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Cantata do sarigüê
o o
O sarigiiê, animal pouca conhecido entre nós,
Mas cujos cuidados camoventes e ternos,
Cujo carinho materno,
Serão de algum interesse para vós.
[FLORIAN,Fábulas,Livro 1I,I)
A) RECITATlVO DO SARIGÜÊ
vítima de um estupro coletivo, e pune os culpados cuspindo sua saliva mortífera em tem o milho. Em seguida, os povos se dispersaram (Métraux 1960: 17-18).
suas bocas. Depois, ela volta para o céu (Schultz 1950: 75-86).
Como os Kayapó, os Xerente dissociam os dois mitos, mas, como é de se pre-
ver numa sociedade claramente patrilinear, invertem a valência semântica do
Os Kayapó (Gorotire e Kubenkranken) parecem dissociar o mito da mulher-
céu feminino (aqui, canibal), sem modificar o sentido da oposição sexual
estrela, doadora ou não das plantas cultivadas, de um outro mito relativo à
revelação dessas plantas por um animal pequeno. Somente o segundo desses entre alto e baixo:
mitos é conhecido entre os Gorotire:
M93 XERENTE: o PLANETA JúPlTER
res podres, uma mulher que tomava banho soube por um ratinho da existência do irmãos a descobrem, Irritada, Estrela carrega o marido para o céu: tudo lá é diferente,
milho, que crescia numa árvore enorme, onde as araras e os macacos brigavam pelos Para onde quer que olhe, o rapaz só vê carne humana defumada ou assada; a água
grãos. O tronco era tão grosso que foi preciso ir à aldeia pegar mais um machado. No em que se banha está cheia de cadáveres mutilados e carcaças estripadas. Ele foge
caminho, os meninos mataram e comeram uma mucura e se transformaram em escorregando pelo tronco da bacaba que permitira sua ascensão e, voltando para
velhos Os feiticeiros se esforçaram por devolver-Ihes a juventude, mas não consegui- junto dos seus, conta sua aventura, Mas ele não sobreviveria por muito tempo
ram. Desde então, a carne de mucura é absolutamente ~roibida. Quando morreu, sua alma retornou ao céu, onde virou urna estrela (Nim. 1944: 184),
portante nos mitos bororo e ofaié, não estaria em c~rrela~o ou em oposição do sarigüê é bifurcado, donde a crença, confirmada em relação a toda a Amé-
com o sarigüê. Se os mitos raramente fazem menção ao sarigüê, isso pode- rica do Norte, de que esse animal copula pelas narinas e que a fêmea espirra
os filhotes para dentro da bolsa marsupial (Hartmann: 321-23).14
ria ser atribuído ao fato de certas tribos classificarem-no com outros ani-
mais: pequenos marsupiais, roedores ou canideos. Notamos de passagem o parentesco desse mito com o grupo jê da esposa
celeste de um mortal. Nesse grupo, Estrela é uma sarigüéia, que é violentada
Igualmente desconcertante é a ausêr cia quase completa de referência
mítica à bolsa marsupial, exceto pelo breve episódio do mito de origem apa-
pelos cunhados; aqui, a filha da árvore Poraqueiba (cujo fruto caiu l= desce~l
à terra, assim como a estrela desceu à terra, inicialmente na forma de uma ra)
pocuva de que trataremos adiante (p. 2151. Com efeito, os temas de inspira-
é violentada pelo cunhado, que é um sarigüê. Dos [ê aos Tukuna, a função sari-
ção, digamos, marsupial, são freqüentes, e já insistimos várias vezes num
güê é, portanto, invertida, e é interessante notar que, ao mesmo tempo, o dom
deles: o da amante (ou mãe) da cobra, cujo amante ou filho ofídio vive em
seu ventre, de onde sai e entra à vontade. das plantas cultivadas passa, entre os Tukuna, do sarigüê para as ~ormlgas (M54;
Nim.1952: 130). Interpretaremos mais adiante essa transformaçao (pp, 213-5S).
O sarigüé, chamado "rnucura" no norte do Brasil, "timbu" no nordeste,
Fica claro que o mito tukuna retoma, num outro contexto, um incidente
"sarigüê" no sul, e "comadreja" na Argentina, é o maior marsupial sul-ameri-
de um dos mais célebres mitos (M96) dos Tupi antigos e modernos, de que
cano, o único a apresentar algum valor alimentício. São de menor importân-
Thevet colheu uma versão, no século XVI: a mulher do deus civilizador Maire
cia o sarigüê-d'água ("cuíca-d'água": Chironectes minimus), o sarigüê de
Ate, grávida, viajava sozinha, e o filho que trazia no ventre conversava com
pêlo ("Mucura chichica": Caluromys philonder) e espécies anãs do tamanho
de um rato ("catita": Marmosa pusilla, Peramys domestica) (Gunther: 168,
389; Gilmore 1950: 364; lhering 1940, art. "Quica"). O sarigüê propriamente ;-~".O enganador dos Mataco possui um pênis duplo (Mé'traux J939:33) e seu homólogo
dito mede de setenta a noventa centímetros de comprimento. O mesmo toba é uma "raposa". .._
termo designa quatro espécies brasileiras: Didelphys aurita (do norte do Rio Essas crenças americanas suscitam um problema de mitologia comparada. S~o
Grande do Sul ao Amazonas); D. paraguayensis (Rio Grande do Sul); D. albi- encontradas também no Velho Mundo (onde não há marsupiais), mas aplicadas as
ventris (Brasil Central) (lhering op.cit., art, "Gambá"). O sarigüê aparece em daninhas. Galanthis foi transformada em daninha por Lucina como castigo por ter aju-
dado Alcmena a dar à luz e condenada a partir de então a dar à luz pela boca, de onde
vários tipos de relato que seríamos tentados, à primeira vista, a distinguir em
tinha saído a mentira que enganara a deusa (Ovídio, Metamo/fases, L. [X, v.297-ss). De
mitos de origem, de. um lado, e contos divertidos do outro. Examinemo-Ios
fato acreditava-se que as doninhas davam à luz pela boca (Plutarco, lsis e Osíris, §
sucessivamente.
XX~IX); além disso, comparavam-se as más esposas a daninhas (Gubernatis 1872,v.2:
Os personagens mais importantes da mitologia dos Tukuna são dois gê- 53). O Novo Mundo, que conhece as daninhas, Ihes atribui em compensação um papel
meos chamados Dyai e Epi. Ao primeiro se deve a criação da humanidade, de facilitar o parto, devido à facilidade com que esses animais escorregam para fora das
das artes, das leis e dos costumes. O segundo é um enganador, mexeriqueiro tocas (Lévi-Strauss 1962a:82-83). Finalmente, uma versão bororo do mito dos gêmeos
e descarado; quando quer assumir uma forma animal, transforma-se facil- (M46),paralela ao mito tupi de que trataremos, menciona um mustelídeo. (português,
"irara": Tayra sp.) num papel que evoca o que os Tupi destinam ao sangue (Colb. 1919:
mente em sarigüê. É ele (M95) que descobre, dentro da flauta onde Dyai a
114-15;1925:179-80).
208 I Terceiraparte
pois é um animal que hiberna; ora descrevem-na como um animal que se ali- Ora, vimos que, segundo os Creek, a cauda do sarigüê fica pelada ou por
menta de fungos e madeira decomposta (Mioi; cf. também M82;e para a mes- ação do fogo ou da água. Em outras palavras, num caso ela é queimada; no
ma crença entre os Urubu, Huxley 1956:149).A tartaruga é, portanto, dupla- outro, apodrecida. E não existem de fato dois modos de feder, por exposição
mente dona da podridão: porque é imputrescívele porque é "come-podre". O prolongada ao fogo ou à água?
jacaré também consome carnes putrefatas (MIOl),mas apenas na água, onde Certos mitos do sudoeste dos Estados Unidos associam intimamente o
a podridão não exala seu fedor (cf. Mn: é quando saem da água que os espí- sarigüê e o cangambá ("skunk": Mephitis rnephitica, suffocans). Os Hitchiti
ritos aquáticos começam a feder). Enfim, sabemos que o jaguar se define por contam que o segundo salvou o primeiro dos lobos, cobrindo-os com o seu
referência ao eixo que une o cru e o cozido, excluindo assim o podre. fluido empesteado (Swanton 1929:158).Os lobos têm, nesse mito, um papel
Em todos os nossos mitos, a oposição pertinente é entre fedorento e não- paralelo ao dos jaguares em MIOI;é notável que, no sudoeste dos Estados
fedorento, putrescível e imputrescível, eis o que se desprende"- claramente da Unidos, a transferência ao cangambá de uma função alhures preenchida pela
recorrência do mesmo detalhe, formulado em termos muitas vezes idênticos, tartaruga seja acompanhada de uma subversão das relações entre o sarigüê, a
quaisquer que sejam os adversários da tartaruga e apesSlrdo distanciamento tartaruga e o jaguar: a tartaruga ajuda o sarigüê, devolvendo-lhe seus filhotes
das populações de onde provêm esses mitos. Quando a tartaruga já não obtém perdidos e fabricando a bolsa marsupial que irá permitir que ele os guarde
resposta do rival, ela abre o buraco e encontra no lugar do jaguar ou do jacaré, melhor (loc.cit.: 199-200); o sarigüê ajuda o puma na caça, convencendo os
"um enxame de moscas sobrevoando os restos" (Mico, Mioi ), ou, no lugar do veados de que a fera está morta, reduzida a uma carcaça da qual eles podem
sarigüê, "uma multidão de moscas" (Arnazônj a; Hartt 1952:28; Tastevin 1910: se aproximar sem medo; o puma aproveita a ocasião para matá-los (loc.cit.:
283-86), "muitas moscas" (rio Juruá; Hartt op.cit.: 62), "moscas, os únicos 200). Apesar da distância geográfica, estamos sem dúvida lidando com mitos
seres vivos sobre o cadáver do sarigüê" (Warrau, Karib; Roth 1915;223).17 pertencentes ao mesmo grupo.
Voltemos agora ao episódio final dos contos do grupo "o sarigüê e seus Ora, os Cherokee têm um mito que explica o fedor do cangambá. Para
genros" (cf.p. 206). Uma versão amazônica termina com a desventura do sari- puni-Ia por ser um ladrão, os outros animais lançaram-no ao fogo; desde
güê, salvo depois de ter sido engolido por um tucunaré (Chichla ocellaris): então, ele ficou preto e com cheiro de queimado (Mooney 1898: 277). Por
desde então "ele ficou com o rabo feio e fedorento [...] devido ao calor da bar- conseguinte, tanto na América do Norte como na América do Sul, os cheiros
riga do peixe" (Barbosa Rodrigues 1890: 191-94).Lembramos que a mesma de queimado e de podre formam um par: são dois modos do mau cheiro. Ora
palavra portuguesa "feio" serve para fundamentar a interdição de comer esse par corresponde ao do cangambá e do sarigüê, ora o sarigüê é o único
carne de sarigüê, num dos mitos kubenkranken de origem das plantas culti- encarregado de exprimir uma ou outra modalidade.
vadas (Msa). As versões mundurucu e vapidiana de "sarigüê e seus genros", Podemos concluir de nossa análise que a função semântica do sarigüê é
entretanto, terminam com um episódio no qual o sarigüê queima a cauda de significar o mau cheiro. Os Catawba, que viviam nos Estados da Carolina
(mundurucu) ou cai no fogo (vapidiana). O mesmo acontece numa outra do Norte e do Sul, designam o opossum por um termo cujo sentido aproxi-
versão amazônica (id.ibid.: 173-77).18 mado é "o babão" (Speck 1934:7). Para os Taulipang, da Guiana, o sarigüê é
um animal fecal (K.G.1916:141).Num mito amazônico de origem indeterrni-
17' Mesmo detalhe num conto apinayé em que o tatu faz o papel de vítima (C. E. de Oli- nada (Mica), uma jovem escapa das investidas amorosas do sarigüê porque
veira 1930: 97). A permutação do tatu e do sarigüê também é comprovada, entre os reconhece o animal pelo mau cheiro que exala (Couto de Magalhães 1876:
Kayapó, pela transferência, ao tatu O' oimbre, de uma certa falta de jeito do sogro Sarigüê 253-57;Cavalcanti 1883:161-77).Um outro mito da mesma região (Mies), que,
no ciclo "sarigüê e seus genros". Comparar Murphy 1958: 119 (Mundurucu), e Métraux em termos razoavelmente obscuros, associa o sarigüê ao envelhecimento, isto
1960: 30 (Kayapó-Kubenkranken). Mas é porque, entre os Tê, o sarigüê é chamado a
é, à vida breve, descreve a.cabana de três velhas transformadas em sarigüéias
cumprir outras funções, mais nobres.
18· E também, como nota Barbosa Rodrigues, no Popol Vuh (cf. Raynaud 1925: 49). Evi-
tamos intencionalmente utilizar os mitos das altas civilizações da América Central e que, em vários aspectos, eles têm um lugar em vários dos grupos que constituímos.
do México, que, por terem sido transcritos por letrados, exigiriam uma longa análise Sobre a posição do sarigüê no México antigo, cf. Sahagún, L. VI, capo 28, e xr, capo 4, § 4,
sintagrnática antes de qualquer emprego paradigmático. Mas não deixamos de notar e Seler 1961, V. 4: 506-13.
2~ I Terceira parte
Contato da sarigüê I 211
em que não se conseguia entrar "porque catingava demais" (Amorim 1926: da sarigüéia, para tingi-Ios de amarelo. Transformou o rosto da mulher num focinho
450). Os Kayuá do Brasil meridional contam como o sarigüê venceu o ca- colando um broto de palmeira.
chorro na corrida regando-o com urina (Schaden 1947: 117).19 O sarigüê, co- O urubu disse à mulher que ela só geraria carrapatos e que aqueles que não fos-
mo vimos, é diversamente descrito nos mitos como "animal podre", "cauda sem comidos pelo anu mais tarde se transformariam em sarigüês. O sarigüê só come
podre", "cauda queimada". O mito tupinambã dos gêmeos (M96), a que já nos cérebros e ovos de pássaros. Dorme de dia e caça de noite ...(Hissink-Hahn 1961: 116-17)·
referimos, acentua propositalmente esse aspecto. Depois de ter abusado da
mulher de Maire Ata, o sedutor "foi transformado num bicho, que leva o Assim, compreende-se que os mitos jê possam atribuir a origem da vida
nome do homem mudado, a saber Sarigoys, aquéle que tem a pele muito breve a uma resposta dada ao chamado da madeira podre (M9) ou à inalação
fedorenta ..." (Thevet 1575 apud Métraux 1928: 236). Não menos do que os de um cheiro de podre, emanado dos espíritos aquáticos (M73), ou à ingestão
índios, os viajantes ficaram impressionados com esse detalhe: "o opossum da carne de sarigüê (Ms7, Mse, M9o, M92). É a mesma coisa: putrefação rece-
espalha um odor fedorento", nota a Enciclopedia.tu: Di~rot e D'Alembert bida pela audição, pelo olfato ou pelo paladar. Quanto a essa primeira ques-
(art. "Philandre"), Observadores mais recentes também acentuam que o sari- tão, nossas interpretações já estão validadas.
güê "emite um cheiro deletério" (Gunther: 168), "extremamente repugnante" Subsiste, contudo, uma dificuldade. Por que, nos mitos jê de origem das
(Tastevin 1910: 276); "Suas glândulas secretam um cheiro bastante desagradá- plantas cultivadas, a mulher-estrela deve se transformar em sarigüéia para
vel" (Ihering op.cit., art. "Garnbá"): "ele espalha um cheiro horrível", e daí o revelar aos homens a existência do milho? Notemos, antes de mais nada, que
nome - formado a partir do seu - dado ao arão aquático, que fede (Ahl- nem sempre esse motivo aparece. Mas, onde falta, é substituído por outros: a
brinck 1931, art. "aware"), •• mulher-estrela cospe o milho no rosto do marido (Mes) ou na boca dele (Ms7.);
Um mito boliviano reúne de modo convincente todas as afinidades do é, portanto, uma "babona", como o opossum catawba; ela sangra depois de
sarigüê, segundo a filosofia natural dos índios sul-americanos: ter sido violentada e se torna assassina (MS9); após ter sido violentada, ela
mata os cunhados cuspindo na boca deles (MS9). Ela sempre é sujeira, ora sob
MI0S TACANA: ORIGEM DO SARIGÜÊ a forma de um animal cuja pele exala um fluido fedorento; ora sob a forma de
criatura humana, ao mesmo tempo agente e paciente do ato de sujar. Um mito
Havia uma mulher que aproveitava enquanto o tapir dormia para pegar os carrapa- do mesmo grupo, proveniente dos Aguaruna do alto Maranhão (Mies), conta
tos que lhe cobriam o corpo. A mulher embrulhava os carrapatos numa folha, cozi- que a mulher-estrela transformou sua urina em alimento (Guallart 1958: 68).
nhava-os numa panela e os comia [cf. M se). Tendo isolado esse traço invariante, podemos colocar em evidência a
O anu (Crotophaga anil, que costumava se alimentar dos bichos do tapir, quei- estrutura comum dos mitos de origem em que o sarigüê intervém, isto é, de
xou-se ao urubu dessa concorrência desleal. E o urubu prometeu vingá-Ia transfor- um lado, o conjunto tupi-tukuna, e do outro, o conjunto jê. Em ambos, os
mando a mulher em sarigüéia. protagopistas são os mesmos: uma mulher, seu marido e o ou os irmãos (às
O urubu sobrevoou a mulher e cobriu-a de excrementos, tanto que ela andava vezes "falso irmão") deste. Essa configuração de aliança é simétrica à que
curvada e com dificuldade. Então o urubu jogou-a no chão, arrancou-lhe os cabelos e encontramos subjacente aos mitos de origem dos porcos-da-mato, que con-
colou-os em todo o corpo com seus dejetos. A mesma cola ele utilizou para fixar o sistia em um homem, sua irmã ou suas irmãs e os maridos delas:
rabo de uma cobra nova ao traseiro da infeliz; ela foi diminuindo de estatura e ficou
do tamanho de um sarigüê. O urubu pegou uma raiz, mastigou-a e cuspiu nos pêlos
I I I
0="" c: "" = o
19' Esse mito do Brasil meridional encontra sua ilustração numa dança ritual dos Tirn-
bira orientais. em que o cangambá (em vez do sarigüê) é representado por um dança-
É notável que entre os [ê, essas duas estruturas correspondarn, uma (1) a um
rino carregando uma cabaça cheia de água. com que molha os cães que o perseguem.
representados por mulheres. Elas fogem gritando. como os cães atingidos pelo fluido do mito de origem de /plantas!cultivadas/. e a outra (2) a um mito de origem de
cangambá (Nim.1946b: 230). /animais/selvagensl.
I
No conjunto rupi-tukuna, entretanto, o papel do sarigüê é desempenhado (Wassen 1933:131).A podridão vegetal conota, portanto, a atividade sexual nor-
pelo irmão do marido, estuprador de sua cunhada, ao passo que no conjunto mal (= conjugal) da mulher, a castidade normal (= pueril) do homem. E a
jê é desempenhado por ela. Mas, em cada caso, o alimento é qualificado de podridão animal, a atividade sexual anormal (= estupro) do homem e a casti-
um modo. dade anormal (= conjugal) da mulher.
A esposa tukuna (M95) é um fruto caído, transformado em mulher. Uma Resolvido o problema da inversão do sarigüê (macho ou fêmea, estuprador
versão urubu (M95A) acrescenta que esse fruto que cai está cheio de bichos ou estuprada), pode-se ver o que suas personificações têm em comum nos dois
(Huxley 1956: 192).20Portanto, a mulher divina represerxa aqui a podridão ve- conjuntos, tupi e jê. Nos mitos tupi, o sarigüê é um macho que abusa de uma
getal, menos intensamente marcada do que a podridão animal, o que acarreta humana, já mãe, dando-lhe um filho. Nos mitos jê, é uma sarigüéia, não mãe
uma dupla transformação. Em primeiro lugar, a distância inicial que a separa (já que virgem, embora casada), de que os humanos abusam e que lhes presen-
dos homens é diminuída, já que ela cai de uma árvore cO,mo Uin fruto, em vez teia os alimentos. A heroína tupi é uma mãe que se recusa a ser nutriz (ela mal-
de descer do céu como estrela. Em segundo, sua função sarigüê, metonímica trata o filho ainda em seu ventre). A heroína jê é uma nutriz que se recusa a ser
no grupo jê (em que ela é o verdadeiro animal durante utna parte do relato), mãe. Isso ocorre em todas as versões jê, exceto a dos Xerente (M93), que, como
torna-se metafórica no grupo tupi: seu filho fala no ventre, como se já tivesse vimos, transforma as valências semânticas do céu e da terra: a mulher celeste é
nascido e utilizasse o ventre materno à guisa de ~olsa marsupial. Inversamente, qualificada negativamente, como filha de canibais, incapaz de salvar o marido.
a versão tukuna, em que este último motivo não aparece, realiza a transforma- Ao mesmo tempo (MI08), o papel de doadora das plantas cultivadas (neste
ção do cunhado estuprado r de sarigüê metafórjco (copulação pelas narinas, caso, a mandioca) passa para humanos - mulheres terrestres, portanto; e,
como o sarigüê) em sarigüê metonímico: quando ele enche o interior de seu além do mais, já mães e ansiosas por cumprirem seu dever de nutrizes. Preo-
prepúcio com uma pasta branca e grudenta, usa a presença desse "sebo" como cupadas por terem abandonado seus bebês muito tempo por causa das tarefas
argumento para afirmar que ainda não perdeu a virgindade. Ora, essa sujeira agrícolas, elas voltam das roças correndo tão depressa que o leite jorra dos
também é de origem vegetal, já que o enganador utiliza a polpa da fruta da pal- seios inchados. As gotas que caem no chão germinam na forma de pés de man-
meira paxiubinha (Iriartela sebigera Mart.). Acrescente-se que, nessa versão dioca, doce e brava (Nim. 1944: 182).21Em última análise, a contradição ex-
tukuna em que a função sarigüê é assumida pelo cunhado, o fruto cuja forma pressa pelo personagem do sarigüê se resolve num breve episódio do mito de
a esposa divina assume por um instante é o da árvore uma ri, cujo perfume é origem dos Apapocuva (MI09): após a morte prematura da mãe, o "mais velho"
mencionado por vários mitos amazônicos (Amorim 1926: 13,379), ao passo que dos gêmeos não sabe como alimentar o irmão mais novo, ainda lactente. Pede
o sarigüê cheira mal. Finalmente, e ainda na mesma versão, a mulh.er tem rela- ajuda a uma sarigüéia, e esta, antes de se tornar nutriz, lambe as mamas, para
ções sexuais com o marido - ao contrário do que ocorre nas versões jê -, tirar as secreções fétidas. Como recompensa, o deus lhe dá a bolsa marsupial e
sem dúvida a fim de salientar, como o faz um mito choco do mesmo grupo lhe promete que doravante ela parirá sem dor (Nim. 1914: 326).22 O mito apa-
(MI07), que o marido "precisa exclusivamente dela na qualidade de cozinheira"
Cantata do sariqúé I
214 I Terceira parte
215
pocuva realiza, portanto, a síntese das duas características do sarigüê, que o
transformou em pássaro noturno (Caprimulgus) de canto triste (Baldus 1950 19-21;
mito tupinarnbã, de um lado, e os mitos jê, do outro, apresentavam separada-
1958: 87; Botelho de Magalhães 1921: 274-76).
mente. Do primeiro, a sarigüéia apapocuva empresta o mau cheiro; dos últi-
mos, a função de nutriz. Mas a síntese só é possível porque a função aparen-
Em relação ao grupo jê, há várias mudanças notáveis. O herói velho ou feio,
temente ausente se manifesta de modo disfarçado em ambos os casos: entre
amante da solidão, torna-se uma jovem que tem parentes e conversa com
os Tupinambá, onde o sarigüê é homem, ele engravida uma mulher (é a
eles. O homem se apaixona imediatamente pela estrela; a mulher a deseja
maneira masculina de "nutri-Ia"); entre os [ê, onde a sarigüéia é uma mulher,
apenas como brinquedo. Em vez de o encontro acontecer no mato, ocorre
ela suja os homens que se nutrem dela (realmente, CfUando a comem; metafo-
dentro da casa. O herói jê se casa com a mulher-estrela, e seus irmãos abu-
ricamente, quando a violentam e ela sangra), transformando-os em velhos
sam dela. A heroína karajá rejeita o homem-estrela, e é a irmã que se casa
decrépitos ou cadáveres.
com ele. As plantas cultivadas ou são objetivamente reveladas por uma mu-
Um mito karajá permite fechar a transformação,Jllos.t?ando o que acon-
lher, na floresta, ou simbolicamente procriadas por um homem, na água.
tece quando a "nutriz" assume o sexo masculino, d~ixando de ser uma sari-
Sobretudo, a mulher-estrela jê transforma os humanos adolescentes em
güéia, mas mantendo a missão de introduzir as plantas cultivadas:
velhos. O homem-estrela karajá transforma a si mesmo de velho em jovem.
JJ Seu duplo personagem preserva, assim, a ambigüidade do sarigüê, Contudo,
Muo KARAJÁ: ORIGEM DAS PLANTAS CULTIVA.DAS ~~...? enquanto os mitos jê evocam uma situação real (a periodicidade da vida
humana) por intermédio de uma metáfora zoológica, o mito karajá descreve
Nos tempos antigos, os Karajá não sabiam limpar o mato. Elesse alimentavam de fru- uma situação irreal (o rejuvenescimento dos velhos), exprimindo-se, porém,
tos silvestres, peixe e carne de caça.
Uma noite, a mais velha de duas irmãs contemplava a estrela vespertina. Disse ao
no sentido próprio. d-;;5
Ao abordarmos o estudo da vida breve, havíamos formulado a hipótese ~
pai que gostaria de tê-Ia para brincar, e ele riu dela. Mas, no dia seguinte, a estrela (p, 184) de que, em todos os nossos mitos, a podridão era o simétrico e o in-
desceu, entrou na casa e pediu a moça em casamento. Era um velho curvado, enru- verso das plantas cultivadas. A "prova do sarigüê" acaba de confirmá-Ia, pois y
gado, de cabelos brancos; ela não o quis. Como ele chorava, a mais nova ficou com
tal é, efetivamente, a P?siçãO assumida por _ess: animal pútrido (e podre). ~\O .
pena e se casou com ele.
Incomestível, a não ser para os velhos que nao tem por que temer a corrup- ~l''' ti'
No dia seguinte, o homem foi falar com o rio e andou sobre a água. Entre suas
ção, pertencente ao reino animal e nãO,ao rei~o vegetal, ~ sarigüê p~rsonifica 1~~
pernas afastadas, ele pegou, enquanto a água corria, espigas de milho, brotos de
duplamente uma antiagricultura, que e tambem uma pre e uma pro-agncuJ- ty"
mandioca e grãos de todas as plantas que os Karajá cultivam atualmente. Depois ele tura. Pois nesse "mundo ao contrário" que era o estado de natureza antes do
foi para a floresta, proibindo a mulher de segui-Io. Ela desobedeceu, e viu o marido
nascimento da civilização, era preciso que todas as coisas futuras já tivessem
transformado num jovem muito bonito, enfeitado e coberto de pinturas corporais. A sua contrapartida, embora sob um aspecto negativo, que era como que o
mais velha reivindicou-o por marido, mas ele continuou fiel à mais nova; a outra se penhor de seu surgimento. Forma côncava da agricultura ausente, o sarigüê
ilustra-lhe a forma por vir, ao mesmo tempo em que pode ser, como contam
"sarigüê" em Montoya 1876). Desde esse dia, o sol demora a nascer sempre que uma os mitos, o instrumento graças ao qual os homens irão obtê-Ia. A introdução
paca caiu numa armadilha durante a noite (Cadogan 1959: 77-78, 86-87, 197, 202). da agricultura pelo sarigüê resulta, portanto, de uma transformação de um
Sob uma forma um pouco alterada, o episódio do mito apapocuva reaparece entre modo do ser em seu converso.P Uma oposição lógica se projeta no tempo
os Mundurucu:
MI09C MUNDURUCU' INFÂNCIA DE KARUSAKAIBE
23 . O solo do cerrado não é cultivável, apenas o da floresta. Ora, no mito karajá da
Uma mulher adúltera procurava livrar-se do filho bastardo de todas as formas: abandonava-o no origem da vida breve (M70) os homens se tornam mortais por terem respondido ao
chão ou num riacho; chegou ate a enterrá-Ia vivo. Mas a criança resistia a tudo. chamado da serierna, "ave do cerrado". E parece de fato que os mitos jê de origem das
Finalmente. uma sarigüéia recolheu-o e amamentou-o. É por isso que os sarigüês dão à luz plantas cultivadas (e da vida breve) distinguem duas espécies de sarigüê, uma espécie da
sem dor (Kruse '95'-52, v. 46: 920. Cf adiante M144e 145,e p. 3'2. n. 35). floresta, cuja forma a mulher-estrela empresta para revelar aos homens a existência do
28. A respeito do par jaguar-jacaré (dona do fogo, dono da água), notamos que os.tupi-
27 . O esquema existe na América tropical, entre os Kaingang (vítima cujo cadáver, nólogos compararam o nome tupi do jaguar, iagua, à palavra jacaré, ~ue pode~la ser
arrastado pelas plantações, dá origem ao milho; Barba 1908: 23); na Guiana (plantas cul- decomposta em iaguaré, "o outro tipo de jaguar". Não sabemos qual e a opm.lao dos
tivadas, transpiradas, excretadas ou procriadas por uma velha); entre os Bororo e entre filólogos acerca dessa etimologia. Mas é interessante notar que ela fOIafastada, Imedia-
os Pareci (plantas cultivadas, nascidas de cinzas de jovens, incestuosos ou não, que mor- tamente após ter sido formulada, pelo simples motivo de que não existma nenhuma
rem numa fogueira). equivalência concebível entre as duas espécies (Chermont de Miranda 1942: 73-74)·
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obtida retirado sos, que se pode compreender a inversão dos mitos bororo e xerente. Os Bo-
(morte) (morte) roro vivem (e principalmente pensam) sob o signo da água; para eles, ela
M12: retirada '" obtido conota a morte, e muitos de seus mitos - em que as plantas cultivadas, ou
outros bens culturais, surgem das cinzas de heróis que morrem, às vezes
Em outras palavras, a morte do herói bororo é a condição da água obtida, e o voluntariamente, em fogueiras (cf., por exemplo, M20, M27; e Colb. & Albisetti
fogo obtido tem por conseqüência a morte do herói xerente. 1942: 199,213-14) - comprovam que existe para eles uma conexão entre o
Antigamente Sol e Lua moravam na terra. Um dia, eles ficaram com sede e foram visi-
. ram voluntariamente à morte na fogueira (fogo destruidor
nha). Em todos os aspectos, portanto, as mitologias
•.•fogo de
bororo e xerente relati-
COZI-
tar os pássaros aquáticos, que guardavam a água em grandes e pesados potes. vas à passagem da natureza à cultura ocupam posições extremas, ao passo
Desobedecendo aos pássaros, Sol quis levantar um pote até a boca. Mas o pote que a mitologia dos outros [ê se desenvolve na zona intermediár:a. Bororo e
escorrega, quebra e a água derrama. Os pássaros ficam bravos, Sol e Lua fogem, os Xerente associam fogo e água, atribuindo-lhes funções opostas: agua > fogo
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pássaros os alcançam na cabana em que eles se refugiaram. / fogo> água; água exteriorizada/água interiorizada; água celeste e maléfica
Agora, Sol ficou quente demais. Incomodados pela sua presença, os pássaros agi- /água terrestre e benéfica; fogo culinário/pira funerária etc.; e os grandes
tam seus aba nos de palha, produzindo um vento cada vez mais forte, que levanta Sol acontecimentos, aos quais uns e outros se referem, estão situados, ora num
e Luae faz com que subam ao céu, de onde eles não irão mais descer (Colb.& Albisetti plano sociológico e lendário, ora num plano cosmológico e mít~co. Fi~al-
'942: 237-38; versão bakairi (MuoA),in Von den Steinen '940: 482-83). mente, os Bororo e os Xerente acentuam igualmente a ressurrciçao e nao a
vida abreviada.
Outros mitos relativos a Sol e Lua mostram-nos destruindo o fogo com água Como vimos alhures, os outros [ê dissociam a origem da culinária (ligada
ou (Mra i) urinando sobre o fogo das lontras (Colb. & Albisetti 1942: 233), ou ao fogo) da das plantas cultivadas (ligada à água); os dois temas são tratad~s
(M122) enchendo de água o dos homens (id. ibid.: 231). Conseqüentemente, paralelamente e de modo independente, em vez de formarem um par assime-
aqui também se afirma o primado da água sobre o fogo. 29 trico no seio de uma mesma série mítica. Além disso, eles associam as plan-
tas cultivadas ao podre e não ao queimado, como os Bororo. ou ao fresco,
como os Xerente.
29 . Em toda uma série de mitos bororo sobre a origem do fogo, ele é apagado pela Todas essas relações podem ser ilustradas por um diagrama (fig. 8).
chuva (Mi), pela água derramada (M122) , pela urina (MI2l). No grupo sobre a origem
das plantas cultivadas, o mito xerente (Mies) faz germinar a mandioca das gotas de leite
espalhadas pelas mães. Tem-se a transformação:
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[8J Integração dos mitos bororo e dos mitos jê relativos à origem do fogo ou das plantas
cultivadas.
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