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II .

Cantata do sarigüê

Quero pintar em meus versos o modelo das mães.

o o
O sarigiiê, animal pouca conhecido entre nós,
Mas cujos cuidados camoventes e ternos,
Cujo carinho materno,
Serão de algum interesse para vós.
[FLORIAN,Fábulas,Livro 1I,I)

A) RECITATlVO DO SARIGÜÊ

No trecho precedente, esperamos ter estabelecido várias verdades. Inicial-


mente, e de um ponto de vista formal, mitos muito diferentes na aparência,
mas que se referem todos à origem da vida breve, transmitem a mesma men-
sagem e só se distinguem uns dos outros pelo código empregado. Em segundo
lugar, esses códigos são do mesmo tipo: utilizam oposições entre qualidades
sensíveis, promovidas, assim, a uma verdadeira existência lógica. Em terceiro,
e como o homem possui cinco sentidos, os códigos fundamentais são cinco,
mostrando assim que todas as possibilidades empíricas são sistematicamente
inventariadas e aproveitadas. Em quarto, um desses códigos ocupa um lugar
de destaque: aquele que se refere aos regimes alimentares - código gustativo,
conseqüentemente -, de que os outros traduzem a mensagem, muito mais do
que ele serve para traduzir a dos outros, já que são mitos de origem do fogo,
portanto, da culinária, que comandam o acesso aos mitos de origem da vida
breve, e, entre os Apinayé, a origem da vida breve constitui apenas 11111 episó-
dio no seio do mito da origem do fogo. Começamos, assim, a compreender o
lugar realmente essencial que cabe à culinária na filosofia indígena: ela não
marca apenas a passagem da natureza à cultura; por ela e através dela, a con-
dição humana se define com todos os seus atributos, inclusive aqueles que -
como a mortalidade - podem parecer os mais indiscutivelmente naturais.

Contato do .snrigü;! 19,


Não se deve, entretanto, dissimular que, para obter esses resultados, passa- Apesar das dificuldades, os homens conseguem finalmente derrubar a árvore.
mos ligeiramente por duas dificuldades. De todas as versões jê, a apinayé é a Estrela ensinou-Ihes a limpar o terreno e fazer uma plantação. Quando o marido mor-
única que contém o episódio da vida breve. Com efeito, no início da terceira reu, ela voltou para o céu (Nim. 1939: 165-67).
parte, explicamos por que é legítimo, no caso dos [ê, suprir as lacunas de cer-
tas versões por meio de versões mais completas. Contudo, é indispensável Uma outra versão do mito apinayé (M87A) não contém nem o episódio do sa-
pesquisar se os outros grupos jê não teriam uma idéia diferente da origem da rigüê, nem o da árvore de milho. A partir dele, sabe-se apenas que Estrela trou-
vida breve, e descobri-Ia. Além disso, para garantir a convertibilidade recí- xe do céu as plantas cultivadas e ensinou a cestaria aos índios. Mas o marido a
proca dos códigos, propusemos a equação madeira dura '" carne animal, e trai com uma mortal, e ela volta para o céu (C. E. de Oliveira 1930: 86-88).
ela exige verificação. Tudo isso é, felizmente, possível, pois existe um grupo de Como não pretendemos fazer uma análise completa desse grupo, mas
mitos jê que associam o motivo da madeira dura e o da vida breve. Ora, se apenas utilizar alguns de seus aspectos para completar uma demonstração de
esses mitos - à diferença de M9, no qual nos baseamos principalmente - que já apresentamos o essencial, tornaremos mais leves as outras versões,
não dizem respeito à origem do fogo, seu tema continua a ser essencialmente limitando-nos a indicar as particularidades de cada uma.j-
culinário, já que se trata da origem das plantas 'cultivadas. Enfim, esses mitos
permitirão obter, por um desvio imprevisto, uma confirmação decisiva das M88 TIMBIRA: ORIGEM DAS PLANTAS CULTiVADAS
conclusões às quais já tínhamos chegado.
o herói apaixonado por uma estrela não é viúvo, e sim feio. Quando o esconderijo da
M87 APINAYE ORIGEM DAS PLANTAS CULTIVADAS J jovem é descoberto pelo irmão mais novo do marido, ela revela a este último o milho
(que aqui cresce em caules), mastigando os grãos verdes e cuspindo-os no rosto dele
Um jovem viúvo, que dormia ao ar livre, se apaixona por uma estrela. Ela aparece para (na boca, M87A).Depois, ela ensina os homens a prepará-Ia. Durante a limpeza do
ele, primeiro na forma de uma rã e depois de uma bela jovem, com quem ele se casa. mato para fazer uma plantação, os homens quebram o machado e mandam um
Naquela época, os homens não sabiam cultivar plantas, comiam carne com madeira rapaz buscar outro na aldeia. Ele encontra um velho cozinhando um sarigüê. Apesar
podre no lugar dos legumes. Estrela traz para o marido batata-doce e inhame e o da proibição do velho, o rapaz insiste em comê-Ia. Imediatamente, seus cabelos ficam
ensina a comê-Ias. brancos, e ele precisa de uma vara para apoiar as pernas cambaleantes.
O rapaz esconde cuidadosamente a mulher numa cabaça, onde seu irmão mais Estrela teria revelado muitos outros segredos ao marido se ele não tivesse insis-
novo a descobre. A partir de então, ele vive publicamente com ela. tido em suas solicitações amorosas. Ela concorda, mas em seguida obriga o marido a
Um dia, ao tomar banho com a sogra, Estrela se' transforma em sarigüéia e faz a ir com ela para o céu (Nim. 1946b: 245).
velha reparar numa árvore grande carregada de espigas de milho. "E isso", diz ela, "que
os humanos deveriam comer, em vez de madeira podre". Ela sobe na árvore e colhe M89 KRAHÕ: OR.IGEM DAS PLANTI\-5 CULTIVADAS (TRÊS VERSÕES)
espigas. Depois, volta a ser mulher e inicia a sogra na arte de preparar beijus.
Encantados com esse novo alimento, os homens resolvem derrubar a árvore de mi- Quando Estrela percebe que os homens se alimentam de "pau puba" (madeira podre;
lho com um machado de pedra. Mas, sempre que eles param para respirar, o talho se cf. p. 101), mostra ao marido uma árvore coberta de todos os tipos de milho, cujos
solda novamente. Mandam dois adolescentes à aldeia em busca de um machado me- grãos enchem o rio que lhe banha a raiz. Como na versão timbira, no início os irmãos
lhor. No caminho, eles capturam um sarigüê, matam-no, assam-no e comem-no, em- ficam com medo da comida, achando que é venenosa; mas Estrela consegue con-
bora essa carne seja proibida para os rapazes.P Mal terminam a refeição, transformam- vencê-Ias. Uma criança da família é surpreendida pelas outras pessoas da aldeia, que
se em velhos de costas arqueadas. Um feiticeiro consegue devolver-Ihes a juventude. perguntam o que ela está comendo;ficam maravilhados com o fato de o milho vir do
rio onde costumam se banhar, A notícia se espalha por todas as tribos, a árvore de
milho é derrubada e a colheita, repartida. Depois Estrela revela ao marido e cunhados
13 . Usamos "sarigüê" e "sarigüéia" para diferenciar masculino e feminino. Mas neste o uso da bacaba (palmeira que dá frutos comestíveis: Oenocarpus bacaba) e Ihes
caso o sexo não foi definido. ensina a fazer um forno escavado na terra, cheio de pedras quentes que são molha-

198 I Terceira parte Contato do sariquê I 199


r
das com água, para cozinhar as frutas no vapor. .. A terceira e última fase do ensina- I
!
M92 KAYAPÓ-KUBENKRANKEN: ORIGEM DAS PLANTAS CULTIVADAS (MILHO)

mento se refere à mandioca, seu cultivo, a fabricação de beijus.


Durante todo esse tempo, Estrela e o marido observavam uma castidade rigorosa. Depois de os homens terem conseguido o fogo do jaguar (cf. M.), uma velha, que se
Um dia, quando o marido sai para caçar, um homem violenta a moça, cujo sangue é banhava com a neta, foi importunada por um rato (amyuré), que, finalmente, mos-
derramado. Então ela prepara um filtro e envenena toda a população. Depois ela volta trou-lhe a árvore de milho, cujas espigas caídas enchiam o rio a ponto de dificultar
para o céu, deixando as plantas cultivadas para os poucos sobreviventes. banhar-se nele. A aldeia faz um banquete com o que a velha cozinha e resolve derru-
A segunda versão indica que, na época da vinda de Estrela à terra, os homens se bar a árvore de milho. Mas, todas as manhãs, encontram o entalhe feito na véspera
alimentavam de madeira podre e pedaços de cupihzeiros. Cultivavam o milho apenas soldado. Então os homens resolvem atacar a árvore com fogo e mandam um adoles-
como enfeite (o informante é um mestiço). Estrela ensina como prepará-Io e comê-Io. cente buscar mais um machado na aldeia. No caminho de volta, ele mata e assa um
Mas o milho disponível não é suficiente. Estrela,já grávide, ensina o marido a limpar sarigüê de cauda longa (ngina); seu companheiro o alerta contra um animal "tão
o mato e fazer uma roça. Volta para o céu, e de lá"traz ~ndioca, melancia, abóbora, feio". Mesmo assim ele o come e se transforma num velho "tão velho e tão fraco que
arroz, batata, inhame e amendoim. O relato termina com uma aula de culinária. suas faixas de algodão caíram até os tornozelos",
Na terceira versão, obtida de um mestiço, Estrela.jácasada, mas ainda virgem, é Os homens conseguem derrubar a árvore, que cai com grande estrondo; repar-

vítima de um estupro coletivo, e pune os culpados cuspindo sua saliva mortífera em tem o milho. Em seguida, os povos se dispersaram (Métraux 1960: 17-18).

suas bocas. Depois, ela volta para o céu (Schultz 1950: 75-86).
Como os Kayapó, os Xerente dissociam os dois mitos, mas, como é de se pre-
ver numa sociedade claramente patrilinear, invertem a valência semântica do
Os Kayapó (Gorotire e Kubenkranken) parecem dissociar o mito da mulher-
céu feminino (aqui, canibal), sem modificar o sentido da oposição sexual
estrela, doadora ou não das plantas cultivadas, de um outro mito relativo à
revelação dessas plantas por um animal pequeno. Somente o segundo desses entre alto e baixo:
mitos é conhecido entre os Gorotire:
M93 XERENTE: o PLANETA JúPlTER

M90 KAYAPÓ-GOROTIRE: ORIGEM DAS PLANTAS CULTIVADAS


Um dia, Estrela (Júpiter) desceu do céu para se casar com um jovem solteiro que tinha

No tempo em que os homens comiam apenas orelha-de-pau (urupê) e farelo de árvo-


se apaixonado por ela. Ele esconde a mulher em miniatura numa cabaça. onde seus

res podres, uma mulher que tomava banho soube por um ratinho da existência do irmãos a descobrem, Irritada, Estrela carrega o marido para o céu: tudo lá é diferente,

milho, que crescia numa árvore enorme, onde as araras e os macacos brigavam pelos Para onde quer que olhe, o rapaz só vê carne humana defumada ou assada; a água

grãos. O tronco era tão grosso que foi preciso ir à aldeia pegar mais um machado. No em que se banha está cheia de cadáveres mutilados e carcaças estripadas. Ele foge

caminho, os meninos mataram e comeram uma mucura e se transformaram em escorregando pelo tronco da bacaba que permitira sua ascensão e, voltando para

velhos Os feiticeiros se esforçaram por devolver-Ihes a juventude, mas não consegui- junto dos seus, conta sua aventura, Mas ele não sobreviveria por muito tempo

ram. Desde então, a carne de mucura é absolutamente ~roibida. Quando morreu, sua alma retornou ao céu, onde virou urna estrela (Nim. 1944: 184),

Gra~as ao milho, os índios passaram a viver na abundância. À medida que se mul-


Uma versão mais antiga (M93A) conta que, ao abrirem a cabaça, os irmãos
tiplicavam, foram aparecendo tribos de diferentes línguas e costumes (Banner 1957:
55-57) ficam aterrorizados ao verem a jovem, que tomam por "um animal com olhos
de fogo". Quando o homem chega ao céu, este lhe parece um "campo deso-
lado". Sua mulher se esforça, em vão, para mantê-Io longe da cabana de seus
Entre os Kubenkranken (M91: Métraux 1960: 17-18), Estrela é substituída por
pais, para que ele não visse a ceia canibal que lá ocorria, nem sentisse o cheiro
uma mulher gerada pela união entre um homem e a chuva. Para alimentar o
pútrido que de lá vinha. Ele foge e morre assim que coloca os pés na terra
filho, a mulher volta para o céu (onde nasceu) e traz as plantas cultivadas
(batatas, abóboras e bananas). Vejamos agora um resumo do outro mito: O. F. de Oliveira 1912: 395-96).

Contato do sarigilê! 201


200 I Terceva parte
M94 XERENTE: ORIGEM DO MILHO difere do modo como o tema era tratado pelo mito apinayé sobre a origem
do fogo (M9).
Uma mulher estava a beira de um charco com o filho, trançando uma nassa para Com efeito, no grupo que acaba de ser considerado, a velhice (ou a mor-
pegar peixe. Aparece um rato com forma humana convidando-a a ir a sua casa comer te) se impõe à humanidade como se fosse o preço a pagar pelas plantas cul-
milho, em vez de madeira podre, que era, naquela época, o alimento dos homens. Ele tivadas; e isso devido à vingança da mulher-estrela, cuja virgindade é tirada
deixa a mulher levar um beiju, contanto que não diga de onde veio. Mas a criança é pelos cunhados (pois, até então, ela se unia ao marido apenas por castos sor-
descoberta quando comia seu pedaço. Os aldeães fazem a mulher confessar e se diri- risos); ou porque adolescentes consumiram carne de sarigüê, que lhes era
gem à plantação, cujo proprietário foge, abandonando-a para os índios, depois de te r- proibida (ou que passou a sê-lo após essa funesta refeição). Ora, os mitos
se transformado em rato (Nim. '944: ,84-85).
• sobre a vida breve, precedentemente analisados, atribuíam-na a causas total-
mente diversas: reação positiva ou negativa a ruídos, odores, contatos, espe-
Esse importante grupo de mitos apresenta para nós um duplo interesse. Pri- táculos ou sabores.
meiramente, insiste na dureza da árvore em que crescia o pnmeiro milho. Tínhamos então estabelecido que, para além dos códigos utilizados, que
Esse detalhe aparentemente invalida nossa hipótese de uma congruência podem variar de um mito a outro, mas que se mantêm, entretanto, isomorfos,
entre carne e madeira dura, no mito apinayé de origem"do fogo. Mas, se o tratava-se sempre de exprimir a mesma oposição pertinente, de natureza
observarmos com maior atenção, veremos que ele a confirma. culinária, entre alimento cozido e alimento cru ou podre. Mas eis que agora o
Os mitos acima resumidos, assim como aqueles relativos à origem do fogo problema se alarga, já que os mitos que acabamos de introduzir colocam-nos
(na seqüência dos quais se inscrevem, como é dito em Msa), opõem o estado diante de outras causas da vida breve. Que relação pode haver entre, de um
de natureza ao estado de cultura, e até mesmo 110estado de sociedade: quase lado, a resposta ao chamado da madeira podre, a percepção olfativa do mau
todas as versões fazem remontar à conquista do milho a diferenciação dos cheiro, a aquisição de um pênis mole, a não-percepção de um espetáculo, a
povos, das línguas e dos costumes. No estado de natureza, os humanos - não-ingestão de uma bebida cheia de vermes, e, do outro, o estupro de uma
terrestres - praticam a caça, mas ignoram a agricultura; alimentam-se de virgem e a ingestão de sarigüê assado? Esse é o problema que nos cabe agora
carne, crua segundo várias versões, e de' podridão vegetal: madeira em de- resolver, em primeiro lugar para validar a conexão, afirmada pelos mitos,
composição e cogumelos. Ao contrário, os "deuses" - celestes - são vegeta- entre a origem da vida breve e a das plantas cultivadas (demonstração para-
rianos, mas seu milho não é cultivado; ele cresce espontaneamente e em lela à que já foi feita da conexão entre a origem da vida breve e a do fogo de
quantidade ilimitada numa árvore da floresta, cuja essência é especialmente cozinha); em seguida e principalmente, porque assim teremos uma prova
dura (ao passo que o milho cultivado tem caules finos e quebradiços). Esse suplementar em favor de nossas interpretações. A aritmética emprega a prova
milho é, portanto, na ordem dos alimentos substanciais, simétrico à carne, "dos 9". Mostraremos que também existem provas no campo da mitologia, e
alimento substancial dos homens no estado de natureza. Essa interpretação é que a "do sarigüê" pode ser tão. convincente quanto a outra.
confirmada pela versão xerente do mito da mulher-estrela (M93),que inverte
as outras versões jê do mesmo grupo. De acordo com essa versão, os homens B) ÁRIA EM Ro.NDÓ

já possuem as plantas cultivadas (cuja aquisição remonta, segundo os Xeren-


te, ao tempo dos- heróis civilizadores, cf. Mioa); são os seres celestes que são O único zoólogo que, de nosso conhecimento, realizou pesquisas numa
carnívoros, na forma extrema de canibais que se alimentam de carne huma- tribo jê nota, a respeito dos Timbira: "Não encontrei entre eles nenhum con-
na, cozida (assada ou defumada) ou podre (macerada na água). ceito correspondente à subclasse Marsupialia, e não me foram esponta-
Mas, principalmente, esses novos mitos renovam o tema da vida breve, neamente mencionados nem a bolsa marsupial, nem seu papel no desen-
incluindo-o num conjunto etiológico (origem das plantas cultivadas) para- volvimento dos filhotes. Colhi apenas uma espécie, o gambá ou mucura
lelo ao da origem do fogo, já que se trata da origem da culinária em ambos (Didelphys marsupialia): klô-ti" (Vanzolini 1956-58: 159). É fato que o sarigüê
os casos. O tema da vida breve é aí tratado de dois modos, aparentemente ocupa um lugar bastante modesto nos mitos do Brasil Central, mas talvez,
tão diferentes um do outro, quanto cada um deles tomado em separado unicamente, em razão das incertezas que pairam sobre a designação desse

202 I Terceira parte Cantata do sarigüê I 203


animal. Os autores antigos às vezes o confundiam com a raposa, com que
o sarigüê se parece fisionomicamente. Os próprios índios designam, ao escon d eu (fc. M 87a M 89, M93) , a esposa secreta do irmão, .nascida do fruto da
'. sencea Tul. Para o bringa-. Ia a se trair
Poraquelba rai , eleafazm (Cf.M46,M47) dos
que parece, como "rato" certas variedades de marsupiais; vimos acima que,
de acordo com as versões do mito jê de origem das plantas cultivadas, a peixes que pulam para escapar do lOgO, c enquan to ele próprio desamarra
. o

mulher-estrela (ou o dono do milho, M92) se transforma num animal cha-


, . se agiit a con 10 os peixes '.Ele VIOlenta a
cinto e dança, de modo que seu pems
mado ora de sarigüê, ora de rato/O nome timbira do sarigüê, klõ-ti, é igual- cunhada .
com tal ímpeto .
que o esperma Jorra pe 1a boca e pelas nannas da
mente significativo na medida em que parece indicar que os indígenas clas- vítima. Imediatamente grávida, ela fica gorda demais para voltar ao esconde-
sificam no mesmo grupo que o preá (klô: cf. P.157), por simples aposição do rijo. Dyai pune o irmão, obrigando-o a raspar a própria carne, e lança essa
aumentativo. Se essa classificação fosse também encontrada em outras lín- pasta aos peixes (Nim. J952: 127-29). . , .
guas, deveríamos nos perguntar se o preã, que desempenha um papel im- A cena do estupro confirma a natureza sarigüê de Epi. Com efeito, o pellls

portante nos mitos bororo e ofaié, não estaria em c~rrela~o ou em oposição do sarigüê é bifurcado, donde a crença, confirmada em relação a toda a Amé-

com o sarigüê. Se os mitos raramente fazem menção ao sarigüê, isso pode- rica do Norte, de que esse animal copula pelas narinas e que a fêmea espirra
os filhotes para dentro da bolsa marsupial (Hartmann: 321-23).14
ria ser atribuído ao fato de certas tribos classificarem-no com outros ani-
mais: pequenos marsupiais, roedores ou canideos. Notamos de passagem o parentesco desse mito com o grupo jê da esposa
celeste de um mortal. Nesse grupo, Estrela é uma sarigüéia, que é violentada
Igualmente desconcertante é a ausêr cia quase completa de referência
mítica à bolsa marsupial, exceto pelo breve episódio do mito de origem apa-
pelos cunhados; aqui, a filha da árvore Poraqueiba (cujo fruto caiu l= desce~l
à terra, assim como a estrela desceu à terra, inicialmente na forma de uma ra)
pocuva de que trataremos adiante (p. 2151. Com efeito, os temas de inspira-
é violentada pelo cunhado, que é um sarigüê. Dos [ê aos Tukuna, a função sari-
ção, digamos, marsupial, são freqüentes, e já insistimos várias vezes num
güê é, portanto, invertida, e é interessante notar que, ao mesmo tempo, o dom
deles: o da amante (ou mãe) da cobra, cujo amante ou filho ofídio vive em
seu ventre, de onde sai e entra à vontade. das plantas cultivadas passa, entre os Tukuna, do sarigüê para as ~ormlgas (M54;
Nim.1952: 130). Interpretaremos mais adiante essa transformaçao (pp, 213-5S).
O sarigüé, chamado "rnucura" no norte do Brasil, "timbu" no nordeste,
Fica claro que o mito tukuna retoma, num outro contexto, um incidente
"sarigüê" no sul, e "comadreja" na Argentina, é o maior marsupial sul-ameri-
de um dos mais célebres mitos (M96) dos Tupi antigos e modernos, de que
cano, o único a apresentar algum valor alimentício. São de menor importân-
Thevet colheu uma versão, no século XVI: a mulher do deus civilizador Maire
cia o sarigüê-d'água ("cuíca-d'água": Chironectes minimus), o sarigüê de
Ate, grávida, viajava sozinha, e o filho que trazia no ventre conversava com
pêlo ("Mucura chichica": Caluromys philonder) e espécies anãs do tamanho
de um rato ("catita": Marmosa pusilla, Peramys domestica) (Gunther: 168,
389; Gilmore 1950: 364; lhering 1940, art. "Quica"). O sarigüê propriamente ;-~".O enganador dos Mataco possui um pênis duplo (Mé'traux J939:33) e seu homólogo
dito mede de setenta a noventa centímetros de comprimento. O mesmo toba é uma "raposa". .._
termo designa quatro espécies brasileiras: Didelphys aurita (do norte do Rio Essas crenças americanas suscitam um problema de mitologia comparada. S~o
Grande do Sul ao Amazonas); D. paraguayensis (Rio Grande do Sul); D. albi- encontradas também no Velho Mundo (onde não há marsupiais), mas aplicadas as
ventris (Brasil Central) (lhering op.cit., art, "Gambá"). O sarigüê aparece em daninhas. Galanthis foi transformada em daninha por Lucina como castigo por ter aju-
dado Alcmena a dar à luz e condenada a partir de então a dar à luz pela boca, de onde
vários tipos de relato que seríamos tentados, à primeira vista, a distinguir em
tinha saído a mentira que enganara a deusa (Ovídio, Metamo/fases, L. [X, v.297-ss). De
mitos de origem, de. um lado, e contos divertidos do outro. Examinemo-Ios
fato acreditava-se que as doninhas davam à luz pela boca (Plutarco, lsis e Osíris, §
sucessivamente.
XX~IX); além disso, comparavam-se as más esposas a daninhas (Gubernatis 1872,v.2:
Os personagens mais importantes da mitologia dos Tukuna são dois gê- 53). O Novo Mundo, que conhece as daninhas, Ihes atribui em compensação um papel
meos chamados Dyai e Epi. Ao primeiro se deve a criação da humanidade, de facilitar o parto, devido à facilidade com que esses animais escorregam para fora das
das artes, das leis e dos costumes. O segundo é um enganador, mexeriqueiro tocas (Lévi-Strauss 1962a:82-83). Finalmente, uma versão bororo do mito dos gêmeos
e descarado; quando quer assumir uma forma animal, transforma-se facil- (M46),paralela ao mito tupi de que trataremos, menciona um mustelídeo. (português,
"irara": Tayra sp.) num papel que evoca o que os Tupi destinam ao sangue (Colb. 1919:
mente em sarigüê. É ele (M95) que descobre, dentro da flauta onde Dyai a
114-15;1925:179-80).

204 I Terceira parte


Contato do sarigüê I 205
ela e lhe indicava o caminho. Mas, como a mãe não queria "dar a ele peque-
nos legumes que havia pelos caminhos", ele ficou emburrado e não disse mais Mitos de origem Contos divertidos
nenhuma palavra. A mulher se perde e chega à casa de um homem chamado
«animal": "humano": "animal": «humano":
Sarigoys. Durante a noite, ele abusa dela, "tanto que a engravidou novamente
de um outro filho, o qual, no ventre, fazia companhia ao primeiro .. ", Como 6 6 (sarigüê l
castigo por esse ato, ele foi transformado em sarigüê (Thevet 1575 apud Mé-
traux 1928: 235-36). • (sarigüê)
I I
6 o O
O mesmo episódio se encontra entre os Urubu, os Tembé e os Shipaya,
que dão ao sedutor respectivamente o nome de Mikúr, Mykúra e Mukúra,
termos vizinhos do nome do sarigüê em língua geral,)T\ucutj:" [NOTA] O mito tukuna toma o cuidado de precisar que a donzela transformada em
Na América do Sul, o sarigüê aparece também como herói de um relato fruta de Poraqueiba é a filha do cunhado (marido da irmã) dos gêmeos. No esquema
tragicômico. Para nos limitarmos a alguns exemplos, o; Mundurucu (M97), da esquerda, o pai da mulher não é, portanto, introduzido por uma mera necessidade
os Tenetehara (M98) e os Vapidiana (M99) contam que Sarigüê teve experiên- de simetria.
cias desastrosas com os genros que havia escolhido. Cada um deles possuía
um talento especial, para pescar, caçar ou c~ltivar a terra. Sarigüê procura Huxley, que refletiu acerca do problema do simbolismo do sarigüê, preten-
imitã-los, e fracassa; chega muitas vezes a ferir-se. A cada vez, ele manda a deu dar conta de uma ambigüidade confusamente percebida por duas carac-
filha trocar de marido, mas os resultados são cada vez piores. Finalmente, terísticas: de um lado, e como vimos, o sarigüê tem o pênis bifurcado, o que
Sarigüê morre queimado ou de hemorragia (Kruse 1946-49: 628-30; Murphy o tornaria especialmente apto a gerar gêmeos; do outro, quando ele se sente
1958: 118-20; Wirth 1950: 205-08; Wagley & Galvão 1949: 151-54). ameaçado, finge-se de morto e parece, portanto, ser capaz de ressuscitar
A versão mundurucu observa que esses acontecimentos ocorreram num (Huxley 1956: 195). Além de nenhum mito atribuir ao sarigüê a paternidade
tempo em que os sarigüês eram homens. Mas os genros sucessivos, pássaro- de dois gêmeos, mas apenas de um, nada nos parece mais frágil do que essas
pescador, percevejo, pombo, "raposa" papa-mel, colibri, lontra e carrapato, conjecturas tiradas de um folclore eclético, quando não improvisadas à me-
que também tinham forma humana, "eram animais de verdade". Esse deta- dida das necessidades. Nunca se pode postular a interpretação; ela deve re-
lhe, que curiosamente faz eco à crença dos Koasati, tribo do sudoeste dos sultar dos próprios mitos, ou do contexto etnográfico; e, sempre que possível,
Estados Unidos de que os opossums míticos possuíam uma linguagem arti- de ambos ao mesmo tempo. Se, para compreender a função semântica do
culada (Swanton 1929: 200), já permite entrever que, para além da diversi- sarigüê, começamos por uma rápida incursão na mitologia do sudoeste dos
dade de tom, existe uma estrutura comum às "histórias de sarigüê", consti- Estados Unidos, não é.apenas porque os grandes temas míticos do Novo
tuam elas o assunto de mitos de origem ou de contos bufos. Os mitos de Mundo têm uma difusão pari-americana bem comprovada, e porque é pos-
origem colocam em cena deuses com forma humana, mas com nomes de sível passar, através de toda uma série de intermediários, de um hemisfério ao
animais, e os contos, animais com forma humana. Sarigüê sempre exerce outro: esse procedimento de exploração não servirá de demonstração. Ape-
uma função ambígua: deus no mito tukuna (M95), ele copula como, segundo nas ajudará a formular uma hipótese, que os próprios mitos que considera-
se acredita, o sarigüê o faz naturalmente. Embora animal no conto mundu- mos até o momento confirmarão plenamente.
rucu (M97), ele é de qualquer modo um homem, à diferença dos outros Os Creek e os Cherokee acreditavam que o opossum fêmea gera filhotes
bichos. Enfim, dependendo de considerarmos os mitos ou os contos, sua sem a intervenção do macho (Swanton 1929: 60; Mooney 1898: 265,449). Os
posição aparece invertida: Cherokee explicam em seus mitos que o opossum não tem mulher; que sua
cauda, antigamente muito peluda, e de que ele era insuportavelmente orgu-
lhoso, foi raspada pelo gafanhoto, obedecendo às instruções do coelho; e,
finalmente, que suas patas nunca congelam (Mooney op.cit.: 266,269,273,
431, 439).A história da cauda bela demais, tosquiada pelo gafanhoto, ou cujos

206 I Terceiraparte Cantata do sarigüê I 207


pêlos desapareceram sob a ação do fogo ou da água, também é conhecida jacaré tapa o buraco e volta todos os dias para provocar a tartaruga; afirma que a flo-
pelos Creek, pelos Koasati e pelos Natchez. Foi nessa ocasião que o can- resta está cheia de orelhas-de-pau (de que as tartarugas se alimentam). Mas ela não
gambá obteve a bela cauda do sarigüê (Swanton 1929: 41,200,249). Acres- se deixa enganar. Sai da velha carapaça, produz uma outra e foge.
centadas às indicações já fornecidas, fica claro que essas qualificações do O jacaré, sem obter mais respostas, abre o buraco para comer a tartaruga, que
sarigüê ou opossum evocam uma sexualidade ambígua: ao mesmo tempo considera morta. Mas ela ataca o jacaré por trás, empurra-o para dentro do buraco e
deficiente (celibato do macho, procriação pela fêmea sozinha, castração sim- tapa-o, rindo "weh, weh, weh" e batendo palmas. Elavolta no dia seguinte e provoca,
bólica pela perda da bela cauda) e excessiva (cópula impetuosa ou pelas nari- por sua vez, o inimigo, dizendo que o rio está cheio de peixe podre. Logoo jacaré seca
nas, feto ou esperma espirrado, pés sempre queates). (cf.Mn) e enfraquece. Sua voz se torna inaudível e se extingue; o jacaré morreu.A tar-
Isso posto, voltemos à América do Sul, para introduzir um grupo de mitos taruga ri "weh, weh, weh", e bate palmas (Murphy 1958: 122-23; Kruse 1946-49: 636-37-
em que a tartaruga desempenha o papel de termo constante, tendo como Variante tenetehara, in Wagley & Galvão 1949: 155-56).
. . ~
antagonista ora o Jaguar, ora o jacaré - às vezes ambos.ao mesmo tempo _,
ora o sarigüê. Numa outra versão mundurucu, a tartaruga ganha do jaguar porque conse-
gue ficar mais tempo sem beber. A tartaruga desfila diante do jaguar com a
M100 KAYAPÓ-GOROTIRE: O JAGUAR E A TARTARUGA carapaça molhada de urina e manda a fera à procura da fonte que afirma ter
descoberto (Murphy 1958: 124).
O jaguar desprezava a tartaruga por sua lentidão e sua voz fraca. Atartaruga desafia O mesmo mito existe entre os Tenetehara, e em várias tribos amazônicas
o jaguar: cada um deveria se fechar num bu~co, para ver quem resistiria mais tempo. e guianenses, mas o lugar do jaguar (ou do jacaré) é freqüentemente ocupado
Sem ar, sem água e sem comida, a tartaruga se mantém durante vários dias. O jaguar pelo sarigüê:
se submete à prova em seguida, mas à medida que os dias vão passando, sua voz
enfraquece. Quando a tartaruga abre o buraco, o jaguar está morto; resta apenas um M102 TENETEHARA: A TARTARUGA E O SARIGÜÊ

enxame de moscas sobrevoando os restos (Banner 1957: 46).


Atartaruga desafia o sarigüê a participar de uma competição de jejum. Ela se enterra
M10l MUNDURUCU: O JAGUAR. O JACARE E A TARTARUGA primeiro. Durante duas luas, o sarigüê vem todos os dias verificar o estado da tarta-
ruga. Todas as vezes ela responde, com a voz firme, que pretende continuar. Na verdade,
Macacos convidam a tartaruga a comer frutas com eles no alto de uma árvore. Eles a ela havia encontrado uma saída, e saía todos os dias para se alimentar. Quando chegou
ajudam a subir e vão embora, abandonando-a em cima da árvore. a vez do sarlgüê. ele não agüentou mais de dez dias, e morreu. A tartaruga convidou
Passa um jaguar, que aconselha a tartaruga a descer, com intenção de comê-Ia. A suas companheiras para comer os restos do sarigüê (Wagley & Galvão 1949: 154).
tartaruga se recusa a descer, o jaguar resolve ficar à espera, sem tirar os olhos de sua
presa. Finalmente, o jaguar se cansa e baixa a cabeça. Então, a tartaruga se joga, e sua Para versões amazônicas quase idênticas, cf. Hartt 1952: 28, 61-63. Para as ver-
grossa carapaça quebra a cabeça do jaguar.» "Weh, weh, weh", exclama a tartaruga, sões guianenses, cf. Roth 1915:223.
rindo e batendo palmas. Ela come o jaguar, faz uma flauta com um de seus ossos e Certos aspectos desses mitos serão examinados alhures. Por enquanto,
toca-a para comemorar a vitória. limitar-nos-emos a notar que o sarigüê é permutável com o jaguar ou o
Um outro jaguar Çluvea flauta, resolve vingar a companheira e ataca a tartaruga, jacaré, que, sabemos, são respectivamente os donos do fogo (M7 a M12) e da
que se refugia num buraco. Um jacaré começa uma discussão com a tartaruga acerca água (M12).16 Qual seria então a oposição pertinente entre a tartaruga (termo
do brotamento dos feijões: em cipós ou em árvores. Irritado porque ela o contradiz, o invariante) e o sarigüê, o jaguar e o jacaré (termos permutãveis)? Os mitos
são bastante explícitos quanto à tartaruga: ora esclarecem que a tartaruga
15' Por transformação do episódio correspondente de Mss (o jaguar mantém a cabeça
pode ficar muito tempo debaixo da terra e passar sem beber e sem comer,
levantada e abre a boca), que, como já demonstramos (p. 160), pertence ao mesmo grupo
do episódio inverso de M8. 16· Àsvezes,essas funções se invertem. Cf.Amorim 1928: 371-73 e C. E. de Oliveira 1930: 97·

208 I Terceiraparte
pois é um animal que hiberna; ora descrevem-na como um animal que se ali- Ora, vimos que, segundo os Creek, a cauda do sarigüê fica pelada ou por
menta de fungos e madeira decomposta (Mioi; cf. também M82;e para a mes- ação do fogo ou da água. Em outras palavras, num caso ela é queimada; no
ma crença entre os Urubu, Huxley 1956:149).A tartaruga é, portanto, dupla- outro, apodrecida. E não existem de fato dois modos de feder, por exposição
mente dona da podridão: porque é imputrescívele porque é "come-podre". O prolongada ao fogo ou à água?
jacaré também consome carnes putrefatas (MIOl),mas apenas na água, onde Certos mitos do sudoeste dos Estados Unidos associam intimamente o
a podridão não exala seu fedor (cf. Mn: é quando saem da água que os espí- sarigüê e o cangambá ("skunk": Mephitis rnephitica, suffocans). Os Hitchiti
ritos aquáticos começam a feder). Enfim, sabemos que o jaguar se define por contam que o segundo salvou o primeiro dos lobos, cobrindo-os com o seu
referência ao eixo que une o cru e o cozido, excluindo assim o podre. fluido empesteado (Swanton 1929:158).Os lobos têm, nesse mito, um papel
Em todos os nossos mitos, a oposição pertinente é entre fedorento e não- paralelo ao dos jaguares em MIOI;é notável que, no sudoeste dos Estados
fedorento, putrescível e imputrescível, eis o que se desprende"- claramente da Unidos, a transferência ao cangambá de uma função alhures preenchida pela
recorrência do mesmo detalhe, formulado em termos muitas vezes idênticos, tartaruga seja acompanhada de uma subversão das relações entre o sarigüê, a
quaisquer que sejam os adversários da tartaruga e apesSlrdo distanciamento tartaruga e o jaguar: a tartaruga ajuda o sarigüê, devolvendo-lhe seus filhotes
das populações de onde provêm esses mitos. Quando a tartaruga já não obtém perdidos e fabricando a bolsa marsupial que irá permitir que ele os guarde
resposta do rival, ela abre o buraco e encontra no lugar do jaguar ou do jacaré, melhor (loc.cit.: 199-200); o sarigüê ajuda o puma na caça, convencendo os
"um enxame de moscas sobrevoando os restos" (Mico, Mioi ), ou, no lugar do veados de que a fera está morta, reduzida a uma carcaça da qual eles podem
sarigüê, "uma multidão de moscas" (Arnazônj a; Hartt 1952:28; Tastevin 1910: se aproximar sem medo; o puma aproveita a ocasião para matá-los (loc.cit.:
283-86), "muitas moscas" (rio Juruá; Hartt op.cit.: 62), "moscas, os únicos 200). Apesar da distância geográfica, estamos sem dúvida lidando com mitos
seres vivos sobre o cadáver do sarigüê" (Warrau, Karib; Roth 1915;223).17 pertencentes ao mesmo grupo.
Voltemos agora ao episódio final dos contos do grupo "o sarigüê e seus Ora, os Cherokee têm um mito que explica o fedor do cangambá. Para
genros" (cf.p. 206). Uma versão amazônica termina com a desventura do sari- puni-Ia por ser um ladrão, os outros animais lançaram-no ao fogo; desde
güê, salvo depois de ter sido engolido por um tucunaré (Chichla ocellaris): então, ele ficou preto e com cheiro de queimado (Mooney 1898: 277). Por
desde então "ele ficou com o rabo feio e fedorento [...] devido ao calor da bar- conseguinte, tanto na América do Norte como na América do Sul, os cheiros
riga do peixe" (Barbosa Rodrigues 1890: 191-94).Lembramos que a mesma de queimado e de podre formam um par: são dois modos do mau cheiro. Ora
palavra portuguesa "feio" serve para fundamentar a interdição de comer esse par corresponde ao do cangambá e do sarigüê, ora o sarigüê é o único
carne de sarigüê, num dos mitos kubenkranken de origem das plantas culti- encarregado de exprimir uma ou outra modalidade.
vadas (Msa). As versões mundurucu e vapidiana de "sarigüê e seus genros", Podemos concluir de nossa análise que a função semântica do sarigüê é
entretanto, terminam com um episódio no qual o sarigüê queima a cauda de significar o mau cheiro. Os Catawba, que viviam nos Estados da Carolina
(mundurucu) ou cai no fogo (vapidiana). O mesmo acontece numa outra do Norte e do Sul, designam o opossum por um termo cujo sentido aproxi-
versão amazônica (id.ibid.: 173-77).18 mado é "o babão" (Speck 1934:7). Para os Taulipang, da Guiana, o sarigüê é
um animal fecal (K.G.1916:141).Num mito amazônico de origem indeterrni-
17' Mesmo detalhe num conto apinayé em que o tatu faz o papel de vítima (C. E. de Oli- nada (Mica), uma jovem escapa das investidas amorosas do sarigüê porque
veira 1930: 97). A permutação do tatu e do sarigüê também é comprovada, entre os reconhece o animal pelo mau cheiro que exala (Couto de Magalhães 1876:
Kayapó, pela transferência, ao tatu O' oimbre, de uma certa falta de jeito do sogro Sarigüê 253-57;Cavalcanti 1883:161-77).Um outro mito da mesma região (Mies), que,
no ciclo "sarigüê e seus genros". Comparar Murphy 1958: 119 (Mundurucu), e Métraux em termos razoavelmente obscuros, associa o sarigüê ao envelhecimento, isto
1960: 30 (Kayapó-Kubenkranken). Mas é porque, entre os Tê, o sarigüê é chamado a
é, à vida breve, descreve a.cabana de três velhas transformadas em sarigüéias
cumprir outras funções, mais nobres.
18· E também, como nota Barbosa Rodrigues, no Popol Vuh (cf. Raynaud 1925: 49). Evi-
tamos intencionalmente utilizar os mitos das altas civilizações da América Central e que, em vários aspectos, eles têm um lugar em vários dos grupos que constituímos.
do México, que, por terem sido transcritos por letrados, exigiriam uma longa análise Sobre a posição do sarigüê no México antigo, cf. Sahagún, L. VI, capo 28, e xr, capo 4, § 4,
sintagrnática antes de qualquer emprego paradigmático. Mas não deixamos de notar e Seler 1961, V. 4: 506-13.

2~ I Terceira parte
Contato da sarigüê I 211
em que não se conseguia entrar "porque catingava demais" (Amorim 1926: da sarigüéia, para tingi-Ios de amarelo. Transformou o rosto da mulher num focinho
450). Os Kayuá do Brasil meridional contam como o sarigüê venceu o ca- colando um broto de palmeira.
chorro na corrida regando-o com urina (Schaden 1947: 117).19 O sarigüê, co- O urubu disse à mulher que ela só geraria carrapatos e que aqueles que não fos-
mo vimos, é diversamente descrito nos mitos como "animal podre", "cauda sem comidos pelo anu mais tarde se transformariam em sarigüês. O sarigüê só come
podre", "cauda queimada". O mito tupinambã dos gêmeos (M96), a que já nos cérebros e ovos de pássaros. Dorme de dia e caça de noite ...(Hissink-Hahn 1961: 116-17)·
referimos, acentua propositalmente esse aspecto. Depois de ter abusado da
mulher de Maire Ata, o sedutor "foi transformado num bicho, que leva o Assim, compreende-se que os mitos jê possam atribuir a origem da vida
nome do homem mudado, a saber Sarigoys, aquéle que tem a pele muito breve a uma resposta dada ao chamado da madeira podre (M9) ou à inalação
fedorenta ..." (Thevet 1575 apud Métraux 1928: 236). Não menos do que os de um cheiro de podre, emanado dos espíritos aquáticos (M73), ou à ingestão
índios, os viajantes ficaram impressionados com esse detalhe: "o opossum da carne de sarigüê (Ms7, Mse, M9o, M92). É a mesma coisa: putrefação rece-
espalha um odor fedorento", nota a Enciclopedia.tu: Di~rot e D'Alembert bida pela audição, pelo olfato ou pelo paladar. Quanto a essa primeira ques-
(art. "Philandre"), Observadores mais recentes também acentuam que o sari- tão, nossas interpretações já estão validadas.
güê "emite um cheiro deletério" (Gunther: 168), "extremamente repugnante" Subsiste, contudo, uma dificuldade. Por que, nos mitos jê de origem das
(Tastevin 1910: 276); "Suas glândulas secretam um cheiro bastante desagradá- plantas cultivadas, a mulher-estrela deve se transformar em sarigüéia para
vel" (Ihering op.cit., art. "Garnbá"): "ele espalha um cheiro horrível", e daí o revelar aos homens a existência do milho? Notemos, antes de mais nada, que
nome - formado a partir do seu - dado ao arão aquático, que fede (Ahl- nem sempre esse motivo aparece. Mas, onde falta, é substituído por outros: a
brinck 1931, art. "aware"), •• mulher-estrela cospe o milho no rosto do marido (Mes) ou na boca dele (Ms7.);
Um mito boliviano reúne de modo convincente todas as afinidades do é, portanto, uma "babona", como o opossum catawba; ela sangra depois de
sarigüê, segundo a filosofia natural dos índios sul-americanos: ter sido violentada e se torna assassina (MS9); após ter sido violentada, ela
mata os cunhados cuspindo na boca deles (MS9). Ela sempre é sujeira, ora sob
MI0S TACANA: ORIGEM DO SARIGÜÊ a forma de um animal cuja pele exala um fluido fedorento; ora sob a forma de
criatura humana, ao mesmo tempo agente e paciente do ato de sujar. Um mito
Havia uma mulher que aproveitava enquanto o tapir dormia para pegar os carrapa- do mesmo grupo, proveniente dos Aguaruna do alto Maranhão (Mies), conta
tos que lhe cobriam o corpo. A mulher embrulhava os carrapatos numa folha, cozi- que a mulher-estrela transformou sua urina em alimento (Guallart 1958: 68).
nhava-os numa panela e os comia [cf. M se). Tendo isolado esse traço invariante, podemos colocar em evidência a
O anu (Crotophaga anil, que costumava se alimentar dos bichos do tapir, quei- estrutura comum dos mitos de origem em que o sarigüê intervém, isto é, de
xou-se ao urubu dessa concorrência desleal. E o urubu prometeu vingá-Ia transfor- um lado, o conjunto tupi-tukuna, e do outro, o conjunto jê. Em ambos, os
mando a mulher em sarigüéia. protagopistas são os mesmos: uma mulher, seu marido e o ou os irmãos (às
O urubu sobrevoou a mulher e cobriu-a de excrementos, tanto que ela andava vezes "falso irmão") deste. Essa configuração de aliança é simétrica à que
curvada e com dificuldade. Então o urubu jogou-a no chão, arrancou-lhe os cabelos e encontramos subjacente aos mitos de origem dos porcos-da-mato, que con-
colou-os em todo o corpo com seus dejetos. A mesma cola ele utilizou para fixar o sistia em um homem, sua irmã ou suas irmãs e os maridos delas:
rabo de uma cobra nova ao traseiro da infeliz; ela foi diminuindo de estatura e ficou
do tamanho de um sarigüê. O urubu pegou uma raiz, mastigou-a e cuspiu nos pêlos

I I I

0="" c: "" = o
19' Esse mito do Brasil meridional encontra sua ilustração numa dança ritual dos Tirn-
bira orientais. em que o cangambá (em vez do sarigüê) é representado por um dança-
É notável que entre os [ê, essas duas estruturas correspondarn, uma (1) a um
rino carregando uma cabaça cheia de água. com que molha os cães que o perseguem.
representados por mulheres. Elas fogem gritando. como os cães atingidos pelo fluido do mito de origem de /plantas!cultivadas/. e a outra (2) a um mito de origem de
cangambá (Nim.1946b: 230). /animais/selvagensl.

212 I Terceira parte Contato do 5(1(;9"''' 1 213

I
No conjunto rupi-tukuna, entretanto, o papel do sarigüê é desempenhado (Wassen 1933:131).A podridão vegetal conota, portanto, a atividade sexual nor-
pelo irmão do marido, estuprador de sua cunhada, ao passo que no conjunto mal (= conjugal) da mulher, a castidade normal (= pueril) do homem. E a
jê é desempenhado por ela. Mas, em cada caso, o alimento é qualificado de podridão animal, a atividade sexual anormal (= estupro) do homem e a casti-
um modo. dade anormal (= conjugal) da mulher.
A esposa tukuna (M95) é um fruto caído, transformado em mulher. Uma Resolvido o problema da inversão do sarigüê (macho ou fêmea, estuprador
versão urubu (M95A) acrescenta que esse fruto que cai está cheio de bichos ou estuprada), pode-se ver o que suas personificações têm em comum nos dois
(Huxley 1956: 192).20Portanto, a mulher divina represerxa aqui a podridão ve- conjuntos, tupi e jê. Nos mitos tupi, o sarigüê é um macho que abusa de uma
getal, menos intensamente marcada do que a podridão animal, o que acarreta humana, já mãe, dando-lhe um filho. Nos mitos jê, é uma sarigüéia, não mãe
uma dupla transformação. Em primeiro lugar, a distância inicial que a separa (já que virgem, embora casada), de que os humanos abusam e que lhes presen-
dos homens é diminuída, já que ela cai de uma árvore cO,mo Uin fruto, em vez teia os alimentos. A heroína tupi é uma mãe que se recusa a ser nutriz (ela mal-
de descer do céu como estrela. Em segundo, sua função sarigüê, metonímica trata o filho ainda em seu ventre). A heroína jê é uma nutriz que se recusa a ser
no grupo jê (em que ela é o verdadeiro animal durante utna parte do relato), mãe. Isso ocorre em todas as versões jê, exceto a dos Xerente (M93), que, como
torna-se metafórica no grupo tupi: seu filho fala no ventre, como se já tivesse vimos, transforma as valências semânticas do céu e da terra: a mulher celeste é
nascido e utilizasse o ventre materno à guisa de ~olsa marsupial. Inversamente, qualificada negativamente, como filha de canibais, incapaz de salvar o marido.
a versão tukuna, em que este último motivo não aparece, realiza a transforma- Ao mesmo tempo (MI08), o papel de doadora das plantas cultivadas (neste
ção do cunhado estuprado r de sarigüê metafórjco (copulação pelas narinas, caso, a mandioca) passa para humanos - mulheres terrestres, portanto; e,
como o sarigüê) em sarigüê metonímico: quando ele enche o interior de seu além do mais, já mães e ansiosas por cumprirem seu dever de nutrizes. Preo-
prepúcio com uma pasta branca e grudenta, usa a presença desse "sebo" como cupadas por terem abandonado seus bebês muito tempo por causa das tarefas
argumento para afirmar que ainda não perdeu a virgindade. Ora, essa sujeira agrícolas, elas voltam das roças correndo tão depressa que o leite jorra dos
também é de origem vegetal, já que o enganador utiliza a polpa da fruta da pal- seios inchados. As gotas que caem no chão germinam na forma de pés de man-
meira paxiubinha (Iriartela sebigera Mart.). Acrescente-se que, nessa versão dioca, doce e brava (Nim. 1944: 182).21Em última análise, a contradição ex-
tukuna em que a função sarigüê é assumida pelo cunhado, o fruto cuja forma pressa pelo personagem do sarigüê se resolve num breve episódio do mito de
a esposa divina assume por um instante é o da árvore uma ri, cujo perfume é origem dos Apapocuva (MI09): após a morte prematura da mãe, o "mais velho"
mencionado por vários mitos amazônicos (Amorim 1926: 13,379), ao passo que dos gêmeos não sabe como alimentar o irmão mais novo, ainda lactente. Pede
o sarigüê cheira mal. Finalmente, e ainda na mesma versão, a mulh.er tem rela- ajuda a uma sarigüéia, e esta, antes de se tornar nutriz, lambe as mamas, para
ções sexuais com o marido - ao contrário do que ocorre nas versões jê -, tirar as secreções fétidas. Como recompensa, o deus lhe dá a bolsa marsupial e
sem dúvida a fim de salientar, como o faz um mito choco do mesmo grupo lhe promete que doravante ela parirá sem dor (Nim. 1914: 326).22 O mito apa-
(MI07), que o marido "precisa exclusivamente dela na qualidade de cozinheira"

21 . Note-se de passagem que esse mito xerente segue um procedimento inverso ao do


mito bororo de origem das doenças (Ms). Neste último, uma mãe que abandona o filho
20 . Fruto da árvore apuí, que aparece várias vezes na mitologia dos Mundurucu com e que se ingurgita de peixe, transpira as doenças. No mito xerente, mães que se aproxi-
esse nome ou como "apoi": "Apui ou iwapui, árvore parasita que se instala nos galhos de mam dos filhos e que regurgitam generosamente o leite, transpiram certas plantas cul-
outras árvores e lança raízes aéreas, algumas fincando-se no soJo, enquanto as outras tivadas. O fato de se tratar da mandioca, inclusive de suas variedades venenosas, irá
apertam o tronco da árvore portadora até sufocá-Ia (Tastevin 1910, addenda: 1.285). É o adquirir todo o seu significado quando tivermos constituído o grupo de origem do ve-
poste que sustenta a abóbada celeste, e suas raízes saem, como muco, das narinas do neno, de que Ms,justamente, faz parte (cf. adiante, p. 320).
enganador Daiiru. Elas também são cheias de bichos (Murphy 1958: 79, 81, 86). Uma 22· Cadogan dá uma outra lição guarani (MI09A),segundo a qual, enquanto o mais
outra versão conta que as raizes da árvore apuí saíram dos olhos, das orelhas, do nariz e velho dos gêmeos trata de reconstituir o corpo da mãe, o mais novo, esfomeado, se pre-
do ânus do enganador (Kruse 1951-52, v. 47= 1.000; cf. também Stromer 1932: 137). Há, cipita sobre o seio ainda inacabado e destrói toda a obra (id. em versão guarani MI09D,
portanto, uma dupla afinidade da árvore apuí com os dejetos e a podridão, que reforça de Borba 1908: 65). Desanimado, o mais velho transforma a mãe em paca (Coelogenys
sua conotação similar no mito urubu. paca, guarani, "jaicho", mas o texto diz também "mbyku", que é o termo traduzido por

Cantata do sariqúé I
214 I Terceira parte
215
pocuva realiza, portanto, a síntese das duas características do sarigüê, que o
transformou em pássaro noturno (Caprimulgus) de canto triste (Baldus 1950 19-21;
mito tupinarnbã, de um lado, e os mitos jê, do outro, apresentavam separada-
1958: 87; Botelho de Magalhães 1921: 274-76).
mente. Do primeiro, a sarigüéia apapocuva empresta o mau cheiro; dos últi-
mos, a função de nutriz. Mas a síntese só é possível porque a função aparen-
Em relação ao grupo jê, há várias mudanças notáveis. O herói velho ou feio,
temente ausente se manifesta de modo disfarçado em ambos os casos: entre
amante da solidão, torna-se uma jovem que tem parentes e conversa com
os Tupinambá, onde o sarigüê é homem, ele engravida uma mulher (é a
eles. O homem se apaixona imediatamente pela estrela; a mulher a deseja
maneira masculina de "nutri-Ia"); entre os [ê, onde a sarigüéia é uma mulher,
apenas como brinquedo. Em vez de o encontro acontecer no mato, ocorre
ela suja os homens que se nutrem dela (realmente, CfUando a comem; metafo-
dentro da casa. O herói jê se casa com a mulher-estrela, e seus irmãos abu-
ricamente, quando a violentam e ela sangra), transformando-os em velhos
sam dela. A heroína karajá rejeita o homem-estrela, e é a irmã que se casa
decrépitos ou cadáveres.
com ele. As plantas cultivadas ou são objetivamente reveladas por uma mu-
Um mito karajá permite fechar a transformação,Jllos.t?ando o que acon-
lher, na floresta, ou simbolicamente procriadas por um homem, na água.
tece quando a "nutriz" assume o sexo masculino, d~ixando de ser uma sari-
Sobretudo, a mulher-estrela jê transforma os humanos adolescentes em
güéia, mas mantendo a missão de introduzir as plantas cultivadas:
velhos. O homem-estrela karajá transforma a si mesmo de velho em jovem.
JJ Seu duplo personagem preserva, assim, a ambigüidade do sarigüê, Contudo,
Muo KARAJÁ: ORIGEM DAS PLANTAS CULTIVA.DAS ~~...? enquanto os mitos jê evocam uma situação real (a periodicidade da vida
humana) por intermédio de uma metáfora zoológica, o mito karajá descreve
Nos tempos antigos, os Karajá não sabiam limpar o mato. Elesse alimentavam de fru- uma situação irreal (o rejuvenescimento dos velhos), exprimindo-se, porém,
tos silvestres, peixe e carne de caça.
Uma noite, a mais velha de duas irmãs contemplava a estrela vespertina. Disse ao
no sentido próprio. d-;;5
Ao abordarmos o estudo da vida breve, havíamos formulado a hipótese ~
pai que gostaria de tê-Ia para brincar, e ele riu dela. Mas, no dia seguinte, a estrela (p, 184) de que, em todos os nossos mitos, a podridão era o simétrico e o in-
desceu, entrou na casa e pediu a moça em casamento. Era um velho curvado, enru- verso das plantas cultivadas. A "prova do sarigüê" acaba de confirmá-Ia, pois y
gado, de cabelos brancos; ela não o quis. Como ele chorava, a mais nova ficou com
tal é, efetivamente, a P?siçãO assumida por _ess: animal pútrido (e podre). ~\O .
pena e se casou com ele.
Incomestível, a não ser para os velhos que nao tem por que temer a corrup- ~l''' ti'
No dia seguinte, o homem foi falar com o rio e andou sobre a água. Entre suas
ção, pertencente ao reino animal e nãO,ao rei~o vegetal, ~ sarigüê p~rsonifica 1~~
pernas afastadas, ele pegou, enquanto a água corria, espigas de milho, brotos de
duplamente uma antiagricultura, que e tambem uma pre e uma pro-agncuJ- ty"
mandioca e grãos de todas as plantas que os Karajá cultivam atualmente. Depois ele tura. Pois nesse "mundo ao contrário" que era o estado de natureza antes do
foi para a floresta, proibindo a mulher de segui-Io. Ela desobedeceu, e viu o marido
nascimento da civilização, era preciso que todas as coisas futuras já tivessem
transformado num jovem muito bonito, enfeitado e coberto de pinturas corporais. A sua contrapartida, embora sob um aspecto negativo, que era como que o
mais velha reivindicou-o por marido, mas ele continuou fiel à mais nova; a outra se penhor de seu surgimento. Forma côncava da agricultura ausente, o sarigüê
ilustra-lhe a forma por vir, ao mesmo tempo em que pode ser, como contam
"sarigüê" em Montoya 1876). Desde esse dia, o sol demora a nascer sempre que uma os mitos, o instrumento graças ao qual os homens irão obtê-Ia. A introdução
paca caiu numa armadilha durante a noite (Cadogan 1959: 77-78, 86-87, 197, 202). da agricultura pelo sarigüê resulta, portanto, de uma transformação de um
Sob uma forma um pouco alterada, o episódio do mito apapocuva reaparece entre modo do ser em seu converso.P Uma oposição lógica se projeta no tempo
os Mundurucu:
MI09C MUNDURUCU' INFÂNCIA DE KARUSAKAIBE
23 . O solo do cerrado não é cultivável, apenas o da floresta. Ora, no mito karajá da
Uma mulher adúltera procurava livrar-se do filho bastardo de todas as formas: abandonava-o no origem da vida breve (M70) os homens se tornam mortais por terem respondido ao
chão ou num riacho; chegou ate a enterrá-Ia vivo. Mas a criança resistia a tudo. chamado da serierna, "ave do cerrado". E parece de fato que os mitos jê de origem das
Finalmente. uma sarigüéia recolheu-o e amamentou-o. É por isso que os sarigüês dão à luz plantas cultivadas (e da vida breve) distinguem duas espécies de sarigüê, uma espécie da
sem dor (Kruse '95'-52, v. 46: 920. Cf adiante M144e 145,e p. 3'2. n. 35). floresta, cuja forma a mulher-estrela empresta para revelar aos homens a existência do

216 I Terceira parte


Contato do sarig0ê I 217
sob a forma de uma relação de causa e efeito. Quem melhor do que o sarigüê em vez do céu ernpíreo, e por quem um homem se apaixona, apesar de estar
para conciliar essas funções? Por sua natureza de marsupial casa atributos coberta de vermes, suja e malcheirosa. E, como indica o título de "visita ao
antitéticos, mas que se tornam complementares apenas nele. Pois a sarigüéia céu" pelo qual esse grupo é geralmente conhecido (Mu s), refere-se às aven-
é a melhor das nutrizes; e fede. turas de um mortal no reino celeste, em vez de uma imortal na terra. Já fize-
mos alusão a isso (p. 170), e a isso voltaremos mais adiante (p, 370-SS).
c) SEGUNDO RECITATIVO Em compensação, o mito da árvore dos alimentos é fartamente represen-
tado entre os Arawak e os Karib da Guiaria, e até a Colômbia; antigamente
Sob vários aspectos, os mitos jê de origem da vida ~reve apresentam uma (M1 14), o tapir ou a cutia eram os únicos a conhecer seu segredo e se recusa-
característica notável. Em primeiro lugar, sua distribuição é particularmente vam a compartilhá-lo com os homens. Estes mandaram um esquilo, um rato
densa; além disso, sua densidade se manifesta também no conteúdo. Os mitos ou um sarigüê para espioná-las. Quando descobriram a localização da ár-
organizam em sistema coerente temas que, fora deles, e encontram no esta- vore, os homens resolveram derrubá-Ia. De sua raiz, jorra a água (K.G. 1916:
do dissociado: de um lado, o casamento da mulher-estrela com um mortal e 33-38; Wassen içjj: 109-10), que se transforma em dilúvio e destrói a huma-
a origem das plantas cultivadas; do outro, a descoberta da árvore dos alimen- nidade (Brett 1880: 106-10,127-30; Roth 1915:148-49; Gillin1936: 189; Farabee
tos e a origem da morte ou da vida abreviada. 1924: 83-85; Wirth 1943: 259). Os Wapixana e os Tarumá da Guiana britânica
Ao sudoeste da área jê, os Mataco e os Rshluslay do Chaco conhecem a contam (Mn s) que Duid, irmão do criador, alimentava os homens com os
história da árvore dos alimentos (Mi n ); mas ela é descrita como uma árvore frutos da árvore de vida, mas eles descobriram onde ele se abastecia e resol-
cheia de peixes, cuja casca, furada por um in1prudente, deixa jorrar as águas veram servir-se. Furioso com essa insubordinação, o criador derrubou a
que cobrem a terra e destroem a humanidade. A história da mulher-estrela, árvore, e a água do dilúvio jorrou de sua raiz (Ogilvie 1940: 64-67).
por sua vez, existe no Chaco entre os Toba e os Chamacoco (M1l2): uma Uma versão que opõe o chamado da pedra e o chamado da água mostra
deusa se casa por piedade com um homem feio e desprezado, que as mulhe- claramente que se trata de um mito de origem da vida breve, ligado à intro-
res, para se divertirem, cobrem de ranho. Durante a seca, a deusa obtém dução das plantas cultivadas e pertencente ao mesmo grupo que os mitos jê.
colheitas milagrosas, e se retira para o céu com o marido. Mas o homem fica Se os homens só tivessem ouvido o chamado da pedra, viveriam tanto quanto
congelado no céu, pois é proibido de se aproximar do fogo, que é canibal. Ou a rocha. Eles provocam o dilúvio dando ouvidos aos espíritos, que liberam as
então a mulher-estrela, descoberta dentro da cabaça em que o marido a águas (Brett op.cit.: 106-10).24
escondeu, explode no nariz dos mortais indiscretos e os queima (Métraux Voltaremos várias vezes a esses mitos. Por enquanto, apenas assinalaremos
1943,passim). dois traços essenciais. Uma versão karib (M116) diz que, depois de os homens
Ao norte da área jê, isto é, na Guiana, o tema da mulher-estrela esposa de terem obtido as plantas cultivadas, o pássaro bunia lhes ensinou a cultivá-Ias
um mortal enfraquece e se inverte: o contraste entre a estrela e a sarigüéia é e cozinhá-Ias (Roth 1915:147): Esse pássaro desempenha, portanto, em parte,
amortecido no personagem da filha do urubu, originária do céu atmosférico o papel da sarigüéia dos mitos jê. Ora, o bunia (Ostinops sp.) é chamado de
"pássaro-fedorento", devido ao cheiro nauseabundo de suas penas (loc.cit.:
milho, na floresta, mas com a condição de que eles fossem para lá, e uma espécie do cer-
rado consumida pelos rapazes imprudentes, que por isso se transformam em velhos, 24' Brett foi muitas vezes acusado de fantasiar, devido a suas transcrições em verso. Mas
quando tinham saído da floresta para pedir um machado na aldeia (cf. MS7, M9o). A ele não podia conhecer os mitos de origem da vida breve que mostramos acima. Con-
dualidade das espécies analisa a ambigüidade inicial transpondo-a para o plano ecoló- firmando o testemunho de Brett, outras variantes guianenses foram colhidas posterior-
gico. Uma espécie traz a vida, que está - no presente momento - fora dela; a outra, a mente entre os Warrau e os Arawak: "Os habitantes da aldeia tinham sido avisados de
morte, que está dentro. que à meia-noite, os Espíritos Hisi ('fedorento') e Kaké (vivo') passariam. Deviam ficar
Em favor de nossa interpretação do papel do sarigüê, note-se que, entre as popula- acordados e chamar os Espíritos por seus nomes. Hisi passou primeiro, mas todos dor-
ções da Costa Rica pertencentes ao grupo lingüístico talamanca, apenas os coveiros pro- miam. De madrugada, foi a vez de Kaké passar, e todos acordaram gritando 'Hisi'. Desde
fissionais tinham o direito de tocar nos cadáveres, nos urubus e nos opossums (Stone então, os homens se tornaram mortais" (Goeje 1943: 116). Diz-se que um mito do mesmo
1962:30,47). grupo existia antigamente no Panamá (Adrian, in Wassen 1962: 7).

218 I Terceira parte Cantata da sarigüê I 219


f
371),25 Representa, portanto, uma "função sarigüê" ccdif
",
d
nca a em termos e
animais alados, Diz-se que o bunia produz , com se us excrernentos,
' ' ,
d I
I
das raízes da árvore cortada (Ogilvie, loc.cit.). O egoísmo e a ingratid80
simetricamente castigados.
são
as raizes
aére,as de uma ,planta epífita, o kofa (Clusia grandifolia, loc.cit.: 231-32,371), O Os mitos jê conseguem manter-se eqüidistantes desses dois perigos, O
~~rol tuk~na EPl (MlI7), que costum~ adotar a forma de um sarigüê (M95 e abuso das plantas alimentares assume neles uma outra forma. Ele não consiste
irn. 1952, 124), lança do alto de uma arvore um jato de urina q ue en d urece e nem na decisão dos homens - a quem, no entanto, bastava deixar-se viver -
se torna um cipó espinhoso (Philodendron Sp.),26enquanto seu irmão dá ori- de assumir ativamente os trabalhos agrícolas (M115), nem na de guardar para
gem a uma vanedade lisa pelo mesmo procedimento (ibid.; cf.: 187, ri.r: M161) si os frutos da árvore (MI14, M116). Os textos jê são extremamente instrutivos
As tribos do Chaco, por sua vez, fazem da mulher-estrela a dona do f, . a esse respeito, Informados pela sarigüéia, dona generosa e desinteressada da
de tr id da á • ogo árvore de vida (ao contrário do tapir), os habitantes da aldeia poderiam ter
S Illl or e a agua cnadora; e vêem na árvore cheia de peixes a dona _
p~r aSS1l11dizer - da água destruidora. A árvore dos "alimentos vegetais dos guardado para si o segredo da árvore, e continuariam a gozar da vida longa.
mitos guianenses também governa a água destruidora ..•• Porque uma criança se deixou ver, outras famílias, ou outras aldeias, ficam
Ora, há um ponto dos mitos jê correspondente~ que 7ilenciamos e sobre o sabendo da existência da árvore. A partir de então, ela já não supre as necessi-
qual convém chamar a atenção. Em M87, M89 (segunda versão), M90, M91 e dades, é preciso derrubá-Ia, repartir os grãos que servirão de sementes para
M94, ~ proxímidade entre o primeiro milho e a água' é acentuada com especial todos, e plantar. E é durante o cumprimento dessa tarefa que adolescentes
insistência. E uma mulher no banho que recebe a revelação; ou explica-se que experimentam a carne de sarigüê, permitindo assim que a vida breve (inter-
os grãos ou as espigas caídas enchem o rlo. Entre os [ê, assim como na Guia- mediária entre a morte violenta e a vida prolongada) se instaure.
na, conse~üentemente, a árvore dos alimentos é associada à água, que lhe Por conseguinte, a função mediatriz do sarigüê, que o situa a igual distân-
~anh~ o pe ou ~e encontra dentro de suaS'raízes. Na forma interiorizada, essa cia do demiurgo imperiosamente nutrido r e do tapir egoísta dos mitos guia-
agua e destrutiva, Na forma exteriorizada, ela é, senão criativa (Mi ro}, pelo nenses, faz surgir uma solução intermediária para os problemas filosóficos
menos conservadora dos grãos ou das espigas. levantados pela introdução de um gênero de vida agrícola. Essa solução con-
_ Essa dupla transformação (interno -7 externo; destruição -7 conserva- siste, no plano sincrônico, na partilha eqüitativa dos recursos, entre povos
çao) do valor semântico atribuído à água terrestre é acompanhada de uma que se multiplicam e se diversificam devido à abundância; e, no plano diacrô-
outra, que afe:a a atitude em relação às plantas alimentares. Nos mitos guia- nico, na periodicidade do trabalho da terra. Ao mesmo tempo, a água se
nenses, elas sao generosamente dispensadas aos homens por um demiurgo torna conservadora da vida, nem criadora, nem destruidora, já que não vivi-
ahme,ntad~r, ou mald~s~mente desviadas unicamente em proveito do tapir fica a árvore internamente, e não destrói os homens externamente; está estag-
(ou da. cutia), propnetano ciumento da árvore de vida. Como castigo (M 116 ) , nada ao pé da árvore, desde sempre.
o tapir será privado da água e condenado a bebê-Ia numa peneira (Roth De um ponto de vista metodológico, a análise precedente ensina duas
191.5: 147; cf. akawai, in Brett op.cit.: 128), e também das plantas cultivadas, lições. Em primeiro lugar, confirma um ponto sobre o qual já insistimos, a
pOIS lhe deixam como único alimento os frutos caídos da ameixeira selva- saber, que, para a análise estrutural, os problemas de etimologia devem ser
gem (id. ibid.; Amorim 1926: 271). Rigorosamente inversa é a sorte dos ho- mantidos separados dos problemas de significação. Em nenhum momento
mens que não quiseram ser tratados como crias: eles terão as plantas culti- invocamos um simbolismo arquetípico da água; na verdade, deixamos esse
vadas, mas serão destruídos pela água, que jorra em quantidade excessiva problema cuidadosamente de lado. Basta-nos poder demonstrar que, em
dois contextos míticos particulares, uma variação do valor semântico da
água é função de outras variações e que no decorrer dessas transformações
25' O bunia guian~nse é idêntico ao japu do Brasil central e meridional. É um pássaro as regras de um isomorfismo formal são constantemente respeitadas.
da famíh~ dos Ictendeos~ a que pertence igualmente o japim (Cassicus cela), cujo cheiro
Em segundo, podemos fornecer uma resposta ao problema colocado pela
desagradavel também fOI notado (Ihering, v. 36: 236),
ausência, entre os antigos Tupinambá, da versão guarani (que é, no entanto,
26· Trata-se do cip6 ambé ou cip6 guembé. Os Kayuá, que colhem e consomem os fru-
tos _desse Philodendron (Watson 1952: 28), contam que Sol veio pedir comida ao sarigüê comprovada em relação a quase todas as tribos tupi do Brasil) do mito da
e nao conseguiu nada, porque "56 tinha cip6 guaimbé" (Schaden 1947= 112). origem do fogo, roubado do urubu por um demiurgo que se finge de morto e

220 I Terceira parte Cantata do sarigtiê I 221


putrefato. Localizamos, com efeito, entre os Iê, duas séries míticas estreita- D) ÁRIA FINAL: O FOGO E A ÁGUA
mente paralelas, para dar conta da passagem da natureza à cultura. Num
~ caso, a cultura começa com o roubo do fogo dó jaguar; no outro, com ; intro- Admitimos várias vezes, de modo mais ou menos explícito, que o pensamento
, dução das plantas cultivadas. Mas, sempre, a origem da vida breve está ligada
ao surgimento da vida civilizada, concebida mais como cultura lá onde se
trata da origem do fogo (conquista dos "bens do jaguar", M8: fogo de cozi-
)JV ~
li
mítico sul-americano distingue dois tipos de água: uma criadora, de origem
celeste,e outra destruidora, de origem terrestre. Haveria, p.aralelame~te,dois ti:
pos de fogo: um celeste e destruidor, o outro, terrestre e cnador, que e o fogo d
nha, arco e flechas, algodão fiado), e mais como sociedade quando se trata cozinha. Veremos em breve que as coisas são mais complexas. Mas, antes diSSO,
das plantas cultivadas (M90:multiplicação dos povos, diversificação das lín- convém aprofundar o sentido da oposição fundamental entre a água e o fogo.
guas e dos costumes). Finalmente, dependendo do grupOJ-osurgimento da Voltemos para tanto ao mito de referência, que, como demonstramos (p.
vida breve está ligado ou à origem do fogo e da cultura (Àpinayé) ou à das 166-ss), é um mito de origem do fogo travestido em mito de origem da água,
plantas cultivadas e da sociedade (outros [ê); da Guiana ao Chaco, está ligado e recoloquemos esse mito na série dos mitos jê de origem do fogo (M7 a MI2).
à origem da água e à (destruição da) sociedade. • Embora os Bororo, por sua estrutura social matrilinear e matrilocal, se opo-
Limitando-nos aqui apenas aos [ê e aos Tupi, fica claro que, entre os Api- nham aos Xerente patrilineares e patrilocais mais completamente do quea
nayé, a origem da vida breve ("chamado da madeira podre") é uma função da qualquer outra tribo jê (e, talvez, por isso mesmo), observa-se uma sunetna
origem do fogo (M9), ao passo que entre os outros [ê a origem da vida breve notável entre os mitos desses dois grupos cujo herói é um desaninhador de
("chamado do sarigüê", animal podre) é urna função da origem das plantas pássaros (Mi e MI2, respectivamente).
cultivadas. Chegamos assim à seguinte hipótese: já que o tema da podridão Em primeiro lugar, e únicos nesse aspecto no conjunto Mi a MI2, esses
(deus-criança) existe entre os Guarani e os Tupi contemporâneós como uma mitos tratam simultaneamente da água e do fogo. O mito bororo invoca a
função do mito da origem do fogo, a ausência de um tal mito entre os Tupi- água para destruir o fogo, ou mais precisamente para fazer do herói o dono
nambá não se explicaria em razão de uma transferência do tema da podridão do fogo. O mito xerente afirma que, para se tornar dono do fogo, foi preCiso
ao mito de origem das plantas cultivadas? Ora, de acordo com Thevet (M1l8; que o herói antes se pusesse em posição de dono da água: aniquilando-a,
apud Métraux 1948), os Tupinambá atribuíam-na a uma criança milagrosa, diríamos, já que ele a bebe inteiramente. Lembramo-nos com efeito de que,
em que bastava bater para que as plantas alimentares caíssem de seu corpo: após ter sido recolhido pelo jaguar, o herói se queixa de uma se~e intensa,
ou seja, uma criança, senão morta, pelo menos "mortificada", e "apodrecida" que só consegue aplacar secando o riacho que pertence ao )acare (Catman
por uma surra. Uma lenda amazônica de proveniência tupi conta que a pri- niger), e sem deixar uma só gota. Esse incidente fica esclarecido graças a um
meira mandioca nasceu do túmulo de uma criança concebida por uma vir- mito kayuá (M62), que indica que o jacaré é o dono da água e que tem por
gem (Couto de Magalhães 1876: 167).27 De modo que parece que os Tupinam- missão evitar que a terra fique seca;"Jacaré é capitão da água, para não secar
bá diferiam dos Guarani e da maior parte dos outros Tupi do mesmo modo todo o mundo" (Schaden 1947: 113)·28
que os outros [ê diferem dos Apinayé, isto é, situando o problema da vida Além disso, o herói dos dois mitos se afirma como enganador, no início
breve numa perspectiva sociológica e não cultural. (onde o contraste é maior entre as versões kayapó e xerente: ovos jogados que
se transformam em pedras, e pedras jogadas que se transformam em ovos,
respectivamente) ou no final: o desaninhador de pássaros bororo engana os

28. A respeito do par jaguar-jacaré (dona do fogo, dono da água), notamos que os.tupi-
27 . O esquema existe na América tropical, entre os Kaingang (vítima cujo cadáver, nólogos compararam o nome tupi do jaguar, iagua, à palavra jacaré, ~ue pode~la ser
arrastado pelas plantações, dá origem ao milho; Barba 1908: 23); na Guiana (plantas cul- decomposta em iaguaré, "o outro tipo de jaguar". Não sabemos qual e a opm.lao dos
tivadas, transpiradas, excretadas ou procriadas por uma velha); entre os Bororo e entre filólogos acerca dessa etimologia. Mas é interessante notar que ela fOIafastada, Imedia-
os Pareci (plantas cultivadas, nascidas de cinzas de jovens, incestuosos ou não, que mor- tamente após ter sido formulada, pelo simples motivo de que não existma nenhuma
rem numa fogueira). equivalência concebível entre as duas espécies (Chermont de Miranda 1942: 73-74)·

222 I Terceira parte Cantata da sarigüê I 223


se,us por muito tempo, na forma de um lagarto; seu homólogo xerente tarn- abraço de suas patas dianteiras, o outro pela mordida de seus caninos. Conta-
bem os engana, dizendo que a carne cozida do jaguar ficou apenas exposta ao . . . lm en t e ve nce o tamanduá " mas na flo-
se que no cerrado o Jaguar invanave
sol. Em ambos os casos, ele age com uma desconfiança injustificada.
resta é o contrário, o tamanduá se levanta apoiando-se num tronco de arvore
Esse excesso corresponde a um outro traço próprio dos dois mitos. Não
com seu rabo e sufoca o jaguar entre seus braços. .
se trata, como na versão apinayé, de uma vida humana cuja duração será
Cada um dos animais afirma, pois, que consome o mais "forte" dos ali-
doravante limitada, mas de morte seguida de ressurreição. O motivo aparece
mentos; e, para decidir o conflito, resolvem defecar de olhos fechados e de-
duas vezes no rrnto bororo, em que o herói se trai por ocasião de uma "festa
pois comparam os excrementos. O tamanduá finge que tem dificuldades e
dos ancestrais" e depois consegue voltar ileso de sua expedição ao reino das
aproveita o atraso para trocar sub-repticiarnente seus excrementos pelos do
almas. O mito xerente, por sua vez, sugere qut:, se o herói ficou por muito
jaguar. Segue-se uma briga, na qual o tamanduá arranca os olhos do jaguar.
tem~~ escond.ido dos seus, é porque morreu. Com efeito, ele só reaparece por Ou, então, conta-se às vezes:
ocasiao dos ntos funerários aikm an, que são celebra-dos em homenagem a
defuntos ilustres (cf p.102). Por pouco que se recorra'âos textos, poder-se-á, M1l9 KAYUÁ: os OLHOS DO JAGUAR
portanto, dizer que o herói medroso obtém para os homens uma vida limi-
tada, ao passo que o herói atrevido lhes traz urna promessa de ressurreição. A cigarra conta ao jaguar que o sapo e o coelho lhe roubaram o fogo enquanto ela
Essa oposição, entre vida prolongada e vida abreviada, de um lado, morte e caçava e que o levaram para o outro lado do rio. O jaguar chora; aparece um tarnan-
ressurreição, do outro, parece ser isomorfa à que se percebe entre mitos que duá, e o jaguar lhe propõe um concurso de excrementos. Mas tamanduá faz uma
são apenas mitos de origem da culinária (= fogo) ou das plantas cultivadas substituição: ele pega os excrementos que contêm carne crua e convence o jaguar de
(= água), e mitos que são, de forma solidária, de origem do fogo e da água. que os seus são os que consistem apenas em formigas.
Para se vingar, o jaguar convida o tamanduá a fazer malabarismos com os olhos
fora das órbitas. Os do tamanduá voltam para o lugar, mas os do jaguar ficam presos
no alto de uma árvore. Ele fica cego.
Comecemos estabelecendo, por meio de um lema, que existe de fato no pen- A pedido do tamanduá, o macuco faz para o jaguar olhos de água. que lhe permi-
samento indígena uma relação tal que:
tirão ver no escuro.
Desde então, o jaguar só sai à noite; perdeu o fogo; e come carne crua. Ele nunca
fogo = água (-1)
ataca o rnacuco [versão apapocuva: o inharnbu, também um tinamideo] (Schaden
1947: 110-11 e 121-22).
Um dos mitos sul-americanos mais difundidos, que está bem documentado
entre os [ê, tem por tema um desafio entre os gêmeos míticos Sol e Lua ou o Essa versão é particularmente instrutiva, pois associa a rivalidade entre o
tamanduá e o jaguar, a respeito de seus respectivos regimes alimentares. jaguar e o tamanduá ao tema do jaguar dono do fogo que, desde o início
Dependendo das versões, esses regimes consistem respectivamente em frutos deste trabalho, serve de fio condutor para nossas investigações. De acordo
maduros e frutos verdes, em carne (alimento cru) e em formigas (alimento com o informante de Schaden, essa ligação é ainda mais forte do que parece
podre, cf M89 e MS4 em razão da transformação sarigüê -7 formigas; supra, p. de imediato, pois, se o jaguar tivesse recuperado o fogo roubado pelos ani-
206), em alimento animal e alimento vegetal etc.:
mais, ele o teria utilizado para incendiar a terra. A perda, por parte do jaguar,
de seus olhos originais ("onde brilhava o reflexo do fogo", M») garante defi-
(Sol : Lua; tarnanduã :jaguar) :: (podre: cru; maduro: verde; vegetal: animal. .)
nitivamente a humanidade contra esse perigo; a partir de então, até os olhos
do jaguar são "pura água" ...
A não ser por essa diferença, o tamanduá-bandeira e o jaguar poderiam ser
Como, então, deve ser interpretada a conexão entre o jogo dos excrernen-
declarados llltercambiáveis_ O folclore brasileiro é rico em relatos que colo-
tos e o jogo dos olhos? Dissemos que, a não ser por seus regimes alimentares
cam em pé de igualdade os dois animais mais fortes do "sertão": um pelo
antitéticos, o jaguar e o tamanduá são permutáveis. Ora, em matéria de pcr-

224 I Terceira parte


mutabilidade, os excrementos e os olhos estão em antítese, digamos, anatõ- Já lembramos que os Bororo e os Xerente se opõem pela organização
mica: os excrementos constituem uma parte do corpo eminentemente per- social. Mas, para dar conta dessa inversão de seus mitos de origem do fogo e
mutável,já que só existem para deixá-Ia, ao passo que os olhos são irrernoví- da água, é mais conveniente referirmo-nos a outros aspectos da cultura dos
veis. O mito coloca pois simultaneamente: dois grupos. Diferentemente das tribos jê, os Bororo não viviam exclusiva-
mente no planalto ou nos vales que o cortam. Habitavam sobretudo a sua
a) fogo = água (-li borda ocidental e sua base, nas terras baixas que se inclinam para o sudoeste,
b) jaguar = tamanduá (-1) para logo submergirem sob as águas de um dos maiores pântanos do mundo,
c) excrementos = olhos (-1) o Pantanal. Em conseqüência disso, seu modo de vida tornou-se meio terres-
•.. tre e meio aquático. A água é para eles um elemento familiar, e eles até acre-
Se os excrementos são intercambiáveis, mas os olhosnão, ~sulta que a troca dos ditam que, mascando determinadas folhas, podem mergulhar durante várias
olhos (ao contrário da troca dos excrementos) não pode consistir numa mu- horas para pescar (Von den Steinen 1940: 452). Esse modo de vida acompa-
dança de proprietário, com as partes do corpo ma-ntendo-se idênticas, mas nu- nha crenças religiosas em que a água também ocupa um lugar importante.
ma mudança de partes do corpo, com o proprietário mantendo-se idêntico. Em Os Bororo praticam a dupla inumação. O primeiro enterro sumário ocorre
outras palavras, num caso o jaguar e o tarnanduá trocam excrementos entre si; na praça da aldeia, onde, durante várias semanas, os parentes do morto cho-
no outro, o jaguar troca consigo mesmo os próprios olhos, perdendo seus olhos ram copiosamente sobre o cadáver para acelerar a decomposição. Quando
de fogo, que condiziam com sua natureza.de dono do fogo; e, como perdeu o ela já está suficientemente avançada, a tumba é aberta, e o esqueleto lavado
fogo, tem seus olhos substituídos por olhos de água, que é o contrário do fogo. até que fique limpo de toda a carne. Os ossos, pintados de vermelho e enfei-
O fato de, em outras versões do mesmo mito, os olhos do jaguar serem fei- tados com mosaicos de penas coladas com resina, são colocados num cesto e
tos de resina e não de água, apenas dá continuidade à equação da página 224: solenemente imersos no fundo de um rio ou de um lago, "moradas das
almas". A água e a morte sempre são, portanto, associadas pelo pensamento
:: (...vegetal : animal; água: fogo). indígena. Para obter uma, é preciso suportar a outra. É exatamente isso o que,
a seu modo, o mito bororo do desaninhador de pássaros afirma.
Não parece que os Xerente, habitantes do vale do Tocantins, estejam espe-
cialmente sujeitos aos riscos da seca. Apesar disso, esse temor os obceca a um
Reencontramos, portanto, através desse lema, a inversão do fogo e da água ponto em nenhum outro lugar igualado. Seu maior medo é que o sol, irri-
que nos parecera caracterizar a oposição entre o mito bororo (MI) e o mito tado, seque e consuma a terra. Para aplacar o astro, os homens adultos se sub-
xerente (M!2). Um aniquila o fogo e cria a água, o outro aniquila a água e cria metiam antigamente a um longo jejum, que durava várias semanas, e termi-
o fogo. Mas essas águas não são de mesma natureza: celeste, maléfica e exte- nava com um ritual complicado ~ cujos detalhes voltaremos (p. 331-SS).
riorizada (tempestade), em Mi; terrestre, benéfica e inte!iorizada (água potá- Fixemos aqui apenas que, para o pensamento xerente, a humanidade vive
vel), em M12. Finalmente, em cada uma das estruturas, a morte não se intro- sob a ameaça de uma conflagração universal. A essa crença num fogo que é a
duz do mesmo modo: causa principal da morte corresponde um mito que, como vimos, afirma que
é preciso passar pela morte para obter o fogo.
M, : ÁGUA FOGO É unicamente levando em conta todos esses fatores, ecológicos e religio-

}l
obtida retirado sos, que se pode compreender a inversão dos mitos bororo e xerente. Os Bo-
(morte) (morte) roro vivem (e principalmente pensam) sob o signo da água; para eles, ela
M12: retirada '" obtido conota a morte, e muitos de seus mitos - em que as plantas cultivadas, ou
outros bens culturais, surgem das cinzas de heróis que morrem, às vezes
Em outras palavras, a morte do herói bororo é a condição da água obtida, e o voluntariamente, em fogueiras (cf., por exemplo, M20, M27; e Colb. & Albisetti
fogo obtido tem por conseqüência a morte do herói xerente. 1942: 199,213-14) - comprovam que existe para eles uma conexão entre o

226 I Terceira parte Cantata do sarigüê I 227


fogo e a vida. Para os Xerente, é o inverso: eles pensam em termos de seca, isto Não basta dizer que, para os Bororo. a água é a causa final da morte, a~
é, de água negativada. Em seus mitos, e com muito mais força do que alhures, passo que, para os Xerente, o fogo é sua causa eficiente. Essa diferença e
o fogo conota a morte; e eles lhe opõem uma água, não letal (nos ritos do acompanhada de uma outra, que se manifesta na série paralela dos mitos de
longo jejum, água parada é oferecida aos participantes apenas para que eles a origem das plantas cultivadas. Os Xerente dissociam completamente essa
recusem), mas vivificante. E, no entanto, toda a água do mundo mal basta origem da do fogo. Contrariamente aos outros [ê, inserem o mito das plan-
para refrescar um sedento. tas cultivadas no ciclo cosmogônico das aventuras terrestres dos dois heróis
Para confirmar essa oposição, note-se que os Bororo, assim como seus culturais, Sol e Lua (M10S). Inversamente, para os Bororo a origem das plan-
vizinhos Bakairi, possuem também um mito do fogo.destruidor. Mas, signi- tas cultivadas é tema de relatos legendários mais do que de míticos. Para eles,
ficativamente, este aparece na forma derivada, como uma conseqüência da trata-se menos de explicar a origem da agricultura como arte da civilização
perda da água; e seu perigo é facilmente afastado: do que de legitimar a posse, a título de epônimo, de uma determinada planta
e até de uma determinada variedade da mesma espécie, por diferentes clãs.
M120 BORORO: o FOGO DESTRUIDOR Esses privilégios remontam ao sacrifício de heróis clânicos que se submete-

Antigamente Sol e Lua moravam na terra. Um dia, eles ficaram com sede e foram visi-
. ram voluntariamente à morte na fogueira (fogo destruidor
nha). Em todos os aspectos, portanto, as mitologias
•.•fogo de
bororo e xerente relati-
COZI-

tar os pássaros aquáticos, que guardavam a água em grandes e pesados potes. vas à passagem da natureza à cultura ocupam posições extremas, ao passo
Desobedecendo aos pássaros, Sol quis levantar um pote até a boca. Mas o pote que a mitologia dos outros [ê se desenvolve na zona intermediár:a. Bororo e
escorrega, quebra e a água derrama. Os pássaros ficam bravos, Sol e Lua fogem, os Xerente associam fogo e água, atribuindo-lhes funções opostas: agua > fogo
4
pássaros os alcançam na cabana em que eles se refugiaram. / fogo> água; água exteriorizada/água interiorizada; água celeste e maléfica
Agora, Sol ficou quente demais. Incomodados pela sua presença, os pássaros agi- /água terrestre e benéfica; fogo culinário/pira funerária etc.; e os grandes
tam seus aba nos de palha, produzindo um vento cada vez mais forte, que levanta Sol acontecimentos, aos quais uns e outros se referem, estão situados, ora num
e Luae faz com que subam ao céu, de onde eles não irão mais descer (Colb.& Albisetti plano sociológico e lendário, ora num plano cosmológico e mít~co. Fi~al-
'942: 237-38; versão bakairi (MuoA),in Von den Steinen '940: 482-83). mente, os Bororo e os Xerente acentuam igualmente a ressurrciçao e nao a
vida abreviada.
Outros mitos relativos a Sol e Lua mostram-nos destruindo o fogo com água Como vimos alhures, os outros [ê dissociam a origem da culinária (ligada
ou (Mra i) urinando sobre o fogo das lontras (Colb. & Albisetti 1942: 233), ou ao fogo) da das plantas cultivadas (ligada à água); os dois temas são tratad~s
(M122) enchendo de água o dos homens (id. ibid.: 231). Conseqüentemente, paralelamente e de modo independente, em vez de formarem um par assime-
aqui também se afirma o primado da água sobre o fogo. 29 trico no seio de uma mesma série mítica. Além disso, eles associam as plan-
tas cultivadas ao podre e não ao queimado, como os Bororo. ou ao fresco,
como os Xerente.
29 . Em toda uma série de mitos bororo sobre a origem do fogo, ele é apagado pela Todas essas relações podem ser ilustradas por um diagrama (fig. 8).
chuva (Mi), pela água derramada (M122) , pela urina (MI2l). No grupo sobre a origem
das plantas cultivadas, o mito xerente (Mies) faz germinar a mandioca das gotas de leite
espalhadas pelas mães. Tem-se a transformação:

(Sériefogo) [ 1 (Série plantas) [ 1


urina -7 fogo (-) ~ leite -7 plantas (+)
preá). Mas ele derruba o fogo, e todo o mundo arde em chamas. Terra consegue, con-
É interessante notar que um mito mexicano da região de Nayarit (M123) fornece a trans- tudo, apagar o fogo com o seu leite (Preuss 1912, v. 1: 169-81). .
formação inversa, permitindo voltar ao primeiro termo partindo do segundo: o iguana Já notamos (p.167,n.1S) que os Cuna do Panamá invertem, como os Bororo, a ongern
leva o fogo para o céu, o corvo e o colibri não conseguem recuperã-lo. O sarigüê con- do fogo em origem da água, quer se trate da chuva que apaga todas as foguelTas menos
segue, fingindo que quer apenas se aquecer (volta a M,6 pela transformação sarigüê ~ uma (comp. MI, M61) ou da urina que apaga uma única fogueira (comp. Ml2l, M61).

Contato do sorigüê I 229


228 I Terceira parte

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[8J Integração dos mitos bororo e dos mitos jê relativos à origem do fogo ou das plantas
cultivadas.

MORTE

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