afirmação de uma lógica descentralizadora e participativa. Ainda
assim, diante das desigualdades de todo o tipo, o fisiologismo e o clientelismo
permaneceriam vivos e atuantes, fazendo com que a lógica regional e localista
prevalecesse sobre a lógica partidária na formação das coalizões. Esse problema teria
um fundamento de ordem sociológica e não institucional porque repousaria, em última
análise, na sobrevivência de formas oligárquicas de dominação política em vários
subsistemas políticos e regiões do país.

No entanto, observando-se a situação com mais atenção, fica evidente que a


dimensão sociológica vem se transformando muito mais rapidamente do que a dimensão
institucional. Afinal, com uma população de quase 200 milhões de habitantes, o Brasil
inicia o século XXI com 12 cidades6 contando mais de um milhão de habitantes,
inclusive uma delas, São Paulo, nucleando uma região metropolitana com mais de 19
milhões de habitantes. Com isso, em tese, se reduzem as razões sociológicas para a
manutenção de formas oligárquicas de dominação, baseadas em relações clientelistas e
de dependência pessoal. Ou seja, é indubitável que há uma dimensão sociológica a
explicar a persistência de relações tradicionais, porém não é possível desconsiderar o

5
Já nós anos quarenta, os que faziam esse diagnóstico da sociedade brasileira também previam que esse poder tradicional e
decadente tenderia a se reduzir e a perder totalmente a importância, na medida em que a sociedade brasileira se modernizasse e se
constitucionalizasse (LEAL, )
6
As cidades com mais de 1 milhão de habitantes: São Paulo (11 milhões); Rio de Janeiro (6,1 milhões); Salvador (3,0 milhões);
Fortaleza (2,5 milhões); Belo Horizonte (2,4 milhões); Curitiba (1,8 milhões); Recife (1,5 milhões); Porto Alegre (1,4 milhões);
Belém (1,4 milhões); Goiânia (1,2 milhões); Guarulhos (1,2 milhões); Campinas (1,1 milhões); Brasília – Distrito Federal (2,5
milhões).
peso da dimensão institucional na reprodução do poder do atraso e na adulteração e
restrição do sistema representativo.

É sabido que todas as democracias modernas são, de certo modo e corretamente,


“restritivas do demos” (demosconstraining). Basta notar que a existência das
Constituições e de uma suprema corte, nas democracias modernas, evita que o povo (ou
o demos) aprove leis majoritárias que violem direitos de minorias, garantindo assim os
direitos fundamentais do cidadão. Inclusive, se uma legislatura viola a Constituição, a
suprema corte tem a prerrogativa de declarar suas deliberações nulas.

Nesse sentido, ainda que com grande variação entre eles, os sistemas federativos
são ainda mais restritivos do que os sistemas unitários. Tal dimensão mais restritiva se
manifesta de saída na existência, nos sistemas federativos, de uma Câmara Alta (o
Senado) que traduz o princípio da representação territorial. Princípio que acaba gerando
um situação de sobre e sub-representação das unidades territoriais em escala ampliada.
Basta pensar que no Brasil o voto de um eleitor do estado menos povoado (Roraima)
equivale a cento e quarenta votos do estado mais povoado (São Paulo) nas eleições para
o Senado (STEPAN, 2002: 277). Mas, além desse problema de origem, há que se
considerar também o alcance político do Senado e a relação que ele mantém com a
Câmara dos Deputados, que, em tese, representaria melhor o demos. O Brasil,
genericamente, segue a fórmula de simetria relativa de poder entre as duas Câmaras,
mas em realidade o Senado tem mais poder unilateral de rejeitar um projeto de lei
aprovado na Câmara dos Deputados do que ocorre em qualquer outra democracia
federativa7. A conseqüência disso é que “um pequeno grupo de senadores tem o poder
de colocar na Constituição brasileira muitas coisas que favorecem especialmente seus
estados e bloquear qualquer esforço de reforma constitucional que possa questionar ou
alterar suas prerrogativas constitucionais” (STEPAN, 2002: 278).

Mas há problemas também no que se refere à composição e à representatividade


da própria Câmara dos Deputados, já que o princípio fundamental do demos – de para
cada eleitor um voto na Câmara dos Deputados – acaba sendo diluído pela prevalência
do princípio territorial. Há uma regra que estabelece um número mínimo de oito (8) e
um número máximo de setenta (70) cadeiras para cada estado, independentemente do

7
O Senado tem grande um número de competências exclusivas. Há doze áreas políticas sobre as quais detém todas as prerrogativas.
Por exemplo, nomeia diretamente dois terços dos juízes que analisam despesas federais e ainda tem a prerrogativa de vetar o outro
terço. Alem disso, é de sua exclusiva competência autorizar empréstimos internacionais dos estados, podendo passar por cima numa
decisão de qualquer outra instância, inclusive do Banco Central.
número de eleitores existentes em cada um deles. Para entender a distorção, se o número
de eleitores fosse o critério de atribuição de cadeiras, alguns estados passariam a ter
apenas um representante na Câmara dos Deputados, enquanto que São Paulo, o estado
com maior população e eleitorado, passaria a contar com cerca de cento e quinze (115)
deputados (número bem superior aos setenta atuais).

Nessa perspectiva, com algum exagero, é possível dizer que o conservadorismo


consegue se fazer representar no Congresso, entravando as mudanças que o país
realmente necessita e deseja realizar. O surpreendente é que, a despeito de seu
descompasso com as tendências socioeconômicas do presente, por contarem com mais
votos do que deveriam ter, essas forças do atraso acabam se reproduzindo e
contribuindo para o processo de desmoralização da política que tem afastado a opinião
pública do país da democracia. A constitucionalização de muitos dos problemas sociais,
reforçada pela Carta de 1988, com seu impulso democrático e descentralizador, ainda
que tenha limitado o espaço de ação arbitrária de políticos e governos, em várias
ocasiões, não se mostrou suficiente nem para sustentar o regime democrático nem para
apresentar soluções para as grandes desigualdades regionais que caracterizam e definem
a essência do problema federativo.

Nesse sentido, o “modelo político brasileiro” revela em sua trajetória


republicana – consolidada pela vigência de seis constituições de 1891 até a atualidade –
as dificuldades de se estabilizar a governança constitucional, freqüentemente ameaçada
por crises ou realinhamentos políticos. Num longo processo, no qual se alternaram
vários regimes (oligárquico-liberal [1889-1930]; provisório-autoritário [1930-1937];
ditatorial [1937-1945]; semi-democrático [1946-1964]; ditatorial-militar [1964-1985]; e
democrático [1986-até hoje]), a sociedade brasileira constituiu uma trajetória
institucional com forte presença da lógica regional em detrimento da partidária e
ideológica, e com um sistema representativo que privilegia e sobre-representa os estados
mais atrasados nas eleições legislativas. Paradoxalmente, e até como contrapartida
disso, sua cultura política permanece essencialmente centrada na figura do Presidente da
República, identificado com a perspectiva de modernizar o país e de quem se espera a
condução da nação e o poder de reduzir suas desigualdades.

“Estadualismo” oligárquico e a República sem cidadãos


A República dos Estados Unidos do Brasil inspirou-se no federalismo norte-
americano8 e foi criada, em 1889, a partir das 20 províncias herdadas do sistema
unitário do Império. Passados quase 120 anos conta hoje com 26 estados, o Distrito
Federal e 5565 municípios, distribuídos em cinco regiões (Norte, Nordeste, Centro-
Oeste, Sudeste e Sul). Iniciada sem a participação popular, em 1889, e com um forte
componente oligárquico e elitista (CARVALHO,1987), ao longo do século XX, essa
experiência republicana vivenciou várias rupturas na forma de seu regime político e, em
duas ocasiões, esteve sob o comando de regimes explicitamente ditatoriais (1937-1945 e
1964-1985). Hoje, regida por uma Constituição fortemente descentralizadora e com
grande abertura para o reconhecimento de direitos, se assenta num corpo eleitoral de
cerca de cento e vinte milhões de eleitores (120.000.000). No texto constitucional de
1988, o Brasil é definido como uma República Federativa, com sistema de governo
presidencialista, baseada na separação dos poderes, no bi-cameralismo (com uma
Câmara de Deputados e um Senado), no multipartidarismo, no sistema eleitoral
proporcional de lista aberta e no voto obrigatório..
O Brasil compõe, desde sua constituição como república, em 1889, um
federalismo singular que contraria o modelo teórico com o qual William H. Riker
pretende explicar a origem das federações9. Em primeiro lugar, porque a comunidade
política que havia no momento zero dessa criação era um Estado unitário, sob o
comando de um Imperador, não havendo, portanto, uma “união” de comunidades
políticas previamente soberanas. Além disso, não houve barganha entre os futuros
membros da federação para criá-la; foram os militares, apoiados pelos cafeicultores de
São Paulo, que deram um golpe e declararam o Brasil uma república federativa. Nesse
sentido, não há como dizer que os estados membros se juntaram à federação por
“vontade própria”. Por fim, um estado economicamente poderoso (São Paulo), em
conjunto com um estado mais tradicional (Minas Gerais), conseguiu controlar boa parte

8 No que se refere à opção pelo federalismo, a inspiração norte americana combinou-se com uma grande mobilização das elites
regionais brasileiras contra o unitarismo do Império e a favor da descentralização. Juntamente com outras instituições políticas
norte-americanas (como o sistema presidencialista e o controle de constitucionalidade), o federalismo foi adotado como uma das
bases das instituições políticas brasileiras. Óbvio que essa inspiração inicial não significou mera cópia e, apesar da influência mais
tarde de outras experiências constitucionais, especialmente no reconhecimento dos direitos sociais, o Brasil construiu sua própria
história constitucional ao longo da elaboração de suas sete constituições (uma monárquica e seis republicanas).
9 Em sua formulação, as federações começam a existir quando um conjunto variado de comunidades políticas – cada uma com sua
porção de soberania – vislumbra em sua união a possibilidade de aumentar sua segurança, tamanho e/ou poder de mercado. Para
isso, entram numa “barganha voluntária” na qual abdicam de parcela de sua soberania, nas exata medida do necessário, para atingir
tais metas.
do programa constitucional e do processo de state building. Isso se deu essencialmente
porque se inscreveu na Constituição de 1891 a permissão para que os estados pudessem
cobrar impostos sobre as exportações e negociar, com a aprovação do Senado, acordos
internacionais (STEPAN, 2002).
Beneficiando-se da omissão da Constituição quanto à supremacia da lei federal
sobre a lei estadual, o estado de São Paulo garantia não só às outras unidades os
mesmos direitos de autogestão (só que sem os recursos financeiros e militares para
proteger tais direitos), mas também se legitimava ao aceitar que todas as unidades da
federação teriam o mesmo número de cadeiras no Senado, independemente de sua
população. Daí resultou, inicialmente, um sistema federativo no qual os estados
contavam com muitas prerrogativas. Evidentemente, que os estados mais fortes
contavam com mais prerrogativas. Tal herança constitucional federativa, ainda que
tenha sido contrariada pela centralização ocorrida de 1930 a 1945, permaneceu como
um marco de referência nas constituições que resultaram de processos de processos
democratizantes (a de 1946 e a de 1988), fortalecendo a perspectiva de descentralização
e de participação dos entes subnacionais como sinônimo de exigência democrática.
Evidentemente, nesse longo percurso houve muitos avanços e recuos. Basta
pensar que a experiência republicana no país se iniciou com uma lógica
descentralizadora, mas profundamente excludente. Em realidade, no que se refere à
ampliação dos direitos políticos não há avanço com relação ao Império, trocando-se “a
barreira da renda à participação eleitoral pela manutenção da exigência de um
certificado de alfabetização”. (SANTOS, 2007, p.15) Seguindo, o espírito conservador
do Império que passara a exigir a alfabetização como pré-requisito da participação
eleitoral10, a maioria dos adultos com mais de 21 anos, mesmo com a abolição do
requisito da renda, se manteria distante dos processos eleitorais.
De modo que, ao invés de ampliar a cidadania, o regime republicano a limitava
não só pela exclusão dos analfabetos, mas também pela manutenção do impedimento da
participação das mulheres na política e nas eleições, consagrando assim o preceito
imperial que tratava as mulheres como incapacitadas11. Compreende-se que, durante

10 Com a Lei Saraiva, de 1881, ocorre uma drástica redução do número de eleitores. Dos 1.097.698 eleitores registrados em 1871
se chega a 117.022, em 1886. Essa drástica redução do demo se manteria por toda a Primeira República (1889-1930).
11 Ainda que não houvesse nenhum artigo que, explicitamente, proibisse as mulheres de votarem, e mesmo com o empenho de
alguns políticos mais avançados, acabou prevalecendo a interpretação de um Constitucionalista (João Barbalho), de que se não havia
sido aprovada nenhuma emenda específica tratando do tema, então não havia porque considerar que as mulheres devessem compor
todo o período da Primeira República, não só o corpo eleitoral se reduziu bastante, mas
também o comparecimento às urnas tenha sido muito baixo12. O país se tornava
republicano, mas na forma de um paradoxo, já que constituía uma “república sem
cidadãos”, consolidando assim um problemático processo de oligarquização da vida
política. (LAHUERTA, 2003).
Essa restrição do demo em seus momentos fundadores teria conseqüências
funestas para a ordem republicana que se pretendia implantar. As demandas por
ampliação dos direitos constitucionais e civis vão surgir de todos os lados da sociedade.
A contraposição Brasil real X Brasil legal – que denunciava a falta de sintonia entre as
instituições e a realidade do país13 – vai polarizar as preocupações da intelectualidade e
da elite política, constituindo-se como uma síntese das contradições do período. Não são
apenas os trabalhadores (formados por imigrantes e por descendentes dos ex-escravos),
as camadas médias, os intelectuais, a jovem oficialidade militar, etc., que se colocam
contra o caráter restritivo da República. Também setores das próprias oligarquias, que
não participavam (ou o faziam de modo muito subordinado) da articulação política
hegemônica, paulatinamente, vão se rebelando contra a concentração de recursos em
poucos estados, que dificultava as relações entre as partes constitutivas da federação 14.
Com isso, amplia-se o dissídio de suas regiões mais tradicionais com relação ao bloco
oligárquico hegemônico articulado em torno dos interesses dos cafeicultores de São
Paulo. De modo que é mais correto definir o período de 1889-1930 como de predomínio
de um “estadualismo oligárquico” do que de vigência de um sistema federativo 15. Essa
situação leva à “Revolução de 1930”, um movimento armado que rompe com a ordem
constitucional de 1891.

o rol dos eleitores. O voto seria facultativo e os eleitores seriam os cidadãos maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, sendo
vedado o direito de voto aos mendigos, aos analfabetos, aos praças e aos religiosos sujeitos a voto de obediência.
12 Na média inferior a 4% da população, portanto, bem abaixo dos 10% atingidos durante o Império, em meados do século XIX.
13 De modo que não apenas as concepções consagradas e os comportamentos políticos eram objeto de crítica, mas as próprias
instituições republicanas – identificadas com o artificialismo de uma legalidade sem correspondência no “país real” – seriam
fortemente questionadas, elevando-se assim o pathos de ruptura com a emergência de novos atores que colocavam o tema da
participação e dos direitos no cerne da crise oligárquica.
14 Ou seja, durante as três primeiras décadas do século XX a ordem republicana revelaria seu caráter excludente, expresso na
“insuficiência da letra constitucional para a materialização dos artigos liberais da Carta” (p.20). O acúmulo de insatisfações
sintetiza-se nas revoltas dos estamentos militares, exige a ampliação da participação, a melhoria na representação, o cumprimento da
justiça e a remoção dos chefes políticos oligárquicos dos estados mais fortes, que dominavam o Poder central e impediam que a
federação existisse plenamente.
15 Celina Souza (2005) define o período a partir da idéia de uma “federação isolada”. Já André Roberto Martin (2005) o qualifica a
partir da idéia de “estadualismo oligárquico”.
Centralização, autoritarismo e “cidadania regulada”

A ruptura com a ordem constitucional, comandada por Getúlio Vargas em


outubro de 1930, se faz contra o particularismo da ordem oligárquica e pretende
implantar um poder autoritário e nacional. Nesse sentido, é um divisor de águas na
história do país, principalmente, pelo que vai significar para a construção de seu Estado
nacional e para o reconhecimento dos direitos trabalhistas. Além disso, o movimento de
1930 inaugura um período decisivo para a afirmação de um projeto de desenvolvimento
capitalista autônomo, na medida em que significa o abandono do modelo primário
exportador, além de possibilitar um “ajuste patrimonial interno, destinado a minimizar
as perdas do capital do complexo cafeeiro e a consolidar uma nova classe empresarial
brasileira” (MIRANDA & TAVARES, 1999:329).
Uma das primeiras medidas adotadas pelo governo provisório, nesse sentido, foi
perdoar as dívidas dos estados com a União, inclusive a maior de todas, a do estado de
São Paulo, contraída por força dos subsídios ao café, pacificando, assim, os possíveis
descontentamentos das elites regionais (LOVE, 1993). Em 1932, Vargas aprova uma
reforma eleitoral, que, entre outras medidas, aumentava a representação política dos
estados menos populosos na Câmara dos Deputados. Concebida como forma de
contrabalançar o poder de alguns poucos estados que havia vigorado na chamada 1ª
República (1889-1930), essa sobre-representação dos estados menos populosos
permanece como um dos mecanismos voltados para o amortecimento das
heterogeneidades regionais e como forma de acomodar as assimetrias de poder entre
unidades territoriais que registravam grandes diferenças econômicas.
Na Constituição de 1934, expressiva do contexto de lutas políticas que se segue
à ruptura efetivada pela chamada Revolução de 1930, inicia-se a tendência à
constitucionalização de questões políticas e sócio-econômicas. Nessa linha, a
Constituição expandiu as relações intergovernamentais ao autorizar que o governo
federal concedesse às instâncias subnacionais recursos e assistência técnica. Aos
municípios foram, inclusive, assegurados recursos próprios, não só os diretamente
coletados por eles, mas também os decorrentes de parcela de um imposto estadual. Uma
outra dimensão importante, e que confirma o eixo centralizador do bloco de forças que
estava no comando do governo, é que o Senado Federal foi reduzido a órgão
colaborador da Câmara dos Deputados.
Portanto, ainda que procurando acomodar as elites regionais, para responder à
demanda de unificação e realizar seu projeto centralizador, o novo poder utilizar-se-ia
do corporativismo como política de Estado16 e contribuiria para o fortalecimento
definitivo da figura do presidente da República (o “mito Vargas”) no cenário político. O
projeto que sustenta tal construção tem como um de seus principais elementos
articuladores a aceitação da legitimidade dos direitos sociais sem que isso signifique
também o reconhecimento dos direitos civis e políticos dos trabalhadores17. De modo
que de 1930 a 1945 implanta-se um processo crescente de intervenção estatal tanto na
esfera produtiva quanto na promulgação de uma legislação que franqueia às massas
urbanas, ainda que num nível incipiente, o acesso legítimo à arena dos direitos
trabalhistas18 (a grande maioria da população que se encontra no campo durante esses
anos permanecerá excluída de tais benefícios, submetida a formas tradicionais de mando
e de exploração).

Principalmente após o golpe de 1937, quando Vargas fecha o Congresso


Nacional e as assembléias estaduais, rasga as bandeiras dos Estados e substitui os
governantes eleitos por interventores federais (como símbolo da imposição do poder
central e nacional sobre as oligarquias estaduais), há um duro refreamento das forças
sociais que buscavam maior abertura no plano da participação política, mas,
simultaneamente, realiza-se uma política de construção de um projeto nacional que
procura a neutralização dos interesses regionais para promover a unidade política e
administrativa necessária para a modernização do país. Como decorrência dessas
medidas, os estados, além de perderam receitas para a esfera federal, foram
expropriados pelo governo federal da competência para legislar sobre as relações fiscais
externas e entre os estados. A negação aos governos estaduais do direito de decidir

16 sob vários aspectos, o governo de Getúlio Vargas procurava concentrar e centralizar poder e para isso vai manter as massas
distantes da política, aproximando-se dela, simbolicamente, em suas aparições nos comícios comemorativos do dia do trabalho e
através do reconhecimento da legitimidade das demandas dos trabalhadores urbanos. O que só se cumpriria na exata medida em que
o empregado tivesse sua ocupação regulamentada pelo poder público e contribuísse compulsoriamente com o valor de um dia de
trabalho por ano para a manutenção do sindicato único de sua profissão.
17 Wanderley Guilherme dos Santos vai qualificar essa relação a partir da idéia de “cidadania regulada”, cujas “raízes encontram-se
não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de
estratificação ocupacional é definido por norma legal” (Santos, 1979: 22)
18. Principalmente durante o período conhecido como Estado Novo (1937-1945), “a regulamentação das profissões, a carteira
profissional e o sindicato público estabelecem ... os três parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a cidadania. Os direitos
dos cidadãos e as profissões só existem via regulamentação estatal. O instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado e
a cidadania regulada é a carteira de profissional que se torna, em realidade, mais do que uma evidência trabalhista, uma certidão de
nascimento cívico...” (Santos,1979:76)
sobre um dos mais importantes aspectos de sua vida econômica, qual seja, o da
definição das regras de trocas de mercadorias, possibilitou a Vargas não só a consolidar
o processo de state-building, mas também pavimentar o caminho para a
industrialização19.

A partir dessa experiência centralizadora – amplificada pela propaganda dos


feitos e qualidades pessoais de Getúlio Vargas – o presidencialismo brasileiro adquire
novos atributos e se passa a exigir do presidente da República a condição de condutor
das mudanças sociais e de realizador dos preceitos constitucionais.A expectativa de que
o centro político deve prevalecer sobre as partes se fundamenta numa lógica para a qual
a dimensão carismática – que se nutre da forte personalização do cargo de presidente da
república – torna-se um dos elementos decisivos para o exercício da função. É por isso
que na cultura política do país se espera muito da figura do presidente, para o que não
deixa de contribuir a identificação, ainda existente no senso comum, de Getúlio Vargas
como o “pai dos pobres”.

Capitalismo nacional, ampliação da cidadania e questão regional

O fim do Estado Novo em 1945, paradoxalmente, não significaria o


encerramento do ciclo “varguista”, principalmente porque a Constituição de 1946, ainda
que resultado de um intenso processo de luta pela democracia, manteria as instituições
“estadonovistas”, combinando-as com instituições liberais20. Mas se o ímpeto liberal
não foi capaz de reduzir a importância do governo federal e da figura do presidente da
República, considerados a garantia para atingir a meta do crescimento econômico
rápido, ao menos possibilitou a transferência de recursos para os governos locais em
detrimento dos estados. Nesse sentido, a Constituição de 1946 introduziria o primeiro
mecanismo de transferências intergovernamentais da esfera federal para as municipais,
excluídos os estados (REZENDE, 1976: 238), além de destinar recursos federais para as
regiões economicamente mais pobres. Essa dimensão nos permite compreender não só

19 Ainda assim, os desequilíbrios financeiros entre os estados não só persistiram, mas aumentaram: em 1945, três estados
concentravam mais de 70% das receitas estaduais (MAHAR, 1976, p. 415).
20 Mas foram, em larga medida, os constrangimentos ditados pela conjuntura internacional os responsáveis pelo solapamento da
legitimidade varguista. Fato importante e relevante consistiu também na retirada lenta de apoio da figura-chave do Exército (Góis
Monteiro), quando percebeu os riscos que o regime corria. Quando Vargas afinal se definiu pela entrada no conflito alinhado com a
frente antifascista, o que somente ocorreu após a pressão de manisfestações populares, os segmentos de oposição exploraram a
contradição existente entre o apoio do Brasil às democracias e o regime ditatorial que vigia internamente.
porque na década de 1950 se amplia a preocupação com a região Nordeste, mas também
o motivo que coloca de forma definitiva o tema regional na agenda pública, visto como
decisivo para se desenvolver o país, ampliar a cidadania e combater a pobreza.

Da mesma maneira, se é verdadeiro que os partidos ganham um estatuto político


legítimo (inclusive o Partido Comunista)21, que o parlamento retoma um papel ativo na
condução política do país e que as liberdades fundamentais são asseguradas, não é
possível negligenciar que a estrutura sindical corporativista e o impulso plebiscitário
permanecem em pleno vigor, assim como o carisma de Vargas. Ainda assim, não é
possível desconsiderar a riqueza da experiência política do período compreendido entre
os anos de 1945 e 1964, para o que contribuiu bastante o fato de nos processos eleitorais
se manifestasse não só uma acirrada e crescente competição política, como também um
significativo avanço na participação popular.

Como conseqüência desse caráter dúplice da ordem constitucional, não obstante


a afirmação do tema dos direitos e da ampliação da cidadania se colocar de modo
crescente, durante o período de 1945 a 1964, e se ampliar a preocupação com a questão
regional, permaneceu absolutamente hegemônico o objetivo de se construir uma
coletividade nacional em que os interesses particulares deveriam ser contidos em seus
objetivos egoísticos e maximizadores. De vários modos, durante os anos 1950
desenvolve-se no país, com sede no Rio de Janeiro, a capital da República, uma cultura
pública, centrada no tema do desenvolvimento, marcada por um ideal nacionalista e
fortemente empenhada em conscientizar o povo, para retirá-lo de sua condição de
alienação global (CORBISIER,1956; TOLEDO,1978). Tal cultura política sofre forte
oposição das elites oligárquicas de inspiração liberal, constituindo-se assim no motivo
central da ruptura de 1964. Ruptura que pode ser explicada pelo ódio visceral que vai
opor varguistas (articulados em torno do PTB e apoiados pelos nacionalistas em geral) e
anti-varguistas (entrincheirados na UDN - União Democrática Nacional, partido
formado em 1943 para fazer oposição à centralização do Estado Novo) e que já havia
levado à crise política que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de
1954.

21 A ditadura soçobra em outubro 1945, quando Getúlio Vargas é forçado a renunciar, não sem antes dar vida aos novos agentes da
política democrática, isto é os partidos – PSD (Partido Social Democrático) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) – que tornar-se-
ão o eixo do período histórico conhecido como democracia populista.
A hostilidade política entre os blocos acima citados foi responsável pelo
agravamento das tensões políticas, que se avolumavam no final dos anos cinqüenta,
estreitando dramaticamente a margem de negociação, dada a ausência de
reconhecimento mútuo da legitimidade das aspirações e reivindicações feitas pelos
adversários. Tal situação contribuiria para o advento do golpe militar de 1964.

Capitalismo autoritário, centralização de poder e barganha clientelista

O golpe militar de 31 de março de 1964 desencadeia um processo não apenas


complexo, mas bastante contraditório. Por um lado, ao realizar um movimento de “fuga
para frente”, com a aceleração do processo de acumulação capitalista (Fernandes, 1975),
possibilita uma transformação radical da sociedade brasileira, alterando-a
profundamente em sua demografia e em sua morfologia social22. Por outro, o golpe
militar e a ditadura que lhe seguiu significaram um grande retrocesso histórico nas
tendências de ampliação da cidadania e de formação de uma cultura cívica na sociedade
brasileira que vinham se desenvolvendo desde a década de 1940.

Por vinte e um anos, de 1964 a 1985, o Brasil foi governado pelos militares,
vivenciando não só a experiência de um regime autoritário, mas também um duro
processo de restrição das liberdades, que em alguns momentos adquiriu dimensões
explicitamente ditatoriais e terroristas. Para se legitimar, inicialmente, os militares além
de mobilizar o tradicional discurso anticomunista de combate à subversão,
acrescentaram um outro objetivo a sua cruzada: o de combater o populismo, a corrupção
e a demagogia, identificados com a herança varguista e com as elites regionais dos
estados mais “atrasados” da federação.

No entanto, mesmo rompendo com a ordem democrática e impondo uma


dinâmica autoritária e ditatorial, paradoxalmente, os militares não promulgam
imediatamente uma nova Constituição. Em realidade, o movimento golpista não se
propunha a estabelecer uma ordenação política e social nova, e por isso, inicialmente,
reafirma o estatuto liberal da Carta de 1946 – a dimensão constitucional do regime –,
ainda que o torne inócuo em sua aplicação ao se utilizar dispositivos – os Atos
Institucionais – para intervir na economia e na sociedade com a finalidade de viabilizar

22 Basta pensar que se, em 1964, o Brasil era uma sociedade majoritariamente rural; ao final da ditadura, em 1985, havia se
transformado numa sociedade majoritariamente urbana e metropolitana.
a expansão econômica (WERNECK VIANNA; CARVALHO, ). É explicável, portanto,
que, do ponto de vista estritamente institucional, inicialmente, o governo militar tivesse
a pretensão de ser transitório23 e, segundo as justificativas de seus próceres, se colocasse
como meta restaurar rapidamente a normalidade democrática. Inclusive, é importante
que se diga, mesmo em seus momentos mais repressivos, os governos militares não
efetivaram uma ruptura total com os fundamentos constitucionais da democracia
representativa (ainda que se tenha abolido de imediato as eleições diretas para
Presidência, e posteriormente para os governos estaduais e prefeituras das principais
cidades). Basta notar que foram mantidas as eleições para as casas legislativas e os
respectivos calendários eleitorais (mesmo que com muitas restrições) 24.
A nova Constituição do regime seria promulgada em 1967 e editada, apenas, em
1969, quando foi alterada por uma longa emenda constitucional. A Constituição de
1967-1969 e a reforma tributária de 1966 centralizaram na esfera federal poder político
e tributário, afetando decisivamente o federalismo e suas instituições. Isso não
significou, todavia, a eliminação do poder dos governadores nem dos prefeitos das
principais capitais. Pelo contrário, esses governantes foram os grandes legitimadores do
regime militar e contribuíram para formar as coalizões necessárias à sua sobrevivência
(MEDEIROS, 1986; AMES, 1987). É importante que se diga que, mesmo com a
centralização de recursos financeiros, a reforma tributária de 1966 promoveu o primeiro
sistema de transferência intergovernamental de recursos da esfera federal para as
subnacionais, ao criar os fundos de participação (Fundo de Participação dos Estados e
Fundo de Participação dos Municípios). O critério de distribuição abandonou a
repartição uniforme entre os entes constitutivos, passando a incorporar o objetivo de
maior equalização fiscal pela adoção do critério de população e de renda per capita
(SOUZA, 2005).
Em sua atuação, os governos militares buscaram legitimar-se junto à sociedade
através de realizações econômicas, orientadas por um projeto de “Brasil potência”, que
tinham como um de seus pilares a perspectiva de integração regional e como horizonte

23 A pretendida provisoriedade pode ser notada na designação dos “partidos” que foram criados, com a extinção dos partidos do
regime de 1946, compulsoriamente, em outubro de 1965. Buscando restabelecer um nível mínimo de normalidade institucional, os
militares criaram um sistema bipartidário – através da constituição de dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Ou seja, nesse sistema bipartidário, nenhuma das organizações criadas ostenta o nome
de “partido”. Uma é uma “aliança” e a outra “movimento”, como que a revelar a provisoriedade dessa criação. A despeito dessa
pretensão, esse sistema vigora até 1979, quando através de uma manobra do regime militar para conter o avanço da oposicionista se
cria um novo sistema multipartidário.
24 O que significou que o alistamento eleitoral não foi interrompido e o eleitorado cresceu, entre 1964 e 2000, em cerca de 700%.
maior completar os pré-requisitos necessários ao desenvolvimento de um capitalismo
autônomo no país25, completando assim o processo de substituição de importações. Para
tentar viabilizar esse projeto, num contexto caracterizado pelos militares de “guerra à
subversão”, foi necessário realizar uma concentração demasiada de poder, recursos e
atribuições no governo federal, com forte impacto em toda as relações
intergovernamentais.

Como decorrência desses mecanismos de centralização fiscal, no que se refere às


contas públicas, ocorre uma melhoria da posição financeira dos municípios em
detrimento dos estados (GRAHAM, 1987; SERRA & AFONSO, 1991). Mas o aspecto
mais relevante é que com isso, o regime militar transformava a federação numa falácia,
ao concentrar recursos no centro e adotar a lógica de barganha clentelista como meio
quase exclusivo de construir maiorias parlamentares e de negociar com os estados. Na
prática, se efetivou a ruptura do regime federativo e da própria federação (MELLO,
1976) (ou a explicitação de seu caráter meramente formal diante da vigência de um
Estado unitário) (SOUZA, 2005) em virtude da dependência financeira e política das
entidades subnacionais com relação ao governo central. Dessa forma, até meados da
década de 1970, o Executivo manteria um controle quase absoluto sobre o Poder
Legislativo, em virtude das transferências negociadas com as esferas subnacionais terem
sido utilizadas como mecanismo para o governo militar obter maiorias no Congresso.

Na segunda metade dos anos setenta, quando a possibilidade de legitimação


pelas realizações econômicas diminuiu, ocasionando o crescimento da oposição, o
regime militar utilizou-se de um conjunto de manobras para tentar manter a maioria
parlamentar. Dentre elas contou sempre com a sobre representação dos Estados mais
atrasados e menos populosos, mecanismo que lhe garantiu uma sobrevida através da
distribuição de favores e recursos entre as regiões. Com isso não apenas se corrompia o
princípio da separação dos poderes, mas também se amesquinhava integralmente a

25 A pretensão do grupo hegemônico de que a melhor maneira de colocar o Brasil no cenário internacional se daria através de uma
vigorosa retomada da substituição de importações, principalmente em matérias primas básicas e bens de capital, seria contraditada
pela dinâmica global do processo de acumulação. Para atingir a meta fundamental do II PND, proposto pelo governo Geisel, foram
realizados investimentos substantivos na produção de metais não ferrosos, ferro e aço, papel e celulose, produtos químicos e álcool
combustível. O Governo também investiu diretamente em energia elétrica, no sistema de transporte e nas comunicações. Além
disso, deu incentivos fiscais, creditícios e tarifários para a implementação de projetos de substituição de importações. A maioria
desses projetos era de grande porte, longo prazo de maturação e taxa de retorno lenta. Sem dúvida teriam impacto sobre os recursos
e a dinâmica interna à economia. No entanto, sua implantação pressionava as contas cambiais e levaria ao aumento acelerado da
dívida externa.
figura dos representantes parlamentares, transformados assim em “despachantes de
pequenas causas”26.

Ampliação da cidadania, descentralização e fortalecimento do federalismo

Em janeiro de 1985, o regime militar encontra seu término, através da eleição


indireta de um presidente civil por um Colégio Eleitoral. Com o regime caiu também a
última barreira à participação eleitoral com a incorporação dos analfabetos ao sistema
político, ainda que os mesmos não possam ser candidatos a cargos representativos. E se
ampliou ainda mais o corpo eleitoral, com a adoção do voto facultativo para maiores de
16 anos. O significado desses avanços pode ser avaliado com uma simples comparação:
em 1900, o eleitorado correspondia a menos de 1% da população adulta; em 1945, o
eleitorado abrangia 16,2% da população adulta; e em 2006, chegava a 69% dos
brasileiros.
Mas, para tornar esse avanço mais significativo, simultaneamente, ocorre um
crescimento expressivo das organizações civis, que se tornam um importante elemento
da competição democrática. De tal modo se deu a ampliação da participação política
que aqueles que nasceram em 1985 (ano de encerramento da ditadura militar instalada
em 1964) chegam aos 20 anos sem referências acerca desse período nefasto da história
do país. Para eles a democracia é um dado quase natural e não os preocupa a
possibilidade de qualquer retrocesso autoritário, ainda que se aprofundem os motivos de
descontentamento e de decepção com o desempenho das instituições (como, aliás,
ocorre em todas as democracias).
Mesmo com os avanços no plano dos direitos ocorridos depois da Constituição
de 1988 e reconhecendo que o sentimento de um afazer incompleto é consubstancial à
democracia, a insatisfação cresce porque as leis ainda prosseguem sendo aplicadas de
modo diferente, de acordo com a latitude geográfica ou social do cidadão. Por isso, com
maior ou menor justeza, ampliam-se as demandas para que a Constituição se materialize
através da universalização efetiva dos direitos nela consagrados. É inadmissível, por
exemplo, que os direitos de ir e vir, de opinião e de organização não tenham o mesmo

26 Na tentativa de manter o controle do Congresso, um outro importante mecanismo levado a cabo pelos militares foi a criação de
novos estados. Em 1978, o regime militar criou o estado de Mato Grosso. E em 1982, o estado de Rondônia. Ambos em regiões
pouco habitadas e pouco desenvolvidas, respectivamente, no Centro Oeste e no Norte. Como resultado desses expedientes, criaram-
se novas vagas de deputados federais e senadores em regiões onde o regime militar tinha controle, provocando um fenômeno de
sobre-representação desses estados com relação aos estados mais desenvolvidos e povoados.
valor em todas as regiões do país. Da mesma forma, não é aceitável que o direito aos
serviços básicos do Estado – saúde, educação e segurança – continue sendo distribuído
de forma totalmente assimétrica entre os que estão no topo e os que estão na base da
pirâmide social. Ou seja, um dos traços que marcam o modelo político brasileiro é que
as instituições – a começar pela mais importante, a Constituição – continuam
significando coisas muito distintas para os brasileiros de diferentes classes sociais e
regiões. A universalização eleitoral ainda não encontrou tradução na universalização da
democratização constitucional, o que não significa que, com avanços e retrocessos, a
longa marcha para a democratização não tenha dado frutos.
Para entender esse aparente descompasso entre as instituições e a sociedade
brasileiras é necessário recuperar a lógica que presidiu o processo de transição política à
democracia. Impossibilitada de derrubar a ditadura militar num confronto direto, a
oposição apostou numa estratégia política voltada para o isolamento e a derrota do
regime militar, com base na crítica ao autoritarismo e no fortalecimento da sociedade
civil (Lahuerta, 2001). Tal estratégia se nutria da demanda de liberdade que a própria
sociedade, modernizada pelo regime militar, passava a manifestar. Dentre as bandeiras
que vão sintetizar a luta pela democracia e pela liberdade estão a da descentralização e a
da “restauração” da federação27. Compreende-se que assim fosse, pois durante todo o
período ditatorial o poder político ficara concentrado no Executivo federal sob o
comando militar. Compreende-se também que a Constituição de 1988 tenha ficado
marcada por uma lógica fortemente descentralizadora.
O problema é que a Assembléia Constituinte (1986-1988) se compôs a partir das
bases representativas estabelecidas ainda durante o governo militar. De modo que os
estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste, que representavam 40% da população,
teriam 52% dos votos da Assembléia Constituinte. Essa correlação de forças nos
permite compreender porque seria mantida a regra decisória, para a qual todo estado, a
despeito de seu tamanho, contaria com 3 senadores. Do mesmo modo, pode-se entender
a manutenção de um mínimo de oito deputados por estado. O resultado é que, como
conseqüência dessa correlação de forças, no processo constituinte, foi possível a criação
de mais três estados no norte, nordeste e centro-oeste: Tocantins, Amapá e Roraima.

27 Ao invés de uma comissão de notáveis para propor uma primeira versão da Constituição, seriam constituídas 24 subcomissões, a
partir das quais seriam constituídas comissões, que se sintetizariam em uma comissão de sistematização com 97 parlamentares, e
sessões plenárias com duas rodadas de votações nominais. Outra inovação foi a permissão para o recebimento de propostas de fora
do Congresso, caso elas contassem com a assinatura de 30 mil eleitores, e o envio de sugestões pelo correio
Basta observar que nas eleições de 1990, já com os representantes desses novos estados,
o bloco passaria a controlar 74% das cadeiras do Senado.
Tal situação se agravou pelo fato de os interesses do centro (ou seja, da União)
não terem sido representados com força na Assembléia Constituinte. Para o que
contribuiu o papel exercido pelos governadores na mobilização da sociedade civil para
as grandes manifestações oposicionistas de 1984 e 1985. O que resulta disso é a
compreensão de que quanto mais poder se conferisse aos estados e municípios, mais
democrático seria o Brasil. Com isso, a Constituição estabeleceria a transferência de
significativo volume da receita tributária federal total do centro para estados e
municípios28.
Nesse aspecto particular, o fato de a elaboração constituinte ter ocorrido ainda
como parte de um processo de transição democrática em curso singulariza a
Constituição de 1988 na história do país e nos permite compreender as duas dimensões
que marcam sua estrutura: de um lado, a lógica conciliadora que a orienta e que
procurou acomodar a enorme gama de interesses que emergiram com a modernização
autoritária; de outro, a tendência a constitucionalizar29 todas as questões consideradas
importantes30, que a tornou a mais detalhada de todas as constituições brasileiras 31. Nos
permite compreender também porque ela continha tantos dispositivos que requereriam
regulamentação posterior, seja por leis complementares seja por leis ordinárias.
Como resultado, o processo de redemocratização no Brasil gerou uma
Constituição que regula não apenas princípios, regras e direitos – individuais, coletivos
e sociais –, mas também um expressivo leque de políticas públicas. E que, atendendo

28 Nos anos 1990, sob os auspícios do “Consenso de Washington”, que estabeleceu os marcos da agenda pública da década no
plano internacional, juntamente com as recomendações de ajuste fiscal e de diminuição do tamanho de Estado, estabeleceu-se um
outro consenso genérico: a idéia de que a descentralização é útil não apenas para a economia, mas também para a política dos países
em processo de democratização. Tal juízo decorreria de um simples fato: a descentralização aproxima o governo do povo.
29 O menosprezo do regime militar pelos dispositivos e constrangimentos constitucionais e as incertezas decorrentes das mudanças
de regime, combinados com as graves carências sociais e as desigualdades de todos os tipos – inclusive as regionais –, explicam em
muito a tendência de constitucionalizar.
30 A questão sobre a divisão “ótima” entre o que deve ou não ser constitucionalizado é matéria de amplo debate, principalmente
entre juristas e economistas da área fiscal. O debate é importante porque envolve a decisão sobre que matérias devem ser objeto de
quorum qualificado ou de maiorias expressivas, que matérias ficam excluídas do processo político (as cláusulas pétreas das
constituições) e quais as que ficam submetidas às decisões majoritárias, ou seja, aquelas que devem ser objeto de leis ordinárias.
Além do mais, o tema da constitucionalização remete também à capacidade do governo de implementar os dispositivos
constitucionais e como proceder quando as circunstâncias mudam.
31 Ao ser aprovada, continha 245 artigos e mais 70 no capítulo sobre as Disposições Constitucionais Transitórias. Com as emendas
constitucionais posteriores, o texto constitucional foi expandido para 250 artigos no corpo constitucional e para 94 nas Disposições
Constitucionais Transitórias.
demandas que vinham da sociedade, contrastou com as constituições anteriores e
ampliou de modo significativo a provisão de recursos para as esferas subnacionais. Ela
também foi inovadora ao expandir os controles institucionais e societais sobre os três
níveis de governo, aumentando as competências dos poderes Legislativo e Judiciário, e
reconhecendo os movimentos sociais e os organismos não-governamentais como atores
legítimos de controle dos governos. Por fim, inovou ao universalizar serviços sociais –
em particular a saúde pública – antes restritos aos trabalhadores vinculados ao mercado
formal, tendo como princípios diretivos a descentralização e a participação dos usuários.
Por todas essas razões, “os constituintes tiveram vários incentivos para desenhar uma
federação em que o poder governamental foi descentralizado e em que vários centros de
poder, embora assimétricos, tornaram-se legitimados para tomar parte do processo
decisório” (SOUZA, 2005: 110). A um ponto esse impulso chegou que os municípios,
juntamente com os estados, foram transformados em partes integrantes da federação,
adquirindo a condição de ente federativo. Com isso se reiterou e aprofundou uma longa
tradição de autonomia municipal com pouco controle dos estados sobre as questões
locais.
No entanto, é importante que se diga, a ênfase descentralizadora do processo
constituinte brasileiro não engendrou, entre os entes federados, nem uma efetiva
autonomia política, que reforçaria a participação e a cultura cívica, nem tampouco uma
lógica cooperativa. Basta observar que a maioria das políticas públicas, mesmo quando
implementadas no âmbito local, permanecem funcionando a base de impulsos federais
que se impõem às instâncias subnacionais e dependem de aprovação pelo Congresso
Nacional. O que significa dizer que poucas competências constitucionais exclusivas
foram alocadas de fato nos estados e municípios32. Por outro lado, estados e municípios
possuem uma considerável autonomia administrativa, sendo responsáveis pela
implementação de muitas das políticas aprovadas na esfera federal. Além disso, em
particular os municípios, contam com parcelas expressivas dos recursos públicos, bem
superiores àquelas recebidas por municípios de outros países em desenvolvimento.

32 Isso também ocorre em outros países em desenvolvimento, como o México e a África do Sul.
Constitucionalização, competências e paradoxos do federalismo: para além da
polarização centralização X descentralização

É da tradição constitucional brasileira o detalhamento das competências que


cabem a cada um dos três níveis de governo. Ainda assim, a Constituição de 1988
representa uma inflexão pelo nível de detalhamento que contempla. Na engenharia
constitucional da carta de 1988, todas as unidades constitutivas da federação – União,
estados e municípios – possuem poderes e competências iguais. Apesar disso e não
obstante o detalhamento das regras acerca das competências, recursos e políticas
públicas das entidades subnacionais, na prática resta-lhes pouca margem de manobra
para iniciativas específicas. A União detém o maior e o mais importante leque de
competências exclusivas, e ainda que a Constituição preveja que a competência residual
cabe dos estados, tendo em conta o alto nível de detalhamento presente no texto
constitucional, torna-se muito difícil o exercício dessa competência residual.
Compreende-se, a partir dessa circunstância, porque, ainda que todos os estados
tenham constituições próprias e as regras constitucionais federais estabeleçam apenas
que essas constituições deveriam “obedecer aos princípios” da Constituição federal, a
maioria das constituições estaduais seja uma mera repetição dos mandamentos federais.
Compreende-se também porque as raras tentativas de se criar regras, não explicitamente
especificadas pela Constituição federal, tenham sido declaradas inconstitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal (STF). No mesmo sentido, o STF decide sistematicamente
que as constituições e as leis estaduais devem refletir os dispositivos federais, impondo
assim uma hierarquia nas normas constitucionais e legais que não está prevista pela
Constituição33.
Num certo sentido, porém, essa baixa capacidade legislativa dos estados é
compensada pela prerrogativa de coletar o maior imposto em termos de volume de
arrecadação, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços
de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação). Essa prerrogativa
constitucional lhes garante uma massa de recursos considerável, ainda que sua
participação na receita pública total tenha declinado nos últimos anos, e lhes permite
gozar de uma efetiva autonomia administrativa. Ainda assim, as diferenças econômicas
entre as regiões fazem com que as capacidades decisória, financeira e administrativa dos

33 De tal maneira isso ocorre que se cumpre a máxima jurídica de que todo direito relevante é um Direito federal (WERNECK
VIANNA, 1999), colocando os estados na condição estrita de gestores desse Direito federal.
estados sejam muito desiguais. Problema que se torna mais dramático por não constar
do texto constitucional nenhuma regulação das relações nem entre a União e os estados,
nem entre os próprios estados34.
No que se refere aos municípios, a Constituição de 1988, ao elevá-los à condição
de entes federativos, reconheceu e regulamentou sua autonomia, inclusive no que se
refere aos recursos. No mesmo sentido, estabeleceu que os municípios passavam a ser
regidos por leis orgânicas próprias, elaboradas por seus respectivos legislativos. No
entanto, a condição de ente federativo não se traduziria na efetiva capacidade de os
governos locais se mostrarem plenamente autônomos.
Mas seja como for, nos marcos dessas normas constitucionais, a partir de
meados dos anos 1990, os governos locais vão se tornar os principais provedores dos
serviços de saúde e de educação fundamental, ainda que atuando a partir de regras e de
recursos federais35. De maneira geral, a adesão dos municípios a essa política de
transferência tem sido avaliada positivamente, em especial no que se refere à saúde.
Resultado de uma estratégia concebida como um sistema complexo de relações entre
níveis de governo que combina incentivos e sanções, essa transferência na
responsabilidade de implementação de políticas públicas tem reduzido os conflitos entre
os governos locais na disputa por recursos federais. Notar que se entre estados e
grandes municípios as parcerias e atuações conjuntas ainda são raras, entre os
municípios os inúmeros consórcios, principalmente nas áreas de saúde, proteção
ambiental e desenvolvimento econômico, vêm se dinamizando as relações. Por outro
lado, como as relações de transferência envolvem freqüentemente a União e os
municípios, observa-se um enfraquecimento da presença dos governos estaduais nesses
arranjos.
Quanto às competências concorrentes, os constituintes de 1988 adotaram o
princípio da co-responsabilidade dos três níveis de governo na provisão da maioria dos

34 Diferentemente de federações como Austrália, Bélgica, Alemanha, EUA, México e África do Sul, não existem conselhos
intergovernamentais envolvendo os estados. As exceções são o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que reúne os
secretários das finanças dos estados mas que não é previsto na Constituição, e a participação de governadores de estados
economicamente menos desenvolvidos em conselhos deliberativos de agências federais de desenvolvimento regional. Alguns
programas federais são desenhados para contar com a participação de representantes dos estados, mas tais estruturas só se
materializam por iniciativa do governo federal e quando estão envolvidas transferências de recursos federais.
35 É interessante notar que a municipalização não tem ficado restrita aos governos como provedores de políticas sociais, mas tem
envolvido também às comunidades locais. É exigência de muitos programas federais e/ou financiados com recursos de agências
multilaterais a constituição de conselhos comunitários para que ocorra o repasse de recursos. A Constituição de 1988 abriu o
caminho para essa participação e para a municipalização por ter incorporado o princípio – que se aplica à maioria das políticas
sociais – de que elas deveriam ser descentralizadas e participativas.
serviços públicos, em especial dos sociais, gerando-se com isso muitas celeumas entre
governantes acerca de quem seria o responsável por uma política ou um serviço. A
situação acabou por contrariar, nesse aspecto, as próprias intenções dos constituintes, já
que eles, ao optarem por uma divisão compartilhada de trabalho entre os entes
federativos compartilhada, procuravam orientar a criação de um modelo institucional no
qual deveria sobressair um caráter mais cooperativo do que dual ou competitivo nas
relações entre eles. No entanto, esse objetivo – de consolidar um federalismo
cooperativo – se revelou de difícil consecução, essencialmente, por duas razões: 1) pela
diferença de capacidade dos governos subnacionais implementarem políticas públicas,
dadas as enormes desigualdades financeiras, técnicas e de gestão que existem entre eles;
2) pela ausência de mecanismos constitucionais ou institucionais que estimulem a
cooperação, o que contribuiu para gerar uma lógica cada vez mais competitiva entre os
entes federativos, que se expressa principalmente na chamada “guerra fiscal”.
Há grande controvérsia acerca das conseqüências desse processo de divisão do
poder entre as várias esferas de governo. Essencialmente, duas posições polarizaram
esse debate: uma corrente, mais marcada pelo viés jurídico, considerou que tal divisão
de poder, ao final, favorece a União devido a sua atuação decisiva na definição de
políticas, à carência de recursos financeiros de muitos estados e ao seu grande poder de
legislar, que lhe permite dar uniformidade aos governos e às políticas estaduais. A outra
corrente sustenta que a divisão de poder favorece o governo local que vem expandindo
sua autonomia ao longo da história36. Seja como nos coloquemos na controvérsia, o fato
é que nas duas abordagens extremas prevalece uma compreensão centrada não na
cooperação, mas sim na competição entre as várias esferas de governo.
O que não significa que relações cooperativas não possam ocorrer, mas apenas
que quando isso acontece, em geral, elas dependem excessivamente das iniciativas
federais. É certo que os governos estaduais partilham recursos federais e municípios

36 Essa interpretação, todavia, não encontra fundamentação na teoria do federalismo, que geralmente considera apenas as esferas
federal e estadual de governo. Assim, a relativa importância financeira do município brasileiro e seu papel de principal provedor de
importantes políticas sociais não é matéria propriamente concernente à teoria do federalismo e sim dos conceitos de
descentralização e de relações intergovernamentais. Dado que a teoria do federalismo não incorpora a situação de espaços
territoriais que possuem garantias constitucionais próprias, inclusive tributárias, como é o caso dos municípios brasileiros, os
conceitos de relações intergovernamentais e descentralização-centralização seriam os mais apropriados para analisar situações como
a brasileira, tornando-se de crucial importância para o melhor entendimento de como o federalismo atua na prática. O uso desses
dois conceitos pode iluminar a análise sobre a distribuição de poder territorial em países como o Brasil, onde os municípios
assumem papel de destaque, não apenas pela existência de políticas descentralizadas, mas pelo seu relativo descolamento da
jurisdição dos estados.
partilham parcelas de impostos estaduais; do mesmo modo há “várias políticas sociais,
particularmente saúde e educação fundamental, que contam com diretrizes e recursos
federais, mas são implementadas principalmente pelos municípios” (SOUZA, 2005:
113). Ainda assim, em inúmeras outras áreas de atuação, contrariando o espírito do
texto constitucional, as relações entre níveis de governo, de fato, permanecem muito
competitivas, caracterizadas por elevado nível de conflito e com poucos canais
institucionais de intermediação de interesses e de negociação de conflitos. Nessas
situações, no limite, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF), por sua competência no
controle de constitucionalidade e através de ações diretas de inconstitucionalidade
(ADINs), mediar os conflitos entre as esferas de governo37.

Portanto, a despeito das intenções dos constituintes de implantarem um


federalismo democrático não há nenhum dispositivo constitucional que regule a
cooperação entre a União e os estados, estabelecendo como deveriam se dar as relações
entre os níveis de governo, no sentido de discipliná-las, ou pelo menos prevendo algum
tipo de consulta mútua38. Inclusive, ainda que Constituição de 1988 a tenha aberto a
novos atores (parlamentares federais, Presidente da República, membros do STF e dos
tribunais superiores, Procurador-Geral da República e cidadãos, estes com a assinatura
de pelo menos 1% do eleitorado distribuído por pelo menos cinco estados), permanece
sendo um atributo exclusivo da União a proposição de legislação acerca de um conjunto
de itens – entre os quais se encontram itens concorrentes entre os três níveis de governo,
como energia elétrica, trânsito, transporte, mineração e educação.

Ou seja, da mesma forma que pretendeu restaurar a federação com base numa
lógica descentralizadora, a Constituição de 1988 reforçou o poder institucional do
presidente da república, na medida em que assegurou à União, a prerrogativa exclusiva
de iniciar legislação nas áreas de política mais importantes. Ou seja, o presidente, como

37 A lista de instituições que podem propor ADINs foi consideravelmente ampliada pela Constituição de 1988: Presidente da
República; mesas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e das assembléias legislativas; governadores; Procurador-Geral da
República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional e
confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Os governadores são os mais ativos proponentes de ADINs, mas
grande parte das ações ocorreu em 1990, após a promulgação das constituições estaduais.
Paradoxalmente, essas ações não objetivavam defender a autonomia dos estados frente à legislação federal, mas sim pedir o
reconhecimento judicial da inconstitucionalidade de decisões tomadas pelas assembléias constituintes estaduais
.
38 O parágrafo único do artigo 23 da Constituição estabelece que “lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União
e os Estados, Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”
(BRASIL, 1988). No entanto, tal lei, até agora, não foi proposta pelo poder Executivo ao Congresso Nacional e nada indica que
esteja na agenda pública.
chefe do Poder Executivo Federal, controla a agenda política e legislativa. A tradução
desse dispositivo legal significa simplesmente que o presidente se move em primeiro
lugar. Pode, portanto, fazer suas propostas antecipando as reações dos demais atores39.
Essas prerrogativas do chefe do poder executivo – a despeito das intenções
descentralizadoras dos deputados constituintes – vão possibilitar a ampliação do papel
da União, em detrimento principalmente dos estados. É por isso que durante os anos
1990 foi possível se operar na política prática um complexo processo de recentralização
de recursos e atribuições no âmbito da União, que teve como uma de suas principais
conseqüências o aprofundamento da subordinação estrutural do Poder Legislativo ao
Executivo Federal, com a utilização da barganha política em larga escala.
Sinteticamente, a lógica que vigora entre os dois poderes tem como suposto que para
influenciar a política pública é preciso estar alinhado com o presidente. Assim, restam
aos parlamentares, basicamente, duas alternativas: fazer parte da coalizão presidencial
na legislatura em curso, ou cerrar fileiras com a oposição esperando chegar à
Presidência no próximo termo (LIMONGI, 2006).
Diante do exposto, pode-se afirmar que a lógica que regeu a distribuição de
competências entre os entes constitutivos da federação, durante o processo constituinte,
mostrou-se no mínimo paradoxal. Por um lado, os constituintes decidiram reduzir os
recursos financeiros federais face às demandas descentralizadoras dos outros dois níveis
de governo, situação que foi parcialmente revertida ao longo dos últimos anos. Por
outro, ampliaram as competências legislativas e a jurisdição do governo federal, ao
mesmo tempo em que aumentaram o leque das competências concorrentes,
estabelecendo assim uma dinâmica de conflitos e trocas de acusações entre os entes
federativos que se arrastaria durante a década de 1990.

39 Há que se lembrar ainda do instrumento mais poderoso – mais poderoso porque altera unilateralmente o status quo – com que
conta o presidente à sua disposição: o poder de decreto, a prerrogativa de editar medidas provisórias. Tal instrumento, porém, não
pode ser usado contra a maioria. A passagem de uma medida provisória a lei depende de aprovação legislativa, mas não há como a
minoria impedir que o presidente edite uma medida provisória.
Ordem constitucional, desencantamento com a democracia e dilemas de
coordenação federativa40

Desde a promulgação da Constituição de 1988, sua reforma esteve na agenda de


vários organismos públicos, privados e multilaterais, inclusive os governos, tornando-a
a mais emendada Constituição brasileira41. De certo modo, é compreensível que assim
tenha ocorrido. Conforme mostramos ao longo do texto, os constituintes, motivados por
um amplo movimento de massas, concentraram seus esforços na criação de regras
capazes de legitimar o novo regime democrático, através da ampliação do sufrágio, da
descentralização de recursos e competências, e do reconhecimento amplo de direitos.
Com isso constitucionalizaram importantes dimensões da vida social e política, com o
detalhe que não deram a devida atenção às transformações que estavam ocorrendo no
plano da sociedade e da economia internacionais. De certo modo, as emendas à
Constituição, aprovadas a partir de meados dos anos 1990, buscaram adaptar o país a
questões que não estavam na agenda nem dos constituintes nem da transição
democrática, tais como a globalização e o ajuste fiscal.
Com isso, também as regras relativas ao federalismo sofreram alterações em
decorrência da necessidade de manter a estabilidade monetária, a abertura da economia
e o controle das contas públicas. Tais mudanças colocaram limitações à liberdade das
instâncias subnacionais aplicarem recursos próprios, como resultado da política de
ajuste fiscal; vincularam parcela das receitas subnacionais à aplicação nos serviços de
saúde e educação fundamental e reduziram os recursos federais sem vinculações
transferidos para estados e municípios. No essencial, houve uma expressiva redução dos
recursos à disposição dos entes subnacionais em relação à esfera federal.
Mas, seja como for, é evidente que a Constituição de 1988, ao buscar promover
um maior equilíbrio entre seus entes constitutivos, pretendia fortalecer a federação e o
regime democrático. Ainda assim, a ordem constitucional permanece sob tensão. De um

40 O problema da coordenação federativa ou intergovernamental diz respeito às formas de integração, compartilhamento e decisão
conjunta presentes nas federações e ganhou grande importância com a complexificação das relações intergovernamentais em todo o
mundo. Nesse aspecto, nos impõe a urgência de ir além da tradicional polarização entre centralização e descentralização. Para um
balanço desse problema nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1002) e Luis Inácio Lula da Silva (2003- ), ver
Abrucio (2005).
41 A Constituição de 1988 conta hoje com 42 emendas, mais seis de revisão, estas aprovadas por maioria simples porque realizadas
em 1994 durante o período constitucionalmente previsto para sua revisão. Embora o número de votos requerido para a aprovação de
emendas seja baixo em comparação com outros países (três quintos), exigem-se votações nominais em dois turnos.
lado, por estar subordinada a demandas macro-econômicas que exigem, entre outras
medidas, controle fiscal e superávits primários, ao mesmo tempo em que cresce a
demanda federativa por maior igualdade regional. De outro pressionada pelo alto grau
de constitucionalização que se encontra em clara contradição com a urgência imposta
pela nova agenda macro-econômica e pela ampliação das demandas por direitos. Está
contradição está na base do desencantamento com a democracia e dos processos de
desagregação da sociabilidade que marcam o Brasil atual.
A necessidade de compatibilizar esse conjunto de demandas tão diversificado
obrigou o governo federal durante os últimos doze anos a realizar um conjunto de
iniciativas com a finalidade de ir além da polarização entre descentralização X
descentralização, impondo-lhe a urgência de estabelecer mecanismos de coordenação
federativa. Justamente por isso, ao longo dos anos 1990, em especial depois da vitória
de Fernando Henrique Cardoso nas eleições presidenciais de 1994, ocorreria um
processo de concentração de recursos no centro, não apenas em virtude das
prerrogativas constitucionais dadas ao presidente da República, já apontados
anteriormente, mas também em virtude do sucesso do Plano Real, implementado por
Cardoso em julho de 1994, quando ainda era Ministro da Fazenda, e que garantiria que
a inflação permanecesse em menos de 10% ao ano a partir de 1996. Com isso, haveria
uma redução do poder dos estados, já que seus bancos estaduais não poderiam continuar
rolando suas dívidas através da utilização de mecanismos inflacionários 42. E o centro (a
União) adquiria novamente um papel de estabilizador das contas estaduais.
De modo que o governo de Fernando Henrique Cardoso, até pelas pressões
internacionais de ajuste fiscal que teve que enfrentar, seria responsável por algumas
transformações no padrão federativo projetado durante o processo de transição
democrática. Nessa linha, aumentou o controle social sobre os processos de
descentralização; adotou-se políticas de coordenação intergovernamental nas políticas
de saúde e de educação; foram criados programas nacionais de transferência direta de
renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, houve a
estruturação de programas de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das
políticas, fornecendo um feedback essencial à União para coordenar a descentralização.
Mas o principal êxito do governo de Cardoso efetivou-se através da redução do repasse
dos custos financeiros das dívidas dos estados com a União, estabelecendo fortes limites

42 Em 1995, a totalidade dos bancos estaduais se aproximava da falência. O que gerou a intervenção do Banco Central, com o
governo federal se tornando o liquidante em última instância.
à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos (ABRUCIO, 2005). Esforço que
se completou com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, e
de um conjunto de outras leis ordinárias federais, que tornaram quase impossível a
contratação de novos empréstimos, em especial pelos governos subnacionais43. Dessa
forma, contrariando a intenção dos constituintes, a concentração de recursos na União
retornou a antigos patamares, assim como a concentração de atividades econômicas em
algumas regiões e espaços territoriais (ALMEIDA, 2005).
O governo de Luis Inácio Lula da Silva, eleito em 2002, também tomaria
importantes medidas institucionais buscando ampliar a coordenação federativa: 1)
fortaleceu a Secretaria de Assuntos Federativos, que nunca teve o devido poder nos
governos de Cardoso; 2) criou o Ministério das Cidades, unificando todas as políticas
urbanas em uma só instituição; 3) reestruturou a política regional, com a criação do
Ministério da Integração Nacional. Além disso, duas ações legislativas também
contribuíram para o seu esforço de coordenação federativa. A primeira diz respeito à
continuação da reforma da previdência, com foco no setor público, e que teve impacto
favorável à modernização dos governos estaduais. A outra, revelando a preocupação
com a coordenação das relações intergovernamentais, procurou regulamentar os
consórcios públicos, exatamente para reduzir os efeitos da falta de controle sobre a
excessiva autonomia obtida pelos municípios desde a Constituição de 1988.
Ainda assim, é possível perceber a permanência de uma longa lista de problemas
que resistem à coordenação federativa. Entre os principais, destacam-se: 1) a
persistência de grandes desigualdades entre as regiões e a dificuldade das medidas
constitucionais que buscaram diminuí-las mudarem a situação. Diga-se de passagem,
que tais desigualdades históricas – que exigem negociação e tempo para serem alteradas
– acabaram reforçadas pela abertura da economia brasileira, aumentando a distância
econômica entre os estados e contribuindo para ampliar a violência e a desagregação
social; 2) a tendência a se dar um tratamento uniforme às esferas subnacionais, em
particular aos estados, no que se refere à redução relativa de suas receitas, ao mesmo
tempo em que se estabelecem relações diretas entre o governo federal e os municípios
decorrentes da descentralização das políticas sociais. Com isso debilitou-se a

43 É importante notar que uma das maiores fontes de financiamento dos governos estaduais para a realização de investimentos, os
organismos multilaterais, não estão sujeitos aos limites da LRF. Como se sabe, a dívida pública tem sido um sério constrangimento
não só para as contas públicas mas para o próprio crescimento econômico do país. Antes dos ajustes promovidos no final dos anos
1990, os estados eram os maiores devedores, representando 42% da dívida pública total. Essa dívida foi federalizada, embora os
estados aloquem cerca de 13% da sua receita líquida real para seu pagamento.
capacidade de ação dos governos estaduais, dificultando novos investimentos em
infraestrutura e nas áreas sociais; 3) a precariedade dos mecanismos de coordenação e
cooperação intergovernamentais, tanto vertical como horizontalmente, que não
conseguem coibir a competição entre os entes federados; 4) a necessidade de mudar o
sistema tributário, a fim de neutralizar os efeitos perversos da guerra fiscal; 5) a
urgência de fortalecer os mecanismos nacionais de avaliação de políticas públicas; 6) a
necessidade de desenvolver capacidades administrativas nos estados e municípios, e o
estabelecimento de redes e interconexões de longo prazo entre as burocracias federal,
estaduais e municipais, visando melhorar o planejamento das políticas públicas; 7) a
inexistência de uma ordem regulatória e coordenadora das principais políticas urbanas,
com destaque para o saneamento, a segurança pública, a habitação e o transporte; e, por
fim, 8) o fortalecimento dos fóruns federativos de discussão e negociação entre os níveis
de governo.
No entanto, é importante ter em conta que a solução para os principais
problemas que afetam o “modelo político brasileiro” não depende apenas de um esforço
de coordenação federativa, mas principalmente do enfrentamento de conflitos políticos
e sociais mais amplos, como o das desigualdades regionais, o da explosão da violência
e, especialmente, o da “desconstitucionalização”. Em especial nesse último tema que se
evidencia pela convivência “entre a vigência e a eficácia da lei e da ordem, e a realidade
de uma justiça lotérica, na qual a punição é aleatória, a impunidade uma possibilidade
que depende do lugar social e geográfico de quem comete algum ilícito e na qual se dá
uma sistemática exploração dos indivíduos por parte de grupos organizados,
constituindo um ‘modelo segmentado de máfias competitivas’” (SANTOS, 2007: 32).
Com isso, além de se ampliar a cisão entre as instituições e a vida social, crescem
também as formas assimétricas de distribuição do poder territorial que aprofundam as
clivagens regionais e, muitas vezes, prevalecem sobre os próprios dispositivos
constitucionais.
De certa maneira, o dramático do modelo político brasileiro é que as duas
dinâmicas (a de constitucionalização e a de “desconstitucionalização”) estão em
expansão promíscua e, ao invés de se oporem, numa lógica dualista, complementam-se.
Nessa leitura, no Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, ocorrem,
simultaneamente, a generalização de interações sociais de tipo hobbesiano e a expansão
daquele núcleo de modernidade institucionalizada na qual estão eficazmente
universalizadas a lei e a ordem (SANTOS, 2007: 33).
O que significa dizer que uma efetiva coordenação federativa só ocorrerá quando
instituições como o Senado, o Conselho de Gestão Fiscal e os governos metropolitanos
forem institucionalmente ativados para essa finalidade. Mas, para que isso possa
ocorrer, há uma amplíssima agenda política pela frente que passa, antes de tudo, pelo
estabelecimento da verdade representativa, superando tanto a sobre quanto a sub-
representação dos entes federativos. Só assim se estará abrindo espaço para a
reaproximação das instituições com a vida social, implantando os alicerces necessários
para bloquear a “desconstitucionalização” e a generalização do modelo das máfias
competitivas.

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