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Artigo de Revisão

Conduta na intoxicação por


anestésicos locais
Management in local anesthetics intoxication
Marcelo Pacheco Lagares Barbosa1, Carlos Leonardo Alves Boni2, Flávia Costa Junqueira de Andrade3

RESUMO
1
Título de Especialista pela Sociedade Brasileira de Os anestésicos locais são usados terapeuticamente com muitas finalidades, mas princi-
Anestesiologia. Anestesiologista dos Hospitais Lifecenter
e Socor em Belo Horizonte, MG – Brasil
palmente na anestesia clínica, em que são utilizados de várias formas e por diferentes
2
Título de Anestesiologista pela Sociedade Brasileira de vias. Para serem empregados com segurança e para que não ocorram intoxicações,
Anestesiologia/MEC. Mestrando da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) em Ciências Aplicadas à Saúde.
as doses máximas dos anestésicos locais devem ser respeitadas. Os sinais e sintomas
Anestesiologista do Hospital Lifecenter e Biocor Instituto. típicos de intoxicação ocorrem principalmente no SNC e no sistema cardiovascular. A
Belo Horizonte, MG – Brasil
3
Título de Anestesiologista pela Sociedade Brasileira de
rápida elevação da concentração plasmática é um dos principais fatores envolvidos.
Anestesiologia/MEC. Anestesiologista do Biocor Instituto Além de promover anestesia e/ou analgesia para o paciente, o médico que irá realizar o
e Santa Casa de Belo Horizonte, MG – Brasil
procedimento deve ter em mente a prevenção das complicações. Pesquisas em animais
suportam a emulsão lipídica como antídoto eficiente para a toxicidade cardiovascular
e neurológica dos anestésicos locais, principalmente a bupivacaína. Diante da hipótese
e diagnóstico de intoxicação, devem ser tomadas medidas para diminuir a morbidade e
a mortalidade.
Palavras-chave: Anestésicos Locais; Anestésicos Locais/envenenamento; Envenena-
mento/ terapia.

ABSTRACT

Local anesthetics are used therapeutically for many purposes, but mainly in clinical
anesthesia, which are used in various ways and by different routes. The maximum doses
of local anesthetics has to be respected and be used safely for poisoning not to occur.
The typical signs and symptoms of poisoning occur primarily in the nervous and cardio-
vascular system. The rapid elevation of plasma concentrations, is one of the main factor
involved. Besides promoting anesthesia and / or analgesia for the patient the doctor who
will perform the procedure should bear in mind the prevention of complications. Re-
searches on animals support the Lipid Emulsion as an effective antidote for cardiovascu-
lar and neurological toxicity of local anesthetics, especially bupivacaine. Measures should
be taken forward a hypotesis of intoxication of local anesthetics to reduce morbidity and
mortality.
Key words: Anesthetics, Local; Anesthetics, Local/poisoning; Poisoning/therapy

Introdução
Instituição:
Hospital Lifecenter
Belo Horizonte, MG – Brasil Os anestésicos locais (AL) são usados terapeuticamente com muitas finalidades,
Endereço para correspondência:
mas principalmente na anestesia clínica, em que são utilizados de várias formas
Av. Engenheiro Carlos Goulart 65, apto. 701 B
Bairro Buritis
e por diferentes vias. Anestesia e analgesia neuraxiais centrais, anestesia regional
Belo Horizonte, MG – Brasil intravenosa e bloqueios de nervos periféricos, aplicação tópica e infiltrações locais
CEP: 30455-700
E-mail: marcelopvida@gmail.com são condições empregadas na prática pelo anestesiologista. Outros usos clínicos

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Conduta na intoxicação por anestésicos locais

comuns incluem a administração venosa de lidoca- sequente aumento da fração livre da droga no plas-
ína para diminuir resposta à instrumentação traque- ma; deficiência de pseudocolinesterase; disfunção
al, como antiarrítmicos, para atenuar o aumento na hepática; insuficiência renal; insuficiência cardíaca;
pressão intraocular, pressão intracraniana e pressão uso de medicações cardiodepressoras e antiarrítmi-
intra-abdominal durante manipulação das vias aére- cos, como digitálicos, beta-bloqueadores, bloquea-
as tanto na extubação quanto na intubação, que po- dores dos canais de cálcio, mexiletina e amiodaro-
deriam resultar em tosse. Lidocaína intravenosa pode na; uso de bloqueadores de H1 que competem pelo
ser efetiva para diminuir a sensibilidade da via aérea mesmo sítio de ligação dos ALs no fígado para sua
pela instrumentação pelo mecanismo de depressão metabolização. O uso de benzodiazepínicos e anti-
dos reflexos da via aérea e diminuição do influxo de convulsivantes pode retardar, mascarar ou eliminar
cálcio no músculo liso.1 os sintomas iniciais da intoxicação por AL, aumen-
Para serem utilizados com segurança e para que tando o limiar convulsivo. O cloranfenicol, meperidi-
não ocorram intoxicações, as doses máximas dos na e a prometazina podem potencializar o efeito dos
ALs devem ser respeitadas. Os sinais e sintomas típi- ALs por um mecanismo desconhecido.
cos de intoxicação por AL ocorrem principalmente Outros fatores que podem interferir são o local de
no SNC e no sistema cardiovascular. administração e velocidade de administração, febre,
hidratação, instabilidade hemodinâmica, choque, ti-
reotoxicose e anemia grave.
Intoxicação por anestésicos locais
Toxicidade no sistema
A rápida elevação da concentração plasmática nervoso central
é um dos principais fatores envolvidos na intoxica-
ção. A concentração plasmática do anestésico local
está diretamente ligada à dose administrada, além de Os ALs cruzam a barreira hematoencefálica, le-
relações com absorção sistêmica, local da injeção, vando a alterações precoces que podem se mani-
distribuição tecidual, eliminação da droga e adição festar como sintomas gustativos, auditivos, visuais,
ou não de agentes vasoativos. A vascularização do queda do nível de consciência, convulsões e coma,
tecido anestesiado influencia a absorção do AL e é seguidos de sintomas cardiovasculares que podem
maior em ordem decrescente nos bloqueios de nervo ir de arritmias cardíacas a colapso cardiovascular e,
intercostal, bloqueios caudal e peridural, bloqueio de eventualmente, morte.
plexo braquial, femoral e ciático. Historicamente, anestésicos locais têm sido usa-
Níveis elevados podem produzir efeitos indeseja- dos para tratar status epilepticus por causa do seu
dos em sistemas elétricos sensíveis, dos quais os mais efeito concentração dependente nas convulsões. Em
importantes são o sistema nervoso central e o cardio- baixos níveis sanguíneos, ALs diminuem o fluxo san-
vascular. A relação é linear entre a absorção sistêmi- guíneo cerebral, o metabolismo e a atividade elétri-
ca e o nível plasmático e independe da concentração ca, sendo potentes anticonvulsivantes. Ao contrário,
da droga ou da velocidade da injeção.1 em altos níveis, atuam como pró-convulsivantes, usu-
Alguns fatores ligados à droga interferem dire- almente levando a convulsões generalizadas. Se o
tamente na intoxicação por AL, como lipossolubi- nível sérico da droga continua a aumentar, ambas as
lidade, potência e ligação proteica. Agentes mais vias do SNC são bloqueadas, tanto a excitatória quan-
potentes e mais lipossolúveis (bupivacaína, levobu- to a inibitória, resultando em generalizada depressão
pivacaína, ropivacaína) têm aumentada toxicidade do SNC.2
cardiovascular, assim como neurológica, sendo a bu- Portanto, baixas doses podem produzir depres-
pivacaína o mais cardiotóxico, cuja dose tóxica leva são do SNC e doses mais altas podem resultar em ex-
ao repentino colapso cardiovascular com arritmias citação do SNC e convulsões. O efeito estimulatório é
cardíacas e resistência à ressuscitação.1 Alguns fato- o resultado de mais sensibilidade dos neurônios ini-
res podem piorar a cardiotoxicidade dos ALs: fatores bidores corticais aos bloqueadores de impulso, cau-
ligados ao paciente, como a idade, principalmente sando depressão dos centros inibitórios cerebrais.
nos seus extremos; gestantes são mais susceptíveis à Essa estimulação pode causar as convulsões tônico-
intoxicação por AL pela baixa proteinemia, com con- -clônicas. Um sistema circulatório hiperdinâmico

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pode aumentar os efeitos tóxicos dos ALs ao causar A neurotoxicidade dos ALs podem produzir au-
aumento do fluxo sanguíneo e distribuição ao cére- mento do tônus simpático sobre o coração, o que po-
bro e diminuir sua depuração devido à distribuição deria ser a principal causa de arritmias cardíacas.9,10
para regiões longe do fígado. Assim, por exemplo, as Uma desordem importante causada pela adminis-
convulsões aumentam a frequência cardíaca, a pres- tração de grandes quantidades de prilocaína e/ou li-
são arterial e o débito cardíaco e diminuem a depura- docaína é a meta-hemoglobinemia, caracterizada pela
ção corpórea total. conversão da hemoglobina em meta-hemoglobina em
À medida que os níveis plasmáticos vão aumen- grande quantidade. A meta-hemoglobina é incapaz de
tando, os centros cognitivos e do raciocínio são de- se ligar ao oxigênio e transportá-lo aos tecidos, promo-
primidos. Nesse momento, podem ocorrer tontura, vendo anemia funcional e hipóxia tecidual.
zumbido, entorpecimento da língua, dormência Em geral, doses acima de 600 mg de prilocaína
perioral e gosto metálico - que não é inteiramente são necessárias para o desenvolvimento de meta-
uma manifestação central, mas pode representar o -hemoglobinemia clinicamente significativa em pa-
efeito direto do anestésico local sobre o tecido al- cientes adultos sem doenças prévias. O metabolismo
tamente vascularizado da cavidade oral. Se a quan- hepático da prilocaína resulta na formação de ortoto-
tidade de anestésico local aumentar mais, podem luidina, que é a responsável pela oxidação da hemo-
surgir as convulsões, a inconsciência, o coma, a globina para meta-hemoglobina.
parada respiratória e, finalmente, a depressão car- A meta-hemoglobinemia associada ao uso de
diovascular. prilocaína é espontaneamente reversível na maioria
As convulsões são tipicamente de duração curta dos casos, entretanto, nos casos mais graves ocorre
e autolimitadas. Entretanto, a parada respiratória é cianose, que não responde bem ao oxigênio. Nestes
comum por causa da depressão do centro respirató- casos, a terapia de escolha é a administração endove-
rio que acompanha a convulsão e a falta de drive res- nosa de azul de metileno, na esperança de deslocar a
piratório. A progressão do quadro com hipóxia, cia- ortotoluidina da molécula de hemoglobina.3
nose e parada cardíaca é facilitada pela combinação A condição ganha importância com o uso de
deletéria de consumo aumentado de oxigênio, cau- EMLA em pediatria. A mistura, que traz a prilocaína
sado pelos movimentos convulsivos, e diminuição da em sua fórmula, pode causar meta-hemoglobinemia,
oferta (depressão respiratória). caso não se respeitem as doses recomendadas.4-7

Toxicidade no sistema Manuseio da intoxicação por


cardiovascular (SCV) anestésicos locais

Anestésicos locais produzem depressão direta do Além de promover anestesia e/ou analgesia para
miocárdio, retardam a condução do impulso elétrico o paciente, o médico que irá realizar o procedimento
pelo nó átrio-ventricular (AV) e prolongam o perío- deve ter em mente a prevenção das complicações e a
do refratário. Uma dose de 5 mcg/mL de sangue de intoxicação por AL.
lidocaína é capaz de produzir depressão miocárdica. Assim, a equipe de saúde deve estar treinada tan-
A cardiotoxicidade da bupivacaína é aumentada em to para a realização do procedimento, como para o
modelos animais pela presença de hipóxia ou aci- tratamento das possíveis complicações. O local onde
dose. A biossíntese de proteínas é um processo que será realizado o procedimento, seja consultório ou
consome ATP e muito sensível à hipóxia. Depressão ambiente hospitalar, deve conter dispositivos para a
miocárdica induzida por altas concentrações de bu- reanimação cardiorrespiratória. Estes devem ser con-
pivacaína pode, em parte, ser explicada pelo prejuízo feridos diariamente e realizada manutenção periódi-
do metabolismo da energia celular. ca e adequada dos aparelhos.
Se aumentarmos a concentração a partir desse Uma visita pré-anestésica é importante, pois permiti-
nível, podem surgir bradicardia, inotropismo nega- rá orientar o paciente sobre o procedimento e ter o seu
tivo, vasodilatação periférica progredindo para fibri- consentimento verbal e assinado. A coleta de dados so-
lação e assistolia, esta última podendo ser difícil de bre a saúde do paciente, suas comorbidades e suas pos-
ser revertida.3-8 síveis alergias e intolerâncias a drogas serão avaliadas.

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Essa consulta permite ao anestesiologista plane- ■■ Interrompa a administração da droga imediatamente;


jar a técnica a ser realizada e também solicitar outras ■■ chame ajuda;
avaliações de outras clínicas diante de uma doença ■■ mantenha a via aérea pérvea e, se necessário, es-
preexistente, diminuindo a chance da ocorrência de tabeleça uma via aérea definitiva com intubação
complicações. orotraqueal;
Antes de realizar o procedimento, o paciente de- ■■ ofereça oxigênio a 100%: O2 aumenta o limiar con-
verá ser orientado sobre a técnica a ser realizada e so- vulsivo e previne hipoxemia, melhorando o prog-
bre algum desconforto que pode ser comum ou que nóstico do quadro; assegure ventilação pulmonar
seja inerente na técnica anestésica. Pode-se também adequada. Hiperventilação pode ajudar em casos
informar ao paciente possíveis sintomas que ele po- de acidose metabólica;
derá sentir e que deverá relatar logo que ocorrerem, ■■ estabeleça um acesso venoso, de preferência cali-
como, por exemplo, dor, parestesia, tontura, zumbi- broso, se não houver um;
dos e gosto metálico na boca. Esse contato com o ■■ coloque o paciente em decúbito dorsal horizontal
paciente é importante, pois o mantém confortável, ou leve Trendelenburg, a fim de melhorar as perfu-
seguro e é uma forma de monitorar a consciência. sões cardíaca e cerebral;
O paciente deve estar monitorizado com eletrocar- ■■ mantenha monitorização adequada de oxigenação
diograma contínuo, oximetria de pulso e dispositivo (oximetria de pulso), ritmo e frequência cardíaca
para aferição da pressão arterial. Oxigênio suplemen- (eletrocardiografia contínua) e pressão arterial;
tar através de cateter nasal pode ser utilizado, prin- ■■ o controle farmacológico das convulsões pode ser
cipalmente se alguma droga sedativa for empregada. obtido com benzodiazepínicos por via venosa, par-
Antes de se iniciar o procedimento, deve ser insta- ticularmente com o diazepan (5 a 10 mg) ou com
lado acesso venoso com cateter intravascular. o midazolan (5 a 15 mg). Lembre-se sempre de que
O procedimento deve ser realizado a partir de téc- essas medicações podem contribuir também para
nica adequada, promovendo aspiração antes de injetar, que o paciente entre em parada respiratória. As-
injeções lentas e mantendo o contato verbal com o pa- sim, você deve estar preparado para ventilá-lo arti-
ciente, em busca de qualquer sinal ou sintoma precoces ficialmente. Podem ainda ser usados o tiopental e
de intoxicação ou injeção intravascular inadvertida. o propofol em pequenas doses devido à depressão
Quando se utiliza ALs associados a vasocons- cardiovascular causada por essas drogas;
tritores, taquicardia pronunciada e/ou hipertensão ■■ inicie os protocolos para reanimação da Ameri-
nos segundos seguintes ao início da administração can Heart Association (ACLS). As manifestações
podem ser sinais de injeção intravascular inadverti- clínicas podem variar desde hipotensão, arritmias
da. Desta forma, a monitorização desses parâmetros cardíacas e assistolia. Ao tratar-se a hipotensão,
(pressão arterial e frequência cardíaca) é importante o posicionamento adequado do paciente e hidra-
a fim de se evitarem quadros graves de intoxicação. tação venosa com solução cristaloide podem ser
Se há suspeita de intoxicação por AL, tomar as suficientes. Se tratamento adicional for necessário,
seguintes providências (Figura 1): vasopressores devem ser administrados. A fenilefri-
na ou a efedrina9 devem ser consideradas antes da
epinefrina (adrenalina), porque esta última pode in-
Chame Ajuda
duzir arritmias e convulsões em doses séricas mais
– Acesso Venoso Calibroso
– Manter Via Aérea pérvea baixas de bupivacaína. Por causa de seus efeitos
se necessário IOT cardíacos imediatos e diretos, a adrenalina sensibi-
Interromper a Droga liza o coração a arritmias, ao passo que a fenilefrina
Posicionamento em DDH ou a efedrina o fazem em grau muito menor.10-13
leve Trendelenburg
– Controle das convulsões
– Se PCR iniciar ACLS
A bradicardia é vista também na intoxicação por
– Considerar Emulsão lipidica anestésicos locais. Frequência cardíaca abaixo de 40
batimentos por minuto geralmente indica a necessi-
Figura 1 - Fluxograma de conduta no paciente vítima
de intoxicação por anestésico local. dade de intervenção farmacológica. De novo devem-
VA= via aérea, DDH= decúbito dorsal horizontal, -se considerar alternativas antes de administrar-se
PCR= parada cardiorrespiratória. adrenalina. Assim, drogas anticolinérgicas como a

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atropina ou o glicopirrolato devem primeiramente As reações diretas são raras, mas incluem reações
ser administradas, nas doses iniciais de 0,5 a 1,0 mg e pirogênicas e sobrecarga de gorduras. As reações pi-
0,2 a 0,4 mg, respectivamente, para pacientes adultos. rogênicas imediatas podem ocorrer nos primeiros 10
Em se tratando de anestesia espinal, o predomínio a 20 minutos de infusão.
vagal não deve ser desprezado. Ajustes na pré-carga Os sintomas relacionados às reações pirogênicas
e uso de anticolinérgicos são importantes para evitar incluem febre, calafrios, náusea, vômitos, dor de ca-
hipotensão e bradicardia associadas a níveis séricos beça, dor nas costas, dor no peito, dispneia e ciano-
elevados de AL ou simplesmente a bloqueios altos.14,15 se. No entanto, as reações pirogênicas são relatadas
Entretanto, se o paciente não responder a essas me- nos ensaios clínicos em menos de 1% dos pacientes.17
didas, o uso da epinefrina não deve ser retardado. A Reações adversas mais tardias verificam-se quando
prioridade é evitar a assistolia, condição de prognós- as emulsões de gordura são administradas em doses
tico sombrio, como já dito anteriormente.1 excessivas, levando a acúmulo de gordura. Essas rea-
O tratamento das arritmias induzidas por overdo- ções incluem hiperlipidemia, hepatoesplenomegalia,
se de anestésicos locais é difícil, desde que os anes- icterícia, convulsões, anemia hemolítica, tempo de
tésicos locais são também antiarrítmicos. coagulação prolongado, trombocitopenia e embolia
A amiodarona, o cloreto de cálcio e o sulfato do gordurosa. Essas complicações têm sido vistas quan-
magnésio podem ser alternativas razoáveis. Final- do a ELI é administrada em doses que excedem a
mente, a cardioversão ou desfibrilação pode ser ne- capacidade de metabolismo ou quando a depuração
cessária e deve-se estar preparado para realizá-la. plasmática se encontra diminuída.
Deve-se considerar o uso de emulsão lipídica. A dose usual para adultos é de 2 g/Kg/dia (10 mL
O uso da emulsão lipídica intravenosa (ELI) co- de solução a 20% de ELI/Kg) infundido no período de
meçou como rotina na terapia de nutrição parenteral três a seis horas.18,19 A dose em crianças varia entre
em 1961 e se mantém até os dias de hoje.16 A função 0,4 e 4 g/Kg/dia (2,5 a 20 mL de solução a 20% de ELI/
primordial da ELI na nutrição parenteral é prover o Kg) em infusão contínua durante 24 horas.20
organismo de ácidos graxos livres. Recentemente Não existe limite máximo conhecido, mas gran-
está sendo usada como droga de ressuscitação em des volumes de ELI são rotineiramente administrados
casos de intoxicação por anestésicos locais. sob forma de nutrição parenteral com segurança.
A ELI pode ser composta de triglicerídeos de ca- Pesquisas em animais suportam o ELI como antí-
deia média, de cadeia longa ou da combinação dos doto eficiente para a toxicidade cardiovascular e neu-
dois. A formulação mais comumente utilizada con- rológica dos anestésicos locais (AL), principalmente
siste em triglicerídeos de cadeia longa na proporção a bupivacaína, assim como mostrado no Tabela 1.20
de 10 a 30%, juntamente com fosfolipídeos de ovo A partir de 2008 começaram a surgir relatos de ca-
e glicerol. Os triglicerídeos de cadeia longa contêm sos com ressuscitação cardiovascular bem-sucedida
ácidos graxos livres como o linoleato, o oleato, palmi- com ELI em pacientes com diagnóstico de parada
tato, linolenato e o estearato. Os ácidos graxos livres cardiorrespiratória por intoxicação por AL, após re-
são então absorvidos pelos tecidos e utilizados como animação convencional sem sucesso.
substratos energéticos. Uma vez nos tecidos, os ácidos A associação de anestesiologistas da Grã-Breta-
graxos livres são transportados para as mitocôndrias nha e Irlanda propôs abordagem na PCR decorrente
através da translocase carnitina, onde sofrem oxida- de intoxicação por AL que consiste em21:
ção, principalmente do tipo beta-oxidação, produzin- ■■ em caso de PCR, utilizar emulsão lipídica a 20%

do energia na forma de adenosina trifosfato (ATP). associada aos protocolos de reanimação (ACLS),
A emulsão lipídica intravenosa (ELI) tem históri- iniciando com bolus de 100 mL e manutenção com
co de muita segurança, baseado em seu uso frequen- infusão de 0,25 mL/Kg/min até 400 mL em 20 minu-
te e duradouro em pacientes criticamente enfermos. tos. Repetir o bolus inicial duas vezes, com interva-
As reações adversas são raras e podem ser divididas lo de cinco minutos se circulação adequada ainda
em duas categorias: secundárias à contaminação da não estiver sido restabelecida. Aumentar a infusão
solução e reações diretas. A contaminação geralmen- contínua para 0,5 mL/Kg/min e repetir mais dois
te ocorre durante o preparo da solução parenteral. bolus de 100 mL com intervalo de cinco minutos;
Infecções ou irritações venosas normalmente não ■■ continuar infusão até que se restabeleça a circulação;

ocorrem quando a ELI é administrada isoladamente. ■■ continuar RCP durante a infusão da emulsão lipídica.

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Conduta na intoxicação por anestésicos locais

Tabela 1 - Pesquisas em modelos animais tratados com emulsão lipídica


Autor Ano Toxina Modelo Protocolo de Tratamento com ELI Resultado
Pré-tratamento
Weinberg et al. 1998 bupivacaína Rato Aumentou a dose letal média
15 mL/Kg 10%, 20% ou 30%
Resgate com bolus de 4 mL/Kg a 20% Aumentou o tempo de sobrevivência,
Weinberg et al. 2003 bupivacaína Cachorro
seguido de 0,5 mL/Kg em 10 min melhorou a hemodinâmica, PO2 e Ph
Melhorou o tempo de sobrevivência,
Pré-tratamento
Cave et al. 2006 propranolol Rato aumentou FC, diminuiu o prolongamento
16 mL/Kg a 20%
de QRS
Resgate Melhorou a PAM, melhorou a
Cave et al. 2002 tiopental Rato
8 mL/Kg a 20% sobrevivência
Resgate Aumentou o tempo de sobrevivência,
Bania et al. 2007 verapamil Cachorro
7 mL/Kg a 20 % diminuiu a incidência de bradicardia
Resgate
Tebbutt et al. 2006 verapamil Rato Aumentou o tempo de sobrevivência
12,4 mL/Kg a 20%
Simultâneo Melhorou a PAM, melhorou a
Yoav et al. 2002 clomipramina Rato
2,5 mL a 10% sobrevivência
Resgate
Harvey et al. 2007 clomipramina Coelho Aumentou o tempo de sobrevivência
12 e 8 mL/Kg a 20%
Resultado das pesquisas em modelos animais tratados com emulsão lipídica20 intravenosa. FC= frequência cardíaca, PAM = pressão arterial média.
* Fonte: Journal of medical toxicology 2008; 21:09-114.

A recuperação de parada cardíaca por AL pode A terceira teoria seria que a ELI pode restaurar a
acontecer até uma hora após19. Faz-se necessária ade- função dos miócitos pelo aumento de cálcio intracelu-
quada reanimação, pois as moléculas do anestésico lar20. No tecido cardíaco isolado, ácidos graxos livres
local devem ser retiradas dos receptores presentes no ativam diretamente os canais de cálcio voltagem-de-
miocárdio. pendentes. Essa ativação dos canais de cálcio foi de-
Embora o mecanismo de ação do ELI como an- monstrada para ácidos graxos insaturados (linoleico,
tídoto não esteja completamente esclarecido, há linolenato e oleato), saturados (palmitato e estearato),
pelo menos três explicações possíveis. Na primei- de cadeia longa e ácidos graxos livres. Esses ácidos
ra, o ELI cria um coletor de drogas farmacologica- graxos são componentes importantes da ELI.
mente lipossolúveis.20 No sangue, o ELI existe como Esse mecanismo parece ser especialmente impor-
pequenas gotículas de gordura que proporcionam tante na intoxicação por antagonistas de canal de cálcio.
um compartimento separado para os lipídios, nos Mais estudos são necessários para a plena eluci-
quais compostos lipofílicos podem se dissolver. Por dação dos mecanismos de ação da ELI. É possível
exemplo, a bupivacaína, que preferencialmente se que todos os três mecanismos desempenhem papel
dissolve em gordura na proporção de 12:1. Com a sinérgico na terapia lipídica.20
criação do complexo lipídico, a concentração efe- Como conclusão, vê-se que a terapia lipídica com
tiva da droga lipofílica aos tecidos é menor, dimi- ELI aparece como promissor antídoto contra intoxi-
nuindo sua biodisponibilidade.20 cações por drogas altamente lipossolúveis, assim
O segundo mecanismo possível seria pelo aumen- como os ALs. Evidências em pesquisas em animais
to da fonte energética cardíaca. Os ácidos graxos são suportam esse conceito, assim como experiências
o substrato primário para a produção do ATP utiliza- clínicas iniciais bem-sucedidas.
do no miocárdio.20
Além do antagonismo direto do canal iônico de
sódio, drogas anestésicas locais podem exercer car- Referências
diotoxicidade devido à utilização dos substratos ener-
géticos estar prejudicada. Os ALs, incluindo a bupiva- 1. Liu SS, Hodgson PS. Anestésicos Locais. In: Barash PG, Cullen BF,
Stoelting RK, editores. Anestesia Clínica. 4a ed. Barueri: Amaral
caína, podem prejudicar o transporte de ácidos graxos
RVG; 2004. p.449-69.
para dentro da mitocôndria cardíaca, em última análi-
2. Kopp SL, Wynd KP, Horlocker TT, Hebl JR, Wilson JL. Regional
se, esgotando as moléculas energéticas disponíveis. A
blockade in patients with a history of a seizure disorder. Anesth
ELI pode fornecer quantidade suficiente de substrato Analg. 2009; 109:272-8.
de ácidos graxos, restaurando a função cardíaca.

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Conduta na intoxicação por anestésicos locais

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