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28/04/2020 Com Ciência - SBPC/Labjor

REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO

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Dossiê
Editorial Artigo
O mistério da
impiedade¹ - Carlos Intolerância e preconceito na linguagem
Vogt
Por Diana Luz Pessoa de Barros
Reportagens 10/06/2014
“Desigualdade é o
chão de todas as No Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, da
intolerâncias” Universidade de São Paulo (USP), há um grupo de linguistas que se ocupa de questões de
Fernanda Domiciano e intolerância em relação à linguagem, aos diferentes usos da língua, às línguas do “outro”,
Kátia Kishi ao domínio ou não da escrita, e também da intolerância construída pela linguagem, em
textos ou discursos. São duas preocupações diferentes no quadro das intolerâncias na e
Enfrentamento e
violência no caminho da linguagem: de um lado, a da intolerância linguística propriamente dita; de outro, a dos
LGBT pela conquista discursos preconceituosos e intolerantes, de qualquer ordem (racista, purista, separatista,
de direitos homofóbico etc.). O objetivo principal é contribuir, na perspectiva dos estudos da
Gabrielle Adabo e Valdir linguagem, para a produção de conhecimento sobre a intolerância, que tem sido estudada
Lamim-Guedes por historiadores, sociólogos, psicólogos, entre outros, nos mais diversos campos do
conhecimento.
Conflitos religiosos
surgem da A intolerância linguística propriamente dita é caracterizada por três aspectos:
incapacidade de lidar
com a diferença 1 – o uso da linguagem é muito marcado por intolerância e preconceitos, embora muitas
Carolina Medeiros e vezes camuflados pelos valores éticos do erro linguístico ou estéticos da beleza de certos
Simone Caixeta de
usos e línguas; com isso, por exemplo, revistas que nunca aceitariam publicar artigos
Andrade
racistas, acatam, sem problemas, textos intolerantes em relação a certos usos linguísticos
Conflitos entre ou a certas línguas;
torcidas de futebol: o
que dizem 2 – as relações entre os usos linguísticos ou entre as várias línguas são determinadas por
especialistas seu caráter público ou privado: no domínio do público, a intolerância surge quando a lei
Janaína Quitério e Keila regulamenta certos usos e línguas e proíbe os demais (vejam-se, por exemplo, a
Knobel proibição, por Pombal, do uso das línguas indígenas ou das línguas gerais no Brasil; a
Negar existência discriminação, pelo governo brasileiro, do emprego de línguas estrangeiras, na época da
colabora com a Segunda Guerra; ou a não aceitação do uso de termos estrangeiros, com a lei Toubon, na
perpetuação do França); no âmbito do privado, a intolerância aparece quando as preferências individuais
racismo ao longo dos ou de grupos discriminam usos e línguas e impedem que seus usuários tenham acesso a
séculos empregos, cargos ou funções (vejam-se, entre outros, a discriminação que sofrem os que
Tatiana Venancio e usam o “r” caipira ou uma entonação que assinala determinada identidade sexual);

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Roberto Takata 3 – a intolerância linguística (e a de qualquer outro tipo) está fortemente relacionada com
Aids e o preconceito: outras formas de intolerância (sobretudo racial, religiosa, sexual, política,
uma doença biológica socioeconômica). Essas relações são, em geral, hierarquizadas, ou seja, há uma forma de
e outra social intolerância de base, predominante, a que se subordinam as demais, como, por exemplo,
Cristiane Delfina ocorre no Brasil no caso do preconceito racial em relação aos negros, que pode ser
considerado uma intolerância primária, em relação às intolerâncias quanto ao modo de
Artigos falar dos negros, à sua religião etc. Os textos ou discursos muitas vezes mascaram a
Políticas de igualdade intolerância de base ou primária por meio da manifestação de uma intolerância associada
e intolerância: ou secundária, considerada mais aceitável: assim, a intolerância racial pode manifestar-se
testando a democracia como intolerância religiosa ou linguística, mascarando o preconceito racial com
racial e a cordialidade
brasileiras
preconceitos mais facilmente justificáveis ou não proibidos: quando, por exemplo, se
critica o uso linguístico do nordestino ou do imigrante ou a forma de falar do
João Angelo Fantini
homossexual, considerando-o como um uso linguístico “errado”, “feio”, que compromete
Intolerância e ou ameaça a língua, não se trata realmente ou somente de uma intolerância linguística,
preconceito na mas de intolerância socioeconômica, política, sexual, racial etc. Nesses casos, é preciso
linguagem desmascarar o jogo de manifestação das intolerâncias, mostrar o que há em águas mais
Diana Luz Pessoa de profundas.
Barros
Intolerância e racismo
A intolerância linguística está, portanto, fortemente relacionada com outras formas de
no futebol: a intolerância, o que indica que a intolerância precisa ser observada, em princípio, de uma
racialização do outro perspectiva multidisciplinar, mas, também, examinada, nas particularidades e
Thales de Almeida especificidades próprias da linguagem. Veja-se, entre outros, o caso das relações entre o
Nogueira Cervi discurso racista, o separatista e o de intolerância linguística no livro de Irton Marx Vai
nascer um novo país: República do Pampa Gaúcho. O discurso separatista, fortemente
O jurídico e o político
moralizante, é também um discurso racista (... “deixando de ser gaúchos para nos tornar
em direção à alteridade
sertanejos, perdendo cada vez mais a nossa identidade”) e de intolerância linguística
Cláudio Reis
(“Nossas emissoras de rádio serão mais potentes, e nossos locutores falarão
Tolerância corretamente o português, com boa dicção”).
Marcos Nobre e
Denilson Luis Werle A regulamentação linguística, no domínio do público, explica-se pelo papel que as línguas
assumem na construção de impérios, nações, estados, na constituição de identidades
Resenha nacional, regional, e, principalmente, na construção da língua nacional, com o
Da loucura do mal apagamento das diversidades linguísticas. Nos livros didáticos de história do Brasil, por
perpetuado por exemplo, não há uma única referência ao fato de que no período colonial falavam-se
ninguéns principalmente línguas gerais no país e não o português.
Michele Gonçalves
Ao regulamentar as relações entre os usos linguísticos de uma mesma língua, a lei
Entrevista determina um uso como mais correto, mais certo, mais bonito, mais patriótico, mais
Elizete Aparecida de virtuoso, enfim, e hierarquiza os demais, que serão ditos possíveis, toleráveis ou
Andrade
proibidos. Esse uso mais virtuoso é o da norma explícita de uma dada língua, em geral
Entrevistado por Cláudia chamada norma culta.
Carnevalli
Os usos e línguas impostos ou preferidos mantêm relações diversas com os proibidos ou
Poema
não preferidos. Os diferentes tipos de relação ocorrem tanto nas relações linguísticas
Novo mandamento
internas a uma dada sociedade, entre variantes de uma língua, e tendo por referência a
Carlos Vogt
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variante culta ou padrão, quanto entre línguas diferentes, tendo por referência a língua
Humor
nacional. Assim, por exemplo, no Brasil, as variantes utilizadas por falantes de classe
HumorComCiencia
socioeconômica pouco favorecida ou da zona rural são excluídas da escola, da
João Garcia administração, dos meios de comunicação; variantes regionais desprestigiadas, como a
caipira ou a nordestina, são segregadas, isto é, admitidas no espaço delas, mas não
devem ser misturadas com os usos prestigiados, por exemplo, do rádio ou da televisão;
ou, mais frequentemente, as variantes de menos prestígio são assimiladas às de mais
prestígio (ensina-se, muitas vezes, na escola, o uso de regiões “ em que se fala melhor”).

No que diz respeito às línguas estrangeiras, as relações são também sempre assimétricas
e dependem da posição econômica, cultural ou política que estabelecem relações de
dominação entre os grupos e suas línguas. Dessa forma, a língua nacional pode
encontrar-se na posição dominante (mais prestígio, mais força) ou de dominada (menos
prestígio, menos força) em relação a outras línguas. Vejamos alguns exemplos em que a
língua nacional ocupa a posição de dominante. Na Espanha, durante a ditadura de Franco,
o basco, o galego e o catalão foram excluídos em favor da manutenção do espanhol
(castelhano); no Brasil, houve também exclusão quando Pombal proibiu o uso de línguas
indígenas ou das línguas gerais no país, ou, na Segunda Grande Guerra, quando se
proibiu o ensino do alemão ou do japonês, na escola; em relação aos imigrantes, o
discurso no Brasil foi, em certos momentos, de exclusão e, mais frequentemente, de
assimilação; quanto às línguas indígenas, em certo momento foram excluídas e hoje são
segregadas (aceita-se que os índios falem outras línguas, mas nas reservas indígenas).

As relações linguísticas geram, muitas vezes, conflitos, pois o outro, o dominado, cujos
usos linguísticos se quer excluir, assimilar, agregar ou segregar, pode não querer que isso
aconteça. Quando não há conformidade entre os discursos do dominante e do dominado,
os conflitos se manifestam de diferentes formas: lutas, preconceitos, intolerância, de um
lado, formas de resistência, de outro. Entre as formas de resistência à dominação
linguística podem ser encontradas a do multilinguismo, a da aceitação das diferenças
linguísticas e o diálogo entre elas. Segundo Roland Barthes, em sua Aula no Collège de
France, “é bom que todos os homens, no interior de um mesmo idioma, tenham várias
línguas”.

A segunda questão de intolerância em relação à linguagem é diferente da intolerância


linguística propriamente dita, tal como foi acima esboçada, pois se trata da construção
pela linguagem de textos ou discursos preconceituosos e intolerantes. Nesse caso, o
objetivo é mostrar como se constroem esses textos ou discursos, que procedimentos e
estratégias são usados nessa construção, em que quadro de valores eles se inserem e,
finalmente, qual a identidade intolerante que criam.

Para caracterizar os discursos intolerantes e preconceituosos, três questões serão


retomadas, de forma muito resumida, de nossos estudos anteriores sobre esses
discursos: a organização narrativa dos discursos intolerantes como discursos de sanção;
seu caráter fortemente passional, com ênfase nas paixões do medo e do ódio; os

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percursos temáticos da diferença, em que o diferente é considerado anormal ou contrário


à “natureza”, imoral, não-humano, doente, louco e feio.

O discurso intolerante é, sobretudo, um discurso de sanção aos sujeitos considerados


como maus cumpridores de certos contratos sociais: de branqueamento da sociedade, de
pureza da língua, de heterossexualidade e outros. Esses sujeitos são, portanto, no
momento do julgamento, reconhecidos como maus atores sociais, maus cidadãos – pretos
ignorantes, maus usuários da língua, índios bárbaros, judeus perigosos, árabes fanáticos,
homossexuais promíscuos – e punidos com a perda de direitos, de emprego, ou até
mesmo com a morte.

Em relação às paixões construídas nos discursos, pode-se observar que os discursos


intolerantes são fortemente passionais, que seus sujeitos são sempre sujeitos
apaixonados e que predominam, nesses discursos, dois tipos de paixões – as paixões
ditas malevolentes (antipatia, ódio, raiva, xenofobia etc.) ou de querer fazer mal ao
sujeito que não cumpriu os acordos sociais acima mencionados; e as paixões do medo do
“diferente” e dos danos que ele pode causar.

A malevolência parece ser o caminho para que as coisas sejam postas em seus “devidos
lugares”, mesmo que a falta primeira não se resolva com isso, pois o sujeito, sem os
valores almejados e em crise de confiança, procurará resolver sua falta e passará a
querer fazer mal a quem o colocou, segundo o simulacro construído, nessa situação. O
sujeito do ódio em relação ao estrangeiro, ao diferente, aos “maus” usuários da língua, é
também o sujeito do amor à pátria, à sua língua, ao seu grupo étnico, aos de sua cor, à
sua religião, ou seja, complementam-se as paixões malevolentes do ódio em relação ao
“diferente” e as paixões benevolentes do amor aos “iguais”.

Distinguem-se duas etapas nos percursos passionais do ódio do sujeito intolerante, que,
em geral, acorrem juntas nos discursos. A primeira é aquela em que o sujeito se torna
malevolente em relação ao outro, que, “diferente”, não cumpriu o contrato de identidade,
e benevolente em relação à pátria, aos iguais, aos idênticos. Essa primeira etapa, a mais
passional da intolerância, é a do preconceito.

A segunda fase, a da intolerância propriamente dita, é aquela em que o sujeito


preconceituoso passa à ação, ou seja, age contra o outro, que ele considera o causador
de suas perdas e que odeia. As ações são as ações apaixonadas de vingança ou de
revolta, que se distinguem da justiça desapaixonada. Essa questão apareceu bastante,
por exemplo, nos debates travados na imprensa entre os que consideraram a morte de
Bin Laden como justiça e os que a interpretaram como vingança.

Em relação às paixões do medo, é preciso dizer que o medo é inerente à natureza


humana e necessário à sobrevivência da espécie, embora ter medo seja, em geral,
moralizado negativamente pela sociedade, e a coragem, fortemente valorizada. Entre os
diferentes tipos de medo, é o medo do outro, de suas ações e das privações por ele
ocasionadas e que ocorre, sobretudo, nas situações de desigualdade social, que,
geralmente, caracteriza o discurso intolerante. As paixões do medo muitas vezes
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provocam as paixões do ódio ou juntam-se a essas paixões malevolentes e fazem crescer


de intensidade os percursos passionais e as ações intolerantes.

Embora o medo e também o ódio sejam, em geral, moralizados negativamente pela


sociedade, nos discursos intolerantes, o medo do diferente, de sua violência,
anormalidade ou imoralidade, e das perdas que ele poderá causar, e o ódio daí decorrente
servem como justificativa para as ações intolerantes. Discursos políticos, muitas vezes,
fazem uso do medo do outro e do ódio do diferente como estratégia ou plataforma
política, levando, com isso, ao crescimento das ações intolerantes. O caráter passional da
intolerância, mais fundamentada em emoções, sentimentos e sensações, é uma das
razões que fazem com que as manifestações de políticos e de homens públicos levem, em
geral, ao aumento do medo e do ódio do “diferente”.

Finalmente, nos discursos intolerantes, os temas e figuras estão relacionados à oposição


semântica fundamental entre a igualdade ou identidade e a diferença ou alteridade e, a
partir daí, esses discursos constroem alguns percursos temáticos e figurativos, de que
ressaltamos quatro: a animalização do “outro”, a que são atribuídos traços físicos e
características comportamentais de animais, desumanizando-o; a “anormalidade” do
diferente, que é e age contra a “natureza”; o caráter doentio da diferença, tanto do ponto
de vista físico, quanto mental, em que o diferente é considerado como doente e como
louco, em oposição aos sadios de corpo e mente, e, enquanto “doente”, também como
feio, como esteticamente condenável; a imoralidade do “outro”, a sua falta de ética.

Em síntese, o discurso intolerante considera o “diferente”, o “outro” como aquele que


rompe pactos e acordos sociais, por não ser humano, por ser contrário à natureza, por ser
doente e sem ética ou estética, e que, por isso mesmo, é temido, odiado e punido.
Vejamos alguns exemplos: os textos racistas que apareceram na rede Twitter no dia
seguinte à vitória de Dilma Rousseff na disputa pela presidência da República, e no Peru,
um ano depois, por ocasião da eleição de Ollanta Humala; o texto homofóbico de aluno de
faculdade de medicina; o texto de intolerância estética do “Rodeio das Gordas”, realizado
por alunos da Unesp, em que aparecem a animalização do diferente, sua anormalidade e
imoralidade, sua feiura e seu caráter doentio:

É tudo culpa dos nordestinos... seca eterna para vocês!!!! Dilma presidente Parabéns
povo burro!!

Nordestino não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado.

(...) Na internet, blogs e o Facebook amanheceram lotados de xingamentos aos “cholos”


(termo depreciativo para se referir a indígenas) e “índios” favoráveis a Humala. “Porcaria
de cholo, se você for presidente eu prefiro ser preso”, dizia um internauta. “Ollanta é um
índio de merda, e todos os pobres votam nele porque vai tirar o dinheiro das pessoas
normais”, afirmava outro. (...) Até os jornais peruanos entraram na guerra suja verbal. No
editorial de ontem do jornal Peru21, o diretor Fritz Du Bois afirmava: “É tão evidente a
tentativa de Humala de se branquear e se apresentar como moderado que é difícil dar
resultados”. No diário Correo, o diretor ultraconservador Aldo Mariatégui foi mais longe e
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disse que “já começou a operação de pentear o macaco”. (Folha de S. Paulo, 11 de abril
de 2011, p. A17).

Irado com a eleição de dois colegas homossexuais para coordenadores-gerais do Centro


Acadêmico da Faculdade de Medicina de Universidade Federal de Ciências da Saúde de
Porto Alegre, um estudante do 2º ano conclamou os colegas por e-mail:

Está na hora de unirmos forças e, veladamente, fazer o que nos couber para dar fim –
pouco a pouco – nesta peste. (....) O que resta a nós, seres normais, a não ser sentir
vergonha e observar inquietos nosso país cair em decadência? (...) Eu vos digo, futuros
colegas: e se a solução fosse cada um de nós tomarmos uma atitude no momento em que
essa escória nos procurar para curar suas doenças venéreas e demais pragas de seus
corpos nojentos?” (Folha de S. Paulo, 9 de dezembro de 2010, p.C10).

O vencedor era quem mantivesse garota presa nos braços por mais tempo, após dizer a
frase “Você é a menina mais gorda que eu já vi na vida”. (Folha de S. Paulo, 29/10/2010,
p. C4).

Nos dois primeiros textos acima, os nordestinos, o candidato de origem indígena e os


seus eleitores não cumpriram o contrato de “branquear a sociedade” e de conservar sua
“normalidade” e caráter humano, e são, por isso, sancionados negativamente, e com
paixão. No caso brasileiro aparecem, sobretudo, as paixões malevolentes do ódio e as
ações intolerantes de vingança: seca eterna e afogamento. Nos textos peruanos, além da
paixão do ódio, expressa nos xingamentos, explicita-se também o medo das perdas
ocasionadas pelo “diferente”: “Ollanta é um índio de merda, e todos os pobres votam nele
porque vai tirar o dinheiro das pessoas normais”. O terceiro texto, homofóbico, trata da
ruptura do contrato de heterossexualidade, e também desenvolve os temas da
anormalidade, da imoralidade e do caráter doentio do “outro”. O último, o de intolerância
às gordas, mostra a ruptura do contrato social de um dado padrão de beleza e constrói
percurso estético da feiura que merece ser punida.

Para concluir duas considerações devem ser feitas. Tendo em vista, sobretudo, o caráter
passional e emocional dos discursos intolerantes, o homem público – político, jornalista,
professor e outros –, por sua posição de sujeito do poder e do saber, mesmo que não
realize ações diretas de discriminação e intolerância, leva a que outros o façam,
incentivando, dessa forma, a violência contra o “diferente”. Nessa posição, o sujeito não
pode, portanto, ter o direito de expressar seus preconceitos.

Finalmente, se os discursos intolerantes apresentam as características acima descritas,


para a construção de discursos de aceitação social é preciso elaborar discursos com
estratégias, temas e valores contrários aos aqui examinados. Os contratos deverão ser os
de multilinguismo, de mistura, de mestiçagem, de diversidade sexual, de diálogo com as
diferenças, de pluralidade religiosa, para que o “diferente”, o “outro”, não seja mais
considerado como aquele que rompe pactos e acordos sociais, por não ser humano, por
ser contrário à natureza, por ser doente e sem ética ou estética, mas, ao contrário, seja
visto como aquele que garante novos e promissores contratos sociais. A sanção positiva e
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as paixões benevolentes, que nos discursos intolerantes só se aplicam aos “iguais”, a


“nós”, se estenderiam, assim, aos diferentes, a “eles”. Sem essas mudanças, não é
possível haver aceitação social.

Diana Luz Pessoa de Barros é professora do Centro de Comunicações e Letras da


Universidade Presbiteriana Mackenzie, professora aposentada do Departamento de
Linguística da Universidade de São Paulo e líder do grupo de pesquisa Linguística e
Intolerância no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos.

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