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Como terminar uma tese de sociologia: pequeno

diálogo entre um aluno e seu professor (um tanto


socrático)

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T: J G V, L M  L e U F G
R : A C M

(Um escritório na London School of Econo- é, antes de tudo, um argumento negativo. Ela
mics, em um fim de tarde de uma terça-feira não diz nada de positivo sobre seja lá o que for.
escura de fevereiro, antes de sair para tomar A: Então, o que ela pode fazer por mim?
uma cerveja em um pub. Batem à porta discre- P: O melhor que ela pode fazer por você é
ta, mas insistentemente. Um estudante entra algo do tipo: “Quando seus informantes mistu-
no escritório) ram organização, hardware, psicologia e políti-
Aluno: Estou atrapalhando? ca em um mesmo enunciado, não reparta tudo
Professor: De forma alguma. Este é o meu isso por diferentes recipientes; tente, ao contrá-
horário de plantão. Entre, sente-se. rio, seguir as ligações que eles fazem entre estes
A: Obrigado. elementos, que pareceriam incomensuráveis se
P: Então... Tenho a impressão de que está você seguisse as categorias acadêmicas usuais
um pouco perdido? do social”. Isso é tudo. A ANT não pode lhe
A: Bem, sim. Tenho de lhe dizer que tenho dizer positivamente o que é a ligação.
dificuldades para aplicar a Teoria do Ator-Rede A: Então, por que ela é chamada de “teo-
(Actor-Network Theory – ANT) em meu estudo ria”, se ela não diz nada sobre as coisas que es-
de caso sobre as organizações. tudamos?
P: Não me surpreende. Ela não é aplicável P: Ela é uma teoria, e penso que uma teoria
a coisa alguma. forte, mas sobre como estudar as coisas, ou an-
A: Mas nós aprendemos... quero dizer... ela tes sobre como não estudá-las. Ou ainda, sobre
parece ser bastante importante por aqui. Você como permitir que os atores tenham algum es-
está dizendo que ela é realmente inútil? paço para se expressarem.
P: Ela pode ser útil, mas apenas se não for A: Você quer dizer que as outras teorias so-
“aplicável” a qualquer coisa. ciais não permitem isso?
A: Desculpe-me, mas você não está tentan- P: De uma certa maneira, sim. E isto, em
do me pregar uma espécie de peça Zen, está? razão mesmo do que constitui sua força: elas
Devo alertá-lo, sou apenas um doutorando em são muito boas em dizer coisas positivas acer-
estudo das organizações, então não espere... ca do que constitui o mundo social. Na maior
Além disso, não estou muito a par da produção parte dos casos é perfeito; os ingredientes são
francesa; apenas li alguns dos Mil Platôs, mas conhecidos, seu número pode se manter sufi-
não os entendi muito bem... cientemente limitado. Mas isto não funciona
P: Desculpe-me. Eu não estava tentando fa- quando as coisas estão se transformando rapi-
zer nenhuma gracinha. Apenas dizia que a ANT damente. E, eu acrescentaria, não, por exemplo,

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nos estudos organizacionais, ou nos estudos da A: Isso é confuso! Mas os executivos de mi-
informação, ou marketing, ou nos estudos de nha empresa não formam eles uma bela, reve-
ciência e tecnologia, nos quais as fronteiras são ladora e significativa rede?
terrivelmente fluidas. Novos campos: é aí que P: Talvez, quero dizer, certamente sim – e
você vai precisar da ANT. daí?
A: Mas meus agentes, atores, quero dizer, as A: Daí que eu posso estudá-la com a Teoria
pessoas que estudo na companhia, elas formam do Ator-Rede!
muitas redes. Elas estão conectadas a muitas P: De novo talvez sim, talvez não. Isso de-
coisas, elas estão por toda parte... pende inteiramente do que você permite que
P: Esse é, exatamente, o problema. Veja, seus atores, ou melhor, seus actantes façam.
você não precisa do Ator-Rede para dizer algo Estar conectado, estar interconectado, ser he-
que qualquer teoria social disponível diria. É terogêneo, não é o suficiente. Tudo depende
uma perda de tempo pegar este argumento tão do tipo de ação que está fluindo de uma coisa
bizarro para mostrar que seus informantes es- para outra. Em inglês é mais claro: no termo
tão em uma rede. network, há a net, a rede, e o work, o traba-
A: Mas eles estão! Eles formam uma rede! lho. Na verdade, deveríamos dizer worknet ao
Veja, eu tracei um esquema com as suas cone- invés de network. É certamente o trabalho, o
xões: chips de computador, padrões, educação, movimento, o fluxo e as mudanças que devem
dinheiro, recompensas, países, culturas, direto- ser enfatizados. Mas agora estamos atados à ne-
rias corporativas, tudo. Não descrevi uma rede twork e todos pensam que nós nos referimos à
em sua concepção? World Wide Web 1 ou algo do tipo.
P: Não necessariamente. Eu concordo que A: Você quer dizer que mesmo eu tendo de-
isso tudo é terrivelmente confuso, e muito por monstrado que meus atores estão relacionados
nossa culpa – o termo que inventamos é bem nos moldes de uma rede, ainda assim não reali-
horrível... Mas você não deve confundir a rede zei um estudo conforme a ANT?
que é delineada pela descrição e a rede que é P: É exatamente isso que quero dizer. A
utilizada para fazer a descrição. ANT é mais como o nome de um lápis ou um
A: Como assim? pincel do que o nome de um objeto a ser dese-
P: Certamente, você concordaria que de- nhado ou pintado.
senhar com um lápis não é o mesmo que de- A: Mas quando eu disse que a ANT era
senhar a forma de um lápis. É o mesmo com uma ferramenta e perguntei se ela poderia ser
esta palavra ambígua: rede. Com o Ator-Rede aplicada, você objetou!
você pode descrever algo que não se aparenta P: Porque não é uma ferramenta – ou me-
em nada com uma rede – um estado mental lhor, porque ferramentas nunca são “meras”
individual, uma parte de um maquinário, um ferramentas, prontas para serem aplicadas:
caráter ficcional; inversamente, você pode des- elas sempre modificam os objetivos que você
crever uma rede – metrôs, encanamentos, tele- tinha em mente. Isto é o que “ator” significa.
fones – que não está delineada no modo como O Ator-Rede (eu concordo que o nome é tolo)
o Ator-Rede o faz. Você está, simplesmente, permite que você produza alguns efeitos que
confundindo o objeto com o método. ANT é jamais seriam obtidos por nenhuma outra teo-
um método, e um método essencialmente ne- ria social. Isso é tudo que posso garantir. Uma
gativo; ela não diz nada sobre a forma daquilo
que ela permite descrever. 1. WWW, em português, significa “Rede Mundial de
Computadores” [N.T].

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experiência bem comum: tente desenhar com A: Mas é preciso sempre colocar as coisas
um lápis de grafite ou com um pedaço de car- em seu contexto, não?
vão, você vai sentir a diferença; cozinhar uma P: Eu nunca entendi o que significaria esse
torta num forno a gás não é o mesmo que num contexto. A moldura torna um quadro mais
forno elétrico. bonito, ela pode ajudar a melhor dirigir o
A: Mas não é isso que o meu orientador olhar, aumentar seu valor, mas ela não acres-
quer. Ele quer a moldura2 para um quadro na centa nada à pintura. A moldura, ou o contex-
qual eu possa colocar meus dados. to, é precisamente o conjunto de fatores que
P: Se você quer armazenar mais dados, não alteram em nada os dados, aquilo que é de
compre um disco-rígido maior... conhecimento comum sobre eles. Se eu fosse
A: Ele sempre diz: “Você precisa de uma você, eu me absteria de toda e qualquer moldu-
moldura”. ra. Descreva, simplesmente, o estado dos fatos
P: Ah? Então seu orientador negocia com que estão à mão.
pinturas? É verdade que molduras são interes- A: “Descreva, simplesmente”! Desculpe-me,
santes: douradas, brancas, esculpidas, barrocas, mas isso não é terrivelmente ingênuo? Não seria
em alumínio, etc. Mas você já conheceu algum isto exatamente o mesmo tipo de empirismo,
pintor que iniciou sua obra-prima escolhendo ou realismo, contra os quais fomos alertados?
primeiramente sua moldura? Seria um tanto Eu achava que seu argumento fosse – como
estranho, não? posso dizer? – mais sofisticado do que isso.
A: Você está fazendo jogo de palavras. Por P: Porque você pensa que descrever é fácil?
“moldura”, quero dizer uma teoria, um argu- Você deve estar confundindo descrição com en-
mento, uma perspectiva geral, um conceito cadeamento de clichês. Para cada centena de li-
– algo que dê sentido aos dados. Sempre preci- vros de comentários, argumentações, de glosas,
samos de uma. há somente uma obra de descrição. Descrever,
P: Não, não precisamos! Diga-me: se algum estar atento aos estados concretos das coisas,
X é um mero “caso de” Y, o que é mais impor- encontrar a narrativa adequada e única para
tante de ser estudado: X, que é o caso específi- uma situação dada – Eu pessoalmente sempre
co, ou Y, que é a regra? achei isso incrivelmente exigente. Já ouviu falar
A: Provavelmente Y... mas também X, ape- de Harold Garfinkel?
nas para saber se realmente é uma aplicação de A: Devo dizer que estou perdido. Nos expli-
Y... Bem, acho que os dois. caram que há dois tipos de sociologia, a inter-
P: Eu apostaria em Y, uma vez que X não te pretativa e a objetivista. Certamente você não
ensinaria nada de novo. Se alguma coisa não é quer dizer que você é defensor do tipo objeti-
nada além de um “exemplo” de uma lei geral, vista?
estude, então, diretamente esta lei geral... Um P: Pode apostar que sim! Em todos os sen-
estudo de caso que carece de ser complementa- tidos.
do por uma moldura é um estudo de caso, já de A: Você? Mas nos disseram que você era
saída, mal escolhido! uma sorte de relativista! Você foi citado por
dizer que mesmo as ciências naturais não são
2. Optamos por traduzir os termos frame e framework objetivas... Então, tudo indica que você é favo-
como “moldura”, tal como fizeram os tradutores rável a uma sociologia interpretativa, à multi-
da versão francesa, cadre. Em alguns casos optamos plicidade de pontos de vista e de perspectivas,
por traduzir framework como “quadro explicativo” e tudo mais.
[N.T].

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P: Eu não tenho muita paciência com as so- está sempre do outro lado da cerca. E não faz
ciologias interpretativas, seja lá o que você qui- diferença se consideram o outro lado mais ver-
ser chamar por este nome. Não. Ao contrário, de ou mais podre; de qualquer modo, ele está
acredito firmemente que as ciências são objeti- sempre fora do alcance.
vas – o que mais elas poderiam ser? Elas tratam A: Mas você não negaria que você também
de objetos, não? Eu simplesmente digo que os possui um ponto de vista, que a ANT também
objetos podem parecer um pouco mais com- é situada, que você também acrescenta uma ou-
plicados, entrelaçados, múltiplos, complexos, tra camada de interpretações, uma perspectiva?
emaranhados, do que aquilo que o “objetivis- P: Não, por que eu “negaria” isso? Mas e daí?
ta”, como você diz, gostaria que eles fossem. A grande coisa sobre um ponto de vista é, pre-
A: Mas é exatamente isso que as sociologias cisamente, o fato de que você pode mudá-lo!
“interpretativas” argumentam, não? Porque eu seria um prisioneiro dele? Da posi-
P: Ah não, não mesmo. Elas diriam que os ção em que se situam na terra, os astrônomos
desejos humanos, os significados humanos, as têm uma perspectiva limitada, por exemplo em
intenções humanas, etc., introduzem alguma “fle- Greenwich, no Observatório situado rio abai-
xibilidade interpretativa” em um mundo de ob- xo desde daqui – você já foi lá? É fabuloso. E
jetos inflexíveis, de “relações puramente causais”, mesmo assim, eles têm conseguido trocar de
de “conexões estritamente materiais”. Isto não é o perspectiva muito bem, através de instrumen-
que estou dizendo. O que diria é que este compu- tos, telescópios, satélites. Eles agora já podem
tador aqui em cima da mesa, esta tela, este teclado, desenhar o mapa da distribuição das galáxias
enquanto objetos, esta escola são feitos de muitas em todo o universo. Nada mal, não? Mostre-
camadas, exatamente do mesmo modo que você, me um ponto de vista, e eu lhe mostrarei duas
sentado aqui, o é: seu corpo, sua linguagem, suas dúzias de modos de alterá-lo. Ouça: toda esta
questões. É o objeto em si mesmo que acrescenta oposição entre “ponto de vista” e “visão de par-
a multiplicidade, ou melhor, a coisa, a “reunião”3. te alguma”, você pode seguramente esquecer. E
Quando você fala em hermenêutica, não importa também esta diferença entre “interpretativo” e
qual precaução tome, você sempre espera o segun- “objetivista”. Deixe a hermenêutica de lado e
do sapato cair: inevitavelmente, alguém acrescen- volte para seu objeto – ou melhor, para a coisa.
tará, “mas é claro que existe algo “natural”, coisas A: Mas, eu sempre estou limitado ao meu
“objetivas” que não são interpretadas”. ponto de vista situado, à minha perspectiva, à
A: É exatamente isso que ia dizer! Não há minha própria subjetividade?
apenas realidades objetivas, mas também reali- P: Você é bem obstinado! O que o faz achar
dades subjetivas! É por isso que precisamos de que “ter um ponto de vista” significa “ser limita-
ambos os tipos de teoria social... do”, ou especialmente ser “subjetivo”? Quando
P: Viu? Esta é a armadilha inevitável: “Não você viaja e segue as placas “Belvedere”, “Pano-
somente, mas também”. Ou se estende o ar- rama”, “Bella Vista”, quando você finalmente
gumento a tudo, mas daí ele se torna inútil chega àquele lugar que lhe tira o fôlego, de que
– “interpretação” se torna um outro sinônimo maneira esta é uma prova de seus “limites sub-
de “objetividade” – ou se limita o argumento a jetivos”? É a coisa em si mesma, o vale, os picos,
um aspecto da realidade, o humano, e, então as estradas que lhe oferecem este alcance, este
você está atado – uma vez que a objetividade toque, esta tomada. A melhor prova é que dois
metros abaixo, você não pode ver nada por causa
das árvores, e dois metros acima, também nada
3. Tradução de “assemblage” por “reunião”.

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por causa de um estacionamento. E mesmo as- P: É claro que está, mas de novo, e daí? Não
sim você tem a mesma limitação “subjetiva”, e acredite em toda aquela bobagem de ser “limi-
tem exatamente o seu mesmo “ponto de vista”! tado” a uma perspectiva. Todas as ciências têm
Se você pode ter diferentes pontos de vista sobre inventado formas de se moverem de uma afir-
uma estátua, é porque a estátua em si mesma é mação para outra, de um quadro de referência
tridimensional e lhe permite, sim, ela permite para outro, pelo amor de Deus: isso se chama
que você ande em torno dela. Se algo comporta relatividade.
uma multiplicidade de pontos de vista, é porque A: Ah! Então você confessa ser um relati-
este algo é muito complexo, dotado de dobras vista!
intrincadas, bem organizado, e bonito, sim, ob- P: Mas é claro, o que mais eu poderia ser?
jetivamente bonito. Se quero ser um cientista e alcançar objetivi-
A: Mas, certamente, nada é objetivamente dade, tenho de ser capaz de me mover de um
bonito – beleza tem a ver com subjetividade... quadro de referência para outro, de um ponto
gosto e cor são relativos... Eu estou perdido de de vista para outro. Sem estes deslocamentos,
novo. Por que nós passaríamos tanto tempo eu estaria limitado ao meu estreito ponto de
combatendo o objetivismo, então? O que você vista de uma vez por todas.
diz não pode estar certo. A: Então você associa objetividade e relati-
P: Porque as coisas que as pessoas chamam vismo?
de “objetivo” são, na maior parte dos casos, P: “Relatividade”, sim, claro. Todas as ciên-
uma série de clichês. Nós não temos muitas cias fazem o mesmo. Nossas ciências também.
boas descrições de nada: do que é um computa- A: Mas qual é a nossa maneira de mudar
dor, um elemento de software, um sistema for- nossos pontos de vista?
mal, um teorema, uma empresa, um mercado. P: Já lhe disse, as descrições são o nosso
Nós não sabemos quase nada sobre o que é esta negócio. Todos os demais estão traficando cli-
coisa que está estudando: organização. Como, chês. Entrevistas, sondagens, o que seja – nós
então, poderíamos ser capazes de distinguí- vamos, nós ouvimos, nós aprendemos, nós
la da subjetividade? Então, há duas maneiras praticamos, nós nos tornamos competentes,
de criticar a objetividade: uma é se afastar do nós mudamos nossa visão. De fato é bem sim-
objeto para adotar o ponto de vista humano ples: é chamado de trabalho de campo. Bons
subjetivo. Mas é da outra direção que eu estou trabalhos de campo sempre produzem muitas
falando: a do retorno ao objeto. Porque deverí- novas descrições...
amos deixar os objetos serem descritos apenas A: Mas eu já tenho muitas descrições. Estou
pelos idiotas?! Os positivistas não são donos afogado nelas. É exatamente este o meu pro-
da objetividade. Um computador descrito por blema. É por isso que estou perdido; é por isso
Alan Turing é um muito mais rico e mais inte- que achei que seria útil vir até você. A Teoria do
ressante que aqueles descritos pela Wired Ma- Ator-Rede não pode me ajudar com esta massa
gazine, não? Como vimos em sala ontem, uma de dados? Eu preciso de um quadro explicativo!
usina de sabão descrita por Richard Powers em P: “Meu reino por um quadro!” Bem co-
Gain é bem mais viva do que aquela que você movente, acho que entendo seu desespero.
leu nos Harvard Case Studies. O nome do jogo Mas não, a ANT é mesmo inútil para isso. Seu
é voltar ao empirismo. principal argumento é que os próprios atores
A: Ainda assim, eu estou limitado à minha fazem tudo, inclusive seus próprios quadros,
própria visão. suas próprias teorias, seus próprios contextos,

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sua própria metafísica, até mesmo sua própria que não nos ajuda nem na descrição nem na
ontologia... Então, temo que a direção a seguir explicação. Neste caso, jogue-a fora.
seja: mais descrições. A: Mas todos os meus colegas se utili-
A: Mas as descrições são longas demais. Ao zam de um monte de explicações: “a cultu-
invés disso, eu tenho que explicar. ra corporativa da IBM”, por exemplo, ou “o
P: Viu? É neste ponto que eu discordo da isolacionismo britânico”, ou “a pressão do
maior parte do treinamento em ciências so- mercado”, ou “o interesse individual”. Por
ciais. que eu deveria me privar de todas estas expli-
A: Você discordaria da necessidade das ci- cações contextuais?
ências sociais fornecerem uma explicação para P: Você pode mantê-las, se isso lhe faz bem,
os dados que elas acumularam? E você ainda se mas não creio que elas expliquem coisa alguma
intitula um cientista social e um objetivista! – elas são meros ornamentos. No melhor das
P: Eu diria que se sua descrição precisa de hipóteses elas são aplicáveis a todos os atores, o
uma explicação, ela não é uma boa descrição, que significa que são absolutamente supérfluas,
só isso. Apenas descrições ruins precisam de ex- uma vez que são incapazes de introduzir uma
plicação. É bem simples, na verdade. O que se diferença entre eles. Na pior, elas afogam todos
entende por “explicação”, na maior parte das os atores interessantes em um dilúvio de ato-
vezes? A adição de um outro ator para prover res desinteressantes. Em regra geral, o contexto
àqueles já descritos a energia necessária para cheira mal. É apenas uma maneira de parar a
agir. Mas, se você tem que adicionar um ator, descrição quando se está cansado ou com pre-
então a rede não está completa, e, se os atores já guiça demais para continuar.
reunidos não têm energia suficiente para agir, A: Mas é exatamente esse o meu problema:
então eles não são “atores”, e sim meros inter- parar. Eu preciso terminar esta tese. Eu tenho
mediários, tolos ou marionetes. Eles não fazem apenas mais oito meses. E você sempre diz:
nada, então não deveriam estar na descrição. “mais descrições”. Mas isso é como Freud e
Eu nunca vi uma boa descrição que precisasse suas curas: uma análise interminável. Quan-
de uma explicação. Mas, eu vi um sem número do devemos parar? Meus atores estão por toda
de descrições ruins para as quais nada foi acres- parte! Para onde eu devo ir? O que é uma des-
centado por uma adição massiva de “explica- crição completa?
ções”! E a ANT não ajudou... P: Eis agora uma boa questão, pois é de
A: Isso é bastante perturbador. Eu deveria questão prática. Como eu sempre digo: “uma
saber – os outros estudantes me alertaram a boa tese é uma tese feita”. Mas existe uma outra
não mexer com estas histórias de ANT nem maneira de terminar uma tese que não “acres-
mesmo com uma vara comprida... Agora você centando uma explicação” ou “colocando-a em
esta me dizendo que eu nem deveria tentar ex- um quadro explicativo”.
plicar qualquer coisa que seja! A: Diga-me, então.
P: Caro estudante, eu não disse isso, mas, P: Você pára quando tiver escrito as suas
simplesmente que ou a sua descrição é relevan- 50.000 palavras ou, qualquer que seja o forma-
te e, na prática, você está adicionando um novo to aqui na LSE, eu sempre me esqueço.
agente à descrição – a rede é simplesmente mais A: Oh! Isso é ótimo! Então, minha tese ter-
longa do que você pensava – ou, então, não é mina quando ela estiver completa... Isso ajuda
um ator que fará diferença e, neste caso, você muito, muito obrigado mesmo! Eu me sinto
está simplesmente adicionando algo irrelevante bem aliviado agora...

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P: Fico contente com sua satisfação. Não, um realismo raso. Uma solução é adicionar à
falando sério, você não concorda que todo mé- sua análise um “modelo teórico”, uma “expli-
todo depende do tamanho e do tipo de texto cação”. A outra é escrever a última palavra do
que você prometeu entregar? último capítulo dessa sua maldita tese.
A: Mas isso é um limite textual, não tem A: Eu tenho uma formação científica! Eu
nada haver ver com o método. sou engenheiro de sistemas – eu não vim para
P: Viu? De novo é por isso que discordo to- os Estudos de Organização para abandonar
talmente da maneira pela qual os doutorandos tudo isso. Eu pretendo adicionar defluxogra-
são treinados. Escrever textos tem tudo a ver com mas, instituições, pessoas, mitologias, psicolo-
o método. Você escreve um texto de tantas pa- gia a tudo que eu já conheço. Inclusive, eu estou
lavras, em tantos meses, por uma certa quantia preparado para ser “simétrico”, tal como você
de dinheiro, baseado em tantas entrevistas, umas nos ensinou, a respeito de todos aqueles fato-
tantas horas de observação e tantos documentos. res. Mas não me diga que ciência corresponde a
Isso é tudo. Não há mais nada a se fazer. contar belas histórias. Essa é a dificuldade com
A: Mas é claro que há: eu aprendo, eu estu- você. Em um momento você é completamente
do, eu explico, eu critico, eu... objetivista, e mesmo de um realismo ingênuo
P: Mas todos esses objetivos grandiosos, – “apenas descreva” – e em outro você é com-
você os alcança através de um texto, não? pletamente relativista – “conte belas histórias e
A: Certamente, mas ele é uma ferramenta, suma”. Isso é terrivelmente francês, não?
um meio, uma maneira de me expressar. P: E isso faz de você terrivelmente o quê?
P: Não há ferramentas, nem meios, apenas Não seja tolo. Quem falou em “belas histórias”?
mediadores. Um texto é denso. Esse é um prin- Eu não, eu disse que você está escrevendo uma
cípio da ANT, se ela tiver alguma. tese de doutorado. Pode negar isso? E depois
A: Desculpe-me professor, como eu já lhe eu disse que essa tese de tantas palavras – que
disse, eu nunca fiz maiores investimentos na será o único resultado duradouro de sua estada
produção filosófica francesa. Eu poderia com- entre nós – deve ser densa.
por linhas de programa em C ou em C++ 4, mas A: O que isto quer dizer?
eu não domino Derrida, semiótica, ou algo do P: Isto quer dizer que ela não é uma vidra-
tipo. Eu não acredito que o mundo seja feito de ça transparente, que transporta as informações
palavras e coisas do gênero... sobre seu estudo sem deformá-las. “Não há in-
P: Não tente ser sarcástico. Isso não combi- formação, apenas trans-formação”, tradução
na com o engenheiro que existe em você. E, de se preferir. Suponho que você esteja de acordo
qualquer maneira, eu não acredito nisto tam- com este slogan da ANT? Bem, então ela deve
bém. Você me perguntou como se faz para pa- ser verdadeira também para sua tese, não?
rar, eu só estou lhe dizendo que o máximo que A: Talvez, mas, em que sentido isso pode
você pode conseguir, como aluno de doutora- me ajudar a ser mais científico, isso é tudo o
do, é acrescentar, a um certo estado de conhe- que eu quero saber? Eu não quero abandonar o
cimento atual, um texto que possa ser lido pela ethos da ciência.
banca examinadora, talvez por um punhado de P: Uma vez que o texto, segundo a maneira
informantes e dois ou três colegas de doutora- como é escrito, capture ou não a rede de atores
do. Nada de muito extravagante nisso. Apenas que você quer estudar. Na nossa disciplina, o
texto não é uma história, nem uma bela histó-
4. C e C++ são linguagens de programação de sistemas ria, mas o equivalente funcional do laboratório.
para computador [N.T].

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É o local dos testes, experimentos e simulações. a ser adicionada à “mera descrição”. Não tente
Dependendo do que se passa nele, há ou não trocar a descrição pela explicação: simplesmen-
há um ator, há ou não há uma rede sendo tra- te continue com a descrição. As suas próprias
çada. E isso depende inteiramente da maneira idéias sobre a companhia não interessam se
precisa como ele é escrito – e cada novo tópico comparadas à questão de como essa parte da
exige uma nova maneira de ser tratado por um empresa tem feito para se desenvolver.
texto. A maior parte dos textos são fatalmente S: Mas, se as pessoas não atuam, se elas não
chapados. Nada acontece neles. comparam ativamente, padronizam, organi-
A: Mas ninguém fala sobre “texto” em nos- zam, generalizam, o que eu faço? Eu estarei
so programa. Nós falamos sobre “estudar orga- perdido! Eu serei incapaz de produzir outras
nizações”, não em “escrever” sobre elas. explicações.
P: É isso que estou falando a você: você está P: Você é mesmo extraordinário! Se seus
sendo mal treinado! Não ensinar aos alunos de atores não atuam, eles não deixarão qualquer
doutorado em ciências sociais a escreverem suas rastro que seja. Assim, você não terá nenhuma
teses é como não ensinar aos químicos fazerem informação. Então você não terá nada a dizer.
experimentos laboratoriais. É por isso que atu- S: Você quer dizer que, quando não há ne-
almente eu só ensino a escrever. É verdade, eu nhum rastro, devo permanecer em silêncio?
me sinto como um velho cretino sempre repe- P: Incrível! Você poderia levantar essa ques-
tindo a mesma coisa: “descreva, escreva, descre- tão em qualquer uma das ciências naturais? Ela
va, escreva...” soaria completamente tola. Só um cientista so-
A: O problema é que não é isso que meu cial para achar que pode continuar com a expli-
orientador quer. Ele quer que meu estudo de cação mesmo na ausência de informação! Você
caso seja generalizável. Ele não quer uma “mera está realmente preparado para produzir dados?
descrição”. Então, mesmo se eu fizer o que A: É claro que não, mas eu ainda quero...
você quer, eu terei uma boa descrição de um P: Bom, pelo menos você é mais razoável
determinado estado de coisas, e então? Então, que muitos dos seus colegas. Se não há rastro,
eu ainda tenho que dispor tudo em um quadro conseqüentemente não há informação, não há
explicativo, encontrar uma tipologia, compa- descrição, e por isso não há conversa. Não pre-
rar, explicar, generalizar. É por isso que começo encha com nada. É como um mapa de um país
a entrar em pânico. no século XVI: ninguém foi até lá, ou ninguém
P: Você só deve entrar em pânico se seus ato- de lá voltou, por isso, pelo amor de Deus, dei-
res não tiverem feito tudo isso da mesma forma, xe-o em branco! Terra incógnita.
constantemente, ativamente, reflexivamente, S: Mas, e as entidades invisíveis que atuam
obsessivamente: eles também comparam, eles escondidas por aí?
também produzem tipologias, eles também P: Se elas atuam, elas deixam rastro, desse
elaboram padrões, eles também disseminam modo você tem alguma informação, e desse
suas máquinas, bem como suas organizações, modo pode falar sobre elas. Caso contrário,
ideologias e estados mentais. Por que você seria cale a boca.
aquele que faz o trabalho inteligente enquanto A: Mas e se elas estão reprimidas, rejeitadas,
eles agiriam como um bando de retardados? O silenciadas?
que eles fazem para expandir, para relacionar, P: Não há nada no mundo que permita di-
para comparar e para organizar é também o zer que elas estão lá sem que se apresente provas
que você tem a descrever. Não há outra camada de sua presença. Essa prova pode ser indireta,

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exigente, complicada, mas você precisa dela. bolha da internet estourou5... Mas, de qualquer
Coisas invisíveis são invisíveis. Ponto. Se elas forma, eu tenho que fornecer às pessoas algum
fazem com que outras coisas se movam, e você entendimento reflexivo...
pode documentar esses movimentos, então elas P: ... que antes de você chegar, claro, não
são visíveis. De novo, ponto eram reflexivas!
S: “Prova, prova”. O que afinal é uma pro- A: De certa maneira, sim. Não? Eles faziam
va”? Isto não é terrivelmente positivista? coisas, mas sem saber por que... O que há de
P: Espero que sim. O que há de tão incrível errado nisto?
em dizer que as coisas, cuja a existência você P: O que há de errado é que isso é terrivel-
não pode provar, atuam? Eu temo que você mente mesquinho. Muito do que os cientistas
esteja confundindo teoria social com teoria sociais chamam de “reflexividade” se resume
da conspiração – embora, nos dias de hoje, eu em perguntar às pessoas coisas totalmente ir-
concorde que isso ocorra na maior parte das relevantes; estas, por sua vez, fazem outras
teorias críticas em ciências sociais. perguntas para as quais o analista não possui o
A: Mas se eu não adicionar nada, estarei mais ínfimo começo de resposta. A Reflexivi-
simplesmente repetindo o que os atores di- dade não é um direito inato, algo que pode le-
zem. var com você apenas porque está na LSE! Você
P: Qual seria a utilidade de acrescentar enti- e seus informantes têm diferentes interesses
dades invisíveis que atuam sem deixar nenhum – quando eles se intersectam é um milagre, e
rastro, e que não fazem diferença para um esta- milagres, caso você não saiba, são raros...
do de coisas qualquer? A: Mas, se eu não adicionar nada a que os
A: Mas eu devo ensinar aos atores algo que não atores dizem, eu serei incapaz de ser crítico.
saibam; caso contrário, por que eu os estudaria? P: Está vendo, em um momento você quer
P: Vocês, cientistas sociais, sempre me des- explicar e bancar o cientista, enquanto em ou-
concertam. Se você estudasse formigas (ants), tro quer desconstruir, criticar e bancar o mili-
ao invés de ANT, esperaria que elas aprendes- tante...
sem alguma coisa sobre seu estudo? Claro que A: E eu diria: em um momento você é um
não. Elas sabem, você não. Elas são professoras, relativista ingênuo – de volta ao objeto – e no
você aprende com elas. Você explica o que elas momento seguinte você diz que apenas escre-
fazem para você mesmo, para o seu próprio ve um texto no qual não adiciona nada, mas
benefício ou para o dos outros entomólogos, apenas segue seus famosos “atores”. Isso é total-
não para elas, que não dão a mínima. O que o mente apolítico. Nenhuma postura crítica que
faz pensar que um estudo sempre supõe ensinar eu possa enxergar.
coisas às pessoas estudadas? P: Diga-me, Mestre Desconstrutor, como
A: Mas esse é o projeto das ciências sociais! você vai obter um “paradigma crítico” às custas
É por isso que estou aqui na LSE: para criticar de seus atores? Estou ansioso para ouvir.
a ideologia gerencial, desconstruir os muitos A: Apenas se eu tiver um quadro explicati-
mitos da tecnologia da informação, para adqui- vo. Era isso que estava procurando quando vim
rir uma postura crítica sobre as inovações téc-
nicas e a ideologia de mercado. Se não for isso, 5. O autor refere-se ao esgotamento da chamada “dot-
acredite, eu ainda estaria no Vale do Silício, e com bubble”, o conjunto de empresas ponto-com
estaria fazendo um monte de dinheiro – bem, que apareceram entre 1995-2005 no Vale do Silício
pode ser que eu não estivesse agora, já que a e boa parte delas entraram em faleência devido ao es-
touro dessa “bolha” [N.T]

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aqui, mas obviamente a ANT é incapaz de me P: Claro...! Então, o que você quer é que
fornecer um. seu quadro explicativo seja para o seu estudo de
P: Fico muito contente por ela não lhe ofe- caso o que a lei de Galileo é para a queda de um
recer. Esse seu quadro, o qual eu assumo que pêndulo – menos as perturbações.
está oculto aos olhos dos seus informantes, é A: Sim, acho que sim, de certo modo, em-
revelado pelo seu estudo? bora naturalmente menos preciso cientifica-
A: Sim, com certeza. Pelo menos eu espero mente. Por quê? O que há de errado com isso?
que este seja o valor de meu trabalho. Não a P: Nada, seria ótimo, mas isto é viável? Sig-
descrição, uma vez que todos a conhecem de nifica que, o que quer que um pêndulo con-
alguma maneira; mas a explicação, o contexto creto faça, isso não acrescentaria nenhuma
que eles não têm tempo para ver, a tipologia... informação nova à lei dos corpos em queda. As
Veja, eles estão muito ocupados para pensar. leis contêm in potentia tudo o que há para se
Isso é tudo que posso proporcionar; e, a pro- conhecer sobre o estado de coisas de um pên-
pósito, na companhia eles estão interessados, dulo. O caso concreto é simplesmente, para
prontos para me ofereceram acesso aos seus ar- falar como os filósofos, a “realização de um po-
quivos, e com intenção de pagar por isso! tencial” que já está lá.
P: Bom para você... O que você está me A: Esta não é uma explicação ideal?
dizendo é que nos seus seis meses de trabalho P: Este é justamente o problema: é um ideal
de campo, você pode, por si próprio, apenas elevado ao quadrado: é o ideal de uma expli-
por ter escrito algumas centenas de páginas, cação ideal. Eu duvido seriamente que os fun-
produzir mais conhecimento do que aqueles cionários da companhia se comportem assim.
340 engenheiros e a diretoria que você tem E eu estou bem convencido de que você não
estudado? pode produzir a lei do comportamento deles
A: Não “mais” conhecimento, talvez, mas que permitiria que você deduzisse tudo como
sim um conhecimento diferente, eu espero. Eu a realização in concreto daquilo que já estava lá
não deveria me esforçar exatamente para isto? potencialmente.
Não é por isso que estou neste negócio? A: Menos as perturbações...
P: Eu não estou certo do negócio em que P: Sim, sim, sim, desnecessário acrescen-
você está, mas em quão diferente é o conhe- tar... sua modéstia é admirável.
cimento que você produz em relação ao deles, A: Você está brincando comigo? Entretan-
esta é toda a questão. to, empenhar-se na busca deste tipo de quadro
A: É o mesmo tipo de conhecimento de explicativo parece-me viável...
todas as ciências, o mesmo modo de explicar P: Mas, mesmo que o fosse, seria desejável?
as coisas: indo do caso específico até a causa, Veja, o que você está realmente me dizendo é
e uma vez que eu conheço a causa, eu posso que na sua descrição os atores não fazem qual-
gerar seu efeito como conseqüência. O que quer diferença. Eles simplesmente realizaram
há de errado nisso? É como perguntar o que um potencial – aparte os desvios menores. O
acontece a um pêndulo que foi retirado de que significa que eles não são, de fato, atores:
seu equilíbrio; se eu conheço a lei de Gali- eles simplesmente carregam uma força que
leu, eu nem preciso mais olhar para qualquer passa através deles. Então, meu caro estudante,
pêndulo concreto; eu sei exatamente o que você tem desperdiçado seu tempo descreven-
acontecerá, desde que, claro, eu esqueça as do pessoas, objetos, locais que não são nada,
perturbações. de fato, além de intermediários passivos, uma

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vez que eles não fazem nada por si próprios. A: Então, você está me dizendo que a ANT
O tempo que você passou no campo foi um não é uma ciência?
desperdício. Você deveria ter ido diretamente P: Não uma ciência estruturalista, por certo.
à causa. A: O que dá no mesmo, toda ciência...
A: Mas é para isso que serve a ciência! Jus- P: Não! Se informação é transformação, não
tamente isso: encontrar a estrutura oculta que importa qual o campo. Os estudos de organiza-
explica o comportamento daqueles agentes que ção, estudos de ciência e tecnologia, estudos de
você pensava estarem fazendo algo, mas que negócios, estudos de informação, sociologia, ge-
são simplesmente ocupantes do lugar6 de algu- ografia, antropologia, por definição, não podem
ma outra coisa. depender de uma explicação estruturalista.
P: Então, você é um estruturalista! Final- A: “Sistemas de transformações”, é disso
mente você saiu do armário. Ocupantes de lu- exatamente que o estruturalismo se ocupa!
gar, é isso o que você chama de atores?! E você P: De maneira alguma, meu amigo, no estru-
quer, ao mesmo tempo, usar a Teoria do Ator- turalismo nada é realmente transformado, é ape-
Rede! Isto é estender por demais os limites do nas combinado. Você não compreende a distância
ecletismo. abissal entre ele e a ANT. Uma estrutura é justa-
A: Por que não posso fazer ambos? Certa- mente uma rede sobre a qual você tem apenas
mente, se a ANT tem algum conteúdo científi- informação aproximativa. É útil quando você é
co, ele tem que ser estruturalista. pressionado pelo tempo, mas não me diga que
P: Você notou que há a palavra “ator” em isso é mais científico. Se eu quero ter atores em
ator-rede? Você pode me dizer que tipo de ação meu relato, eles têm que fazer algo, não serem
os ocupantes de lugar fazem em uma explica- apenas ocupantes de lugar; se eles fazem algo, eles
ção estruturalista? marcam uma diferença. Se eles não fazem dife-
A: É fácil, ele preenche uma função. Essa é a rença, abandone-os e recomece a descrição. Você
grande coisa sobre o estruturalismo, se eu o en- quer uma ciência na qual não exista objeto.
tendi corretamente. Qualquer outro agente na A: Você e suas histórias... Histórias me-
mesma posição seria obrigado fazer o mesmo… moráveis, é o que você quer! Eu estou falando
P: Então, um ocupante de lugar é, por de- sobre explicação, conhecimento, posturas críti-
finição, inteiramente substituível por qualquer cas, não escrevendo roteiro para novelas de TV
outro? do Canal 4!
A: Sim, é isto que estou dizendo. P: Retomando o que já disse. Você quer que
P: O que é igualmente tolo e que o torna ra- o seu calhamaço de algumas centenas de pági-
dicalmente incompatível com a ANT: um ator nas faça a diferença, não?! Bom, então você tem
que não faz diferença, no meu vocabulário, não que ser capaz de provar que sua descrição do
é um ator. Um ator, se as palavras têm algum que as pessoas fazem, de quando seu texto re-
significado, é exatamente o que não é substi- tornar a elas, faz diferença sobre o modo como
tuível. É um evento único e totalmente irredu- estão fazendo as coisas. É isto que você chama
tível a qualquer outro, exceto se você o torna como “postura crítica”?
comensurável com outro através de algum tipo A: Eu suponho que sim.
de padronização – mas mesmo isso requer um P: Mas, então, você concordaria que não
terceiro ator, um terceiro evento. serviria de nada lhes falar de causas que não
trazem nenhuma diferença para o que eles fa-
zem já que são excessivamente gerais?
6. Place holders, no original. [N.T]

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A: Claro que não. Eu estava falando de cau- blocos a reflexividade que eles já tinham an-
salidades reais. tes e que você retirou deles ao tratá-los de uma
P: Mas estas tampouco lhes serviriam, por- maneira estruturalista! Magnífico! Eles eram
que mesmo que existissem, o que eu duvido atores antes de você vir com a sua “explicação”.
muito, elas não teriam nenhum outro efeito Não me diga que é o seu estudo que os fará o
além de transformar seus informantes em ocu- serem. Ótimo trabalho, aluno. Bourdieu não o
pantes do lugar de outros atores, o que você cha- teria feito melhor...
mou de função, estrutura, etc. Assim, de fato, A: Você pode não gostar muito de Bour-
eles seriam não atores, mas, idiotas, marionetes dieu, mas pelo menos ele era um verdadeiro
– aliás, menos que marionetes já que elas forçam cientista, e melhor ainda, ele era politicamente
os titereiros a fazer coisas inesperadas...Bem, em relevante. Até onde posso dizer, a sua ANT não
todo o caso, você está fazendo com que os atores é nem uma coisa nem outra...
sejam nada: na melhor das hipóteses eles pode- P: Obrigado. Há trinta anos eu estudo as
riam adicionar algumas perturbações menores, conexões entre a ciência e a política, de modo
tal como o pêndulo concreto que adiciona so- que é um tanto difícil me intimidar com con-
mente pequenas oscilações. versas sobre qual ciência é “politicamente re-
A: Ãh? levante”.
P: Agora você tem de me dizer o que há A: Argumentos de autoridade também não
de tão politicamente grandioso em transformar me intimidam, de modo que não faz qualquer
aqueles que você estudou em inofensivos e ina- diferença para mim os seus trinta anos de es-
tivos ocupantes de lugar para as funções escon- tudo.
didas que você, e só você, consegue detectar. P: Touché... Mas a sua questão era: “O que eu
A: Humm, você tem um modo de colocar posso fazer com a ANT?” Eu respondi: nenhuma
tudo de cabeça para baixo... Não estou tão cer- explicação estruturalista. As duas são completa-
to agora. Se os atores tomam consciência das mente incompatíveis. Ou você tem atores que
determinações impostas a eles... mais conscien- realizam potencialidades e eles não são atores de
tes... mais reflexivos... seu grau de consciência fato, ou você descreve atores que estão atualizan-
não seria de algum modo elevado? Eles agora do virtualidades (esta é a maneira de Deleuze, a
podem tomam seu destino em suas próprias propósito), e isto demanda textos muito especí-
mãos. Eles se tornam mais esclarecidos, não? ficos. Sua conexão com aqueles que você estuda
E, se este é o caso, eu diria que agora, pelo me- demanda protocolos bem específicos de traba-
nos, em parte graças a mim, eles são mais ativos lho – eu acho que é isso que você chamaria de
agora, são atores mais completos. “postura crítica” ou “relevância política”.
P: Bravo, bravissímo! Então, para você, um A: Então em quê somos diferentes? Você
ator é um agente plenamente determinado, também quer ter uma postura crítica.
mais um ocupante de lugar para uma função, P: Sim, talvez, mas estou certo de uma coisa:
mais um pouco de perturbação, mais alguma não é automático, e na maior parte do tempo,
consciência provida a eles por um cientista so- ela vai falhar. Duzentas páginas de entrevistas,
cial esclarecido? Horrível, simplesmente horrí- observações, etc. não farão, de qualquer jeito,
vel... E você quer aplicar a ANT a estas pessoas? nenhuma diferença por si mesmas. Para serem
Depois de você tê-los reduzido de atores a ocu- relevantes, outro conjunto de circunstâncias ex-
pantes de lugar, você quer adicionar um insulto traordinárias é exigido. Trata-se de um evento
à injúria e, generosamente, trazer a estes pobres raro. Exige um protocolo imaginativo incrível.

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Tão grande, tão raro, tão surpreendente quanto A: Mas qual a diferença entre um bom e um
Galileu com seu pêndulo, ou Pasteur com seu mau texto em ANT?
vírus da raiva. P: Agora sim, esta é uma boa questão!
A: Então o que eu devo fazer? Rezar por um A: Finalmente?
milagre? Sacrificar uma galinha? P: Finalmente! Resposta: a mesma que exis-
P: Mas por que que você quer que seu pe- te entre um bom e um mau laboratório. Nem
queno texto seja automaticamente mais rele- mais, nem menos.
vante para aqueles a quem ele se refere do que, A: Bem, ok, hum, obrigado... Foi gentil de
digamos, para um laboratório gigante de ciên- sua parte conversar comigo. Mas acho que depois
cias naturais? Olhe o quanto leva pra os chips da de tudo, ao invés de ANT... Estava pensando em
Intel™ se tornarem relevantes para os telefones utilizar a teoria dos sistemas de Luhmann como
celulares! E você quer que todos tenham um ró- um enquadramento subjacente – ela parece ser
tulo “LSE™ inside” sem nenhum custo? Para se bem promissora, “autopoiesis” e tudo mais. Ou
tornar relevante você precisa de trabalho extra. talvez eu vá usar um pouco de ambas.
A: Justamente o que eu precisava: a perspec- P: Hum...
tiva de mais trabalho ainda! A: Você não gosta de Luhmann?
P: Mas esse é o ponto: se um argumento é P: Eu deixaria de lado todos os “enquadra-
automático, pronto de antemão, em todos os mentos subjacentes”, se eu fosse você.
propósitos, então este argumento não pode ser A: Mas, o seu tipo de “ciência”, pelo que
científico. É simplesmente irrelevante. Se um pude notar, significa quebrar com todas as re-
estudo é realmente científico, ele pode falhar. gras de nosso treinamento em ciências sociais.
A: Muito animador, foi muito gentil você P: Eu prefiro quebrá-las todas e seguir os
me lembrar que minha tese pode falhar! meus atores... Como você disse, eu sou, no fi-
P: Você confunde ciência com posição de nal, um realista ingênuo, um positivista.
superioridade. Diga-me, você é capaz de imagi- A: Sabe o que seria realmente legal? Uma
nar um único tópico para o qual, por exemplo, vez que ninguém por aqui parece entender o
a sociologia crítica de Bourdieu, da qual você que a ANT é, você deveria escrever um guia
gosta tanto, não seja aplicável? sobre ela. Isso certamente faria nossos professo-
A: Mas eu não posso imaginar um único res saberem o que ela é e então, se me permite
tópico para o qual a ANT seja aplicável!! dizer, eu não quero ser indelicado... mas talvez
P: Formidável, você tem razão, é exatamen- assim eles não tentariam nos empurrar tanto
te isso o que eu penso... para ela... se você entende o que quero dizer...
A: Isso não pretendia ser um elogio. P: Então, é tão mal assim? Hum, um guia?
P: Mas eu o tomo como um verdadeiro elo- A: Veja, eu sou apenas um estudante de
gio! Uma aplicação de alguma coisa é tão rara PhD. Você é um professor. Você já publicou
quanto um bom texto de ciências sociais. muito, você pode arcar com coisas que eu não
A: Deixe-me respeitosamente lembrá-lo posso. Eu tenho que escutar meu orientador.
que, com toda sua excepcionalmente sutil filo- Eu simplesmente não posso levar seu conselho
sofia da ciência, você ainda não me disse como muito adiante.
escrever um. P: Então, por que veio até mim? Por que
P: Você estava tão ansioso em adicionar mol- tentou usar a ANT?
duras, contextos, estruturas, à sua “mera descri- A: Na última meia-hora, devo confessar, es-
ção”, como você poderia ter me escutado? tive me perguntando a mesma coisa...

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Nota dos tradutores bling the Social – an Introduction to Actor-Ne-


twork Theory. Oxford: Oxford Univ. Press, pp.
Traduzido do original: “A prologue in form 141-156. E: “Comment finir une these de so-
of a dialog between a Student and his (so- ciologie. Petit dialogue entre un étudiant et um
mewhat) Socratic Professor”. In Avgerou, C.; professeur (quelque peu socratique). In Caillé,
Ciborra, A.; Land. F.F. (orgs.). 2004. The Social A.; Dufoix, S. (orgs.). 2004. Une théorie socio-
Study of Information and Communication Study. logique générale est-elle pensable?. La revue du
Nova Iorque: Oxford Univ. Press, pp. 62-76. M.A.U.S.S., n. 34, pp. 154-172.
Cotejado com as seguintes versões: “On the A primeira versão em inglês e a versão fran-
Difficulty of being an ANT: An Interlude in cesa estão disponíveis em http://www.bruno-
Form of Dialog”. In Latour, B. 2005. Reassem- latour.fr

tradutor José Glebson Vieira


Doutorando em Antropologia Social / USP
tradutor Leandro Mehalem de Lima
Mestrando em Antropologia Social / USP
tradutor Uirá Felippe Garcia
Doutorando em Antropologia Social / USP
revisor técnico Ana Cláudia Marques
Professora do Departamento de Antropologia / USP

Recebido em 20/01/2007
Aceito para publicação em 30/01/2007

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