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“Meu Deus do céu, como é bom viver! Mas agora, a vida ca tão sangrenta e tão desumana, que dá
vontade de desistir dela. Diga lá, Babu! Diga lá! O que fazer?” (Nazim Hikmet – 1935)
Nos dias de chuva forte, era infernal o barulho no teto de zinco do Centro Torü Nguepataü (Nossa
Casa de Estudos) em Benjamin Constant (AM), na aldeia Filadél a, onde nasceu Aldenor Basques
Félix Gutchicü (1976-2020). Eu tinha de gritar nas aulas de História da Amazônia que ministrei, em
fevereiro de 1995, para 226 alunos do Curso de Formação de Professores Ticuna. Eram tantos
que agora recorro às fotos para tentar me lembrar do Aldenor, então com 19 anos e muita fome
de viver. Na terça (28), ele morreu em Manaus vítima do coronavirus e de governantes corruptos
que durante meio século vêm se apropriando das verbas da Saúde. Foi enterrado na vala coletiva
do Cemitério do Tarumã.
Quem conviveu com ele foi a cantora Djuena Tikuna, que dá seu testemunho em sua página doTOP
facebook:
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03/05/2020 E daí? Diga lá, Babu, o que fazer? Por José Ribamar Bessa Freire | Combate Racismo Ambiental
Viva la muerte!
Babu? Esse apelido do Aldenor me remeteu imediatamente ao escritor turco Nazim Hikmet que,
em 1935, dirigiu a um homônimo o seu poema “Viver”, o que nos permite fazer uma ponte entre
o Babu dele e o nosso:
– Meu Deus do céu, como é bom viver! Viver como se canta em harmonia uma canção de alegria. E no
entanto, que negócio estranho, Taranta Babu! Que história mais esquisita de ver que essa coisa tão
bela, tão alegre, se tornou hoje terrivelmente nojenta. Há momentos estranhos, como agora, em que os
bandidos dão as cartas e a vida ca tão sangrenta, tão desumana e tão insuportável que dá vontade
de desistir dela. O que fazer? .
O nosso Babu do povo Magüta (Tikuna) – nos conta Clayton Rodrigues, pesquisador do Projeto
Nova Cartogra a Social da Amazônia – pertencia à nação (clã) de Mutum, da linhagem de penas.
Ele participou intensamente das atividade da comunidade Wotchimaücü, no bairro Cidade de
Deus, zona norte de Manaus, da qual se tornou vice cacique. Lá as mulheres confeccionavam
artesanato, as crianças da primeira geração nascidas na cidade tinham aulas da língua Tikuna, as
lideranças indígenas realizavam suas assembleias e reuniões para reivindicar seus direitos.
– Professor, músico, pai, esposo, parente, amigo, Aldenor deixa escrita uma trajetória de luta e
resistência de seu povo na cidade de Manaus. Faleceu após apresentar todos os sintomas graves
da Covid-19, sem ter tido a possibilidade de fazer o teste. Sua morte revela a dura situação de ser
indígena na cidade. Morreu numa insistente busca de assistência médica, diferenciada ou não,
nestes tempos de pandemia em que o sistema de saúde apresenta sinais evidentes de
esgotamento e os indígenas veem-se abandonados à sua própria sorte. “Além de falecer sem
assistência médica apropriada o corpo de Aldenor permaneceu insepulto por quase 48 horas” –
escreveu Clayton.
Os nossos mortos
Ainda em vida, com a respiração fraca, os Tikuna chamaram o SAMU. Inútil. Contrataram um
Uber para levar Aldenor ao Hospital Platão Araujo. Lá, o seu acompanhante teve di culdades de
explicar a urgência da situação por não ser uente em português.
“O motorista do Uber precisou ir até a recepção do hospital e explicar o que estava acontecendo,
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mas nem chegaram a tirá-lo do carro. Não tinha vaga no hospital e não adiantava mais. O mesmo
Uber que levou ele ao hospital, o trouxe de volta para a comunidade” – contou Aguinilson Tikuna
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em matéria publicada pela Agência Amazônia Real. Enquanto aguardavam a chegada do serviço
SOS Funeral, da Prefeitura de Manaus, os moradores da comunidade acomodaram o corpo de
Aldenor Félix em duas mesas instaladas dentro da igreja evangélica da comunidade
Wotchimaücü.
No espaço do jornal, como nos cemitérios, já não cabem tantos corpos. Enquanto eu escrevia
esse texto, minha amiga Verônica Manauara, que reside no Alto Solimões, me enviou notícia de
muitas outras mortes de Kokama e Tikuna, alguns professores, que morreram em suas casas,
sem atendimento médico, entre eles outro ex-aluno, o professor Anselmo Samias Kokama, que
lecionava História na Escola Municipal Indígena Marechal Rondon. A subnoti cação acaba
distorcendo os dados. A lista da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB), embora incompleta, cresce a cada hora:
O povo Kokama perdeu, entre outros, Anselmo Samias, Augustinho Samias, Delvanir Marinho,
irmã do cacique da Comunidade Nova Esperança, Idelfonso Tananta, Antônio Frazão, Antônio
Castilho, Lindava Moura, Lucildo Pedrosa da Costa, Maria Vargas. De outras etnias, Aldevan
Baniwa, Aldenor Tikuna, Abezio Flores Tikuna, Valter Elizardo Tikuna, Ozaniel Mura, Adilson
Apurinã, Clevelande Apurinã, Domingos Baré, Otávio Sateré-Mawé, Jorge Pereira Tukano ex-
presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).
Cada morte deixa um rastro de dor, de sofrimento, de a ição. Nesta semana, em Manaus,
morreram também dois professores da UFAM – Oswaldo Coelho e João Bosco Barreto. Não está
sendo possível nem prantear os nossos mortos que no Brasil se aproximam dos 7.000. Quando
se trata de morte de indígenas, tem um agravante: se morrerem 100 velhos Kokama, uma língua
desaparece para sempre do planeta, com os conhecimentos que ela guarda.
E daí? – brada com crueldade aquele que deveria estar comandando a luta contra o vírus e que
se torna responsável por muitas mortes causadas pela “gripezinha”. A necropolítica do governo
Bolsonaro agrava a situação quando a FUNAI, em plena pandemia, publica no Diário O cial da
União (22/04/2020) uma Instrução Normativa que permite o repasse de títulos de terra a
particulares dentro de áreas indígena, o que é ilegal e inconstitucional, segundo o Ministério
Público Federal. Não temos dúvida que os genocidas serão julgados pelos crimes contra a
humanidade, como o foi o alto escalão nazista no Tribunal Internacional de Nuremberg
Diga lá, o que fazer, Babu? Como lutar para recuperar a alegria de viver?
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P.S.1 – Mais informações podem ser obtidas nas páginas de: Djuena Tikuna, Altaci Kokama
Rubim, Nova Cartogra a Social da Amazônia, Amazônia Real (fotos Aguinilson Tikuna, Fernando
Crispim/La Xunga/Amazônia Real com texto de Elaize Farias e Izabel Santo), Instituto
Socioambiental e De olho nos ruralistas (especialmente matéria de Maria Fernanda Ribeiro).
P.S. 2 – No meio de tantas mortes, um sinal de vida: Lígia Bahia de Mendonça defendeu (30/04)
sua tese de doutorado: “Edi car e Instruir: Missões Jesuíticas nas cartas do Padre Raphael Maria
Galanti na Woodstock Letters (1880-1910) no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ,
orientada por Ana Chrystina Mignot.
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Joao Henrique Rego - em Presença das Forças Armadas junto aos Bolsonaro faz mal à
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