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IDENTIDADE E ROMANTISMO BRASILEIRO NO SÉCULO XIX:

DO CANTO INDIANISTA AO PROJETO DE NAÇÃO1

Mirian Pereira Cardoso2

RESUMO

Os processos identitários fazem parte das pesquisas contemporâneas que dão visibilidade às
relações sociais e culturais, analisando-se a construção de sentidos. Sua (re)afirmação se articula
nos processos individuais e coletivos, buscando legitimar identidades em oposição à diferença, o
que nos encaminha às nações e nacionalismos, ambientes ideológicos em que os sentidos se
manifestam. Fazendo referência ao Romantismo europeu e suas peculiaridades no Brasil
enquanto movimento literário, desenvolvemos algumas reflexões sobre a elaboração de um
projeto de nação brasileira, e por este uma identidade nacional no século XIX. Sendo estas
percebidas na narrativa indianista, entre elas, a de José de Alencar.

PALAVRAS-CHAVE: História. Identidade. Romantismo. Indianismo.

ABSTRACT

The identities processes are part of the research contemporaries that give visibility to the social
and cultural relations, analyzing it construction of directions. Its (re)affirmation if articulates in
the individual and collective processes searching to legitimize identities in opposition to the
difference, what in them it directs to the nations and nationalisms, ideological environments
where the directions if reveal. Make reference to reference the European Romantism and its
peculiarities in Brazil while literary movement, we develop some reflections on the elaboration
of a project of Brazilian nation, and for this a national identity in century XIX. Being these
perceived in the indian’s narrative, between them, of Jose de Alencar.

KEYWORDS: History. Identity. Romanism. Indianism.

1
Artigo elaborado para a disciplina de História Local e Regional na sexta fase do curso de História em 2005,
solicitado pelo professor João Henrique Zanelatto, reorganizado em 2006. Discussão realizada a partir do
Trabalho de conclusão de curso em História, “Aproximando a Literatura e a História: do canto indianista ao
projeto de nação na narrativa alencariana”.
2
Mirian Pereira Cardoso, acadêmica da oitava fase do curso de História da Universidade do Extremo Sul
Catarinense - Unesc. Responsável pela Biblioteca da E. B. M. Profª. Alda Santos de Vargas, em Sombrio/SC.
Endereço: Rua Máximo Rodrigues da Silva, 240, Bairro Januária - Sombrio/SC. E-mail:
miriancardoso@gmail.com
INTRODUÇÃO

Sabemos que as construções de identidades se estabelecem a partir da comunhão de


sentidos. Em coletividade, grupos, comunidades, nações, estruturas de comunhão de origem
e pertencimento se afirmam em função de um passado-presente e de um reconhecimento
futuro. Tais processos identitários procuram legitimidade nos mitos, na política, nas artes,
religiões e ciências, disputando uma consciência de sua ‘história’, e por ela ‘a’ unidade.3
Nesse contexto as identidades podem se tornar alvos de discursos homogeneizadores, o que
nos possibilita pensá-las como “um dispositivo organizador psicossociológico, sócio-
histórico, cultural e também político, admitindo-a em mutação na medida em que se
processa nos níveis individuais ou coletivos”.4 Eis o início da saga, o indivíduo em sua
realização como sujeito na sua coletividade.

Uma fundação nacional: Indianismo e a construção da origem brasileira

Nas palavras de Bauer (2000), aprendemos a amar a nação quando reconhecemos em


suas especificidades a nossa própria natureza. Negadas e reafirmadas na interação social, as
comunidades imaginadas são construídas pelos símbolos, discursos e representações, já que
se transporta ao campo do imaginário social.5 Processos em que a identificação se
estabelece pela comunhão de destino, de caráter e de emoções, nos levando à ideia de nação
desde que seus membros se reconheçam e se identifiquem como tais.6 O caráter nacional
apresenta, assim, uma estrutura de características físicas e mentais que vão diferenciar uma
nação da outra, enfatizando-se um universo de narrativas e vivências, a cultura nacional.
Fazer parte desta história é o que movimenta os membros de uma nação. A
construção do ser se remete à construção do lugar, um espaço agradável
permeado de significados. Um ambiente em que se desenvolvem as mais eficazes
marcas identitárias:

3
Análise de SILVA da identidade ‘normal’, não vista como uma, mas como a identidade. p. 83
4
Discussão que realizo em Identidade – os diferentes olhares: (re) construções e representações. In: Tempos
Acadêmicos, n. 3, 2005. Criciúma: Universidade do Extremo Sul Catarinense, 2005.
5
ANDERSON, Benedict. Apud HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, 2001, p. 51.
6
HOBSBAWM, E. J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 3.ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2002, p.18
Na construção da identidade cultural de um lugar destaca-se a reunião de um
legado de mitos, paisagens e memórias que, através da literatura e do saber
científico recebem atribuições de sentidos consideradas válidas. Essa, a nossa
história. Nela os nossos heróis e os nossos inimigos são colocados conforme as
morais que construímos; nela as possibilidades de realização de nossos projetos
pessoais e coletivos estão anunciadas e apontam para um desfecho esperado (que
se repete sempre ou que está por vir).7

Ao pensar na origem, os sentidos revivem a idéia de pertencimento, o ponto em que a


saudade (prazerosa) desperta, as contradições se explicam, as diferenças são indicadas e
analisadas. Esses elementos agem na construção de um projeto de nação e da identidade
nacional, um ‘construto ideológico’8 que ganhará difusão por meio da intelectualidade,
como acontece no século XIX com o Romantismo.
Inspirado nas tradições nacionais e no espírito do povo, o Romantismo, movimento
intelectual de origem europeia, difunde-se entre os brasileiros. No distanciamento do
racionalismo iluminista, impulsionou a sensibilidade rompendo os rígidos padrões clássicos
ao exaltar o individualismo, a natureza, os costumes do povo, a tradição, entre outros. Para
Malard, a relação burguesia-romantismo “[...] exigirá novas formas artísticas que
contribuirão para intensificar a vida urbana, para fazê-lo participar de alguma forma de seu
9
modus vivendi”. Assim, artistas, literatos e pensadores buscaram inspiração a partir de
experiências da própria realidade social na tentativa de superação dos valores tradicionais
econômicos e sociais. Um movimento que não deixou de provocar, a partir do passado
idealizado, um presente resultante de uma história nacional grandiosa.
Esta abordagem intelectual de valorização correspondeu ao processo de formação e
consolidação do Estado Monárquico brasileiro após a separação de Portugal. Aqui, o
Romantismo ganha força no momento de oposição às dependências política, econômica e
cultural, oriundas da condição de colônia. No entanto, a independência foi conservadora,
conduzida pelas elites do país não favoreceu transformações profundas já que manteve o
escravagismo, a monocultura exportadora, o predomínio do latifúndio e a educação
elitizada. Malard dá visibilidade ao fato de que a aliança desenvolvida pela burguesia

7
DEUSDEDITH, Júnior. Por que há fronteiras nos jardins da razão? NetHistória. Ensaios e Artigos.
Disponível em:
http://www.nethistoria.com/index.php?pagina=ver_texto&titulo_id=308.html. Acessado em 14 jul. 05.
8
Termo utilizado por HOBSBAWM op. cit.
9
MALARD, Letícia. Escritos de literatura brasileira. Belo Horizonte: Comunicação, 198, p. 72
europeia em seu caráter popular, não aconteceu no Brasil pela ausência de semelhantes
meios de predomínio político:

Entre nós o romantismo surgiu da união da fraca burguesia com os grandes


proprietários e aristocratas. (...) O patriotismo, característica marcante dos nossos
românticos, é mais um espírito de independência política, de anticolonialismo, de
que amor gratuito ao torrão natal.10

Encontramos, assim, uma monumentalização do Brasil que ganha impulso no


segundo império com os investimentos de Dom Pedro II às artes. Um processo em que se
difundem maneiras de sentir e perceber o mundo, traduzidas de uma maneira original, a
brasileira. Nesse contexto, os românticos forneceram à sociedade brasileira um ideal
nacionalista e sentimental adequado às necessidades de autovalorização. Características
originais para a independência cultural, política e, sem dúvida, nacional.
Uma imagem de Brasil que se afasta da antiga metrópole em função de sua
identidade. Ela organiza um passado e explica um presente contrapondo-se ao que lhe é
exterior por meio de símbolos, hábitos, imaginário, moral e sentimentos. Representações de
uma realidade que remetem entre outras características ao nacionalismo, mas antes disto,
organiza ‘a’ origem para esta nação. A valorização das peculiaridades locais como a
natureza, os sentimentos, as linguagens e o folclore, organiza o cenário nacional no foco
principal, o índio.
As imagens alegóricas do índio entram em cena produzindo ao país uma imagem que
se pretende oficial. As artes plásticas e literárias, a história, a música, inclusive esculturas e
monumentos, estimulam um imaginário original. Teóricos das artes e historiadores
identificam esse movimento como Indianismo, um sistema simbólico de elaboração
ideológica em resposta ao momento histórico. Nesse contexto de busca pela autonomia
“casando a doutrina do ‘bom selvagem’ de Rousseau com as tendências lusófobas, o índio
foi tornado símbolo de independência espiritual, política, social e literária.”11
No Brasil, essa atuação romântica e indianista de ênfase fundacional ganha destaque
nas produções literárias. Entre as produções de destaque do século XIX podemos discutir a

10
MALARD op. cit, p. 73.
11
COUTINHO, Afrânio. (dir.) Era Romântica. v. 3, parte II / Estilos de época. 7. ed. São Paulo: Global,
2004, p. 24. (Coleção A literatura no Brasil)
partir dos romances indianistas do escritor brasileiro José de Alencar construções
simbólicas do bom e justo, de honra, pureza, heroísmo e coragem remetida ao índio. Nas
palavras de Bueno, foi com Alencar que o Indianismo “se pôs plenamente a serviço de uma
visão mitificadora da ‘nova’ sociedade brasileira”.12 Seus personagens e enredos
evidenciam a liberdade subserviente ao branco, o heroísmo e o sacrifício em virtude da
origem do verdadeiro povo brasileiro.

O bom selvagem dos trópicos na narrativa de José de Alencar

Identificam-se três romances indianistas de Alencar. Estes apresentam a mesma


estética e caráter ‘ideológico’, sendo ambientalizados no mesmo passado remoto: O
guarani (considerado pelo autor romance histórico) e Iracema, no século XVII, e
Ubirajara, anterior ao descobrimento. Para Abdala Junior, eles promoveram uma
conscientização da harmonia nativista, de estereótipos de pureza e moral, de amor fiel, de
heroísmo fundador.13 A idealização típica do bom selvagem protagonista encontra-se
nessas obras em conformidade com o ideal de relações harmoniosas e principalmente
amorosas com o homem branco.
Escrito em 1874, Ubirajara é considerada uma epopeia de heroísmo indígena.
Alencar narra a origem da nação dos ubirajaras, habitantes das cabeceiras do rio São
Francisco quando os portugueses aqui chegaram. Uma luta do índio Araguaia Jaguarê e sua
afirmação individual a fim do reconhecimento coletivo. No início da obra encontramos uma
advertência do próprio autor antes que se faça sua leitura:

Este livro é irmão de Iracema. Chamei-lhe de lenda como o outro. Nenhum título
responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições de pátria
indígena. Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver estudado com
alma brasileira o berço da nossa nacionalidade, há de estranhar em outras coisas a
magnanimidade que ressumbra no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso
relevo. Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os indígenas, brutos e

12
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2002, p. 200.
13
Ler ABDALA JUNIOR, Benjamin; CAMPANELLI, Samira Youssef. Tempos de literatura brasileira.
6.ed. São Paulo: Ática, 2001, p. 76-107.
canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis desses brios nativos que
realçam a dignidade do rei da criação? 14

O discurso acima revela a importância em se apreender o sentimento nacional


oriundo do passado indígena, os costumes e as tradições que se revelarão à “alma
brasileira”. Questiona com convicção as imagens construídas pela selvageria e crueldade,
nelas se percebe a luta pela harmonia do índio bom e idealizado, romantizado na narrativa
que não deixa de ser poética.
Os romances Iracema e O Guarani dão visibilidade às relações entre índios e brancos
portugueses. A intervenção do branco colonizador acontece sutilmente no ambiente
indígena. O fascínio pelo outro se revela na imagem amorosa e nos contatos conflituosos
entre os dois pólos, no entanto, essas relações sempre sugerem a busca pela harmonia entre
ambos. Essa análise está presente de maneira riquíssima nas produções de Cléria Costa:

Em Iracema, essa interferência discretamente ameaçadora se faz presente através


do português Martim que ao se perder na floresta, de seu amigo Poti, entra na
tribo inimiga dos tabajaras onde é muito bem recebido na cabana do pajé
Araquém, pois cada hóspede branco é sagrado para os índios. Assim, o branco,
gente poderosa, para quem o mundo não tem caminhos desconhecidos, já começa
a exercer um fascínio que se vai contrapor as experiências situadas no espaço das
relações internas das tribos. Aos poucos se consolida o enfraquecimento desse
universo com a união do branco português com a índia Iracema, ato motivador da
guerra entre as duas tribos – potiguás e tabajaras. Nessa luta, Iracema vê seus
irmãos morrendo. Assim, o resultado é demonstrado no desafeto dentre a mesma
tribo e no desrespeito aos padrões étnicos já estabelecidos. Em O Guarani, a
narrativa tematiza o amor e aventura numa sequência ininterrupta, característica
da imaginação prodigiosa de Alencar através da união do índio Peri com Ceci,
branca e europeia, filha do colonizador. 15

Ao problematizar tais obras alencarianas, percebemos um universo natural, do qual


emergem verdadeiros heróis na luta pela afirmação cultural. A saga dos índios revela força,
valentia, um misto de sentimentos nativistas e valorização da antiguidade brasileira que
caracteriza um ambiente favorável à origem comum. Elementos que discutidos no contexto

14
ALENCAR, José de. Ubirajara. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.11, (Coleção Literatura em minha
casa)
15
COSTA, Cléria Botelho da. José de Alencar: memórias e canto indianista. Labirinto, Revista Eletrônica
do Centro de Estudos do Imaginário - UNIR. Disponível em: http://www.unir.br/~cei/artigo63.htm.
Acessado em 31 out. 05.
do século XIX, evidenciam formas intrínsecas de uma fundação nacional, uma identidade
que se constrói na afirmação de uma coletividade, de uma origem comum.
O canto indianista provoca, assim, uma discussão de imaginário nacional, de projeto
de nação. Assim como uma identidade, a partir dos sentidos de pertencimento e negação do
outro, o diferente, em que se constrói um passado original em oposição às influências lusas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O clima romântico das letras, entre outras características, promoveu uma identidade
original capaz de dar sentido aos membros da nação. Uma tarefa que almejava não apenas
se autoafirmar, mas aproximar a relevância das nossas ideias às modernas nações europeias.
O romântico não via as coisas como eram, mas projetava como deveriam ser, idealizou um
universo de sentidos em que o indianismo favoreceu uma ‘produção’ de nação. Nesta, José
de Alencar no século XIX, deixou sua imagem de nação fecunda, bela e promissora, um
projeto que vai muito além do puro canto indianista em homenagem à terra natal. Contudo,
este é apenas um entre outros projetos de nossa história. A originalidade, a cultura e a
identidade nacional ainda se manifestarão em tantas outras correntes artísticas e
ideológicas, em tantos outros artistas e autores que construirão suas próprias representações
de Brasil.

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