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Um imigrante
bate fotos trepado
no toldo de
um qUIosque
a multidão grita
em frente ao Banco
aparece um malabar
aparece um pastor
imagens da pura
desconexão
aparecem as montanhas
lilases do Cáucaso
mas na foto buscada só
aparece a Imagem
da menina
com seu coelho
de pelúcia
sua dobra
cor de ferrugem
contra a luminosidade
I I
Os rostos Entre tantos
se sucedem manifestan tes
nos monitores é ela quem arranca
dentro da a pnmelra
sala de segurança ereção do dia
do Banco do segurança
como projeção de óculos espelhados:
de slides
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Uns olhos negros Agora o empresário
que vi na Turquia agora o demitido
reaparecem agora
o secretário-geral
no rosto
agora
do novo inquilino
o guarda-florestal
para água quente
basta girar este explicando
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Agora ele está lá No saguão do banco
as paredes estão
sentado sobre
cobertas de tapeçarias
a máquina de lavar
represen tando
do subsolo
bardos célebres
mastigando pasteizinhos
da Ásia cen trai
e lendo De Lillo,
digo, lendo Modiano
ele tem sempre
cigarros ou flores
e envia todo o tempo
cartões- postais
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Ela tem um sanduíche A gente podia
e uma bolsa-sanduíche conversar rnais vezes
gosta de fotografar não amigos certamente
as manifi mas tampouco inimigos
os meetings adorei aquela tarde
me fala de uma no hotel do Cosme Velho
portuguesa o pOnto mágico
que conheceu do morro na janela
no 12 de maio
e que depois
se deitaram na grama
cheia de esquilos velozes
a vida também era só
velocidade e esquilos
sob os feixes luminosos
do 12 de maio
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Como a irmãzinha Sem desgrudar os olhos
caçula de um conto russo do monitor o segurança
você saltava da cama pensa que aquela ali
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Mas agora quem Um imigrante tomando
tirava fotos no quiosque uma cerveja sentado
toma uma cerveja no meio-fio pode ser
no bar em frente um grande passo
ao qUIOsque
a menina com o coelho
toma um achocolatado
pelo canudinho
e gira até ficar
completamente
enviesada
na cadeira para ver
a areia da praia
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Adorei aquela tarde Ninguém se chama Soviete
no Hotel da Lapa - Alguém se chama Soviete
eu nunca imaginei
- Um soviete é um mamífero
que você tivesse
- Todo soviete é mortal
seios tão apóstolos
seu coração está aí atrás?
Então descemos
e descemos e descemos
paramos no qUIosque
para uma Coca-cola
e perguntamos
ao imigrante
que batia fotos
qual o nome de sua filha
com o coelho
ferrugem-dobra
de pelúcia
Ela?
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PARTE 2: PURGATÓRTO tão fria que explodia
rochedo abaixo,
(nas Paineiras)
talvez os lagartos
que, assustados,
disparavam espavoridos
eu disse: você
rochedo acima,
podia por favor
espessura a dentro.
responder mais uma
eu disse: os lagartos
. I ques t-o?
vez àque 1a rrunna a .
mudavam de cor.
eu disse: vamos aproveitar
o fato é que eu
esse sol frio, belo,
queria que por
que furou as nuvens,
favor você me
essa boa caminhada
repetisse aq uilo
até o estacionamento,
que me disse.
e conversar mais um
será que você poderia
pouco sobre aquilo?
repeti-lo? eu disse:
eu entendi bem
às vezes
o que você disse
eu sonho com
mas depois acabei
um grande acidente.
me distraindo, me
e eu às vezes sonho
distraí com alguma
com átomos se reunindo
coisa, não sei bem
para gerar aquilo
o quê, talvez
que podemos chamar de
a coragem daquelas
o grande acidente,
mulheres sob a
the big one,
queda da água
com que cada um
tão fria que explodia
cedo ou tarde
rochedo abaixo
vai ter que se
ou o que gritavam
enfrentar e ver.
aquelas mulheres sob
eu disse: e é sem re
aqueda da água
como um aís
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se dando conta eu disse: vi u?
de ue entrou é exatamente assim
em uerra, um dia que ocorre
um país se dá conta
em .meus sonhados
de acidentes
eu me lembro
que você falou
por exemplo, qualquer coisa que
abra os olhos e veja: tinha a ver com
num zeptossegundo presença e metajisica.
não há mais lagartos eu disse:
agora, nem rochedo ah, ali está o carro
agora, ou queda o 4x4 vermelho
d' água tão fria bem debaixo
agora, ou mulheres daquelas árvores,
gritando agora debaixo daquela chuva
. . de pétalas amarelas,
as cOisas mais
sin ulares roxas, desmanteladas.
e irrepresentáveis, outro dia qualquer
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apto a fornecer, da temporada e, de fato,
está bem? da cor do chumbo,
me ocorreu agora da cor da cor do chumbo,
lhe pergu n tar se você e nem que eu repetisse
seguiu em frente isso mil vezes
com os escritos? daria uma ideia de como
você gostava muito eram da cor da cor do chumbo
dos escritos, aquelas nuvens
de escrever, que cobriam completamente
como dizíamos, a paisagem que a gente
e você tinha umas tinha feito tanto esforço,
ideias verdadeiramente tinha caminhado tanto
luminosas sobre isso. tempo para ver,
você não vai me para achar uma localização
levar a mal e vai mais alta possível
me fazer esse favor, para ver e acabou
de repetir o que não dando cerro
respondeu à minha ou melhor,
questão, não é? tudo deu certo se
vai significar como você disse
muito para mim, sabia? o nosso plano secreto,
bem, talvez secreto até para
você não se lembre nós mesmos,
afinal tudo era meio era procurar
interrompido o melhor mirante
pelas risadas que a das Paineiras para ver
gente dava e pelo as nuvens mais colossais
espanto que a gente e cor do chumbo
sentia ao ver que e cor da cor do chumbo
nuvens enormes, da temporadà cobrindo
as mais gigantescas o céu e a paisagem, não é?
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o que não seria fosse capaz de dizer
de modo algum uma coisa óbvia,
desprezível por favor, não lhe passe
do ponto de vista algo do gênero
do místico que dizia pela cabeça,
fumar para pôr é apenas para que
um pouco de névoa você saiba do que
entre ele e o mundo. estou falando e me
eu disse: eu preciso recorde e explique,
lhe dizer o que gravei devolvendo ao tópico
como sendo o que toda a complexidade
aproximadamente que
você disse, a contragosto
mas é claro que lhe subtraí
não vai ser o
que realmente você •
disse, é apenas
uma adaptação
e que por ISSO eu me lembro que você
mesmo só pode existir mexeu um pouco esse
embaciando a seu cabelo tão bonito
informação original, e eu me lembro
só se dará como á1ida que ele fez um som
sombra da coisa ou
em si brilhante e luminosa: nem era um som
o seu ob'eto sin ular. e sim algo que deve
e se lhe repito essas proceder do micromundo
palavras não é para que das vibrações sonoras,
você pense que eu e eu fiquei arrepiado,
por um instante sequer me arrepiei, a nuca
imaginei que você inteira, de imediato, e
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depois você também a cidade,
espantou uma abelha o torvelinho,
acintosa 9ue bordejava o ren ue de almeiras
a sua latinha e então de al uma rua
você disse qualquer irreconhecível
ao menos ara mim,
mas que eu gostaria
de ficar olhando por
um longo, indeterminado
tem po de uma tarde
de verão, e por um segundo
fez todo o sentido do mundo
ex erimento, ex erimento o nosso absurdo ir e vir
todos os dias," por entre atletas,
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e os rumores de tudo ali: o ue você escrevia
os atletas, os lagartos, tinha a capacidade
as quedas d'água, os de roduzir de imediato
cães malabaristas e
tudo o que então
poderia
num zeptossegundo
ter sua escala
de grandeza modificada
e sua existência posta
em dúvida num acidente
colossal eu disse:
claro que vão deixar
• você escrever por lá,
tem cabimento uma dúvida
dessas? ei
eu disse: para que tipo de lugar
acho que você tinha você pensa que está
que pensar bem sendo levada?
naquilo dos escritos,
eu gostei dos seus •
escritos desde sempre,
você sabia?
eu sinceramente não oxalá eu não tenha
sei como você canse uiu também mais uestóes
--------- ---
cheg~~~modotãorá ido com a metafísica e
e definitivo a ai o a resença, como
~r'!..~~i!.!!...R.ermanece você bem disse
indefinível e e meu caso se resuma
ine~g~!..ável ao fato de que
fonte de sobressaltos. simplesmente sou
-------- -
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uma pessoa do silêncio, PARTE 3: INFERNO
de sua equipe,
ou melhor, povres jamefetes
povres hospitaulx
o silêncio é meu povres gens
equipamento.
P. VILLON
eu disse:
o silêncio
é meu equipamento.
Você a reconheceu
mas me diga (eu disse)
como sendo a menina
não era uma coisa assim,
coreana da Central
que partia dessa base
de Fotocópias do Catete
que expus de forma
aquela com
sumaríssima, mas
camiseta salpicada
que em sua voz e
presilhas fluo
expressão sabia
mureta
logo desdobrar
e hipodérmica pendente
um rol de consequências
do braço
inesperadas, desfolhar
e me abraçou e
um jorro de pertinências
me olhou com um olhar
agudas, corrosivas,
que me atravessava
como as pétalas da
e ia atingir
sick rose,
atrás de mim
fazer um giro
bem lá na frente
desregrado
no bazar futuro dos dias
potente e incisivo,
no meio das bugigangas
até magnificar-se
espelhadas, espalhadas
em uma formulação
um outro crepúsculo cinza
a um só tempo
uma outra noite chuvosa
límpida e biunívoca?
e sem luz
em que veríamos
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o inferno refletido
iAROTA COM XILOFONE E FLORES
nos olhos de um
NA TELEGRAPH AV.
vira-lata que cruzava
as pistas do aterro
varado pelos ( uando ela
feixes dos faróis rão incrivelmente linda
(relâmpagos de 'orno você dizia
nenhum céu)
I"S revia os poemas que escrevia
dos 4x4
("eu entendo que não levássemos tão a sério os poemas que ela
a toda velocidade. l:t incrivelmen te linda
rs revia
~:I'ando de dentro de uma bolsa ácida com pins coloridos
[e motivos op
os menores lápis de cor que vimos em toda a vida
pnra improvisar
.1 qualquer hora e sobre qualquer superfície
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ao dizer que não havia mesmo nada ali UMA TENTATIVA DE RETRATÁ-LA
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certo modo ela se parece cada AS METAMORFOSES
vez mais com o que escreveu
o seu poeta favorito:
"Piccolo, sem re iú iccolo.
Pigmeo, sempre piú pigmeo". orno um filme ue necessita de 2 uadros or se undo
Por isso nem dancings, nem Rara ue a ima em a resentada se mantenha ínte ra na
bibliotecas nos bastam. Nem tela e à nossa vista, talvez o ser humano se'a uma acele-
a balada do automóvel insone. radíssima re etição de si mesmo
Isso, e nem a cama alta onde 'spetáculo e visibilidade n~ma proporção de roo uadros
agora, contudo, sorri por bilionésimo de segundo. De modo que, por exemplo,
esses!1akespeariano animal aquele jovem que está entrando pelas portas da discoteca
que logo existe. . rn um colete de explosivos sob o pulôver negro coriti-
nue pacificamente a ser aquele jovem que está entrando
p .las portas da discoteca com um colete de explosivos sob
II pulôver negro, e aquela pálida garçonete atrás do balcão
ti . um café do aeroporto aguardando apreensiva a aproxi-
mação da mãe de seu namorado que se atrapalha toda com
.I bolsa de onde retira uma pistola 9 milímetros continue
.1 ser nada mais do que aquela pálida garçonete atrás do
lulcâo de um café do aeroporto aguardando apreensiva a
.rproxirnaçâo da mãe de seu namorado que se atrapalha
tllda com a bolsa de onde retira uma pisto~a 9 milímetros,
uulo de forma íntegra e ininterrupra, Ou quase. Pois as-
irn omo a diferença ou sabotagem em um único foto-
p,I.\llla entre os 24 que deslizam divertidos ou solenes por
IlId:\ a extensão de seu mísero segundo cinematográfico
11.10 hegaria a alterar a imagem que vemos na tela, dada a
!,'\' .ariedade do poder de percepção de diferenças de nos-
11 humano olhar, a possível metamorfose daquele jovem de
1',,1 ver negro explodindo dentro da discoteca, ou da pálida
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garçonete atrás do balcão com o peito perfurado por uma PÁLIDO CÉU ABISSAL
bala 9 milímetros, e mesmo considerando-se a possibili-
dade de uma metamorfose extremamente esdrúxula como
em boi, tapir ou bebê Radinbranath Tagore, desde que que não nos protege,
é antes cúm lice, ou mentor
limitada a um único quadro entre os roo daquele bilio-
intelectual dessas ruínas,
nésirno de segundo, não seria captada por nosso precá-
de nossas mentes estro iadas.
rio sistema retiniano, e só lograríamos perceber de fato a Ao passar por certas casas e ruas
fenomenal e invejável continuidade do pulôver negro do suburbanas, ocorre às vezes
jovem entre os destroços de discoteca e gente recolhidos de nos depararmos com algo
pela polícia e transportados para a calçada cheia de vento que brilha deslumbrante e dissimétrico ,
e nos comove a ponto de nos
e do piercing sobre o lábio da pálida garçonete caída por
perguntarmos se de sua aparição
trás do balcão sobre uma poçazinha de sangue. Num con-
escandalosa, sua cauda
certo em homenagem a Witold Lutoslawski, contudo, o luminosa de átomos e vazio,
anjo boxeador logrou perceber diversas metamorfoses da poderão surgir algum dia
pianista Martha Argerich em cervo negro, dia de inverno, moças asseadas em vestidos
borra de vinho, chuva de ouro e outros prodígios incontá- de Rores, conduzindo pela
veis, metamorfoses essas que, entretanto, não chegaram a mão crianças bem penteadas
para a Escola Municipal,
durar nem um bilionésirno de nanossegundo, o que per-
o Sonho Municipal.
mitiu que para os outros espectadores aquela bela criatura
Parei um dia em uma dessas
de longos cabelos ao piano continuasse a ser durante todo praças e, deitado sobre a
o transcorrer do concorrido espetáculo a renomada pianis- grama, me us a escutar a
ta argentina Martha Argerich. desconexão absoluta de
todas as falas do mundo, de
todos os sonhos do mundo.
Ao levantar-me para buscar
um pouco de água no tanque
vazio vi (me encarava)
uma ratazana que ainda
assim me lembrou
Debra Wingers
abandonada no deserto.
54 55
UM CONFEITEIRO DA CIDADE DE X ... o estudo da geo rafia celeste. "É a uerra. É a erra. É essa
OBSERVA A FOTO DO ASTEROIDE 433 EROS maldita terra... ", ele entoava bem baixinho resi nado
--- "
CONTRA UM PUNDO DE ESTRELAS NUM tomando o rumo de volta ara casa, onde demorava tanto
ÚNICO PIXEL ILUMINADO a chegar que já dava com as ortas da confeitaria fechadas,
o ue, não fosse assim; aderia acrescentar, aos olhos ou
sistema de visão multies ectral do confeiteiro, doze se un-
dos su lementares à sua existência, ou a ari ão, em órbita
Nos oito anos que passou em x ... , o anjo boxeador ex- retroativa.
perimentou a vertigem e o assombro de uma rotina tão
inalterada que certo dia, enquanto pensava na vida média
de um nêutron ou nos pés inchados de Édipo, súbito foi
atingido pela certeza de que para o dono da confeitaria
da esquina, diante de cujas vitrines passava pontualmente
todos os dias pela manhã, ele não poderia representar nada
além de uma estranha forma móvel, acinzentada, que cru-
zava a rua produzindo na limpidez de suas vitrines uma
tênue agitação membranosa, e cuja existência, ou aparição
diária, com precisão astronômica, durava nunca mais do
que doze segundos. Quando cinco vezes por dia um som
uase humano chamava das mesquitas para a reza, era pre-
cisamente nisso que pensava o anjo boxeador. Era na ine-
vitável ex losão da uelas vitrines, na eometria uase má-
ica dos estilha os em suas tra'etórias im revisíveis ue ele
pensava uando em desafio aéreo ex unha o ró rio rosto
à névoa radiosa do deserto. E uando buscava deses erado_
o céu multicolorido do ocaso sem' amais ter ali encontrado
~ edacinho ue fosse de lua, com rimia as têmporas
com os dedos, e deixava escorrer ela areia do deserto toda
a sua er lexidade com o fato de a hermenêutica se reo-
~Ear tanto com a distância histórica e nem um ouco COlTl...-
57
CONTO DA GALINHA Ao vento, sua dança
imóvel
redefi ne um
céu oblíquo,
antro de nuvens
simultâneas,
assustado raso
(Meu pai
a trouxe para
Esta a casa
- por exemplo - um dia
abriu as asas, antes
pardas, de nos deixar,
contra o fundo talvez por
de um muro sobrevivido
fincou-se no a tantas
58 59
Em seus " - Essas ervas
raros momentos Hutuantes,
de elevação, caídas sabe-se lá
quando fica de que cúpula
num pé só, radiosa, serão
imagina-se o envenenamento
a orquídea de qual
da pedra. paixão?"
Agora torna a
descer para ciscar,
bicar seus grãozinhos
de gordura
que se esfarelam
nas mãos
do menino
que os
arremessa
quase se
Terráquea, mijando de
pisa a própria medo,
bosta e mas atendendo
a alheia, aos gritos
aceita as dos tios
nodosidades gordos e
e pronunCia desargentés
constrangi da que o despedaçariam
seu lamento com a pJOr
de imperatriz: das ofensas.
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A neblina que cai Hokusai
pela manhã não ignoraria
sobre o terreno o sortilégio
baldio, enlameado, amoroso
surpreende-a dessa
em sua túnica galinha,
asfixiante, o coração
sempre de fogo
florescendo e que a impelia
sempre às vezes a
odiando correr pelo
o sexo. quintal
em puro desperdício
aerodinâmico
anda livre,
mas já viveu Nem aquela vez,
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Cerra as mãos como quem porta eis a quinta-essência do
um segredo, e ainda que ninguém aprendizado? Maria Julieta está morta.
perceba, sente que sua revolução Cruza o túnel do Pasmado, e mais outro.
está ocorrendo neste exato instante. Tudo somado, talvez esteja recitando:
autossuhciência e as bombas
da ilusão de unidade absoluta
periferia, soltando no ar
grossos rolos de fumaça negra,
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PEQUENAS HUMILHAÇÕES DIÁRIAS nós, dando-se ares de original, comenta: "eu, se não tomo
o meu café preto da garrafa térmica verde de manhã, não
Em Sirius
hd meninos. Funciono o resto do dia" (risos de fita pré-gravada! Noutro
F. G. LORCA plano: bombas chovem sobre a cidadela'). E uma tal besta
não se dá Conta de que com isso está dizendo nada mais do
A primeira, e disso Xerazade já sabia com respiração escas- que: "vocês para mim são pouco mais do que merda pisada
sa e tudo, é acordar. O sopapo da claridade. Que nos faz, e repisada porque nem me dou ao trabalho de pensar que
em vão, virar o rosto e tentar voltar para dentro do sonho vocês também não funcionariam sem o café preto da gar-
pela farsa, a um só tempo exígua e voluptuosa, da lingua- raFa térmica verde, que ninguém funcionaria jamais sem o
gem: você corria ao redor de uma cidadela desesperado, ·aFépreto da garrafa térmica verde, e anuncio a coisa como
gritando para os de dentro da cidadela que um enorme e Fosse um sinal característico meu, pessoal e intransferí-
perigo os ameaçava, que deveriam vir com você, que você vel, como aquele trevoso sinal de nascença que tenho na
sabia o caminho para longe da cidadela, que bastava seguir nuca e que se assemelha a uma silhueta de ouriço". Agora
a trilha dos ciprestes em chamas. Que louco espetáculo pensem no outro coitado, o pobrezinho de paletó puído,
de luzes, pensavam as mariposas, imantadas por seu ful- quase transparente, aquele num canto da mesa, esperando
gor. E se no sonho o coração batia acelerado, os olhos se que lhe venha a pálida garçonete tornar a encher o copo
moviam injetados e o suor cobria a testa, agora, depois de soda-fluo, o que diz baixinho, quando o primeiro en-
das pequenas humilhações do espelho e do dentifrício, eis 11mse cala, "eu parei com o café preto da garrafa térmica
você debaixo de um penteado perfeito, tirando café preto verde há dois meses". Nem é orgulho, para ser justo, aquilo
da garrafa térmica verde. Claro que vocês ouviram direito. que sente quando Sussurra tal sussurro. Ao contrário do que
Café preto da garrafa térmica verde. Eu, se tivesse que ima- pode parecer, é masoquismo. Sabe que todo ser vivente
ginar que somos a sitcom que alguma criança distraída nos sob o céu dos vaticínios neste mesmo instante se dá Conta
espaços interestelares assiste de vez em quando, enfastiada perFeitamente de que foi o café preto da garrafa térmica
ou com assiduidade de fã, julgo que a grande gag, daque- verde que o deixou.
68
SOBRE PORTAS RUA DOS CATAVENTOS
71
vaticínios, quem não houvesse perdido pelo menos um
parente ou um amigo, ele colaborou, ele podia ter colabo-
rado, ele ia colaborar, ele vai colaborar, ele cantou a música
inteirinha, nota a nota, ele recitou o poema todo, verso
a verso. Passaram a se referir a ele como "o cantor" e "o
poeta", alternadamente.
DOIS ESTRANGEIROS
Quando despejaram a seus pés, de dentro de grandes ca-
çambas brancas que estavam no caminhão, as cabeças dos
possíveis responsáveis, ele estava presente e colaborou, ele
esteve presente e ia colaborar, ele podia ter estado presente
e ele vai colaborar, ele foi chamado, ele tinha estado presen-
te, ele disse que tinha estado presente, ele afirmou que ia
colaborar, ele colaborou, ele bebeu a água mineral que lhe
ofereceram, ele disse que sim que reconhecia todas e cada
uma aquelas pessoas.
A) EFEITO LUPA
sobre pintura
holandesa
e agora o repito
para rrurn mesmo
enquanto observo o
desabar da chuva
do lado de fora do
hotel onde trabalho
75
Quem diz luz diz Quem diz luz
esse baixar de pálpebras diz o fundo do mar
com outra
de antimatéria?
77
Você: por isso não existe amnésia Quem diz luz
você: por isso o sol é uma tautologia diz algas diz cianobactérias
I
I
diz: lago à noite
cintilando para ninguém
e diagnostica
pânico de check-in
79
Recordo mas calo Longe daqui
algo de Gombrowicz alguém leva desesperados numa chalana
um poema de
longe daqui
seu poeta preferido
no mundo intermediário da rua da Carioca
no dia do meu
aniversário
80 81
B) ELA Como se fosse obrigatório comprar
O amor delas
Não se esqueça disso quando
"Essa luz, você sabe, eu detesto essa luz" Começar a me detestar"
Eu guiava mas olhei para onde
Ela estava apontando E sorriu
•
Em silêncio pensei:
Pode acreditar!
"Aquele carabiniere idiota
Em vez disso Pensava mesmo que ia me comer
Perguntei se ela queria comer algo E eu quase vomitando só de olhar para a cara dele
Antes de subirmos a serra
Obrigado por ter ficado ao meu lado todo o tempo
"E também odeio o jeito como tratam
As crianças por aqui
82
Você sabe Num restaurante à beira da estrada
Seu país não é muito pior do que o m'eu Afirmou que só voltaria aqui
Só é mais estúpido e sentimental Por mim
Por isso odeio até as suas vozes"
"E por Rafael"
Corrigiu rapidamente
"E por esse magnífico arroz de brócolis"
Disse depois de uma garfada
Depois de pensar um pouco
E acender um cigarro
E sorriu
E ficar em silêncio:
•
LIMPEZA DO APARELHO meses vividos em Berkeley, mas agora já não acha que seja
o caso. Aliás, está muito além das suas forças. E para falar
a verdade, você não se recorda de nada ou de quase nada
Você vai ver se consegue escrever aqui alguma coisa de que daqueles dias entre as colinas de Berkeley e o cheiro de
acabe saindo um poema, mas é duro como esfregar grave- flores e pizza de Berkeley. Mas é claro que aí vem a imagem
tos em busca de algo mais do que mãos lanhadas e gravetos de Ted em sua cabeça dizendo: ,"Não se lembra de nada?
esfia ados. Você acha que seu livro precisa de um pouco Que sorte a sua, isso é melhor ainda, pois então você pode
de humor, você adoraria escrever alguns poemas bem hu- simplesmente inventar tudo". E a prova de que você pode
morados, mas reconhece que agora, com mãe morta, amor simplesmente inventar tudo - parece prosseguir o velho
no exílio e sua melhor amiga dizendo que não pode mais Ted - é a própria garota com xilofone e flores na Telegraph
lhe ver e chorando porque acha que não presta para você, Av. que não passa de uma pura e simples invenção sua.
vai ser meio difícil encontrar alguma graça. A sua tríade Não sei se Chuang- Tsé era uma borboleta sonhando ser
pifou. Você poderia fazer outro poema no estilo desse Chuang-Tsé ou se a borboleta era Chuang-Tsé sonhan-
recém-terminado "Garota com xilofone na Telegraph do ser uma borboleta, mas quem imaginaria que aquela
Av." de que afinal você acabou gostando bastante, apesar borboleta presa na persiana era na verdade uma lagartixa?
de certa reticência, certa desconfiança mesmo, enquanto o Uma invenção sim, Ted, apesar de tudo ali ter existido de
fazia. Talvez devesse tentar fazer mais alguns assim, e não verdade, a Telegraph Av., a garota, os poemas, o que os
só porque você imagina que se trabalhar um pouco aquilo, poemas diziam, os olhos verde-rã, a bolsa, os pins antifas-
aquela pegada, aquele tom, pode acabar fazendo mais uma cistas (você ainda guarda um, que ela lhe deu de presente
ou duas coisas interessantes. Mas não seria uma contradi- quando foram juntos assistir "Lambassade" na cantina da
ção (para não dizer uma obscenidade) querer transformar fac. de teologia enquanto no cinema da fac. de teologia era
aquele poema em um procedimento? Ele nasceu assim exibida uma sessão de Cidade de Deus'), nem preciso falar
porque nasceu assim e antes só havia nascido uma vez mais das moedas contadas para o café, o croissant e a lavande-
ou menos assim, no caso de "O monograma turqui", e ria, o amigo grego alcoólatra e inconsolável, e você mesmo
você só reparou na semelhança dele com "O monogra- e tanto ódio guardado. Ela lhe disse que os poemas são a
ma turqui" quando ou ele já estava escrito ou já estava transparência através da qual ela gosta de ver o mundo e
num estágio bem adiantado. Você já pensou certa vez em
desenvolver uma série chamada "Berkeley on my mind", * Vocês cruzaram, ao pôr do sol, deslumbrante, todo o pátio verde
tomado por jogadores de frisbee, carregando um projerorzinho velho.
uma série poética com as suas lembranças daqueles seis Maldita memória, Ted, maldita memória.
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você disse que ela era a transparência através da qual você HANDGUN CARRYING CASE
gosta de ver o mundo e todos os poemas que há dentro
dele e ela chorou e disse que ia embora e que não podia
mais lhe ver e que não prestava para você.
Como rodas as crianças que brincam no ocaso, o anjo bo-
xeador quando está chorando ou é por medo da grama
crescendo transparente nos parques ou porque acaba de
contemplar o espetáculo de mais uma corda estirada ver-
ticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um
galho bem resistente e na outra a cabeça de um índio. Ou,
como ocorre agora, quando se vê hipnotizado pela man-
cha de certa fotografia em um ônibus vertiginosamente
lento que cruza um pueblo peruano. Uma velha índia com
o pulôver cinza de universidade americana folheia uma es-
pécie de revista até se deter numa página que se desdobra,
violeta e irnparável como um programa hípico de César,
sem que ninguém dentro do veículo, dos sacerdotes vesti-
dos de branco ao bando de colegiais em uniforme cor de
kiwi se dê conta de tais avanços consideráveis no espaço
penerrável, página que faz resplandecer no empoeirado
veículo a fotografia de uma beleza cadavérica local, um
autêntico índio exposto na vitrine de sua morte pendurada
e oscilante. O anjo fecha então os olhos e tenta transpor-
tar-se para um hotel barato de uma cidade em labirinto
onde certa vez experimentou o mais relaxante banho de
banheira de sua vida enquanto aguardava um telefonema.
Ao anjo boxeador cabia apenas dizer alô e se alguém, do
outro lado da linha, se identificasse assoviando a melodia
de Handgun carrying case, era certa a explosão da sede ofi-
cial de algum partido extremo ou mesmo de uma loja de
88
surfe em Biarritz e o anjo choraria o resto da noite. Uma
voz dentro da cabeça lhe diz que a vida agora é, apesar de
tudo, melhor, e o anjo se promete adestrar o pensamento
a esse novo conceito. Quando finalmente desce do ônibus,
diante de uma praça poeirenta do pueblito que o espera, dis-
tingue um ajuntamento circular que, sob o sol, reza alto
MONODRAMA
e bate tambores pelos filhos anônimos de grandes chefes,
esses serezinhos, essas membranazinhas vibrantes de Deus,
que, alguém já disse, serão os primeiros a entrar no céu.
Por uma corda.
As vozes saíam
de um bar frequentado
pelos remadores da região
- o Cap'tain Zombi-
dessincronizadas
e da mesma banda sonora
do trava-línguas
e do senso comum
Mas também
roladas no ar do Cap'tain Zombi
pareciam rochas espaciais
em sua mistura de tristeza e
sonhos de infância
inarticulados
93
Ninguém pense contudo ter captado a sua versão do paraíso
aí sua máxima essência ou
como me descreveu
"as ró alavras numa carta manuscrita sobre papel vegetal
estão efervescentes e tortas"
sim
94 95
Duas ou três vezes ao dia você Ali ouviria
também gostava de dirigir até à casa
da estudante de cientologia e ficar olhando
de dentro do carro para as janelas cobertas de gelo você tem certeza disso
do prédio vermelho-tijolo
da estudante de cientologia
as palavras de que
" - Uma russa tão desesperada
com a ideia de que Moscou vire Los Angeles"
97
Um vento frio bate em seu rosto A foto do santuário de Delfos
na calçada em frente ao bar dos remadores no Édipo de Pasolini
provoca um tremor tão tênue colada no painel do seu carro
nas suas faces no espelho do banheiro
e é como um esplendor e na caixa de remédios
o esplendor impossível do Cap'tain Zombi me repete
e sua mascote: que você não é menos triste
do que qualquer pessoa
que eu conheça
nesta cidade
de imigrantes
fantasmas
à sombra do
obsessor
um papa-formigas
99
(interregno: notas do caderno azul) e de continuidade
relativas" diz, "turbulência" diz,
a) "aceleração" diz, "constelação" diz.
O cheiro de algas
me traz outro acesso de tosse, f)
dessa vez felizmente nenhum sinal Fumar piora. Algas.
de sangue no lenço enrugado.
g)
b) Abro a gaveta: um azul Novo Testamento
Aqui é um ar esfaqueado, um (... ) e a foto dela
em KL folheando
c) um número de Su/fur.
O cantor de frevo
era o meu contato em Kuala Lumpur. h)
Daí vieram os estranhos acidentes, A tatuagem dela: dragão. Símbolo
a confiança se esvaindo. da solução dos contrários.
A carta selvagem
falando nos "patos de Pequim". i)
Com Pola aprendi hoje a palavra quidditas.
d) Vontade de nadar, nadar.
Aqui é contudo melhor (...)
Aqui ...
Aqui o melhor são os canais de áudio C ..)
Aqui ...
e)
Os vizinhos não estranham
os envelopes diários, sedex.
Como esse de hoje, de Barcelona:
"efeitos de realidade" diz, "sistema de velocidade
100 101
Há também Munida de comprimidos e volumes de história natural
ao lado da cama você passa horas tentando imaginar o mundo
a foto daquele há trezentos milhões de anos
escritor que disse quando por exemplo
na entrevista ter as libélulas
102 103
(interregno: notas do caderno azul) em barcos que giravam
sobre ondas crespas,
envenenado?
Ela me
mostrava os barcos que
chegavam no cais
clandestino
mesmo em noites tempestuosas.
Os barqueiros pareciam
respeitar a essência
vertiginosa
das mercadorias
que transportavam
sob água e trovão
em barcos que giravam
sob água e trovão,
105
I04
(interregno: notas do caderno azul) localizar um cadáver nessas
circunstâncias?", o cônego
Pola colecionava me envolvia em
ninhos de montanha,
reunira centenas um cobertor grosso e
resmungava e fungava:
deles durante "você é a garota
falavam exatamente.
Sentia frio e as vozes
que ouvia soavam
desencontradas como
as vozes no rádio de uma
aeronave. O de óculos
I06 107
Eu pergunto se o ANJO BOXEADOR
você quer ir para
casa "Sim"
se está pensando
em grandes espaços vazios o primeiro a me dar os pêsames berrou: "Quando eu
"Sim" se tudo não tinha esta perna mecânica eu não sonhava com balsas
vai passar atravessando o rio". O segundo a me esbofetear sussurrou:
tudo vai "Meus filhos sempre imaginam, quando chego em casa
ficar bem do trabalho na loja de malas, que eu trouxe secretamente
mais um filho para casa, e passam boa parte de seu tempo
"Sim sim" livre procurando por esses irmãos que eu, por misteriosa
se realmente razão, estaria protegendo de sua indiscrição e violência".
se apaixonou O terceiro era um cão esquartejado jogado à minha porta,
se pensou em com uma medonha cartolina cor-de-rosa no pescoço onde
morrer "Sim" se podia ler: "Feliz aniversário". Sem olhar para trás, pude
se eles cortaram imaginar minha mãe e meus amigos chorando escondidos,
os seus lindos atrás da cortina.
cabelos.
108 1°9
POR TRÁS DOS ÓCULOS ABAULADOS
•
Uns olhos que faziam tudo valer a pena? Os da
garota-esquimó, fã de Darwin, a quem
Era isso o que eu sempre quis dizer eu desejaria dedicar um poema chamado
quando falei em fundo do coração. "Galápagos" por ter dito
que eu agora tinha um lugar
• para dormir?
•
Toda a noite me obcecaram em sonho
aqueles peixes fluorescentes: fluxo cínico que eu
acompanhava A busca de meu próprio rosto no alfabeto
da janelinha do avião; ou que justamente azul-ozônio que subia, livre, tatuado,
me seguia? assustadoramente braço acima e céu acima, até a praia de flamingos
me seguia? de um colo nu, órbita de
miçangas lunares, sublunares .
•
•
lIa I I I
Não há resposta, camponês, nunca houve CAFÉ
em céu algum, vida alguma, isso de respostas,
só a veemência de uns espelhos.
o anjo boxeador senta-se no café do aeroporto e é como
• se caísse numa cratera de rem o. Tenta erceber de ue
matéria são feitos os se undos ali dentro, ue em nada
E assim, enquanto avançavam as horas no relógio de lembram fluxos matemáticos, adrões, se uências numé-
[Júlio de Abreu ricas clássicas, antes pétalas crescendo. Pressente que seu
e ficavam para trás todos os sorrisos ("e esquilos brincavam raciocínio está cada vez mais próximo de chegar a uma
nesses sorrisos como se sobre ramas", sussurrava conclusão, mas é apenas o ponteiro da bomba-relógio a
uma voz volátil), aproximar-se do instante detonador. A grande explosão
dentro do táxi, ocorrida a seguir em seu cérebro só se faz notar por uma
no fundo do coração, disparado, cintilação nas pupilas que a pálida garçonete toma por um
seguia comigo estado de graça. Bebe um gole de café buscando captar
o rosto de Marília. alguma vibração nos sentidos esfrangalhados: nota então
que, agora, o rumor de uma bagagem de mão pousando
no carpete ou o de uma mochila verde-musgo retoman-
do aos ombros do campeão mundial de windsurf abafa o
motor dos aviões, que passeiam pela pista como crianças
no ocaso.
1I2 II3
o ANJO BOXEADOR TENTA segundo as suas próprias leis
DESCREVER UMA CENA os dois jovens
seguem lendo e
fazendo círculos
1. com a fumaça
dos cigarros
Um jovem faz círculos com a fumaça o que de resto
do cigarro mal dissimula
e está deitado o não pequeno esforço
no chão de suster uma bicicleta
lendo um livro entre os joelhos
II4 II5
2.
3·
II6 1I7
4· dessa menina
o sornso
Neste instante a cor dos seus olhos
o anjo boxeador a forma de
para de descrever suas botinas
a cena a que está
assistindo
e pensa que se aJgo de nós
sobrevive ao fim
do caniço
pensante
hipótese remota
sim
mas enfim hipótese
mas enfim remota
então o anjo boxeador
se promete
nessa improvável
hipótese
esgotar todas as
possi b ilidades
de contrabandear
na hora da morte
e para dentro da morte
burlando
a lavagem cerebraJ
do araíso
alguma coisa
alguma
mais mínima
coisa
II8 I19
o ANJO FOGE
120
1.
123
2. 3. (O cachecol, ainda)
"De modo que a lanterna deste aqui por um instante Ele rodopiou
deixa de brilhar para como que reaparecer mais adiante, no ar e desenhou com uma das extremidades
mais fulgurante, na popa daquele outro vários círculos dourados, uma espécie de hélice.
ali. Olhe ao redor, estamos no Rio de Janeiro Parecia seguir para o mar, mas uma lufada o
ou fomos lan ados na aisa em com lexa lançou para o outro lado: uma seta acesa e
de um conto tradicional chinês?" maleável sobre o canteiro de gerânios, na
direção das pistas de alta velocidade
do Aterro do Flamengo. Batemos uma foto
e prometemos voltar amanhã. Não à Marina,
mas ao Museu de Arte Moderna, e ver a
"Biblioteca sem nome", o Monumento
do Holocausto da judenplarz,
de Rachei Whi teread.
124 125
4· 5·
Por isso esse poema não começa com um menino, "Quando chegamos ao nosso acampamento,
com um menino cantor sobre uma barca, comemos alguma coisa, e nossas garotas logo
com uma barca cortando a água e o nevoeiro, foram se deitar. Nós ainda nos demoramos um pouco
com um nevoeiro adensado por árias do folclore polonês vendo tevê, fumando, e pela janela não cessávamos
e refrães militares prussianos na voz de um menino cantor. de ver o fantástico fundo de chamas
de todas as cores imagináveis:
vermelho, amarelo, verde, violeta,
. e de repente ... "
126 127
6. 7·
Vai ficar mais difícil estacionar carros "Ele me pergunta se minha garota já foi casada
aqui na Judenplatz e não é um monumento bonito e eu: 'Não. Mas esteve muito apaixonada antes.
e eu ter.ia preferido que tivessem por fim se decidido Aquele que ela amava foi ferido, gravemente,
a utilizar aquela solução anti-spray pois ninguém também seus órgãos saíam-lhe do corpo. Ela os
vai gostar de ver suásticas pintadas sobre ele, eu não recolocou com suas próprias mãos, levou-o
gosto dele, mas já que está aí eu e ninguém vai para o hospital. Ele morreu. Puseram-no na
querer ver suásticas pintadas sobre ele. vala comum, ela o exumou, deu-lhe uma
sepultura.' Para ele, este simples
episódio é o cúmulo da virtude."
128 I29
8. 9·
130 131
IO. Il.
Estou falando de dias ensolarados, Con frecuencia, en artículos publicados en Ia prensa o en los
estou falando de dias escuros, quer dizer, mismos intercambios de Ia calle, los vienenses cuestionaban
estou falando de flores, sim, de lombadas tanto Ia "oportunidad" como Ia misma "necesidad" de recordar
de livros, portanto de douraduras, isso quer el Holocausto. Trasel estudio de losdistintos proyectos, eljurado
dizer, de crianças brincando e nadando na água
seleccionâ Ia propuesta de Iajoven escultora británica Rachei
da inundação, de queimar as cartas do escritor famoso,
Whiteread En el camino quedaban múltiples obstáculos: des-
da fumaça subindo e deixando aquela mancha
de ia insistente oposición de ia ultraderecha (ahora sumada a
no teto, eu não estou falando das colinas de Berkeley
Ia coaiición gobernante), hasta Ias mismas organizaciones de
mas dos entregadores de pizza porto-riquenhos de
sobrevivientes {insatisfechos con el disefto de Whiteread por
Berkeley, dos entregadores de pizza húngaros de
su contenido excesivamente "abstracto"). ELLosargumentaban
Santiago, dir-se-iam livros que não se abrem, de
que ias víctimas dei extermínio "no murieron en abstracto".
portas que não se abrem, de sonhos que não,
de um pesadelo recorrente, de uma resina,
um cavalo correndo, não são livros de areia.
) 133
12. (epílogo, à maneira do teatro de Gertrude Stein)
Dir-se-iam pétalas.
Aquelas?
Estas.
Antes profusão.
H.
Dir-se-iam montes de merda.
Dir-se-iam céus.
Cam uflagens.
O que é a Legião Condor?
Dir-se-ia fixo? fúcsia?
Dír-se-ía farpado?
Figuração.
Troncos.
Cepos.
Minas terrestres
(mas aqui, aos teus pés,
crescem agora essas
florezinhas azuis e roxas).
Dir-se-iam maiúsculas.
Toda a tarde?
Entre lobo e cão.
Dir-se-iam pescadores.
Nada assemelha.
Um chamado à ordem,
e no entanto trovões.
Hematomas no lago,
dir-se-ia entrever.
Dir-se-ia chuva de ouro?
Eram vagões?
Ali, hipoglicêmico.
134
H.
I.
137
lI. IlI.
Passeio agora pela mesma casa de minha infância, A ideia apavorante da morte de minha mãe, pelo
adolescência e vida adulta, consolado pela ideia do que vejo, ultrapassou a superfície gelada, deixando-a
descanso que ela terá de agora em diante. Sem pre- intacta e está fazendo sutis estragos em regiões que
cisar de ajuda para levantar da cama, sem precisar de desconheço, não alcanço. E contudo estou aparente-
ajuda para tomar banho, sem precisar de ajuda para mente tão calmo. Venho escrever por medo de per-
limpar a própria merda. Passeio pela mesma casa de der a razão, não pelo estardalhaço dos nervos, que
então, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, não há, mas pelo seu contrário sinuoso, a idiotia.
da cozinha para o quarto e assim por diante, mas co- Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa
meço lentamente a perceber um sinal que me alarma: comigo estarei salvo, repito isso a mim mesmo al-
não tenho nenhum controle sobre meus passos e me gumas vezes, como repito mentalmente o refrão de
será impossível parar de caminhar do quarto para a que onde há obra não há loucura e onde há loucura
sala, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto não há obra e venho escrever. A ideia absurda de um
e assim por diante por decisão própria. A cada volta obsessor que se aproveitaria desse momento de pane
observo com cada vez mais apreensão as paredes, não em minha mente me passa pela cabeça quando uma
sei se pelo temor de que me faltem a qualquer mo- voz em mim diz que devo queimar todos os meus
mento ou de que comecem a se estreitar sobre mim. cadernos no quintal de casa, numa grande foguei-
Descubro desse modo bem cruel que não é assim tão ra, um rito de passagem. Agem em mim um medo
fácil livrar-me de um medo que vem sendo o meu (irreal) de não sobreviver à sua morte e de que eles,
medo absoluto desde os quatro anos de idade. cadernos, sobrevivam a mim, com todo O mal (real)
que podem causar a pessoas que amo. Rio dessa ideia
e começo a ver nisso um sinal de melhora. De todo
modo, apago do computador muitos arquivos antes
de começar a escrever.
139
IV. BEIJO
há cinquenta anos nesta casa da Ilha do Governador, seu quarto e costumava encontrá-Ia já quase adorme-
ultimamente acordava de madrugada pedindo para cida. À luz reduzida do abajur, beijava a testa daquele
ser levada para sua casa de verdade, no Méier, onde imenso inseto preso no âmbar.
morou quando adolescente. Coloco Quatuor pour ia
fin du temps, de Olivier Messiaen, e passo a esperar o
toque do telefone:
140 141
11. lII.
Semanas depois, quando consegui reler "H.", ou lê-lo Durante o velório beijei sua testa várias vezes, o rosto
pela primeira vez destacado do ato de escrevê-lo ou molhado de lágrimas, mas sem desespero, nem a n-
reescrevê-lo, senti-me acaso no mesmo beco sem saída xação do teatro do século XVII pelo falso cadáver que
de Dedalus, arremessado na vala de água suja da ver- desperta. Antes de ser fechado o caixão, dei-lhe ainda
gonha? Não. Mas perguntei a mim mesmo o que eu um beijo na testa e sussurrei-lhe: "Este é o último,
recebia ali? Algo cinético e fluido. viu? Muito obrigado pela paciência. Te amo". E beijei
a lona.
143
IV. MOTORES
(imitado de um velho chanceler florentino)
I.
Mesmo que a alma não morra - o que não desejo nem
creio - e o corpo ressuscite em outras mil formas - o
que desprezo -, o composto harmonioso que fazia de A. e B. necessitam ouvir música para escrever, já M. e
H. minha mãe ficou destruído para sempre. W requerem nessa hora todo o silêncio possível, para
obedecer, talvez, a algum ritmo interno. Durante os
quatro últimos anos eu escrevi ouvindo, pelas manhãs,
no quarto contíguo ao meu, o motor da máquina
de hemodiálise e seu estrondo de lava-roupas amigo,
por vezes interrompido por agudos sinais cuja função
seria advertir a enfermeira responsável por você, ocu-
pada em tomar café com bolinhos na cozinha, de que
algo não ia bem com a máquina ou em seu corpo.
144 145
11. lH.
Nos primeiros meses eu tentava abafar o barulho Acabei aprendendo a me virar com o rugir dessa
colocando música alta nos fones de ouvido, mas turbina, com seu apito estridente sempre (inlespe-
isso atrapalhava ainda mais a escrita, e, por acrésci- rado, nas manhãs de segunda, quarta e sexta. Como
mo, transformou o meu medo (de ouvir o sinal de o Alzheimer não lhe permitia gravar na mente a im-
alarme disparar dizendo que algo ia mal no delicado portância de permanecer quieta durante as sessões de
processo) em meu pânico (de não ouvi-lo disparar hemodiálise, você logo passou a ser atada à cama.
dizendo que algo ia mal no delicado processo, e de
que tampouco o ouvisse a enfermeira responsável).
)
IV. RITUAL
148
)
____ 1 _
I49
lI. III.
Partilhado com uma dezena de ruidosos adolescen- Assustadora simultaneidade: no exato instante em que
tes festivos nas mesas circunvizinhas, meu banquete dou início a meu processo de mastigação da insossa
fúnebre será também esse campo elétrico que sinto massa branca de uma esfiha me dou conta de que
ao meu redor. O calor aqui dentro é perturbador e não procurei me informar sobre aquilo que, no fu-
minhas lembranças de H. neste cenário parecem flu- turo, talvez me será, obscenamente, questionado, ou
tuar como fumaça de cigarro soprada dentro da bola seja, se no girar dos dados imaginários, à minha mãe
de chiclete de um adolescente. Em cada um deles lhe coube a morte boa ou a morte má. Tal simul-
vejo o filho que me negou três vezes: Ele não é meu taneidade me faz desconfiar, e por um segundo ter
pai! Ele não é meu pai! Ele não é meu pai!' a arrepiante certeza, de que o gesto físico da mor-
dedura na massa gerou o pensamento tanto quanto
provocou, através do consequente rasgão, a liberação
de uma nuvem de vapor do recheio de carne morta.
De meu pai fiquei sabendo que gritava enfurecido na
cama do hospital e tentava esmurrar os médicos que
o atendiam até que o fui minasse um enfarto. Será
isso a morte má? Senti na época orgulho desse triste
Jacó em luta com seus anjos da morte, impermeável
a qualquer tipo de serenidade. Se bem a conheci, mi-
nha mãe não reclamou muito nem esboçou qualquer
* Em dado mamemo, do equipamento autornorivo de um opala ver- gesto, o que quer que estivesse sentindo. De todo
melho, passou a ser exalada uma música que fez com que quase todos
modo, e também orgulhoso, imagino-a, em minha
os jovens ali presentes se atirassem a uma espécie de dança entre as
mesas. Os participantes realizavam uma ronda sem fim, onde sempre fantasia, me dizendo:
se alternavam alguém bastante sorridente e alguém bastante sério. Os
sorridentes conduziam o jogo e eram na verdade os únicos a dançar.
Cada par era formado por um jovem, garota ou garoto, e na verdade
bastante assexuado, bulímíco e animado, e por uma garota ou garoro
aparentemente estupefato. O que dançava parecia estender a mão pa.ra
aquele que queria arrastar em sua dança, mas que ainda não se havia
submetido inteiramente. A beleza da cena resi ia no contraste entre a
incrível potência rítmica dos que dançava: a paralisia dos que não.
L- Hb _
IV.
Hilda:
152
Do AUTOR