Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
COORDENAÇÃO FEDERATIVA
Milton LAHUERTA1
1
Milton Lahuerta é professor de Teoria Política da UNESP – Campus de Araraquara.
De certa maneira, ao se adotar o presidencialismo como sistema de governo, no
momento de fundação da República, procurava-se manter uma linha de continuidade
com a perspectiva de não permitir a fragmentação do antigo território colonial e de
manter unidas todas as partes do novo país em torno de um projeto nacional que se
realizaria plenamente apenas no futuro. Para essa perspectiva, era no centro – até a
proclamação da República, representado pelo Imperador – que estava a possibilidade da
civilização e do progresso; nas províncias, como se dizia à época, estariam apenas os
interesses particulares, prisioneiros de uma hipoteca com o passado e partidários da
manutenção de relações sociais atrasadas. Portanto, na adoção do presidencialismo
mantinha-se a possibilidade de se afirmar a primazia do centro em relação às partes,
ainda que a dinâmica que estava em curso também identificasse a república com a
descentralização e com a valorização das partes.
2 A primeira Constituição escrita do Brasil foi promulgada em 1824, após a independência de Portugal. Essa Constituição delegou
poderes administrativos às então 16 províncias. Embora as províncias não contassem com autonomia política formal ou informal,
essa delegação foi interpretada como abrindo o caminho para uma futura federação.
predominaram períodos mais ou menos autoritários ou democráticos3. Nessa trajetória,
com base nessa específica articulação entre federalismo e presidencialismo, teria se
constituído no Brasil um modelo político singular, que o distinguiria de outros sistemas
presidencialistas. A especificidade desse modelo se revelaria no fato de que os
Presidentes para governar o país teriam sido obrigados a formar um tipo de coalizão de
base regional4, mesmo nas situações em que o seu partido fosse majoritário. Seria
justamente o federalismo, instituído com a República, ao fortalecer as elites regionais e
o poder dos governadores dos Estados, que teria tornado necessário o estabelecimento
desse tipo de coalizão, sobrepondo-se ao longo do tempo àquelas formadas a partir da
lógica da competição partidária e orientando a formação das coalizões até hoje
(ABRANCHES, 1988). Com coalizões compostas assim não se constituiria uma base de
apoio consistente para a ação governamental, gerando sempre grandes dificuldades para
o presidente governar e abrindo espaço em demasia para a barganha fisiológica.
3 Ao contrário das de outros países, as constituições brasileiras têm tido vida relativamente curta e acidentada. Pelo menos duas
foram outorgadas (sem contar a que, designada "Emenda nº 1", foi imposta à Nação, em 17-10-1969, pela junta militar que poucos
anos antes assumira o poder). Ao longo da história do Brasil Independente, o país teve sete constituições (sendo uma Imperial e seis
republicanas), a saber:
I) Constituição Política do Império do Brasil, outorgada pelo imperador d. Pedro I, a 25.03.1824, alterada e modificada pelo ato
adicional de 1834 e interpretada pela Lei nº 105, de 12-05-1840;
II) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, a primeira da República, promulgada pela Assembléia Nacional
Constituinte, a 24-02-1891, profundamente emendada e republicada em 1926;
III) Constituição, com igual título, de 16-07-1934 – também elaborada por uma Assembléia Nacional Constituinte –, com pouco
mais de três anos de duração;
IV) Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada a 10-11-1937, pelo então presidente Getúlio Vargas (alcunhada a
“polaca”, explicitando a inspiração corporativista), com a qual inaugurou o chamado Estado Novo – durante o qual a Carta de 1937
sofreu 21 emendas;
V) Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 18-09-1946 por uma Assembléia Nacional Constituinte. Esta
Constituição recebeu numerosas emendas; a de nº 4, promulgada pelo Congresso em setembro de 1961, instituiu o sistema
parlamentarista de governo, revogada, menos de dois anos depois, pela Emenda nº 6. ;
VI) Com o golpe militar 31 de março de 1964, foram introduzidos no corpo da Constituição inicialmente quatro atos institucionais,
de maneira geral restritivos às liberdades. O último destes deu lugar à: Constituição do Brasil, promulgada pelo Congresso a 24-01-
1967. O desejo do então presidente Humberto Castello Branco com sua promulgação era o de institucionalizar a Revolução, abrindo
caminho para a reconciliação nacional e para a volta da normalidade do processo político. Essa Constituição, denominada
"castellista", sofreu as maiores vicissitudes, sob a forma de atos institucionais e complementares, baixados pelos presidentes Arthur
da Costa e Silva e Ernesto Geisel; e, entre os dois, pela junta militar, que assumiu o poder quando o presidente Costa e Silva,
enfermo, não o pôde exercer. No período de 1964 a 1988, foram editados, no total, dezessete atos institucionais e 105
complementares - espécie de leis quase-constitucionais, acima de todas as outras leis do País;
VII) Constituição da República Federativa do Brasil, ora em vigor, promulgada pela Mesa da Assembléia Nacional Constituinte a
05-10-1988, no bojo de um amplo e participativo processo de transição democrática, e que foi objeto de revisão, em 1994, conforme
o art. 3º das Disposições Transitórias.
4
O que teria sido bastante reforçado na chamada “República Velha” (1889-1930) pela inexistência de partidos nacionais. Os
partidos tinham atuação no plano estritamente estadual e a formação do governo federal se fazia, essencialmente, através da
composição com a oligarquia vitoriosa nos estados.
A dificuldade de se formarem coalizões estritamente partidárias teria sua
explicação na fragilidade crônica dos partidos, que se originaria, por sua vez, na
sobrevivência do poder tradicional (de base regional e local), através de uma relação de
compromisso com o poder público que se fortalecia. A questão aqui é a do descompasso
entre o poder político e o poder social. Um grupo social em declínio é sobre-
representado em função da capacidade de transformar o controle social que exerce sobre
trabalhadores, e sobre seus dependentes e agregados, em votos e em recursos políticos5.
Tal mecanismo, que orientaria as formações das coalizões durante boa parte da
história republicana, permaneceria vivo até hoje e, paradoxalmente, teria se fortalecido
com as medidas de ampliação da cidadania adotadas pela Constituição de 1988.
Conforme veremos ao longo do texto, o sentido geral que orientou a elaboração dessa
carta constitucional foi o de ampliar o demos, através do reconhecimento irrestrito do
direito de votar e da afirmação de uma lógica descentralizadora e participativa. Ainda
assim, diante das desigualdades de todo o tipo, o fisiologismo e o clientelismo
permaneceriam vivos e atuantes, fazendo com que a lógica regional e localista
prevalecesse sobre a lógica partidária na formação das coalizões. Esse problema teria
um fundamento de ordem sociológica e não institucional porque repousaria, em última
análise, na sobrevivência de formas oligárquicas de dominação política em vários
subsistemas políticos e regiões do país.
5
Já nós anos quarenta, os que faziam esse diagnóstico da sociedade brasileira também previam que esse poder tradicional e
decadente tenderia a se reduzir e a perder totalmente a importância, na medida em que a sociedade brasileira se modernizasse e se
constitucionalizasse (LEAL, )
6
As cidades com mais de 1 milhão de habitantes: São Paulo (11 milhões); Rio de Janeiro (6,1 milhões); Salvador (3,0 milhões);
Fortaleza (2,5 milhões); Belo Horizonte (2,4 milhões); Curitiba (1,8 milhões); Recife (1,5 milhões); Porto Alegre (1,4 milhões);
Belém (1,4 milhões); Goiânia (1,2 milhões); Guarulhos (1,2 milhões); Campinas (1,1 milhões); Brasília – Distrito Federal (2,5
milhões).
peso da dimensão institucional na reprodução do poder do atraso e na adulteração e
restrição do sistema representativo.
Nesse sentido, ainda que com grande variação entre eles, os sistemas federativos
são ainda mais restritivos do que os sistemas unitários. Tal dimensão mais restritiva se
manifesta de saída na existência, nos sistemas federativos, de uma Câmara Alta (o
Senado) que traduz o princípio da representação territorial. Princípio que acaba gerando
um situação de sobre e sub-representação das unidades territoriais em escala ampliada.
Basta pensar que no Brasil o voto de um eleitor do estado menos povoado (Roraima)
equivale a cento e quarenta votos do estado mais povoado (São Paulo) nas eleições para
o Senado (STEPAN, 2002: 277). Mas, além desse problema de origem, há que se
considerar também o alcance político do Senado e a relação que ele mantém com a
Câmara dos Deputados, que, em tese, representaria melhor o demos. O Brasil,
genericamente, segue a fórmula de simetria relativa de poder entre as duas Câmaras,
mas em realidade o Senado tem mais poder unilateral de rejeitar um projeto de lei
aprovado na Câmara dos Deputados do que ocorre em qualquer outra democracia
federativa7. A conseqüência disso é que “um pequeno grupo de senadores tem o poder
de colocar na Constituição brasileira muitas coisas que favorecem especialmente seus
estados e bloquear qualquer esforço de reforma constitucional que possa questionar ou
alterar suas prerrogativas constitucionais” (STEPAN, 2002: 278).
7
O Senado tem grande um número de competências exclusivas. Há doze áreas políticas sobre as quais detém todas as prerrogativas.
Por exemplo, nomeia diretamente dois terços dos juízes que analisam despesas federais e ainda tem a prerrogativa de vetar o outro
terço. Alem disso, é de sua exclusiva competência autorizar empréstimos internacionais dos estados, podendo passar por cima numa
decisão de qualquer outra instância, inclusive do Banco Central.
número de eleitores existentes em cada um deles. Para entender a distorção, se o número
de eleitores fosse o critério de atribuição de cadeiras, alguns estados passariam a ter
apenas um representante na Câmara dos Deputados, enquanto que São Paulo, o estado
com maior população e eleitorado, passaria a contar com cerca de cento e quinze (115)
deputados (número bem superior aos setenta atuais).
8 No que se refere à opção pelo federalismo, a inspiração norte americana combinou-se com uma grande mobilização das elites
regionais brasileiras contra o unitarismo do Império e a favor da descentralização. Juntamente com outras instituições políticas
norte-americanas (como o sistema presidencialista e o controle de constitucionalidade), o federalismo foi adotado como uma das
bases das instituições políticas brasileiras. Óbvio que essa inspiração inicial não significou mera cópia e, apesar da influência mais
tarde de outras experiências constitucionais, especialmente no reconhecimento dos direitos sociais, o Brasil construiu sua própria
história constitucional ao longo da elaboração de suas sete constituições (uma monárquica e seis republicanas).
9 Em sua formulação, as federações começam a existir quando um conjunto variado de comunidades políticas – cada uma com sua
porção de soberania – vislumbra em sua união a possibilidade de aumentar sua segurança, tamanho e/ou poder de mercado. Para
isso, entram numa “barganha voluntária” na qual abdicam de parcela de sua soberania, nas exata medida do necessário, para atingir
tais metas.
do programa constitucional e do processo de state building. Isso se deu essencialmente
porque se inscreveu na Constituição de 1891 a permissão para que os estados pudessem
cobrar impostos sobre as exportações e negociar, com a aprovação do Senado, acordos
internacionais (STEPAN, 2002).
Beneficiando-se da omissão da Constituição quanto à supremacia da lei federal
sobre a lei estadual, o estado de São Paulo garantia não só às outras unidades os
mesmos direitos de autogestão (só que sem os recursos financeiros e militares para
proteger tais direitos), mas também se legitimava ao aceitar que todas as unidades da
federação teriam o mesmo número de cadeiras no Senado, independemente de sua
população. Daí resultou, inicialmente, um sistema federativo no qual os estados
contavam com muitas prerrogativas. Evidentemente, que os estados mais fortes
contavam com mais prerrogativas. Tal herança constitucional federativa, ainda que
tenha sido contrariada pela centralização ocorrida de 1930 a 1945, permaneceu como
um marco de referência nas constituições que resultaram de processos de processos
democratizantes (a de 1946 e a de 1988), fortalecendo a perspectiva de descentralização
e de participação dos entes subnacionais como sinônimo de exigência democrática.
Evidentemente, nesse longo percurso houve muitos avanços e recuos. Basta
pensar que a experiência republicana no país se iniciou com uma lógica
descentralizadora, mas profundamente excludente. Em realidade, no que se refere à
ampliação dos direitos políticos não há avanço com relação ao Império, trocando-se “a
barreira da renda à participação eleitoral pela manutenção da exigência de um
certificado de alfabetização”. (SANTOS, 2007, p.15) Seguindo, o espírito conservador
do Império que passara a exigir a alfabetização como pré-requisito da participação
eleitoral10, a maioria dos adultos com mais de 21 anos, mesmo com a abolição do
requisito da renda, se manteria distante dos processos eleitorais.
De modo que, ao invés de ampliar a cidadania, o regime republicano a limitava
não só pela exclusão dos analfabetos, mas também pela manutenção do impedimento da
participação das mulheres na política e nas eleições, consagrando assim o preceito
imperial que tratava as mulheres como incapacitadas11. Compreende-se que, durante
10 Com a Lei Saraiva, de 1881, ocorre uma drástica redução do número de eleitores. Dos 1.097.698 eleitores registrados em 1871
se chega a 117.022, em 1886. Essa drástica redução do demo se manteria por toda a Primeira República (1889-1930).
11 Ainda que não houvesse nenhum artigo que, explicitamente, proibisse as mulheres de votarem, e mesmo com o empenho de
alguns políticos mais avançados, acabou prevalecendo a interpretação de um Constitucionalista (João Barbalho), de que se não havia
sido aprovada nenhuma emenda específica tratando do tema, então não havia porque considerar que as mulheres devessem compor
todo o período da Primeira República, não só o corpo eleitoral se reduziu bastante, mas
também o comparecimento às urnas tenha sido muito baixo12. O país se tornava
republicano, mas na forma de um paradoxo, já que constituía uma “república sem
cidadãos”, consolidando assim um problemático processo de oligarquização da vida
política. (LAHUERTA, 2003).
Essa restrição do demo em seus momentos fundadores teria conseqüências
funestas para a ordem republicana que se pretendia implantar. As demandas por
ampliação dos direitos constitucionais e civis vão surgir de todos os lados da sociedade.
A contraposição Brasil real X Brasil legal – que denunciava a falta de sintonia entre as
instituições e a realidade do país13 – vai polarizar as preocupações da intelectualidade e
da elite política, constituindo-se como uma síntese das contradições do período. Não são
apenas os trabalhadores (formados por imigrantes e por descendentes dos ex-escravos),
as camadas médias, os intelectuais, a jovem oficialidade militar, etc., que se colocam
contra o caráter restritivo da República. Também setores das próprias oligarquias, que
não participavam (ou o faziam de modo muito subordinado) da articulação política
hegemônica, paulatinamente, vão se rebelando contra a concentração de recursos em
poucos estados, que dificultava as relações entre as partes constitutivas da federação 14.
Com isso, amplia-se o dissídio de suas regiões mais tradicionais com relação ao bloco
oligárquico hegemônico articulado em torno dos interesses dos cafeicultores de São
Paulo. De modo que é mais correto definir o período de 1889-1930 como de predomínio
de um “estadualismo oligárquico” do que de vigência de um sistema federativo 15. Essa
situação leva à “Revolução de 1930”, um movimento armado que rompe com a ordem
constitucional de 1891.
o rol dos eleitores. O voto seria facultativo e os eleitores seriam os cidadãos maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, sendo
vedado o direito de voto aos mendigos, aos analfabetos, aos praças e aos religiosos sujeitos a voto de obediência.
12 Na média inferior a 4% da população, portanto, bem abaixo dos 10% atingidos durante o Império, em meados do século XIX.
13 De modo que não apenas as concepções consagradas e os comportamentos políticos eram objeto de crítica, mas as próprias
instituições republicanas – identificadas com o artificialismo de uma legalidade sem correspondência no “país real” – seriam
fortemente questionadas, elevando-se assim o pathos de ruptura com a emergência de novos atores que colocavam o tema da
participação e dos direitos no cerne da crise oligárquica.
14 Ou seja, durante as três primeiras décadas do século XX a ordem republicana revelaria seu caráter excludente, expresso na
“insuficiência da letra constitucional para a materialização dos artigos liberais da Carta” (p.20). O acúmulo de insatisfações
sintetiza-se nas revoltas dos estamentos militares, exige a ampliação da participação, a melhoria na representação, o cumprimento da
justiça e a remoção dos chefes políticos oligárquicos dos estados mais fortes, que dominavam o Poder central e impediam que a
federação existisse plenamente.
15 Celina Souza (2005) define o período a partir da idéia de uma “federação isolada”. Já André Roberto Martin (2005) o qualifica a
partir da idéia de “estadualismo oligárquico”.
Centralização, autoritarismo e “cidadania regulada”
16 sob vários aspectos, o governo de Getúlio Vargas procurava concentrar e centralizar poder e para isso vai manter as massas
distantes da política, aproximando-se dela, simbolicamente, em suas aparições nos comícios comemorativos do dia do trabalho e
através do reconhecimento da legitimidade das demandas dos trabalhadores urbanos. O que só se cumpriria na exata medida em que
o empregado tivesse sua ocupação regulamentada pelo poder público e contribuísse compulsoriamente com o valor de um dia de
trabalho por ano para a manutenção do sindicato único de sua profissão.
17 Wanderley Guilherme dos Santos vai qualificar essa relação a partir da idéia de “cidadania regulada”, cujas “raízes encontram-se
não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de
estratificação ocupacional é definido por norma legal” (Santos, 1979: 22)
18. Principalmente durante o período conhecido como Estado Novo (1937-1945), “a regulamentação das profissões, a carteira
profissional e o sindicato público estabelecem ... os três parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a cidadania. Os direitos
dos cidadãos e as profissões só existem via regulamentação estatal. O instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado e
a cidadania regulada é a carteira de profissional que se torna, em realidade, mais do que uma evidência trabalhista, uma certidão de
nascimento cívico...” (Santos,1979:76)
sobre um dos mais importantes aspectos de sua vida econômica, qual seja, o da
definição das regras de trocas de mercadorias, possibilitou a Vargas não só a consolidar
o processo de state-building, mas também pavimentar o caminho para a
industrialização19.
19 Ainda assim, os desequilíbrios financeiros entre os estados não só persistiram, mas aumentaram: em 1945, três estados
concentravam mais de 70% das receitas estaduais (MAHAR, 1976, p. 415).
20 Mas foram, em larga medida, os constrangimentos ditados pela conjuntura internacional os responsáveis pelo solapamento da
legitimidade varguista. Fato importante e relevante consistiu também na retirada lenta de apoio da figura-chave do Exército (Góis
Monteiro), quando percebeu os riscos que o regime corria. Quando Vargas afinal se definiu pela entrada no conflito alinhado com a
frente antifascista, o que somente ocorreu após a pressão de manisfestações populares, os segmentos de oposição exploraram a
contradição existente entre o apoio do Brasil às democracias e o regime ditatorial que vigia internamente.
porque na década de 1950 se amplia a preocupação com a região Nordeste, mas também
o motivo que coloca de forma definitiva o tema regional na agenda pública, visto como
decisivo para se desenvolver o país, ampliar a cidadania e combater a pobreza.
21 A ditadura soçobra em outubro 1945, quando Getúlio Vargas é forçado a renunciar, não sem antes dar vida aos novos agentes da
política democrática, isto é os partidos – PSD (Partido Social Democrático) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) – que tornar-se-
ão o eixo do período histórico conhecido como democracia populista.
A hostilidade política entre os blocos acima citados foi responsável pelo
agravamento das tensões políticas, que se avolumavam no final dos anos cinqüenta,
estreitando dramaticamente a margem de negociação, dada a ausência de
reconhecimento mútuo da legitimidade das aspirações e reivindicações feitas pelos
adversários. Tal situação contribuiria para o advento do golpe militar de 1964.
Por vinte e um anos, de 1964 a 1985, o Brasil foi governado pelos militares,
vivenciando não só a experiência de um regime autoritário, mas também um duro
processo de restrição das liberdades, que em alguns momentos adquiriu dimensões
explicitamente ditatoriais e terroristas. Para se legitimar, inicialmente, os militares além
de mobilizar o tradicional discurso anticomunista de combate à subversão,
acrescentaram um outro objetivo a sua cruzada: o de combater o populismo, a corrupção
e a demagogia, identificados com a herança varguista e com as elites regionais dos
estados mais “atrasados” da federação.
22 Basta pensar que se, em 1964, o Brasil era uma sociedade majoritariamente rural; ao final da ditadura, em 1985, havia se
transformado numa sociedade majoritariamente urbana e metropolitana.
a expansão econômica (WERNECK VIANNA; CARVALHO, ). É explicável, portanto,
que, do ponto de vista estritamente institucional, inicialmente, o governo militar tivesse
a pretensão de ser transitório23 e, segundo as justificativas de seus próceres, se colocasse
como meta restaurar rapidamente a normalidade democrática. Inclusive, é importante
que se diga, mesmo em seus momentos mais repressivos, os governos militares não
efetivaram uma ruptura total com os fundamentos constitucionais da democracia
representativa (ainda que se tenha abolido de imediato as eleições diretas para
Presidência, e posteriormente para os governos estaduais e prefeituras das principais
cidades). Basta notar que foram mantidas as eleições para as casas legislativas e os
respectivos calendários eleitorais (mesmo que com muitas restrições) 24.
A nova Constituição do regime seria promulgada em 1967 e editada, apenas, em
1969, quando foi alterada por uma longa emenda constitucional. A Constituição de
1967-1969 e a reforma tributária de 1966 centralizaram na esfera federal poder político
e tributário, afetando decisivamente o federalismo e suas instituições. Isso não
significou, todavia, a eliminação do poder dos governadores nem dos prefeitos das
principais capitais. Pelo contrário, esses governantes foram os grandes legitimadores do
regime militar e contribuíram para formar as coalizões necessárias à sua sobrevivência
(MEDEIROS, 1986; AMES, 1987). É importante que se diga que, mesmo com a
centralização de recursos financeiros, a reforma tributária de 1966 promoveu o primeiro
sistema de transferência intergovernamental de recursos da esfera federal para as
subnacionais, ao criar os fundos de participação (Fundo de Participação dos Estados e
Fundo de Participação dos Municípios). O critério de distribuição abandonou a
repartição uniforme entre os entes constitutivos, passando a incorporar o objetivo de
maior equalização fiscal pela adoção do critério de população e de renda per capita
(SOUZA, 2005).
Em sua atuação, os governos militares buscaram legitimar-se junto à sociedade
através de realizações econômicas, orientadas por um projeto de “Brasil potência”, que
tinham como um de seus pilares a perspectiva de integração regional e como horizonte
23 A pretendida provisoriedade pode ser notada na designação dos “partidos” que foram criados, com a extinção dos partidos do
regime de 1946, compulsoriamente, em outubro de 1965. Buscando restabelecer um nível mínimo de normalidade institucional, os
militares criaram um sistema bipartidário – através da constituição de dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Ou seja, nesse sistema bipartidário, nenhuma das organizações criadas ostenta o nome
de “partido”. Uma é uma “aliança” e a outra “movimento”, como que a revelar a provisoriedade dessa criação. A despeito dessa
pretensão, esse sistema vigora até 1979, quando através de uma manobra do regime militar para conter o avanço da oposicionista se
cria um novo sistema multipartidário.
24 O que significou que o alistamento eleitoral não foi interrompido e o eleitorado cresceu, entre 1964 e 2000, em cerca de 700%.
maior completar os pré-requisitos necessários ao desenvolvimento de um capitalismo
autônomo no país25, completando assim o processo de substituição de importações. Para
tentar viabilizar esse projeto, num contexto caracterizado pelos militares de “guerra à
subversão”, foi necessário realizar uma concentração demasiada de poder, recursos e
atribuições no governo federal, com forte impacto em toda as relações
intergovernamentais.
25 A pretensão do grupo hegemônico de que a melhor maneira de colocar o Brasil no cenário internacional se daria através de uma
vigorosa retomada da substituição de importações, principalmente em matérias primas básicas e bens de capital, seria contraditada
pela dinâmica global do processo de acumulação. Para atingir a meta fundamental do II PND, proposto pelo governo Geisel, foram
realizados investimentos substantivos na produção de metais não ferrosos, ferro e aço, papel e celulose, produtos químicos e álcool
combustível. O Governo também investiu diretamente em energia elétrica, no sistema de transporte e nas comunicações. Além
disso, deu incentivos fiscais, creditícios e tarifários para a implementação de projetos de substituição de importações. A maioria
desses projetos era de grande porte, longo prazo de maturação e taxa de retorno lenta. Sem dúvida teriam impacto sobre os recursos
e a dinâmica interna à economia. No entanto, sua implantação pressionava as contas cambiais e levaria ao aumento acelerado da
dívida externa.
figura dos representantes parlamentares, transformados assim em “despachantes de
pequenas causas”26.
26 Na tentativa de manter o controle do Congresso, um outro importante mecanismo levado a cabo pelos militares foi a criação de
novos estados. Em 1978, o regime militar criou o estado de Mato Grosso. E em 1982, o estado de Rondônia. Ambos em regiões
pouco habitadas e pouco desenvolvidas, respectivamente, no Centro Oeste e no Norte. Como resultado desses expedientes, criaram-
se novas vagas de deputados federais e senadores em regiões onde o regime militar tinha controle, provocando um fenômeno de
sobre-representação desses estados com relação aos estados mais desenvolvidos e povoados.
valor em todas as regiões do país. Da mesma forma, não é aceitável que o direito aos
serviços básicos do Estado – saúde, educação e segurança – continue sendo distribuído
de forma totalmente assimétrica entre os que estão no topo e os que estão na base da
pirâmide social. Ou seja, um dos traços que marcam o modelo político brasileiro é que
as instituições – a começar pela mais importante, a Constituição – continuam
significando coisas muito distintas para os brasileiros de diferentes classes sociais e
regiões. A universalização eleitoral ainda não encontrou tradução na universalização da
democratização constitucional, o que não significa que, com avanços e retrocessos, a
longa marcha para a democratização não tenha dado frutos.
Para entender esse aparente descompasso entre as instituições e a sociedade
brasileiras é necessário recuperar a lógica que presidiu o processo de transição política à
democracia. Impossibilitada de derrubar a ditadura militar num confronto direto, a
oposição apostou numa estratégia política voltada para o isolamento e a derrota do
regime militar, com base na crítica ao autoritarismo e no fortalecimento da sociedade
civil (Lahuerta, 2001). Tal estratégia se nutria da demanda de liberdade que a própria
sociedade, modernizada pelo regime militar, passava a manifestar. Dentre as bandeiras
que vão sintetizar a luta pela democracia e pela liberdade estão a da descentralização e a
da “restauração” da federação27. Compreende-se que assim fosse, pois durante todo o
período ditatorial o poder político ficara concentrado no Executivo federal sob o
comando militar. Compreende-se também que a Constituição de 1988 tenha ficado
marcada por uma lógica fortemente descentralizadora.
O problema é que a Assembléia Constituinte (1986-1988) se compôs a partir das
bases representativas estabelecidas ainda durante o governo militar. De modo que os
estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste, que representavam 40% da população,
teriam 52% dos votos da Assembléia Constituinte. Essa correlação de forças nos
permite compreender porque seria mantida a regra decisória, para a qual todo estado, a
despeito de seu tamanho, contaria com 3 senadores. Do mesmo modo, pode-se entender
a manutenção de um mínimo de oito deputados por estado. O resultado é que, como
conseqüência dessa correlação de forças, no processo constituinte, foi possível a criação
de mais três estados no norte, nordeste e centro-oeste: Tocantins, Amapá e Roraima.
27 Ao invés de uma comissão de notáveis para propor uma primeira versão da Constituição, seriam constituídas 24 subcomissões, a
partir das quais seriam constituídas comissões, que se sintetizariam em uma comissão de sistematização com 97 parlamentares, e
sessões plenárias com duas rodadas de votações nominais. Outra inovação foi a permissão para o recebimento de propostas de fora
do Congresso, caso elas contassem com a assinatura de 30 mil eleitores, e o envio de sugestões pelo correio
Basta observar que nas eleições de 1990, já com os representantes desses novos estados,
o bloco passaria a controlar 74% das cadeiras do Senado.
Tal situação se agravou pelo fato de os interesses do centro (ou seja, da União)
não terem sido representados com força na Assembléia Constituinte. Para o que
contribuiu o papel exercido pelos governadores na mobilização da sociedade civil para
as grandes manifestações oposicionistas de 1984 e 1985. O que resulta disso é a
compreensão de que quanto mais poder se conferisse aos estados e municípios, mais
democrático seria o Brasil. Com isso, a Constituição estabeleceria a transferência de
significativo volume da receita tributária federal total do centro para estados e
municípios28.
Nesse aspecto particular, o fato de a elaboração constituinte ter ocorrido ainda
como parte de um processo de transição democrática em curso singulariza a
Constituição de 1988 na história do país e nos permite compreender as duas dimensões
que marcam sua estrutura: de um lado, a lógica conciliadora que a orienta e que
procurou acomodar a enorme gama de interesses que emergiram com a modernização
autoritária; de outro, a tendência a constitucionalizar29 todas as questões consideradas
importantes30, que a tornou a mais detalhada de todas as constituições brasileiras 31. Nos
permite compreender também porque ela continha tantos dispositivos que requereriam
regulamentação posterior, seja por leis complementares seja por leis ordinárias.
Como resultado, o processo de redemocratização no Brasil gerou uma
Constituição que regula não apenas princípios, regras e direitos – individuais, coletivos
e sociais –, mas também um expressivo leque de políticas públicas. E que, atendendo
28 Nos anos 1990, sob os auspícios do “Consenso de Washington”, que estabeleceu os marcos da agenda pública da década no
plano internacional, juntamente com as recomendações de ajuste fiscal e de diminuição do tamanho de Estado, estabeleceu-se um
outro consenso genérico: a idéia de que a descentralização é útil não apenas para a economia, mas também para a política dos países
em processo de democratização. Tal juízo decorreria de um simples fato: a descentralização aproxima o governo do povo.
29 O menosprezo do regime militar pelos dispositivos e constrangimentos constitucionais e as incertezas decorrentes das mudanças
de regime, combinados com as graves carências sociais e as desigualdades de todos os tipos – inclusive as regionais –, explicam em
muito a tendência de constitucionalizar.
30 A questão sobre a divisão “ótima” entre o que deve ou não ser constitucionalizado é matéria de amplo debate, principalmente
entre juristas e economistas da área fiscal. O debate é importante porque envolve a decisão sobre que matérias devem ser objeto de
quorum qualificado ou de maiorias expressivas, que matérias ficam excluídas do processo político (as cláusulas pétreas das
constituições) e quais as que ficam submetidas às decisões majoritárias, ou seja, aquelas que devem ser objeto de leis ordinárias.
Além do mais, o tema da constitucionalização remete também à capacidade do governo de implementar os dispositivos
constitucionais e como proceder quando as circunstâncias mudam.
31 Ao ser aprovada, continha 245 artigos e mais 70 no capítulo sobre as Disposições Constitucionais Transitórias. Com as emendas
constitucionais posteriores, o texto constitucional foi expandido para 250 artigos no corpo constitucional e para 94 nas Disposições
Constitucionais Transitórias.
demandas que vinham da sociedade, contrastou com as constituições anteriores e
ampliou de modo significativo a provisão de recursos para as esferas subnacionais. Ela
também foi inovadora ao expandir os controles institucionais e societais sobre os três
níveis de governo, aumentando as competências dos poderes Legislativo e Judiciário, e
reconhecendo os movimentos sociais e os organismos não-governamentais como atores
legítimos de controle dos governos. Por fim, inovou ao universalizar serviços sociais –
em particular a saúde pública – antes restritos aos trabalhadores vinculados ao mercado
formal, tendo como princípios diretivos a descentralização e a participação dos usuários.
Por todas essas razões, “os constituintes tiveram vários incentivos para desenhar uma
federação em que o poder governamental foi descentralizado e em que vários centros de
poder, embora assimétricos, tornaram-se legitimados para tomar parte do processo
decisório” (SOUZA, 2005: 110). A um ponto esse impulso chegou que os municípios,
juntamente com os estados, foram transformados em partes integrantes da federação,
adquirindo a condição de ente federativo. Com isso se reiterou e aprofundou uma longa
tradição de autonomia municipal com pouco controle dos estados sobre as questões
locais.
No entanto, é importante que se diga, a ênfase descentralizadora do processo
constituinte brasileiro não engendrou, entre os entes federados, nem uma efetiva
autonomia política, que reforçaria a participação e a cultura cívica, nem tampouco uma
lógica cooperativa. Basta observar que a maioria das políticas públicas, mesmo quando
implementadas no âmbito local, permanecem funcionando a base de impulsos federais
que se impõem às instâncias subnacionais e dependem de aprovação pelo Congresso
Nacional. O que significa dizer que poucas competências constitucionais exclusivas
foram alocadas de fato nos estados e municípios32. Por outro lado, estados e municípios
possuem uma considerável autonomia administrativa, sendo responsáveis pela
implementação de muitas das políticas aprovadas na esfera federal. Além disso, em
particular os municípios, contam com parcelas expressivas dos recursos públicos, bem
superiores àquelas recebidas por municípios de outros países em desenvolvimento.
32 Isso também ocorre em outros países em desenvolvimento, como o México e a África do Sul.
Constitucionalização, competências e paradoxos do federalismo: para além da
polarização centralização X descentralização
33 De tal maneira isso ocorre que se cumpre a máxima jurídica de que todo direito relevante é um Direito federal (WERNECK
VIANNA, 1999), colocando os estados na condição estrita de gestores desse Direito federal.
estados sejam muito desiguais. Problema que se torna mais dramático por não constar
do texto constitucional nenhuma regulação das relações nem entre a União e os estados,
nem entre os próprios estados34.
No que se refere aos municípios, a Constituição de 1988, ao elevá-los à condição
de entes federativos, reconheceu e regulamentou sua autonomia, inclusive no que se
refere aos recursos. No mesmo sentido, estabeleceu que os municípios passavam a ser
regidos por leis orgânicas próprias, elaboradas por seus respectivos legislativos. No
entanto, a condição de ente federativo não se traduziria na efetiva capacidade de os
governos locais se mostrarem plenamente autônomos.
Mas seja como for, nos marcos dessas normas constitucionais, a partir de
meados dos anos 1990, os governos locais vão se tornar os principais provedores dos
serviços de saúde e de educação fundamental, ainda que atuando a partir de regras e de
recursos federais35. De maneira geral, a adesão dos municípios a essa política de
transferência tem sido avaliada positivamente, em especial no que se refere à saúde.
Resultado de uma estratégia concebida como um sistema complexo de relações entre
níveis de governo que combina incentivos e sanções, essa transferência na
responsabilidade de implementação de políticas públicas tem reduzido os conflitos entre
os governos locais na disputa por recursos federais. Notar que se entre estados e
grandes municípios as parcerias e atuações conjuntas ainda são raras, entre os
municípios os inúmeros consórcios, principalmente nas áreas de saúde, proteção
ambiental e desenvolvimento econômico, vêm se dinamizando as relações. Por outro
lado, como as relações de transferência envolvem freqüentemente a União e os
municípios, observa-se um enfraquecimento da presença dos governos estaduais nesses
arranjos.
Quanto às competências concorrentes, os constituintes de 1988 adotaram o
princípio da co-responsabilidade dos três níveis de governo na provisão da maioria dos
34 Diferentemente de federações como Austrália, Bélgica, Alemanha, EUA, México e África do Sul, não existem conselhos
intergovernamentais envolvendo os estados. As exceções são o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que reúne os
secretários das finanças dos estados mas que não é previsto na Constituição, e a participação de governadores de estados
economicamente menos desenvolvidos em conselhos deliberativos de agências federais de desenvolvimento regional. Alguns
programas federais são desenhados para contar com a participação de representantes dos estados, mas tais estruturas só se
materializam por iniciativa do governo federal e quando estão envolvidas transferências de recursos federais.
35 É interessante notar que a municipalização não tem ficado restrita aos governos como provedores de políticas sociais, mas tem
envolvido também às comunidades locais. É exigência de muitos programas federais e/ou financiados com recursos de agências
multilaterais a constituição de conselhos comunitários para que ocorra o repasse de recursos. A Constituição de 1988 abriu o
caminho para essa participação e para a municipalização por ter incorporado o princípio – que se aplica à maioria das políticas
sociais – de que elas deveriam ser descentralizadas e participativas.
serviços públicos, em especial dos sociais, gerando-se com isso muitas celeumas entre
governantes acerca de quem seria o responsável por uma política ou um serviço. A
situação acabou por contrariar, nesse aspecto, as próprias intenções dos constituintes, já
que eles, ao optarem por uma divisão compartilhada de trabalho entre os entes
federativos compartilhada, procuravam orientar a criação de um modelo institucional no
qual deveria sobressair um caráter mais cooperativo do que dual ou competitivo nas
relações entre eles. No entanto, esse objetivo – de consolidar um federalismo
cooperativo – se revelou de difícil consecução, essencialmente, por duas razões: 1) pela
diferença de capacidade dos governos subnacionais implementarem políticas públicas,
dadas as enormes desigualdades financeiras, técnicas e de gestão que existem entre eles;
2) pela ausência de mecanismos constitucionais ou institucionais que estimulem a
cooperação, o que contribuiu para gerar uma lógica cada vez mais competitiva entre os
entes federativos, que se expressa principalmente na chamada “guerra fiscal”.
Há grande controvérsia acerca das conseqüências desse processo de divisão do
poder entre as várias esferas de governo. Essencialmente, duas posições polarizaram
esse debate: uma corrente, mais marcada pelo viés jurídico, considerou que tal divisão
de poder, ao final, favorece a União devido a sua atuação decisiva na definição de
políticas, à carência de recursos financeiros de muitos estados e ao seu grande poder de
legislar, que lhe permite dar uniformidade aos governos e às políticas estaduais. A outra
corrente sustenta que a divisão de poder favorece o governo local que vem expandindo
sua autonomia ao longo da história36. Seja como nos coloquemos na controvérsia, o fato
é que nas duas abordagens extremas prevalece uma compreensão centrada não na
cooperação, mas sim na competição entre as várias esferas de governo.
O que não significa que relações cooperativas não possam ocorrer, mas apenas
que quando isso acontece, em geral, elas dependem excessivamente das iniciativas
federais. É certo que os governos estaduais partilham recursos federais e municípios
36 Essa interpretação, todavia, não encontra fundamentação na teoria do federalismo, que geralmente considera apenas as esferas
federal e estadual de governo. Assim, a relativa importância financeira do município brasileiro e seu papel de principal provedor de
importantes políticas sociais não é matéria propriamente concernente à teoria do federalismo e sim dos conceitos de
descentralização e de relações intergovernamentais. Dado que a teoria do federalismo não incorpora a situação de espaços
territoriais que possuem garantias constitucionais próprias, inclusive tributárias, como é o caso dos municípios brasileiros, os
conceitos de relações intergovernamentais e descentralização-centralização seriam os mais apropriados para analisar situações como
a brasileira, tornando-se de crucial importância para o melhor entendimento de como o federalismo atua na prática. O uso desses
dois conceitos pode iluminar a análise sobre a distribuição de poder territorial em países como o Brasil, onde os municípios
assumem papel de destaque, não apenas pela existência de políticas descentralizadas, mas pelo seu relativo descolamento da
jurisdição dos estados.
partilham parcelas de impostos estaduais; do mesmo modo há “várias políticas sociais,
particularmente saúde e educação fundamental, que contam com diretrizes e recursos
federais, mas são implementadas principalmente pelos municípios” (SOUZA, 2005:
113). Ainda assim, em inúmeras outras áreas de atuação, contrariando o espírito do
texto constitucional, as relações entre níveis de governo, de fato, permanecem muito
competitivas, caracterizadas por elevado nível de conflito e com poucos canais
institucionais de intermediação de interesses e de negociação de conflitos. Nessas
situações, no limite, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF), por sua competência no
controle de constitucionalidade e através de ações diretas de inconstitucionalidade
(ADINs), mediar os conflitos entre as esferas de governo37.
Ou seja, da mesma forma que pretendeu restaurar a federação com base numa
lógica descentralizadora, a Constituição de 1988 reforçou o poder institucional do
presidente da república, na medida em que assegurou à União, a prerrogativa exclusiva
de iniciar legislação nas áreas de política mais importantes. Ou seja, o presidente, como
37 A lista de instituições que podem propor ADINs foi consideravelmente ampliada pela Constituição de 1988: Presidente da
República; mesas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e das assembléias legislativas; governadores; Procurador-Geral da
República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional e
confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Os governadores são os mais ativos proponentes de ADINs, mas
grande parte das ações ocorreu em 1990, após a promulgação das constituições estaduais.
Paradoxalmente, essas ações não objetivavam defender a autonomia dos estados frente à legislação federal, mas sim pedir o
reconhecimento judicial da inconstitucionalidade de decisões tomadas pelas assembléias constituintes estaduais
.
38 O parágrafo único do artigo 23 da Constituição estabelece que “lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União
e os Estados, Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”
(BRASIL, 1988). No entanto, tal lei, até agora, não foi proposta pelo poder Executivo ao Congresso Nacional e nada indica que
esteja na agenda pública.
chefe do Poder Executivo Federal, controla a agenda política e legislativa. A tradução
desse dispositivo legal significa simplesmente que o presidente se move em primeiro
lugar. Pode, portanto, fazer suas propostas antecipando as reações dos demais atores39.
Essas prerrogativas do chefe do poder executivo – a despeito das intenções
descentralizadoras dos deputados constituintes – vão possibilitar a ampliação do papel
da União, em detrimento principalmente dos estados. É por isso que durante os anos
1990 foi possível se operar na política prática um complexo processo de recentralização
de recursos e atribuições no âmbito da União, que teve como uma de suas principais
conseqüências o aprofundamento da subordinação estrutural do Poder Legislativo ao
Executivo Federal, com a utilização da barganha política em larga escala.
Sinteticamente, a lógica que vigora entre os dois poderes tem como suposto que para
influenciar a política pública é preciso estar alinhado com o presidente. Assim, restam
aos parlamentares, basicamente, duas alternativas: fazer parte da coalizão presidencial
na legislatura em curso, ou cerrar fileiras com a oposição esperando chegar à
Presidência no próximo termo (LIMONGI, 2006).
Diante do exposto, pode-se afirmar que a lógica que regeu a distribuição de
competências entre os entes constitutivos da federação, durante o processo constituinte,
mostrou-se no mínimo paradoxal. Por um lado, os constituintes decidiram reduzir os
recursos financeiros federais face às demandas descentralizadoras dos outros dois níveis
de governo, situação que foi parcialmente revertida ao longo dos últimos anos. Por
outro, ampliaram as competências legislativas e a jurisdição do governo federal, ao
mesmo tempo em que aumentaram o leque das competências concorrentes,
estabelecendo assim uma dinâmica de conflitos e trocas de acusações entre os entes
federativos que se arrastaria durante a década de 1990.
39 Há que se lembrar ainda do instrumento mais poderoso – mais poderoso porque altera unilateralmente o status quo – com que
conta o presidente à sua disposição: o poder de decreto, a prerrogativa de editar medidas provisórias. Tal instrumento, porém, não
pode ser usado contra a maioria. A passagem de uma medida provisória a lei depende de aprovação legislativa, mas não há como a
minoria impedir que o presidente edite uma medida provisória.
Ordem constitucional, desencantamento com a democracia e dilemas de
coordenação federativa40
40 O problema da coordenação federativa ou intergovernamental diz respeito às formas de integração, compartilhamento e decisão
conjunta presentes nas federações e ganhou grande importância com a complexificação das relações intergovernamentais em todo o
mundo. Nesse aspecto, nos impõe a urgência de ir além da tradicional polarização entre centralização e descentralização. Para um
balanço desse problema nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1002) e Luis Inácio Lula da Silva (2003- ), ver
Abrucio (2005).
41 A Constituição de 1988 conta hoje com 42 emendas, mais seis de revisão, estas aprovadas por maioria simples porque realizadas
em 1994 durante o período constitucionalmente previsto para sua revisão. Embora o número de votos requerido para a aprovação de
emendas seja baixo em comparação com outros países (três quintos), exigem-se votações nominais em dois turnos.
lado, por estar subordinada a demandas macro-econômicas que exigem, entre outras
medidas, controle fiscal e superávits primários, ao mesmo tempo em que cresce a
demanda federativa por maior igualdade regional. De outro pressionada pelo alto grau
de constitucionalização que se encontra em clara contradição com a urgência imposta
pela nova agenda macro-econômica e pela ampliação das demandas por direitos. Está
contradição está na base do desencantamento com a democracia e dos processos de
desagregação da sociabilidade que marcam o Brasil atual.
A necessidade de compatibilizar esse conjunto de demandas tão diversificado
obrigou o governo federal durante os últimos doze anos a realizar um conjunto de
iniciativas com a finalidade de ir além da polarização entre descentralização X
descentralização, impondo-lhe a urgência de estabelecer mecanismos de coordenação
federativa. Justamente por isso, ao longo dos anos 1990, em especial depois da vitória
de Fernando Henrique Cardoso nas eleições presidenciais de 1994, ocorreria um
processo de concentração de recursos no centro, não apenas em virtude das
prerrogativas constitucionais dadas ao presidente da República, já apontados
anteriormente, mas também em virtude do sucesso do Plano Real, implementado por
Cardoso em julho de 1994, quando ainda era Ministro da Fazenda, e que garantiria que
a inflação permanecesse em menos de 10% ao ano a partir de 1996. Com isso, haveria
uma redução do poder dos estados, já que seus bancos estaduais não poderiam continuar
rolando suas dívidas através da utilização de mecanismos inflacionários 42. E o centro (a
União) adquiria novamente um papel de estabilizador das contas estaduais.
De modo que o governo de Fernando Henrique Cardoso, até pelas pressões
internacionais de ajuste fiscal que teve que enfrentar, seria responsável por algumas
transformações no padrão federativo projetado durante o processo de transição
democrática. Nessa linha, aumentou o controle social sobre os processos de
descentralização; adotou-se políticas de coordenação intergovernamental nas políticas
de saúde e de educação; foram criados programas nacionais de transferência direta de
renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, houve a
estruturação de programas de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das
políticas, fornecendo um feedback essencial à União para coordenar a descentralização.
Mas o principal êxito do governo de Cardoso efetivou-se através da redução do repasse
dos custos financeiros das dívidas dos estados com a União, estabelecendo fortes limites
42 Em 1995, a totalidade dos bancos estaduais se aproximava da falência. O que gerou a intervenção do Banco Central, com o
governo federal se tornando o liquidante em última instância.
à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos (ABRUCIO, 2005). Esforço que
se completou com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, e
de um conjunto de outras leis ordinárias federais, que tornaram quase impossível a
contratação de novos empréstimos, em especial pelos governos subnacionais43. Dessa
forma, contrariando a intenção dos constituintes, a concentração de recursos na União
retornou a antigos patamares, assim como a concentração de atividades econômicas em
algumas regiões e espaços territoriais (ALMEIDA, 2005).
O governo de Luis Inácio Lula da Silva, eleito em 2002, também tomaria
importantes medidas institucionais buscando ampliar a coordenação federativa: 1)
fortaleceu a Secretaria de Assuntos Federativos, que nunca teve o devido poder nos
governos de Cardoso; 2) criou o Ministério das Cidades, unificando todas as políticas
urbanas em uma só instituição; 3) reestruturou a política regional, com a criação do
Ministério da Integração Nacional. Além disso, duas ações legislativas também
contribuíram para o seu esforço de coordenação federativa. A primeira diz respeito à
continuação da reforma da previdência, com foco no setor público, e que teve impacto
favorável à modernização dos governos estaduais. A outra, revelando a preocupação
com a coordenação das relações intergovernamentais, procurou regulamentar os
consórcios públicos, exatamente para reduzir os efeitos da falta de controle sobre a
excessiva autonomia obtida pelos municípios desde a Constituição de 1988.
Ainda assim, é possível perceber a permanência de uma longa lista de problemas
que resistem à coordenação federativa. Entre os principais, destacam-se: 1) a
persistência de grandes desigualdades entre as regiões e a dificuldade das medidas
constitucionais que buscaram diminuí-las mudarem a situação. Diga-se de passagem,
que tais desigualdades históricas – que exigem negociação e tempo para serem alteradas
– acabaram reforçadas pela abertura da economia brasileira, aumentando a distância
econômica entre os estados e contribuindo para ampliar a violência e a desagregação
social; 2) a tendência a se dar um tratamento uniforme às esferas subnacionais, em
particular aos estados, no que se refere à redução relativa de suas receitas, ao mesmo
tempo em que se estabelecem relações diretas entre o governo federal e os municípios
decorrentes da descentralização das políticas sociais. Com isso debilitou-se a
43 É importante notar que uma das maiores fontes de financiamento dos governos estaduais para a realização de investimentos, os
organismos multilaterais, não estão sujeitos aos limites da LRF. Como se sabe, a dívida pública tem sido um sério constrangimento
não só para as contas públicas mas para o próprio crescimento econômico do país. Antes dos ajustes promovidos no final dos anos
1990, os estados eram os maiores devedores, representando 42% da dívida pública total. Essa dívida foi federalizada, embora os
estados aloquem cerca de 13% da sua receita líquida real para seu pagamento.
capacidade de ação dos governos estaduais, dificultando novos investimentos em
infraestrutura e nas áreas sociais; 3) a precariedade dos mecanismos de coordenação e
cooperação intergovernamentais, tanto vertical como horizontalmente, que não
conseguem coibir a competição entre os entes federados; 4) a necessidade de mudar o
sistema tributário, a fim de neutralizar os efeitos perversos da guerra fiscal; 5) a
urgência de fortalecer os mecanismos nacionais de avaliação de políticas públicas; 6) a
necessidade de desenvolver capacidades administrativas nos estados e municípios, e o
estabelecimento de redes e interconexões de longo prazo entre as burocracias federal,
estaduais e municipais, visando melhorar o planejamento das políticas públicas; 7) a
inexistência de uma ordem regulatória e coordenadora das principais políticas urbanas,
com destaque para o saneamento, a segurança pública, a habitação e o transporte; e, por
fim, 8) o fortalecimento dos fóruns federativos de discussão e negociação entre os níveis
de governo.
No entanto, é importante ter em conta que a solução para os principais
problemas que afetam o “modelo político brasileiro” não depende apenas de um esforço
de coordenação federativa, mas principalmente do enfrentamento de conflitos políticos
e sociais mais amplos, como o das desigualdades regionais, o da explosão da violência
e, especialmente, o da “desconstitucionalização”. Em especial nesse último tema que se
evidencia pela convivência “entre a vigência e a eficácia da lei e da ordem, e a realidade
de uma justiça lotérica, na qual a punição é aleatória, a impunidade uma possibilidade
que depende do lugar social e geográfico de quem comete algum ilícito e na qual se dá
uma sistemática exploração dos indivíduos por parte de grupos organizados,
constituindo um ‘modelo segmentado de máfias competitivas’” (SANTOS, 2007: 32).
Com isso, além de se ampliar a cisão entre as instituições e a vida social, crescem
também as formas assimétricas de distribuição do poder territorial que aprofundam as
clivagens regionais e, muitas vezes, prevalecem sobre os próprios dispositivos
constitucionais.
De certa maneira, o dramático do modelo político brasileiro é que as duas
dinâmicas (a de constitucionalização e a de “desconstitucionalização”) estão em
expansão promíscua e, ao invés de se oporem, numa lógica dualista, complementam-se.
Nessa leitura, no Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, ocorrem,
simultaneamente, a generalização de interações sociais de tipo hobbesiano e a expansão
daquele núcleo de modernidade institucionalizada na qual estão eficazmente
universalizadas a lei e a ordem (SANTOS, 2007: 33).
O que significa dizer que uma efetiva coordenação federativa só ocorrerá quando
instituições como o Senado, o Conselho de Gestão Fiscal e os governos metropolitanos
forem institucionalmente ativados para essa finalidade. Mas, para que isso possa
ocorrer, há uma amplíssima agenda política pela frente que passa, antes de tudo, pelo
estabelecimento da verdade representativa, superando tanto a sobre quanto a sub-
representação dos entes federativos. Só assim se estará abrindo espaço para a
reaproximação das instituições com a vida social, implantando os alicerces necessários
para bloquear a “desconstitucionalização” e a generalização do modelo das máfias
competitivas.
Referências bibliográficas
OUTRAS FONTES