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CADERNO DE DEBATES
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CADERNO DE DEBATES
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SÃO PAULO, NOVEMBRO 2017


ÍNDICE

5 APRESENTAÇÃO
9 GT COMBATE AO RACISMO E
PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

15 GT DEMOGRAFIA E MIGRANTES
31 GT ESTADO, DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO POPULAR
E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

37 GT DE FEDERALISMO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


51 GT DE SEGURIDADE E PREVIDÊNCIA SOCIAL
5
APRESENTAÇÃO

PROJETO BRASIL POPULAR

QUEM SOMOS?

Diante da profunda crise política, econômica e social que o Brasil atravessa no


último período, compreendeu-se como de suma importância criar um espaço para
reunir as diferentes forças de esquerda e suas bases sociais, estimuladas pelo desafio
de formular um projeto de desenvolvimento nacional que auxilie também na orga-
nização da luta de massas.

É importante destacar, no entanto, não ser de hoje que homens e mulheres deba-
tem um projeto de país. Entendemos que este é um debate permanente na vida dos
povos e estratégico para os setores populares, o qual, diante do desmonte da nação,
tornou-se urgente e dispõe de condições mais favoráveis a partir das necessidades
concretas que atualmente se apresentam.

A esquerda brasileira já formulou importantes contribuições sobre esse tema. Po-


rém, historicamente, o processo de produção dessas reflexões não esteve combinado
com o processo de articulação com movimentos populares e sindicais, resultando
em formulações teóricas que, embora consistentes, contaram com pouca capacida-
de de enraizamento social. Diante disso, nas últimas décadas nossas formulações e
estratégias não avançaram para a construção de um projeto de nação ou de um pro-
grama amplo, que transcendesse as medidas imediatas, as plataformas ou os progra-
mas eleitorais. Por isso, embora se trate de um tema com o qual temos permanente
preocupação, não temos conseguido produzir formulações e estratégias unitárias de
médio e longo prazos e que nos possibilite mobilizar força social em torno de uma
proposta viável de desenvolvimento para o país.

Nosso grupo entende ser fundamental que, em paralelo à formulação de propostas e


análises, possamos reafirmar a necessidade de diálogo com as bases sociais e o com-
promisso e disponibilidade para o debate de ideias com o povo. Mobilizados por essa
perspectiva, desde fevereiro de 2016 dedicamo-nos à tarefa de debater e formular o
conteúdo programático de um projeto nacional, democrático e soberano para o país, e
que represente uma oportunidade para a construção de uma nova hegemonia de forças
construída a partir do diálogo junto ao povo brasileiro, construindo assim força social
em torno dessas propostas.

O QUE QUEREMOS?

Não estamos partindo do zero. Diversos setores têm refletido ao longo da história
sobre propostas, estratégias e questões que apontam os problemas estruturais do
6 APRESENTAÇÃO

Brasil e indicado caminhos para a sua superação. O programa que estamos cons-
truindo deve expressar estes acúmulos e reflexões, além de buscar estimular o acú-
mulo de força social em torno desses esforços.

Fundamentalmente o que nos propomos a construir é um projeto para o Brasil que


aponte para a superação de todas as formas de desigualdades, de exploração e de
falta de liberdades. Portanto, um projeto que suscite rupturas com o passado escra-
vocrata, colonial, patriarcal, ditatorial e antipopular e que responda a um presente
de crise no qual essas dimensões estruturais da exploração e dominação e opressões
são intensificadas.

Acreditamos que a melhoria das condições objetivas de vida do povo brasileiro de-
pende do modelo de desenvolvimento econômico, político, cultural e ambiental
implantado, pois ele indicará como serão distribuídas as riquezas e a renda gerada
por toda a sociedade. E que as bases para a construção desse projeto popular para o
Brasil estão alicerçadas na construção de um Estado. Por isso definimos os seguintes
temas como nossos paradigmas que guiarão nossas reflexões:

Vida boa para todos/as: entender que a vida vale a pena ser vivida em
todas as suas dimensões e que por isso devemos orientar as formas de
produção dos bens, a reprodução social e os bens públicos para garantir
a qualidade de vida de todos/as. Nessa perspectiva, é preciso pensar o
ser humano em sua integralidade.
Bens comuns: prezar pela garantia e soberania dos bens compartilhados
pelas comunidades: natureza, ar, água, cultura e os espaços públicos.
Igualdade e diversidade: devemos superar as condições de opressão,
buscando engendrar novas relações sociais entre as pessoas.
Democracia, Participação e autonomia: devemos refletir sobre qual
o sentido público do Estado, retirando-o da condição de simples garan-
tidor de direitos, para estabelecer como prioridade prestar serviços de
qualidade ao povo. Devemos refletir também sobre como será exercido
o poder pelo povo e sobre como será autonomia desse Estado.
Soberania Nacional e Desenvolvimento: apontar um caminho para
o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde
os compromissos sociais submetam a lógica da economia de merca-
do. Além de formular um projeto nacional que possibilite ao nosso país
crescer com soberania.
Esses paradigmas são referências gerais para o trabalho do grupo, e também para as
discussões temáticas devendo ser considerados mesmo para elaborações mais espe-
cíficas. Em processo cíclico de construção, os Grupos de Trabalhos Temático devem
ao mesmo tempo em que partem deles para construir propostas, enriquecê-los com
novas formulações.
7
APRESENTAÇÃO

MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DO PROJETO


Partimos de um contexto histórico que leva a necessidade de um debate de projeto
de país devido sua gravidade. Entendemos que a burguesia não possui um projeto
nacional e utilizou esse contexto de crise econômica para provocar uma instabilida-
de política e impor um projeto neoliberal. Diante disso, a esquerda deve se debruçar
para a produzir um projeto popular para o país.

Portanto, precisamos recuperar a tradição civilizatória do pensamento humanista para


construir um projeto de país e, com ele, uma alternativa de sociedade construída junto
ao povo. Por esse motivo o método é tão importante quanto o resultado. Entendemos
que o programa só cumprirá sua função se for uma produção coletiva que deve com-
binar conhecimento científico e militância social. Apenas dessa forma será ampliada
nossa capacidade de mobilização: considerando o povo como protagonista das mudan-
ças no país. Por isso, devemos constantemente checar nossa reflexão com a realidade e
interpretar as contradições para a partir delas formularmos novas propostas.

O método com o qual nos propomos a trabalhar é coletivo, dialógico e dialético.


Capaz de envolver diversos setores, conjugando especificidades e especialidades, te-
mas, regiões, naturezas diversas dos sujeitos, dialogando com a visão do todo e com
a visão dos lugares desses sujeitos.

O processo de construção será numa espiral crescente, partindo da produção de


sínteses que serão retomadas para maior aprofundamento, possibilitando então no-
vas sínteses. Temos dois desafios importantes: 1) produzir um projeto de nação; 2)
transformar esse projeto em um instrumento do processo político pedagógico que
estimule nosso povo a debater, criticar e formular novas questões; 3) formular sín-
teses coletivas a partir desse acumulo e criar força social em torno dessas propostas.
Neste sentido, esse é um processo contínuo no tempo e na sua intencionalidade,
um processo permanente de disputa de hegemonia de um projeto de nação na so-
ciedade brasileira.

Atualmente possuímos 30 grupos de trabalho temáticos (GTs) que possuem a tarefa prio-
ritária de refletir sobre os temas estratégicos para a formulação de um projeto de país. Esses
grupos de trabalho são constituídos por intelectuais comprometidos com o desenvolvi-
mento do país; militantes dos movimentos populares que trazem o acumulo de propostas
de cada movimento; trabalhadores com experiência na política pública com conhecimento
em diversas áreas. Os GTs debatem e formulam propostas para que obtenhamos uma
elaboração programática que possa posteriormente ser discutida pela sociedade, buscando
com isso agregar força social e apontar para as bases de um projeto de país.

Além dos GTs, foram estabelecidos Eixos Temáticos. A discussão em eixos objetiva
potencializar a transversalidade dos temas discutidos nos grupos e garantir que os
documentos produzidos por eles tenham visibilidade e unidade programática.
8 APRESENTAÇÃO

Não devemos ter a pretensão de dar solução para tudo, muito menos em nome de
todos e todas, mas buscaremos agir em torno de um esforço coletivo e intelectual,
para formular um projeto que sirva como referência para as lutas sociais e para o
pensamento crítico brasileiro.

Somar-se ao Projeto Brasil Popular é vislumbrar a esperança de construção coletiva das


condições que irão possibilitar ao Brasil ser um país mais justo, soberano e democrático.

Eixos Temáticos
Direitos
Cultura
Educação
Esporte
Cidades
Religião, Valores e Comportamento
Saúde Coletiva
Economia, Desenvolvimento e Distribuição de Renda
Agricultura Biodiversidade e Meio Ambiente
Demografia e Migrantes
Desenvolvimento Regional
Caatinga e Semiárido
Ciência, Tecnologia e Inovação
Economia
Energia e petróleo
Financeirização
Logística e Transporte
Mineração
Reforma tributária
Seguridade Social e Previdência
Trabalho, Emprego e Renda
Estado, Democracia e Soberania Popular
Democratização da Justiça e Direitos Humanos
Estado, Democracia, Participação Popular e Reforma Política
Federalismo e Administração Pública
Sistema de comunicação
Relações Internacionais, Integração Regional e Defesa
Segurança pública
Igualdade, Diversidade e Autonomia
Combate ao Racismo e Igualdade Racial
Juventude
LGBT
Mulheres
Povos Indígenas
GT DE
COMBATE AO RACISMO
E PROMOÇÃO DA
IGUALDADE RACIAL
GT DE
10 COMBATE AO RACISMO
E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

CONTRIBUIÇÃO PARA O EIXO IGUALDADE, DIVERSIDADE E


AUTONOMIA

O Brasil tem uma enorme importância no cenário mundial como segundo país do
mundo em população negra, atrás apenas da Nigéria, na África. Nas últimas déca-
das, o Brasil tornou-se uma das maiores economias do mundo, com forte cresci-
mento econômico, queda do analfabetismo, população predominantemente urbana
e diminuição das desigualdades. Proporcionalmente, o maior ou menor índice desse
progresso afeta positiva ou negativamente a população negra, numa longa, persis-
tente, cruel e brutal permanência da pobreza e da iniquidade racial e étnica, além
das desigualdades de gênero.

Entre essas assimetrias crônicas e de longa duração no Brasil, próprias de uma or-
dem social colonial e estruturada no escravismo, destacam-se a barbárie; a violência
e a letalidade do Estado; a omissão e indiferença das elites brancas do país; o exter-
mínio em massa da juventude negra; o baixíssimo padrão de habitabilidade da po-
pulação pobre; a falta de saneamento básico; e as profundas desigualdades no acesso
e tratamento à saúde, bem como aos conhecimentos valorizados na educação, que
excluem os aportes culturais, científicos, tecnológicos e civilizatórios da África, da
diáspora africana e de seus descendentes à humanidade e à sociedade brasileira.

Portanto, os eixos estratégicos que orientam a reflexão e as ações coletivas do Projeto


Brasil Popular devem estar conectados com o conjunto da Diáspora Negra, na sua
inter-relação histórica, cultural e econômica com o continente africano.

O Projeto Brasil Popular defende junto à sociedade civil brasileira, a adoção de


medidas eficazes para promover o reconhecimento, a justiça, o desenvolvimento,
a sustentabilidade e a vida do povo negro, de suas comunidades tradicionais e dos
povos indígenas originários.

O Projeto Brasil Popular percebe que a presença viva, dinâmica, e a importante


contribuição civilizatória dada pelas e pelos afrodescendentes para nossas socieda-
des, impõe a proposição de medidas concretas para promover a sua plena inclusão
nos direitos, que também depende do combate político ao racismo, à discriminação
racial, à xenofobia, à intolerância e a erradicação da pobreza.

MULHERES NEGRAS

As mulheres negras engendram a sustentabilidade da vida da população negra no


Brasil. É imperativo, do ponto de vista ético, que o Projeto Brasil Popular prota-
gonize por meio do Movimento Negro e, em especial, do Movimento de Mulheres
GT DE
COMBATE AO RACISMO 11
E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

Negras, ações estratégicas relacionadas à produção de visibilidade e reconhecimento


da força humanizadora das mulheres negras, com o consequente empoderamento
cultural e político que lhes é devido. As mulheres negras recebem, em média, 50%
da remuneração das mulheres brancas. Elas respondem por quase 70% das famílias
com renda de até 1 salário mínimo.

Para além das profundas disparidades econômicas entre os segmentos populacionais


negros e brancos, por outro lado, é fundamental levar em conta que as mulheres ne-
gras, de maneira geral, são as guardiãs da sabedoria, fonte da produção do conheci-
mento agroecológico e são as principais mantenedoras da ciência do bem viver e dos
laços psíquicos e afetivos que organizam as comunidades e sociedades tradicionais
ou não-tradicionais, organizadoras das famílias negras e as principais sustentadoras
da população negra em geral.

RAÇA E CLASSE: O MUNDO DO TRABALHO

Desde os estudos referenciais sobre desigualdade racial no acesso ao trabalho e ren-


da, realizados em fins da década de 1970 e nos anos 1980, verifica-se a persistência
das maiores taxas de desemprego, ocupações precárias e/ou de baixo status e remu-
neração, como prevalentes para a população negra no Brasil. Apesar da melhora nas
condições de vida desta população, vistas na diminuição da miséria e da pobreza,
além da mobilidade ascendente, verificadas no breve ciclo de governos populares
no país, ainda em 2015 observa-se na PNAD (IBGE) o quanto o “precariado” –
trabalhadores/as mais precarizados/as, uma marca do mundo do trabalho brasileiro
e não uma característica do capitalismo contemporâneo – é negro e negra (vide
GEMAA, Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe, 2017). O Projeto
Brasil Popular deve partir do entendimento de que a estruturação do padrão de
superexploração da classe trabalhadora no país é tanto um legado do longo período
de escravização formal, quanto também é atualizado no racismo. A racialização do
trabalho desumaniza o/a trabalhador/a, não só na visão das classes dominantes,
mas também para os próprios trabalhadores subalternizados. Tal processo dificulta
a constituição das potencialidades do/a trabalhador/a enquanto sujeito. Portanto, o
reconhecimento da dimensão racial da subordinação de classe e a construção de ins-
trumentos para a sua superação são indispensáveis à emancipação de trabalhadoras
e trabalhadores, do campo e da cidade.

JUVENTUDE NEGRA

No que se refere à juventude negra, ao analisarmos o Mapa da Violência no Brasil


publicado pelo Ministério da Justiça, se projetarmos um período de 10 anos, por
exemplo entre 2012 e 2022; nos deparamos com um dado alarmante da realidade
social brasileira, caso não priorizemos uma intervenção planejada para superar esta
chaga e continue tamanho índice de mortalidade de jovens negros por arma de fogo
GT DE
12 COMBATE AO RACISMO
E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

no país. Nos duzentos anos da chamada independência do Brasil, em 2022, teremos


cerca de meio milhão (500 mil) jovens negros assassinados por arma de fogo.

É também parte deste quadro de extermínio o encarceramento em massa da juven-


tude negra. Conforme os dados descritos e analisados no Mapa do Encarceramento: os
jovens do Brasil (Secretaria Nacional de Juventude, 2014), entre 2005 e 2012, a cada
100 mil habitantes negros acima de 18 anos havia 292 presos – enquanto a cada 100
mil brancos, 191 estavam encarcerados. O direito a uma vida segura, o que só pode
ocorrer com a transformação completa do sentido atribuído à segurança pública – su-
perando, por exemplo, o genocida paradigma da “guerra às drogas” –, faz-se urgente
para que a morte violenta e a prisão não sejam mais o destino de milhares de jovens
negros e negras.

Contudo, essa violência letal se distribuiu de forma desigual: as vítimas são, sobre-
tudo, jovens negros do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, com baixa escolaridade.
O Índice de Homicídio na Adolescência (IHA) evidencia que a probabilidade de ser
vítima de homicídio é mais do dobro para os negros em comparação com os bran-
cos. Isso configura o que o Movimento Negro denomina de Genocídio do Povo
Negro, através do extermínio em massa da juventude negra.

DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE

O agravamento das questões ambientais, as mudanças climáticas e o uso irracional


dos recursos naturais têm atingido significativamente os povos indígenas, as comu-
nidades negras tradicionais e as populações pobres, submetendo-as a um quadro
de injustiça ambiental alarmante. Temos assistido a um silencioso massacre dos
povos originários e das comunidades quilombolas pelos grandes empreendimentos
hidroelétricos e minerários.

Em nome do desenvolvimento e do progresso são construídas barragens e usinas


para produção de energia que espremem e asfixiam os povos indígenas e os terri-
tórios das comunidades tradicionais e quilombolas. A monocultura e o cultivo de
pastos para boi e plantações mergulhadas no veneno estragam os alimentos e a terra.
Matam as florestas, os animais, poluem os rios e derrubam nossas árvores. Fazen-
deiros, madeireiros e latifundiários roubam e saqueiam diuturnamente nossas terras
e nosso futuro.

O Projeto Brasil Popular compreende que desenvolvimento e sustentabilidade têm


o mesmo sentido. Um não pode existir sem o outro, ambos têm uma relação de
simbiose. Ou o desenvolvimento é sustentabilidade ou não é desenvolvimento.

O capitalismo é o grande responsável pelas crises econômica, alimentar e ambiental.


O modelo de produção e consumo capitalista é incompatível com a preservação
GT DE
COMBATE AO RACISMO 13
E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

ambiental, como o uso coletivo das riquezas naturais e com a justiça social. Os
verdadeiros responsáveis pela devastação das florestas, pela poluição dos rios, mares,
pela degradação dos biomas e insustentabilidade urbana em todo planeta são os
países imperialistas e colonialistas. Não somos responsáveis por tamanha espoliação
dos seres humanos e da natureza.

O Projeto Brasil Popular não comunga do princípio da responsabilidade comum,


pois cabe aos países ricos o principal ônus da preservação. São nos países pobres e
em desenvolvimento que encontramos a maioria dos povos vítimas da degradação
ambiental, vítimas do racismo ambiental. Compreendemos os quilombos e as so-
ciedade indígenas como verdadeiros territórios de resguardo da biodiversidade e es-
colas da diversidade cultural, portanto, tem o direito inalienável aos seus territórios.

COMUNICAÇÃO

A distorção da imagem do homem e da mulher negra na televisão é reflexo das


práticas de racismo existentes na sociedade brasileira, dos aspectos sócio históricos
que entrelaçam a trajetória do povo negro no Brasil e resultado de uma política de
invisibilidade planejada da população negra pelas grandes corporações midiáticas
privadas pertencentes à meia dúzia de famílias que controlam todos os meios de
comunicação, pelos interesses econômicos do mercado e de um desejo desenfreado
e subjetivo das elites, que além de consolidar sua hegemonia política, buscam trans-
formar, cotidianamente, o Brasil em uma nação branco-europeia. O racismo e a
discriminação da Mídia operam a invisibilidade real nos meios de comunicação de
massa, da televisão e da produção editorial, por meio da eliminação simbólica dos
povos negros e indígenas do imaginário da nação.

Portanto, a democratização dos meios de comunicação é uma exigência ética, de-


mocrática e pública para que a sociedade brasileira possa avançar na construção de
políticas que promovam o desenvolvimento social e democrático inclusivo e susten-
tável. Isso significa ir para além do reconhecimento de que o Brasil é um país onde a
diversidade étnico-racial e pluralidade cultural são marcas identitárias da nação. Isso
significa produzir visibilidade positiva e reconhecimento da população negra como
parte constitutiva da nação brasileira, que quer ter a sua representação simbólica nos
meios de comunicação social.

LEGADO LIBERTÁRIO

Não permitiremos que o racismo nos submeta a violência simbólica e física, que
destrua o nosso legado ancestral e espiritual africano. Esse legado é libertário, ecoló-
gico e sagrado. A nossa emancipação será a tomada da consciência negra, dos nossos
direitos enquanto sujeitos de nossa história. O Projeto Brasil Popular está irmanado
a este compromisso e a esse legado.
GT DE
DEMOGRAFIA
E MIGRANTES
16 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

PROJETO SOS BRASIL SOBERANO


ANTÔNIO TADEU RIBEIRO DE OLIVEIRA1
LUIZ ANTÔNIO PINTO DE OLIVEIRA

A proposta deste texto é tratar de duas dimensões da dinâmica populacional brasileira:


a transição demográfica, de um lado, e o comportamento atual das migrações e da dis-
tribuição espacial da população, de outro.

1. TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA

A transição demográfica, de forma bem resumida, é a passagem do momento em que


se tem altos índices de natalidade, até chegarmos a um ponto no qual as taxas de nata-
lidade e de mortalidade são pequenas, como observamos nos dias de hoje.

A transição demográfica possui 4 etapas, como pode ser visto no Gráfico 1:


Taxas altas de natalidade e mortalidade, produzindo pequeno crescimento popula-
cional;
Queda da taxa de mortalidade e taxa de natalidade ainda elevada, gerando forte
crescimento populacional;
Taxa de mortalidade baixa e queda da taxa de natalidade, levando a um ritmo menor
de crescimento populacional;
Taxas de mortalidade e natalidade baixas, acarretando pequeno crescimento popu-
lacional.
GRÁFICO 1 - EVOLUÇÃO DAS TAXAS BRUTAS DE NATALIDADE (TBN) E DE MORTALIDADE (TBM). BRASIL 1881-2010
(%0)

50,0
45,0 TBN
40,0
35,0
30,0
TBM
25,0
Esterilização
20,0 feminina
Antibióticos
15,0 Pílula
10,0
5,0
0,0
1. Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira 1881 1890 1900 1910 1920 1930 1945 1955 1965 1975 1985 1995 2000 2010
e Luiz Antônio Pinto de Oliveira são Fonte. Recenseamento do Brasil 1872-1920. Rio de Janeiro: Directoria Geral de Estatística, 1872-1930 e
demógrafos do IBGE. IBGÉE/DPE/COPIS. Censos Demográficos 1940/2010 e Projeção da População do Brasil por sexo e idade: 2000-2060
GT DE 17
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

Fruto da transição demográfica, o chamado “bônus demográfico” ou “janela de opor-


tunidades” ocorre quando a maior parte da população está em idade de trabalhar, au-
mentando o potencial de desenvolvimento do país. Isso acontece devido à queda no
número de nascimentos, que gera o crescimento da população em idade ativa (15 a 64
anos), ao mesmo tempo em que a população idosa ainda não é muito grande. Conse-
quentemente, diminui a proporção entre as pessoas que não deveriam trabalhar (me-
nores de 15 anos e maiores de 65) e aquelas que deveriam estar no mercado de trabalho
(15 a 64 anos). Ou seja, são poucos dependentes para muitos contribuintes.

No momento, e até o final dos anos 2030, o país vai passar pela etapa do “bônus de-
mográfico”. Ao contrário do que pregam os setores conservadores, inclusive para defen-
derem a urgência na reforma da previdência social, somente daqui a aproximadamente
40 anos chegaremos ao ponto no qual teremos o envelhecimento da população. Temos
tempo para aproveitar o que resta do bônus e pensar com calma nas medidas necessárias
ao enfrentamento dos desafios colocados pelo futuro envelhecimento da população.

O Brasil, desde dos anos 80, atravessa essa etapa da sua dinâmica populacional conhe-
cida como “bônus demográfico” ou “janela de oportunidade demográfica”. Num Es-
tado que pensa uma sociedade inclusiva, essa fase da transição demográfica, com uma
oferta grande de pessoas em idade de trabalhar, deveria impulsionar o desenvolvimento
econômico e social, além de gerar riqueza, investimentos e o aumento da renda dos in-
divíduos. Favoreceria também a melhoria na qualidade da educação básica, sobretudo
pelo fato da menor demanda por recursos para investimentos em infraestrutura física,
em função do menor número de crianças.

Como no início da abertura da “janela de oportunidades”, a população idosa ainda é


relativamente pequena, e a pressão sobre os sistemas de proteção social, aí incluídas
saúde e seguridade, não seria grande. O gráfico 2 ilustra bem essa relação entre, de um
lado, os grupos de idade mais jovens e os mais idosos e, de outro, o grupo de idade
entre 15 e 64 anos. A base onde estão as crianças é mais estreita que o grupo em idade
de trabalhar, e o topo onde estão os idosos ainda não é tão grande.

GRÁFICO 2 - PIRÂMIDE ETÁRIA - 2015

Homens Mulheres

-15.000.000 -10.000.000 -5.000.000 0 5.000.000 10.000.000 15.000.000


Fonte: IBGE, Brasil, projeção da população por sexo e grupos e idade, 2.000-2060
18 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

Contudo, até o presente momento, o bônus não foi aproveitado. Os gargalos estru-
turais, entre outros, na educação, saúde, saneamento básico, mercado de trabalho e
infraestrutura produtiva, agravados pela implementação de um modelo de desenvolvi-
mento neoliberal, contribuíram para inibir ainda mais a obtenção das vantagens ofere-
cidas pela dinâmica populacional brasileira.

A questão demográfica não fez parte da pauta de ações de nenhum dos governos con-
temporâneos. Quando surgia, o tema sempre esteve associado à dimensão previden-
ciária, num debate enviesado, que buscava jogar para os trabalhadores o problema do
“deficit” até hoje não bem explicitado. Mas ainda resta uma brecha na “janela de opor-
tunidades” que deve e pode ser aproveitada. A proporção entre o número de dependen-
tes em relação ao de trabalhadores seguirá sua trajetória de queda até 2023. E apenas
em 2037 é que essa proporção será tornará inferior entre os jovens do que entre os ido-
sos (ou seja, o número de dependentes jovens em relação ao número de trabalhadores
será menor do que o número de dependentes idosos.

A população em idade ativa (PIA) apresentará tendência de crescimento até os anos


2040; e, em 2060, mesmo quando o volume da PIA estiver declinando, serão aproxi-
madamente 131,4 milhões de pessoas, quase o dobro do observado em 1980 e próximo
ao volume de 2010.

O país deveria criar as condições econômicas e sociais para incorporar


essa abundante oferta de mão de obra ao mercado de trabalho formal,
inclusive liberando a força de trabalho feminina, muito limitada, sobre-
tudo nos segmentos mais empobrecidos da sociedade, justamente pela
baixa oferta de creches. Aumentar a formalização e as taxas de atividade
seria um primeiro passo importante para gerar renda, investimentos e
fortalecer o caixa da previdência social, assegurando um fôlego maior
para planejar as demais medidas para enfrentar as questões relacio-
nadas ao envelhecimento da população, seja no campo da educação,
mercado de trabalho, saúde, previdência social, cuidados e atenção à
pessoa idosa, entre outras.

1.1. O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO


Graças às melhorias nas condições de vida, nossa população continuará envelhecendo, o
que é um bom sinal. Por outro lado, com o fechamento da janela de oportunidades de-
mográfica, planejar o tratamento das questões associadas ao envelhecimento, como as já
apontadas (saúde, previdência social, cuidados e atenção à pessoa idosa), é essencial.

Seguindo o ritmo normal, sem que nenhuma política populacional seja implementada,
a população brasileira reduzirá de tamanho por volta dos meados da década de 2040
(Gráfico 3).
GT DE 19
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

GRÁFICO 3 - POPULAÇÃO RESIDENTE - BRASIL 2010-2060

(Pop. milhões)

Anos
Fonte: IBGE, Brasil, projeção da população por sexo e grupos e idade, 2.000-2060

O número de pessoas idosas em 2060 será de aproximadamente 58,4 milhões; as crian-


ças até 14 anos, 28,3 milhões; e aquelas em idade de trabalhar, como já mencionado,
131,4 milhões. A esperança de vida ao nascer (E0) aumentará para 81,2 anos, e o nú-
mero médio de filho por mulher (TFT) cairá para uma taxa pouco superior a 1,5. O
resultado disso será uma pirâmide etária completamente diferente da apresentada para
2015, como demonstra o Gráfico 4.

GRÁFICO 4 - PIRÂMIDE ETÁRIA - 2060

Homens Mulheres

-10.000.000 -5.000.000 0 5.000.000 10.000.000 15.000.000


Fonte: IBGE, Brasil, projeção da população por sexo e grupos e idade, 2.000-2060

Num país com o potencial, as riquezas e a dimensão do Brasil, parece necessário que polí-
ticas públicas sejam implementas para evitar que se confirme o quadro de redução popu-
lacional e o desequilíbrio da estrutura etária, com o aumento desproporcional de idosos.

Quando acionam a dimensão demográfica, o principal argumento restringe-se ao en-


velhecimento populacional e aos ataques que estão tentando perpetrar com a nefasta
proposta de reforma previdenciária. Como partem do princípio que a previdência so-
20 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

cial é deficitária nos dias de hoje, o iminente aumento da população idosa agravaria o
problema, levando, no limite, ao esgotamento do orçamento público, que seria todo
consumido com o pagamento de benefícios.

No que diz respeito aos aspectos demográficos, essa forma de olhar a evolução popula-
cional põe em relevo a dimensão negativa do envelhecimento, ignorando por completo
o estágio da transição demográfica que proporciona o maior volume de pessoas em
idade ativa (PIA). Como explicar que, após a retomada do crescimento da economia,
que com altos e baixos seguiu até os anos 2010, exista um possível deficit entre arreca-
dação e despesa na parte da seguridade referente à previdência social? Olhando apenas
o aspecto demográfico, a explicação viria da baixa formalização dessa força de trabalho,
ou seja, no modelo de repartição tem que existir contribuição de quem está economica-
mente ativo para arcar com o pagamento daqueles já aposentados. Se essa contribuição
é baixa ou nenhuma não há reforma que dê jeito, seja qual for o tempo de contribuição
ou a idade mínima, o sistema vai quebrar! Enfim, se o desenvolvimento econômico não
estiver atrelado ao desenvolvimento social, parece não existir muita saída.

Nossos opositores não olham a dimensão da dinâmica populacional que é extremamen-


te positiva e estratégica para o futuro do país. Não fora a miopia e a defesa cega do ca-
pital, o lado extremamente positivo da dinâmica populacional deveria ser incorporado
pelos detentores do poder numa discussão séria sobre a reforma previdenciária.

Outra distorção na apropriação da questão demográfica, de consequências trágicas,


ocorre quando os arautos da reforma fazem comparações entre aspectos que não são
comparáveis. Ao constatarem que o indicador esperança de vida ao nascer é profunda-
mente desigual entre as diversas regiões do país, dado que as projeções oficiais apontam,
por exemplo, que a expectativa média de vida de uma pessoa que nasceu no Maranhão,
no ano de 2016, seria de 70,6 anos, ao passo que uma criança nascida no mesmo ano
em Santa Catarina teria mais nove anos de vida, buscam como saída para implementar
a comparação a utilização da expectativa média de vida aos 65 anos, indicador que
apresenta diferenciais pequenos, dado que, uma vez superada as fases mais agudas de
incidência de morbidades que ocorrem na infância e as mortes por causas violentas na
fase adulta jovem, as expectativas de vida passam a convergir.

O que se omite nessa comparação são as condições que cada um chega aos 65 anos de
idade; em outras palavras, que a expectativa de vida saudável reservada a cada um desses
segmentos estará determinada pela inserção social/laboral ao longo da vida. Assim, aque-
les mais pobres, que enfrentaram trabalhos mais duros, tiveram menos acesso aos serviços
de saúde e ao saneamento básico mesmo tendo chegado aos 65 anos terão pela frente uma
quantidade de anos livres de problemas de saúde menor do que aqueles mais favorecidos.

De forma semelhante, o paralelo que buscam traçar com os países desenvolvidos para
justificar a idade mínima para a aposentadoria integral também é descabido. Estudos
GT DE 21
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

apontam que os anos de vida saudável na União Europeia, em 2014, seria de 8,6 anos,
com a proporção de anos nessas condições variando de 19% a 81%. No Brasil, pesquisa
de Szwarcwald et al. (2016), usando dados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013, apon-
ta que o número de anos de vida saudável esperado é de 2,8.

Na nossa perspectiva, os caminhos alternativos possíveis, sempre pensando a evolução


demográfica, passariam, em primeiro lugar, pela incorporação ao mercado de trabalho
formal dessa gigantesca massa de trabalhadores disponível em idade ativa; pelo apro-
veitando da menor pressão exercida nas primeiras idades (crianças e jovens), investir
na melhoria da qualidade da educação, desde a creche e pré-escola, de modo a propor-
cionar atividades econômicas intensivas em conhecimento; por aumentar as taxas de
atividade, em particular, das mulheres, processo que seria favorecido com a oferta de
creches. Essa lógica parte da premissa que o desenvolvimento econômico só faz sentido
com inclusão social. O tempo demográfico ainda nos permite alguma “janela” para
que se atue nessa perspectiva, de modo que as mudanças necessárias a serem propostas
nas regras da previdência sejam realizadas num cenário de menor desigualdade social,
com maior dinamismo econômico, possibilitando pensar com mais tranquilidade nos
modelos de transição de um regime a outro no que tange às alterações na idade mínima
para o acesso integral ao benefício.

Para enfrentar a redução da mão de obra disponível e gerar recursos


para tratar das demandas associadas à maior longevidade da sociedade
brasileira, a única saída é investir em atividades econômicas intensivas
em conhecimento e tecnologia que proporcionem o aumento nos ín-
dices de produtividade da força de trabalho, com uma estrutura ocupa-
cional condizente com esse perfil desejado de trabalhadores. Isso impli-
ca enfrentar os gargalos na educação.

Um outro movimento necessário para tratar diretamente das questões demográficas


seria a promoção de amplo debate com a sociedade para discutir a pertinência de for-
mulação de políticas populacionais, como, por exemplo, o incentivo à natalidade e à
imigração internacional. Essas alternativas devem considerar as assimetrias regionais
nos estágios da transição demográfica e a forma como a população se distribui no país.

2. MIGRAÇÕES E DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA POPULAÇÃO

2.1 MIGRAÇÕES INTERNAS


No Brasil, pós anos 1980, passou-se a observar profundas alterações no comportamen-
to do fenômeno migratório no Brasil, onde é possível destacar os seguintes aspectos:
I) A inversão nas correntes principais nos estados de Minas Gerais e Rio de Ja-
neiro;
II) A redução da atratividade migratória exercida pelo Estado de São Paulo;
III) O aumento da retenção de população e da migração de retorno na Região
Nordeste;
22 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

IV) Os novos eixos de deslocamentos populacionais em direção às cidades médias


no interior do país;
V) O aumento da importância e diversificação dos deslocamentos pendulares;
VI) O esgotamento e a seletividade na expansão da fronteira agrícola;
VII) A migração de retorno para o Paraná;
VIII) O fato de 14 das 27 Unidades da Federação caracterizarem-se como espaços
de rotatividade migratória, ou seja, onde os volumes de entradas e saídas de
migrantes se compensam;
IX) A incerteza sobre o comportamento da mobilidade dos brasileiros na escala in-
ternacional, ressaltando-se a importância das migrações de retorno.

Assim, nas últimas décadas, os movimentos internos de população têm se concentrado:

Numa faixa ao longo do litoral, quando se considera o número de centros urba-


nos, o tamanho populacional destes centros, bem como a localização dos prin-
cipais nós difusores da rede de cidades;
Em espaços onde a atividade agropecuária está cada vez mais vinculada ao pro-
cesso geral de urbanização do território brasileiro, seja pela transformação de sua
base técnica, seja por sua inserção nos complexos agroindustriais e na circulação
de produtos e matérias primas;
Como também para áreas de produção mineral.

Seriam configurações que resultam de economias complexas, que articulam atividades


agrícolas e industriais diversificadas, com infraestruturas sofisticadas para produção,
armazenagem, distribuição e circulação de produtos e serviços. São, de modo geral,
aglomerações urbanas, eixos de crescimento, áreas de agricultura moderna e de expan-
são agrícola e exploração mineral, centros urbanos isolados, entre outras formas.

Este comportamento das migrações internas responderia à nova divisão internacional


do trabalho, que estaria transferindo para os países periféricos etapas inferiores dos
processos de produção, sendo reservadas aos países centrais etapas mais avançadas e o
controle tecnológico e financeiro, cabendo aos primeiros um papel de complementa-
riedade na produção mais geral (Marini, 2012).

Todas essas transformações no âmbito econômico contaram com a efetiva participação


do Estado, assegurando o maior controle da mão de obra ao regular o mercado de
trabalho, e propiciando a infraestrutura necessária, embora precária, à realocação das
atividades econômicas, como também praticando renúncia fiscal, de modo a incentivar
e facilitar o acesso às novas locações.

Do ponto de vista das migrações internas, essa aliança entre capital e Estado
redirecionou ou, melhor dizendo, gerou novas rotas migratórias. E, ao precarizar e fle-
xibilizar as relações de trabalho, também colocou em xeque, muitas das vezes, alguma
GT DE 23
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

possibilidade de mobilidade social envolvida na decisão de migrar. Brito (2008) assi-


nala que a mobilidade espacial estaria mais associada à busca pela sobrevivência do que
à concretização da mobilidade social. Um outro resultado dessa aliança entre Estado e
capital, como demonstram as evidências empíricas, foi, por um lado, a maior imobili-
dade dos indivíduos e, por outro, movimentos em distâncias mais curtas.

A combinação desses fatores levou, ao mesmo tempo, à estagnação e ao esvaziamento


de alguns espaços, e à concentração de população em outros.

A nossa proposta é buscar a redistribuição da população no território


através da intervenção do Estado, não em aliança com capital, mas com
vistas a gerar assentamentos e polos de desenvolvimento econômico
e social inclusivos e sustentáveis, dotados de infraestruturas em saúde,
educação, serviços públicos e lazer.

2.2 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS


Nas décadas mais recentes, os movimentos internacionais de população oscilaram mui-
to em relação ao sinal do saldo migratório. Nos anos 80 e 90, o que se assistiu foi a
saída de brasileiros em volumes importantes, como jamais vistos anteriormente. Nesse
período, a entrada de estrangeiros não compensava o número de partidas que se dirigi-
ram, inicialmente, para os Estados Unidos e depois Europa (Portugal, Espanha, Itália
e Reino Unido) e Japão.

Os anos 2000 começaram ainda com saldo negativo. Já do meio para o final da década,
o que se observou foi o retorno de brasileiros e a chegada de migrantes vindos da Eu-
ropa, dos EUA e da China. Em grande medida, devido à crise econômica que atingiu
principalmente os países capitalistas centrais, destino preferencial da emigração brasi-
leira. Contribuíram também para o aumento do saldo migratório a imigração vinda
dos países sul-americanos, facilitada pelo Acordo de Residência dos Países Membros
ou Associados ao Mercosul; a migração haitiana, favorecida pela concessão de vistos
humanitários; e, em menor medida, o acolhimento aos refugiados sírios, aos imigrantes
africanos do Senegal, República Democrática do Congo, Gana e Angola e dos asiáticos
com origem em Bangladesh.

Esse cenário perdurou até 2014, momento que a crise econômica se instala no Brasil. A
partir daí o que se tem observado é o aumento na saída de brasileiros, para os EUA e a
Europa, e de estrangeiros, combinada à menor atração de imigrantes.

Se por um lado, a recém aprovada Lei de Migração favorece enorme-


mente a adoção de políticas de atração migratória, por outro lado será
necessário que a economia do país ganhe novo dinamismo, de modo
não só a tornar o país atrativo para os imigrantes como também a pro-
porcionar uma maior retenção de brasileiros.
24 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

No que diz respeito à questão migratória, começam a surgir manifestações racistas e


preconceituosas, de alguns segmentos reacionários, os quais recentemente se desco-
briram mobilizados politicamente. Esses setores são contra a lei migratória, que foi
recentemente aprovada, que se baseia nos direitos humanos, ao contrário do Estatuto
do Estrangeiro fundado na segurança nacional. Alguns atos de hostilidades, dirigidos
sobretudo contra os imigrantes negros ou sírios, ocorreram aqui ou acolá, mas ainda
não se trata de nada muito preocupante, mas devemos estar atentos ao possível cresci-
mento desse sentimento reacionário.

São setores que, por ignorantes, querem surfar na onda xenófoba que assola a Europa.
Contudo, não se dão conta que, em realidade, não passam de racistas e preconceituo-
sos, dado que não manifestam nenhuma resistência aos imigrantes oriundos do Norte
Global, ainda maioria em nosso país.

2.3 DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA POPULAÇÃO


Aqui optou-se por analisar a distribuição espacial da população a partir das Regiões de
Articulação Urbana, cadeia hierarquizada de centros urbanos e suas áreas de influência,
que refletem a acessibilidade e a capacidade de atendimento a demandas por bens e
serviços de diferentes amplitudes e complexidades. Essas amplitudes e complexidades
deram origem a três níveis de articulação: Ampliada, Intermediária e Imediata. Sem
perder de mente a noção de relação hierárquica entre os níveis de articulação, nossa
proposta para pensar as políticas de redistribuição da população no território passaria,
fundamentalmente, pelas Regiões Imediatas de Articulação Urbana, dado que poderia
ser aproveitada a característica indutora dos municípios polos dessas regiões na disse-
minação do desenvolvimento local.

2.3.1 Tendência de crescimento

São 483 as Regiões Imediatas de Articulação Urbana. Elas se dividem em:


a) Regiões que tendem à estabilidade populacional – São aquelas com ritmo menos
intenso de crescimento. Representam a maioria das regiões (68,5%), o que favorece em
muito o planejamento. Estão localizadas basicamente na faixa litorânea do Nordeste ao
Sul e na região central do país.

Nessas áreas, no âmbito da política de redistribuição da população pelo


território, o Estado deveria atuar para induzir a emigração naqueles es-
paços mais densamente povoados, redirecionando parte da população
para aquelas áreas indicadas como possíveis receptoras de migração.
Para a população remanescente, deve ser assegurada a geração de tra-
balho, sobretudo no mercado formal.

b) Regiões com tendência ao crescimento ou já com forte atração populacional –


São aquelas com ritmo mais intenso de crescimento, comportamento observado em
GT DE 25
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

22,2% dessas áreas, que estão localizadas mais no Centro-Norte. Essas áreas crescem
em função de taxas de natalidade ainda altas e muito por conta da migração, como visto
anteriormente.

Esses espaços necessitarão de planejamento urbano, ampliação e me-


lhoria dos serviços públicos, além de políticas de inclusão social e for-
malização do mercado de trabalho.

c) Regiões que tendem ao esvaziamento ou já são áreas de perda de população – São


regiões com crescimento negativo. Tratam-se de poucos espaços, do ponto de vista quan-
titativo: apenas 45 Regiões, que representam 9,3% do total. Elas se espalham por todas as
Grandes Regiões do país. De um modo geral, a causa dessa perda populacional está asso-
ciada ao menor dinamismo econômico. A situação é mais crítica no Rio Grande do Sul,
tendo em vista que o esvaziamento populacional decorre da combinação entre os aspectos
econômicos e os fatores demográficos. Com a economia deprimida, os jovens emigram,
deixando para trás as pessoas idosas. Isto faz com que a população fique ainda mais enve-
lhecida, não gerando crianças e reduzindo as possibilidades de crescimento econômico.

Nesses espaços, a tarefa do Estado é induzir o desenvolvimento da eco-


nomia, buscando, ao máximo, sintonia com as vocações locais, de forma
a estimular a atração populacional.

2.3.2 Estágio da transição demográfica

Quando se analisa o estágio da transição demográfica nas Regiões de Articulação Urba-


na, é possível identificar que esses espaços acabam por refletir as assimetrias associadas
às diferentes etapas desse processo no país (OLIVEIRA e O´NEILL, 2016), reprodu-
zindo dentro de cada Grande Região geográfica diferenças internas. Nesse sentido, para
melhor apreender o momento da distribuição espacial dessa transição, foi necessário
criar algumas categorias que dessem conta de revelar o fenômeno nesse nível de de-
sagregação. Os tipos 1 (Jovem), 2 (Adulto jovem) e 3 (Processo de envelhecimento),
criados a partir das razões de dependência (relação entre o número de pessoas em idade
ativa e o total de idosos e crianças, fora da idade para trabalhar), buscam identificar o
estágio da transição em cada uma das Regiões de Articulação Urbana. Ou seja, apon-
tam como se distribui a concentração de jovens, de adultos e de idosos nas diferentes
regiões do país, de modo a orientar políticas públicas adequadas a cada uma delas, de
acordo com o perfil da sua população.

Nas Regiões Imediatas, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, a situação era
a seguinte:

Tipo 1 (jovem) – O tipo mais jovem aparecia em 46 das áreas investigadas, um pouco
menos de 10% das regiões, todas situadas no Norte e no Nordeste.
26 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

São espaços que ainda necessitam de investimento em educação bási-


ca, em função do elevado número de crianças e adolescentes. Na área
de saúde, requerem preocupação especial com as questões ligadas aos
cuidados materno-infantis. Além disso, planejar a indução do desenvol-
vimento econômico é fundamental não apenas para gerar empregos,
mas também reter população.

Tipo 2 (adulto jovem) – Essa faixa etária predomina em 236 das 483 Regiões Imediatas
de Articulação Urbana, distribuídas por todas as Grandes Regiões, com maior partici-
pação relativa no Nordeste e Centro-Oeste. A maior parcela desses espaços atravessa o
que poderia ser chamado de fase intermediária dessa etapa da transição, com o alarga-
mento da população em idade ativa.

Nessas áreas, a geração de empregos e a formalização da força de traba-


lho é primordial para o aproveitamento do que resta do bônus demo-
gráfico. Políticas orientadas para as questões de gênero também seriam
importantes, sobretudo nas relações de trabalho. O investimento em
ofertas de creche ajudaria a liberar a força de trabalho feminina.

Tipo 3 (processo de envelhecimento) – Foi verificado em 201 Regiões Imediatas de


Articulação Urbana, predominantemente no Sudeste e Sul, mas com alguma presen-
ça no Nordeste. No Centro-Oeste foi observado em apenas quatro das regiões, e no
Norte não houve ocorrência nessa categoria. O importante a destacar é que mais de
40% das Regiões de Articulação nessa escala já caminhavam para uma etapa mais
avançada da evolução demográfica, sinalizando tendência crescente no aumento da
população idosa.

São espaços que necessitam de intervenções mais imediatas na atenção


aos cuidados e à saúde do idoso. Na área médica, a oferta de especiali-
dades, equipamentos e profissionais de saúde voltados ao tratamento
das doenças crônico-degenerativas e neoplasias malignas devem ser
prioridades, bem como as questões relacionadas ao cuidado e integra-
ção do idoso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, a dinâmica populacional brasileira ainda permite, ao menos nos próximos


40 anos, aproveitar de uma abundante oferta de força de trabalho que pode contribuir
para a geração de riqueza e renda, a ser distribuída por toda a sociedade; enfrentar com
serenidade as questões relacionadas ao envelhecimento populacional, tais como, saúde,
previdência e cuidados e atenção à pessoa idosa; além de pensar políticas estritamente
populacionais, como o incentivo ao aumento das taxas de natalidade, à atração da mi-
gração internacional e à redistribuição da população no território.
GT DE 27
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

Deve ser ressaltado que, uma vez incentivada a migração, será gerado um efeito inercial
que alimentará novos fluxos, seja por estímulos das redes sociais estabelecidas, seja por
pedidos de reunificação familiar.

Em relação à política de redistribuição populacional, é uma dimensão na qual nosso


acúmulo é pequeno e precisamos investir. Já possuímos um diagnóstico a respeito da
distribuição espacial da população, o qual combina aspectos econômicos e aspectos
relacionados à transição demográfica, identificando espaços de expansão e de esvazia-
mento populacional. Os estudos devem avançar na identificação das vocações daquelas
áreas deprimidas e também na formulação de políticas que não só estabeleçam propos-
tas para o desenvolvimento econômico, mas também assegurem a plena integração da
população, garantindo pleno acesso aos serviços públicos básicos, como saúde, educa-
ção e transporte, além de moradia decente, cultura e lazer.

Neste ponto, nosso desafio será convencer a sociedade que não se está apresentando
mais uma política de colonização de eficácia duvidosa, como foram o “Exército da
Borracha” e a “Marcha para o Oeste”, de Getúlio Vargas, ou aquelas praticadas pelos
governos militares, que visavam ocupar o centro-norte do país. Em suma, pensar o
Brasil não pode estar descolado de um projeto mais amplo de nação, um projeto que
vise alcançar o desenvolvimento econômico e social inclusivo de todos os segmentos
da sociedade brasileira. E isso inclui desafios demográficos que devem ser enfrentados.

REFERÊNCIAS

BRITO, F. A transição demográfica e desigualdades sociais no Brasil. Revista Brasileira


de Estudos de População, v. 25, n.1, p. 5-26, 2008.

MARINI, Ruy M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2012 (Co-


leção Pátria Grande I).

OLIVEIRA, A.T.R, O´NEILL, M.M. Dinâmica demográfica e distribuição espacial


da população: o acesso aos serviços de saúde. In: Gadelha, P. et al (Orgs) Brasil Saúde
Amanhã: população, economia e gestão. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016.

SZWARCWALD, C.L. et al. Inequalities in healthy life expectancy by Brazilian geo-


graphic regions: findings from the National Health Survey, 2013. Journal for Equity
in Health (2016) 15:141 DOI 10.1186/s12939-016-0432-7. Disponível em https://
www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5112675/. Acesso em: 28/03/2017, às
14:50h.
28 GT DE
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

GLOSSÁRIO

TAXA BRUTA DE NATALIDADE (TBN)


Número de nascidos vivos, por mil habitantes, na população residente em deter-
minado espaço geográfico, no ano considerado.

TAXA BUTA DE MORTALIDADE (TBM)


Número total de óbitos, por mil habitantes, na população residente em determi-
nado espaço geográfico, no ano considerado.

TAXA LÍQUIDA DE MIGRAÇÃO (TLM)


Mede a intensidade com que o saldo migratório incide sobre a população resi-
dente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

TAXA DE FECUNDIDADE TOTAL (TFT)


Número médio de filhos nascidos vivos, tidos por uma mulher ao final do seu
período reprodutivo, na população residente em determinado espaço geográfico,
no ano considerado.

ESPERANÇA DE VIDA AO NASCER (E0)


Número médio de anos de vida esperados para um recém-nascido, mantido o
padrão de mortalidade existente na população residente, em determinado espaço
geográfico, no ano considerado.

POPULAÇÃO EM IDADE ATIVA (PIA)


É o segmento etário potencialmente produtivo (entre 15 e 59 anos de idade),
na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

RAZÃO DE DEPENDÊNCIA TOTAL (RDT)


Razão entre o segmento etário da população definido como economicamente
dependente (os menores de 15 anos de idade e os de 60 e mais anos de idade) e
o segmento etário potencialmente produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na
população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

RAZÃO DE DEPENDÊNCIA DE JOVENS (RDJ)


Razão entre o segmento etário da população mais jovem (menores de 15 anos de
idade) definido como economicamente dependente, e o segmento etário poten-
cialmente produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na população residente em
determinado espaço geográfico, no ano considerado.

RAZÃO DE DEPENDÊNCIA DE IDOSOS (RDI)


Razão entre o segmento etário da população mais idoso (60 e mais anos de idade)
definido como economicamente dependente e o segmento etário potencialmente
GT DE 29
DEMOGRAFIA E MIGRANTES

produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na população residente em determinado


espaço geográfico, no ano considerado.

REGIÃO DE ARTICULAÇÃO URBANA


São modelos concretos de diferenciação espacial do fenômeno urbano sob a pers-
pectiva das redes, mas, simultaneamente, identificando as áreas de influência dos
centros segundo sua atuação e capacidade de polarização, podendo assim ser
vistas, do ponto de vista metodológico, como um modelo híbrido.

REGIÕES IMEDIATAS DE ARTICULAÇÃO (RIM)


Foram identificadas a partir da subdivisão das Regiões Intermediárias. São re-
giões formadas em torno de Centros sub-regionais e Centros de zona, de atuação
abaixo dos de Capital regional e com centralidades definidas, também, confor-
me a intensidade e presença de atividades e produtos de menor complexidade.
As Regiões Imediatas possuem, de maneira geral, tamanho populacional e áreas
menores que as de nível Intermediário e suas ligações refletem a acessibilidade e
capacidade em atender a demandas de amplitude mais restritas.

TIPO 1 (JOVEM)
Para as áreas com razão de dependência dos jovens igual ou maior a 50%.

TIPO 2 (ADULTO JOVEM)


Regiões com razão de dependência de jovens menor que 50% e razão de depen-
dência de idosos menor que 12,5%.

TIPO 3 (PROCESSO DE ENVELHECIMENTO)


Regiões com razão de dependência de idosos igual ou maior que 12,5%.
GT DE
ESTADO, DEMOCRACIA,
PARTICIPAÇÃO POPULAR
E REFORMA DO
SISTEMA POLÍTICO
GT DE
32 ESTADO, DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO POPULAR
E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

ELEMENTOS ESTRATÉGICOS PARA NORTEAR


O DEBATE DO GTESTADO, DEMOCRACIA, P
ARTICIPAÇÃO POPULAR E REFORMA
DO SISTEMA POLÍTICO

A democracia ateniense, a original, era um governo de homens pobres, em defesa dos


interesses desses homens pobres. Quem assim a definiu foi Aristóteles. Ela excluía as
mulheres e os escravos, mas não era o governo dos senhores de escravos. Pelo contrá-
rio: os senhores de escravos e de terras eram adversários da democracia. O que fez da
democracia grega um fenômeno absolutamente original foi o fato de que ela sepa-
rou o exercício do poder político da propriedade da riqueza, colocando-o nas mãos
dos trabalhadores manuais, que dela fizeram uso para se preservar dos avanços dos
grandes proprietários sobre os seus direitos. A participação popular foi decisiva, por
exemplo, para manter a propriedade fundiária limitada e para impedir a escravidão
por dívida.

Essa associação direta entre participação política ampliada e defesa dos interesses dos
mais pobres constituiu o núcleo duro da democracia já em sua origem. Podemos con-
siderar que o aprofundamento dessa relação (ampliação do poder político e defesa dos
interesses dos oprimidos) é exatamente o que caracteriza o processo de afirmação per-
manente da democracia. E podemos também afirmar que democracia não é algo aca-
bado. Democracia é processo: é a inclusão permanente de novos segmentos oprimidos
em novos processos de tomada de decisão, sempre acompanhada pelo enfrentamento e
a redução dos elementos de opressão aos quais esses segmentos estão submetidos.

Pensar assim significa, evidentemente, deixar em segundo plano a concepção liberal


da democracia, que é fundada na ideia da separação entre as massas e o exercício do
poder e na afirmação de um conjunto de privilégios econômicos e sociais garantidos
por lei. Aquilo que há de efetivamente democratizante, nas democracias modernas, foi
introduzido de fora do sistema propriamente dito. Fundamentalmente, a democracia
se faz sentir nas sociedades capitalistas ocidentais com base na combinação entre voto
universal e direitos sociais. Ou seja, a combinação da ampliação da participação política
com a construção de mecanismos de proteção dos trabalhadores e trabalhadoras contra
a hiperexploração por parte do capital.

No Brasil, esse processo se deu de forma sempre contraditória, marcada por avanços
e recuos. Ele esteve no centro das lutas sociais que culminaram no golpe de 1964, e
1. Sobre o tema, por todos: BATISTA, ganhou forte impulso a partir do final da década de 70, quando um amplo conjunto de
Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio
de Janeiro: dois tempos de uma história. movimentos sociais, na luta pelo fim da ditadura, transformou o tema da participação
Rio de Janeiro: Revan, 2003.
2 ROBERT, Philipe. El ciudadano, el política num dos elementos centrais que deram sentido às grandes lutas de massas da
delito y el Estado. Barcelona: Atelier,
2003, p. 30. década de 80. A democracia participativa e/ou democracia direta tornou-se um dos
GT DE
ESTADO, DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO POPULAR 33
E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

fundamentos constitutivos desses movimentos. As prefeituras conquistadas pelo PT


(partido mais identificado com esses movimentos) e seus aliados, desde o final dos anos
80, foram caracterizadas pela adoção de diferentes formas de consulta e participação
popular, tais como o orçamento participativo. Mais tarde, nos governos federais petis-
tas, as conferências nacionais cumpririam papel semelhante, ainda que com poder de
decisão reduzido.

Por outro lado, os defensores do projeto neoliberal tiveram sempre muita consciência
de que a imposição de seu programa só poderia ser garantida através da redução dos ele-
mentos democráticos presentes nos sistemas políticos ocidentais. No Brasil, podemos
citar como exemplos desse cerceamento a Lei de Responsabilidade Fiscal e a autonomia
operacional do Banco Central, bem como a PEC do teto de gastos, aprovada pelo go-
verno golpista de Michel Temer.

A “proteção” da política macroeconômica e da política monetária, nos anos 90, contra


a influência popular estabelecida através do voto direto, constitui uma forma clara de
redução dos espaços democráticos que haviam sido conquistados através das lutas da
década anterior e encontravam-se previstos na Constituição. Para as elites, em espe-
cial o capital financeiro, é fundamental impedir que a vontade popular interfira no
gerenciamento da macroeconomia, uma vez que os interesses populares (a expansão
do emprego, por exemplo) entram em conflito direto com a os interesses dessas elites
(contenção dos gastos públicos e juros altos, por exemplo).

Depois dos pequenos avanços observados nos governos federais petistas, o que estamos
presenciando, com Michel Temer na Presidência, é um retorno ao processo de fecha-
mento dos espaços de influência democrática sobre a distribuição da riqueza. É o que
se observa, por exemplo, com o congelamento de gastos públicos.

Nessa conjuntura de ofensiva conservadora, a construção de um projeto democrati-


zante para o Estado brasileiro precisa ser pensada em dois movimentos estratégicos
distintos e combinados.

O primeiro movimento é reativo, voltado para a preservação dos elementos demo-


cráticos presentes no arcabouço institucional existente. Os seguintes itens devem ser
destacados, nesse sentido:

1. Lutar para reverter a PEC dos gastos, que retira dos governantes eleitos a capaci-
dade de tomar iniciativa política nos campos orçamentário e fiscal. (Ao congelar
3 BINDER, Alberto. Política de seguridad
os gastos, a PEC impediu que políticas voltadas para a resolução dos problemas do y control de la criminalidad. Buenos
povo possam ser implementadas, especialmente no que diz respeito aos gastos com Aires: Ad-Hoc, 2010, p. 12.
4 BINDER, Alberto. Política de seguridad
saúde e educação). …, cit., p. 45.
5 DIETER, Maurício Stegemann. Política
2. Enfrentar eventuais iniciativas voltadas para o aprofundamento da autonomia do criminal atuarial: a criminologia do fim
Banco Central. (Somente aquelas pessoas que receberam mandato do povo, através da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
GT DE
34 ESTADO, DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO POPULAR
E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

do voto, devem ter o direito de tomar decisões sobre a moeda e a taxa de juros; a
vontade popular busca sempre o desenvolvimento e o emprego).
3. Barrar qualquer iniciativa destinada a esvaziar a autoridade da Presidência da Repú-
blica em favor do Congresso Nacional. (É fundamental garantir a decisão soberana
do voto popular, tal como está previsto no resultado do plebiscito de 1993, que
rejeitou o parlamentarismo).
4. Garantir a realização de eleições presidenciais em 2018 e impedir manobras que
restrinjam a participação de candidaturas do campo popular.
5. Lutar contra o desmonte dos mecanismos institucionais de participação popular.
6. Associar sempre as lutas colocadas pela conjuntura, por exemplo as reforma da pre-
vidência e trabalhista, com a luta pela necessária reforma democrática do sistema
político.

O segundo movimento é afirmativo e passa pela retomada da pauta democrático-par-


ticipativa construída pelos movimentos sociais, dos anos 70 aos 90, e pelo combate às
iniciativas antidemocráticas posteriores à aprovação da Constituição de 1988:

1. Afirmação dos mais diversos tipos de mecanismos participativos e de democracia


direta.
2. Esses mecanismos devem ser pautados pela diversidade e devem significar um avan-
ço efetivo na superação de todos os tipos de opressão social; devem ser igualitários
em termos de gênero, de raça, de etnia, de orientação sexual, etc. e devem garantir
o acesso das camadas sociais subalternas aos processos de tomada de decisões polí-
ticas.
3. Isto significa reafirmar da importância de conselhos e conferências e do estabele-
cimento de outras formas concretas de controle social; para isso é necessário uma
avaliação profunda destes mecanismos.
4. Esse resgate passa, ainda, pelo aprimoramento da democracia representativa, tendo
como elemento central uma reforma política que garanta uma representação mais
efetiva da vontade popular, que enfrente as subrepresentações (trabalhadores/as,
mulheres, negros/as, juventudes, etc) e o fim da influencia do poder econômico nas
decisões públicas, através da restrição de todas as formas de financiamento privado
das campanhas eleitorais.
5. Reversão dos mecanismos de restrição da vontade popular, estabelecidos no perí-
odo anterior de ofensiva neoliberal, tais como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a
autonomia operacional do Banco Central.
6. Um profundo processo de refundação do Estado, refundação alicerçada na sobera-
nia popular e na perspectiva da construção do poder popular.
7. Articular a reforma do sistema político com as discussões sobre a democratização da
informação e da comunicação e a democratização do sistema de justiça.
8. Pensar a democratização da política e sua relação com a democratização da econo-
mia.
GT DE
ESTADO, DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO POPULAR 35
E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

Esses dois movimentos podem e devem ocorrer de maneira combinada e articulada, no


mesmo período de tempo, levando em conta, no entanto, a correlação de forças, como
critério para a configuração da pauta prioritária em cada momento. É fundamental,
ainda, que ambos os movimentos sejam compreendidos como partes de uma estratégia
mais ampla, voltada para o aprofundamento permanente e radical da democracia, en-
tendida como controle popular sobre as decisões políticas e sobre a economia.

6 Há quem defenda a necessidade de


um sistema institucional de gestão
dos confitos, ou seja, um conjunto
de regras, instancias, procedimentos,
agências e agrupamento de pessoas
cuja atividade e função se vincula
à busca de soluções à atividade de
administrar conflitos. Por todos:
BINDER, Alberto. Política de seguridad
…, cit., p. 22.
GT DE
FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
GT DE
38 FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

PREPARANDO A CENA

Nos últimos anos, ocorreram importantes transformações na estrutura econômica,


política e social brasileira, tornadas possíveis graças à recuperação da capacidade do
Texto elaborado a partir das discussões Estado de planejar e agir, sobretudo em cooperação entre os entes da Federação. Essa
e documentos produzidos pelo Núcleo
Celso Daniel de Administração Pública recuperação permitiu que o crescimento econômico fosse orientado à redução das de-
do Partido dos Trabalhadores.
sigualdades sociais e regionais, em um ambiente de retomada do investimento público
e de maior protagonismo estatal na indução do investimento privado, assim como de
fortalecimento do mercado interno.

Para que aquelas transformações ocorressem, foi decisivo o esforço de melhoria da ca-
pacidade de gestão do Estado brasileiro, o que incluiu diversas iniciativas, desde o
fortalecimento das carreiras típicas do Estado, como a valorização e o aumento do con-
tingente de servidores públicos, as inovações normativas que aumentaram a transparên-
cia e o controle social _como a Lei de Acesso à Informação, o Marco Regulatório das
Organizações da Sociedade Civil, o Regime Diferenciado de Contratação para obras e
serviços –, passando por novos arranjos institucionais, como o consórcio público, bem
como ações de inclusão, como a busca ativa para qualificação do Cadastro Único das
Políticas Sociais, entre outras iniciativas inovadoras, especialmente na área da gestão da
saúde e da educação.

Apesar desses avanços, temas relacionados ao Pacto Federativo ou à Administração Pú-


blica não entraram na agenda política do País, e por isso não foram devidamente dis-
cutidos e sistematizados, dificultando o reconhecimento das transformações verificadas
nos governos Lula e Dilma e assim limitando o potencial de mudança a elas associado.
Lamentavelmente, o Estado brasileiro ainda funciona a partir de mecanismos com for-
tes marcas conservadoras, que impedem a ação governamental de alcançar sua plena
efetividade. É por isso um Estado apartado das camadas mais pobres da sociedade,
pouco permeável à necessária apropriação pelo cidadão.

Para que o Brasil possa aprofundar esse projeto político, no qual o Estado possui papel
central para o desenvolvimento nacional e cada cidadão se sente parte ativa, é neces-
sário avançar nas transformações do arcabouço institucional, o que demanda novas
formas de se fazer e se pensar o Estado.

O FORTALECIMENTO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil está organizado como um Estado Federal, mas como uma Federação muito
peculiar no mundo, pois é a única que reconheceu os municípios (nível local) como
entes federativos na sua Constituição. A República Federativa do Brasil é, portanto,
formada pela união indissolúvel dos 26 estados, 5.568 municípios e o Distrito Federal.
GT DE
FEDERALISMO E 39
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Além disso, o Brasil adotou um modelo federativo cooperativo, onde muitas compe-
tências são comuns, ou seja, devem ser exercidas de forma conjunta pelas diferentes
esferas de governo.

Essa característica trouxe, por um lado, enormes avanços democráticos com a amplia-
ção de serviços e o aperfeiçoamento dos canais de controle e participação social, que
contribuíram para a nossa, ainda precária, democratização, uma vez que o município
está mais próximo do cidadão e é capaz de atender às especificidades de cada região.
Por outro lado, também trouxe mais complexidade às nossas relações federativas, pois a
concertação das políticas públicas nacionais precisa ser feita entre três diferentes níveis
de governo, todos autônomos entre si.

No entanto, falta à Federação brasileira instrumentos adequados à coordenação das polí-


ticas públicas no território, seja na perspectiva intersetorial, bem como intergovernamen-
tal. No Brasil, a capacidade dos níveis maiores de governo induzir estratégias e comporta-
mentos das demais esferas federativas, sobretudo dos governos locais, baseia-se quase que
exclusivamente na transferência de recursos financeiros (“spending power”).

As regiões metropolitanas são grandes exemplos desse deficit de cooperação federa-


tiva. Dentre os desafios que as regiões metropolitanas enfrentam, estão a fragilidade
dos aspectos políticos, financeiros e institucionais da gestão metropolitana, que vêm
impedindo que haja um pacto social e territorial nessas regiões: em cada Estado foram
adotados critérios e modelos distintos; na maior parte das Regiões Metropolitanas o
órgão gestor é estadual, as estruturas de paridade com municípios ainda são teóricas;
os fundos metropolitanos e outros instrumentos de financiamento do desenvolvimento
regional são praticamente inexistentes. A superação dos desafios das grandes metrópo-
les brasileiras passa pela integração das políticas setoriais no território e pela integração
do território em si, nas suas diversas escalas: intraurbana, regional e nacional. O que
só vai acontecer, considerando a atual Constituição federativa, por meio da articulação
dos três níveis de governo em estruturas de governança metropolitana.

O Governo Lula inaugurou uma nova relação com estados e municípios. Uma relação
mais republicana, que não tomou os vínculos partidários como critérios de decisão
para a articulação federativa, e foi capaz de qualificar as relações intergovernamentais e
pactuar políticas públicas de forma institucional, considerando cada município como
parceiro estratégico do desenvolvimento do país.

Merecem destaque, de um lado, a criação do Ministério das Cidades, que unificou


num mesmo órgão as políticas de desenvolvimento urbano (habitação, saneamento,
transporte e planejamento urbano), facilitando o apoio do Governo federal a estas fun-
ções municipais de forma integrada, e, de outro, a criação do Comitê de Articulação
Federativa (CAF), uma instância permanente de diálogo e pactuação entre o Governo
Federal e os municípios, diretamente vinculada à Presidência da República.
GT DE
40 FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Essa nova relação ganhou densidade ao longo de 13 anos (2003 - 2015) e produziu ga-
nhos efetivos, principalmente para os municípios, como a ampliação da base tributária
própria, com revisão da lei do Imposto sobre Serviços (ISS)1; a transferência aos muni-
cípios da arrecadação integral do Imposto Territorial Rural (ITR)2; o aumento de mais
2% da parcela do Fundo de Participação dos Municípios (FPM)3; o repasse direto do
Salário Educação e a criação do Simples Nacional, que unificou os tributos das médias
e pequenas empresas.

Com essas e outras medidas, registrou-se um aumento das transferências de recursos


federais para os municípios desde 2003. Segundo dados da Secretaria de Tesouro Na-
cional4, tivemos um crescimento real de 76% do FPM na última década. Além disso,
foram implementadas durante os Governos Lula e Dilma diversas políticas sociais e
benefícios previdenciários que transferiram recursos diretamente ao cidadão, como é o
caso do Bolsa Família e da política de aumento do salário mínimo, que contribuíram
significativamente para dar sustentabilidade econômica às regiões menos desenvolvidas
do país, oferecendo dignidade aos brasileiros e brasileiras e minimizando demandas
sociais na porta dos prefeitos e prefeitas.

O diálogo com os municípios também contribuiu para aprovar diversas leis que favore-
ceram os investimentos públicos e privados nos territórios. Alguns exemplos: o parce-
lamento das dívidas previdenciárias, a Lei dos Consórcios Públicos, a Lei das Parcerias
Públicas Privadas (PPP), a Política Nacional de Saneamento, o Sistema e o Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social e, mais recentemente, a Política Nacional de
Resíduos Sólidos.

Com o mesmo objetivo, foram fortalecidos e ampliados os sistemas nacionais como


o Sistema Único de Saúde - SUS, o Sistema Único de Assistência Social - SUAS, o
Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, o Sistema Nacional de Habitação
de Interesse Social - SNHIS, o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP, o Sistema
Nacional de Cultura - SNC etc. que adotam um modelo de gestão compartilhada das
1. A arrecadação do ISS aumentou,
em média, 11,9%, em termos reais, políticas públicas por meio de comissões tripartites e controle social. Estados e municí-
de 2004 a 2012, e 2,1%, de 2013 em
relação a 2012. (Fonte: MultiCidades, pios foram respeitados como parceiros estratégicos das políticas nacionais e do projeto
2013).
2. Já existem mais de 1.500 municípios nacional de desenvolvimento do país.
conveniados com a Receita Federal do
Brasil. (Fonte: RFB, 2013).
3. 1% pela EC 55/2007, e mais 1% No entanto, a Federação brasileira ainda é muito desigual. Essa desigualdade se expres-
pela EC 84/2014. (Fonte: Constituição
Federal/88) sa entre as regiões do País, sobretudo na dicotomia norte-sul. Mas não só. O universo
4. Em valores nominais, o montante
de recursos do Fundo de Participação
dos municípios brasileiros também é marcado por grandes diferenças em relação a den-
dos Municípios (FPM), descontada
a parcela do FUNDEB, passou de
sidade demográfica; dinâmica econômica; indicadores sociais; arrecadação tributária;
aproximadamente R$ 21,32 bilhões, em e capacidade técnica e gerencial de suas administrações públicas: 70% dos municípios
2004, para R$ 64,15 bilhões, em 2014.
Se considerarmos a inflação medida têm menos de 20 mil habitantes e abrigam apenas 18,2% da população brasileira. Os
pelo IPCA de dezembro de 2014, houve
aumento real de aproximadamente 283 municípios com mais de 100 mil habitantes acumulam aproximadamente 70% de
76%, de 2014 em relação a 2004, no
montante de recursos repassados pela toda a renda do País, enquanto os 3.915 municípios com até 20 mil habitantes repre-
União aos Municípios, a título de FPM.(
Fonte: STN/MF) sentam menos de 10% da renda nacional.
GT DE
FEDERALISMO E 41
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Por isso, qualquer proposta de Reforma Federativa deve levar em conta o enfrentamen-
to dessas desigualdades e o papel na União na redistribuição equitativa dos recursos no
território nacional, bem como, incentivar instrumentos de cooperação federativa e so-
lidariedade territorial, como os consórcios públicos e colegiados regionais ou setoriais.

Nesse sentido, são inúmeras as propostas de repartição das receitas públicas, todas sob o
argumento da concentração dos recursos pela União. É inegável a concentração oriunda
do regime militar e da criação das chamadas contribuições nos anos 90, mas também
é importante ressaltar o papel dos investimentos federais estratégicos que impulsiona-
ram o crescimento do País e o eficiente combate à desigualdade. Sem uma estratégia
nacional e os correspondentes recursos para isso, o País não teria atingido os níveis de
inclusão social e geração de renda alcançados.

Em inúmeras situações é possível afirmar que a centralização de atividades e com-


petências na União podem surtir bons efeitos, como, por exemplo, nas compras go-
vernamentais de bens e serviços comuns em grandes escalas, como material escolar,
medicamentos, dentre outros. Ou, ainda, na elaboração de projetos de engenharia e
aquisição de equipamentos que podem ser padronizados (computadores, ambulâncias
etc.). Noutros casos, a descentralização pode ser o melhor caminho, abrindo caminho
para a inovação e a criatividade no desenvolvimento local, a exemplo do orçamento
participativo, projetos de economia solidária e incentivo as micro e pequenas empresas,
em especial, à agricultura familiar.

Em suma, há casos em que convém concentrar competências na União, há casos em


que é melhor descentralizar competências para os Estados ou para os municípios. O
importante é que essa escolha seja fruto de um pacto, que respeite as autonomias dos
entes da Federação e fortaleça a cooperação federativa, seja por meio de um sistema
nacional com participação da União, Estados e Municípios, por meio de consórcios
públicos, ou quaisquer outros mecanismos de articulação regional. Não há, portanto,
como prescrever um único modelo de gestão para todas as áreas, sendo necessário que
cada política setorial amadureça e apresente propostas de arranjo federativo adequadas
às suas necessidades.

Para isso, é fundamental, no entanto, ampliar os instrumentos jurídicos e administra-


tivos disponíveis para que as regras administrativas não restrinjam as possibilidades a
cada uma das políticas ou a cada um dos entes federativos. Assim, a Lei dos Consórcios
Públicos foi uma inovação importante, mas é preciso ampliar o gradiente de instru-
mentos, de modo a poder ofertar aos gestores também outras estruturas de administra-
ção indireta e de entidades paraestatais.

Enfim, são necessárias novas estratégias de pactuação federativa que favoreçam a


cooperação federativa e que acelerem o fortalecimento dos Estados e, em especial,
dos Municípios. Também é preciso aumentar os repasses automáticos aos entes sub-
GT DE
42 FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

nacionais em termos de proporção da arrecadação da União. Trata-se de combater


uma visão negativa de desconfiança dos governos locais, dotando-os dos recursos e
instrumentos necessários para atender às demandas locais. Assim, ao invés de impor
controles a priori para o gasto, deve-se oferecer aos prefeitos e governadores mais
flexibilidade para suas escolhas políticas, exigindo, por outro lado, maior responsa-
bilidade pelos resultados, perante aos cidadãos e órgãos de controle.

Para tanto, o sistema político e os mecanismos de difusão de informações precisam ser


reformados para estimular a população a rejeitar nas urnas os maus gestores e aprovar
aqueles que atenderam suas expectativas. Busca-se que o Governo Federal deixe gra-
dualmente de atuar de maneira tutelar e com o viés de controle e que passe a articular
políticas públicas em harmonia com a autonomia política dos entes subnacionais, res-
peitando as realidades de cada localidade.

Por isso, faz-se necessária uma repactuação da Federação brasileira sob as seguintes
bases: aprofundamento dos ganhos acumulados nos Governos Lula e Dilma pelos esta-
dos e municípios; fortalecimento dos instrumentos de cooperação federativa e sistemas
nacionais das políticas setoriais, como o SUS; descentralização de recursos e compe-
tências, que possibilite mudanças graduais e mais profundas e o compromisso com a
redução das desigualdades regionais e sociais.

A partir dessas bases, o item central para o ajustamento do pacto federativo no Brasil
é a reforma tributária. É preciso destacar não apenas a necessidade de progressividade,
mas também a simplificação do sistema e a centralização do processo de arrecadação
e de sua fiscalização. Defende-se, portanto, a existência de três tributos: um sobre a
propriedade (imóveis, automóveis, embarcações, dinheiro etc); um sobre a renda (sa-
lários, honorários, dividendos, lucros etc); e outro sobre o valor agregado (comércio, e
circulação de mercadorias, indústria, serviços etc). Os tributos poderiam ser cobrados
pelos níveis maiores (algo a ser estudado e pactuado, com vistas à eficiência e à redução
de personalismos) e, do montante arrecadado, deveria-se ampliar o percentual de com-
partilhamento com os entes subnacionais.

Outra necessidade em linha com a política de aumento do salário mínimo já implemen-


tada nos governos Lula e Dilma é a elevação dos pisos nacionais, a exemplo de policiais e
professores – que impacta no sentido de garantir padrão mínimo de qualidade dos serviços
públicos por meio do estabelecimento de um piso nacional que valorize esses profissionais.
Ademais, a transferência de recursos para que Estados e municípios possam pagar pisos
nacionais mais altos, do ponto de vista econômico, funciona como mecanismo de redução
de desigualdades e de ampliação do consumo, vez que possuem alto fator multiplicativo.
Assim, esse é um tema que deve estar presente na discussão da Administração Pública
quanto aos arranjos federativos. Diferenças regionais podem ser compensadas na forma
de complementos aos pisos, nos moldes do que ocorre com o Bolsa Família, em que cada
Estado ou município pode conceder um complemento aos seus respectivos beneficiários.
GT DE
FEDERALISMO E 43
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Evidentemente, qualquer mudança no pacto federativo brasileiro deve ter em vista a


necessidade de uma pactuação política com ampla participação das populações en-
volvidas, assentada em princípios éticos, que coloquem a solidariedade, a promoção
da igualdade, a inclusão social e a sustentabilidade sócio-ambiental, como pilares da
política tributária e da reconstrução de amplas capacidades estatais e das instâncias de
construção coletiva como diretoras da política institucional e dos processos decisórios
nacionais.

Não se trata, portanto, de propor soluções a priori para a articulação federativa em cada
uma das políticas públicas existentes ou demandadas pela população, mas de suspender
pressupostos fixados no Estado por uma lógica neoliberal que orienta práticas e normas
estatais a atuações tímidas e concentradoras. Trata-se, assim, de reacender um debate
federativo capaz de levar as esperanças de um país mais justo, solidário e sustentável a
cada uma das localidades brasileiras – cada uma com sua distinta realidade social – e
elevar os sentidos de nação soberana e de autodeterminação popular como base das
ações coletivas do país, o que está cada vez mais ameaçado no mundo, e mais acentua-
damente no Brasil pós-golpe.

CAMINHOS PARA UMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À ESQUERDA

O Estado brasileiro é historicamente marcado por uma dominação escravocrata, oli-


gárquica, patriarcal, machista e insensível a pleitos das classes populares. Mais recen-
temente, foi moldado para assegurar o cumprimento das diretrizes do Consenso de
Washington, prevendo que funções públicas – como saúde, educação, regulação das
relações de trabalho, e fomento da produção agrícola e industrial – se submeteriam ao
protagonismo da iniciativa privada.

Nessa linha, após a ditadura militar e um período de superinflação que aprofunda-


ram as desigualdades já enormes, o Brasil, marcado por arranha-céus e iates de um
lado e miséria e fome do outro, passou no governo FHC por uma reforma gerencial
que enxergava o Estado como algo intrinsecamente negativo que deveria se limitar a
um conjunto mínimo de funções executadas com técnicas de gestão empresarial. Tra-
tava-se de alienar ainda mais as classes populares da gestão dos recursos nacionais. Para
isso, a reforma promoveu a terceirização de serviços públicos e um amplo programa
de privatizações de estatais, atrofiando a capacidade estatal para a promoção do de-
senvolvimento, com a desvalorização de servidores públicos e a precarização de seus
instrumentos e condições de trabalho, atrofiando com isso a capacidade estatal para a
promoção do desenvolvimento.

Como resultado desse processo, forjou-se um Estado orientado para o “não fazer”, bu-
rocratizado em seus procedimentos, cheio de controles que travam qualquer impulso
transformador, autoritário em seus métodos, eficientíssimo em preservar o status quo e
solapar direitos individuais e sociais, além de obliterar os objetivos constitucionais. A
GT DE
44 FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

precariedade da gestão assim forjada era consciente, e serviu para converter o Estado


brasileiro no escritório de gerenciamento de negócios privados que extrapolavam as
fronteiras nacionais. 

A reforma do Estado levada a cabo por FHC e Bresser se deu sob o solo “fértil” do senso
comum absorvido pela opinião pública, ou opinião publicada fortemente privatizada,
numa simbiose estratégica entre os oligopólios midiáticos nacionais e internacionais
num quadrante histórico em que a imposição do neoliberalismo ao mundo era um
“comando central”. Assim, os valores e representações do neoliberalismo “coincidiram”
com os da sociedade.  Os elementos da narrativa da história brasileira semeada no
imaginário coletivo tais como, por exemplo, a representação da corrupção endêmica na
vida pública como principal problema nacional deram sentido à delapidação do patri-
mônio público e das capacidades estatais.

Em outras palavras, as condições objetivas e subjetivas para a reforma neoliberal do Es-


tado estavam plenamente colocadas. Havia ali uma hegemonia estabelecida para esta
“dimensão administrativa” – que aliena ainda mais as camadas populares das estruturas
sociais que lhes dizem respeito, sobretudo o Estado, mas também a educação, o banco, o
mercado, a segurança alimentar - da estruturação do neoliberalismo no Brasil que se man-
teve mesmo após a mudança de governo, uma vez que alguns de seus pilares centrais não
foram ainda mexidos, especialmente o sistema político, a política fiscal e a mídia.

É verdade que os governos Lula e Dilma ousaram enfrentar vários dos nós críticos
do Estado brasileiro – planejamento e orçamento participativo, cotas raciais, ProUni,
Fies, Bolsa Família, PAC, RDC, fortalecimento do SUS e do SUAS, políticas para
as mulheres, Pronatec -e inúmeros outros exemplos podem ser apontados. Contudo,
também é verdade que muitos dos gestores destes governos incorporaram princípios
neoliberais, sobrevalorizaram os receituários do mercado para a solução dos problemas
da administração pública, e reforçaram, muitas vezes, estruturas do Estado resistentes
à transformação social. Não disputamos como deveríamos os métodos de seleção e for-
mação de servidores públicos, não conseguimos alterar os fundamentos de uma política
econômica orientada para interesses rentistas e do mercado de capitais estrangeiro; não
aprofundamos a reforma agrária; não alteramos significativamente as normas de gestão
orçamentária e financeira; não disputamos as reformas políticas, tributária, do judiciá-
rio, dos meios de comunicação etc.

Em 2016, a democracia brasileira sofreu um golpe de Estado parlamentar-jurídico-


-midiático. A presidenta Dilma foi deposta por meio de um processo de impeachment
articulado entre parcelas das burocracias estatais (ministros do STF, procurador-geral e
procuradores do Ministério Público, policiais federais e auditores do TCU), os grandes
meios de comunicação cartelizados, e partidos políticos de centro-direita que, apoiados
pelo grande capital nacional (e.g. FIESP, FEBRABAN) e internacional (e.g. Koch Bro-
thers), ousaram pôr abaixo o princípio da soberania do voto popular.
GT DE
FEDERALISMO E 45
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Dentre outros aspectos, o golpe irrompido em 2016 revela a fragilidade das gestões à es-
querda na disputa interna das burocracias e até de parcela da população. Aumentamos
salários e benefícios, realizamos concursos públicos, valorizamos os servidores em geral,
mas não fomos capazes de politizá-los, de vaciná-los contra o poder midiático. Por
outro lado, grande parte da população brasileira, que tanto se beneficiou das gestões
capitaneadas pelo PT à frente do governo federal, ficou apática para defender a presi-
denta Dilma diante do golpe – deixou-se abater ou contaminar por um barulho da elite
que havia perdido as eleições. A crise econômica, juntamente com a manipulação de
informações promovida, sobretudo, pelos grandes meios de comunicação, mas também
por agentes da oposição nas redes sociais, foi capaz de desmobilizar a massa popular que
elegeu Lula e Dilma quatro vezes consecutivas para governar o país. 

Num Estado capitaneado pela esquerda por 13 anos havia - e há - atores poderosos:
servidores concursados e ocupantes de cargos altos no executivo, nos órgãos de con-
trole, no judiciário e no parlamento, que utilizaram regras da gestão orçamentária e
financeira, leis, normas e ritos de processos administrativos, legislativos e judiciários,
tudo para fazer política antipopular. As circunstâncias parecem reforçar a urgência de
uma maior reflexão da esquerda brasileira sobre o Estado e suas entranhas, seus ritos e
procedimentos internos, sua constituição e orientação ideológica, suas possibilidades e
limites.

Em primeiro lugar, é necessário elaborar um modo de concepção, desenho, execução,


monitoramento e avaliação de políticas públicas em que a construção coletiva, para
além da mera participação, não seja uma característica marginal, mas central, impres-
cindível e fator de distinção das políticas de esquerda. Para isso, é necessário estimular
a cultura do debate na sociedade e reencantar os partidos e as pessoas em torno das
decisões coletivas, assim como avançar no desenho e implantação de mecanismos que
promovam sua efetividade, de modo que ela seja, de fato, método de governo. A con-
quista do poder não deve ser para concentrá-lo, mas para distribuí-lo, sobretudo aos
historicamente alijados.

Em segundo, é preciso dar atenção remoção das travas à ação estatal colocadas pelas
elites, sobretudo sob a ideologia neoliberal, e estabelecer condições para a implantação
de arranjos que viabilizem a execução e aprimoramento das políticas voltadas à garantia
de direitos, à promoção da inclusão social e à redução de desigualdades. De fato, apesar
das melhorias alcançadas nos últimos anos, a Administração Pública no país ainda é
marcada pelo emaranhado de mecanismos que emperram a ação do Estado e afastam-
-no da influência popular.

O excesso de burocracia e a lógica de controle do gasto público são incapazes de com-


bater eficazmente a corrupção e ainda geram ineficiência. É necessário alterar as estru-
turas e instrumentos herdados para ampliar a capacidade de implantação de um projeto
político de esquerda. Deve-se definitivamente romper com a visão do Estado como
GT DE
46 FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

mal necessário e situá-lo como agente central no projeto de desenvolvimento do país,


novamente legitimado como coordenador, regulador, planejador e executor das inter-
venções econômicas e sociais. Para isso, é crucial ressignificar o conceito de reforma do
Estado, desfazendo as associações quase espontâneas a choques de gestão e redução de
gastos, que guiam parte das forças de oposição. 

Um ponto central para a reconstrução de ideais de esquerda é a melhoria da percepção


do Estado. Valorizar o coletivo em detrimento do individual, a cooperação em detri-
mento da concorrência, e a comunidade em detrimento da propriedade privada. Para
tanto, é preciso que as pessoas possam identificar os lados positivos da ação estatal. Isso
pode ser feito, sobretudo, pela prestação de serviços públicos de alta qualidade. Enten-
dendo que há limites impostos pelas restrições orçamentárias e financeiras, é preciso
atentar para possibilidades de criação de alguns nichos de excelência, progressivamente
ampliados, na prestação de serviços que criem um sentimento na população de iden-
tificação e defesa do público. A ideia central é quebrar a cadeia que leva à associação
espontânea do serviço público como algo precário, de qualidade inferior. Acreditamos
que o desenho de políticas e arranjos federativos também deve considerar esse aspecto
em sua formulação, a ser tratada caso a caso, em cada uma das políticas setoriais e na
elaboração de qualquer plataforma de governo.

Finalmente, é preciso ampliar a capacidade das equipes dirigentes em conduzir a má-


quina pública incorporando os fundamentos do projeto democrático e popular que
nos orienta. Essa deve ser uma preocupação constante dos governos orientados pela au-
todeterminação popular. Isso requer uma formação que contribua para a mobilização
articulada e complexa de diferentes conhecimentos, habilidades e atitudes, por parte
dos dirigentes eleitos e suas equipes. O desafio está em promover o desenvolvimento
das competências necessárias à atuação no nível diretivo de órgãos públicos, preparan-
do indivíduos para gerir situações complexas e tomar decisões que envolvam, simulta-
neamente, as racionalidades técnica e política, pluralidades de perspectivas sobre cada
tema, e a busca de resultados no enfrentamento de problemas sociais, primando pelo
senso de urgência e usando como meio a condução do aparato público.

As diversas gestões consideradas bem-sucedidas dos partidos de esquerda, nos três ní-
veis da federação, são um indicativo de que há quadros de esquerda com graus elevados
de capacidade de governo, apesar das críticas quanto a atitudes autoritárias, colonizadas
ou elitizadas que podem demonstrar certo déficit de introjeção dos princípios da auto-
determinação popular. Entretanto, é imprescindível considerar que muito foi feito, e
que há muito por fazer nos espaços onde a esquerda brasileira já governa, e que há uma
necessidade crescente de quadros qualificados nas comunidades, na execução de servi-
ços públicos, nos cargos de gestão, nas assessorias legislativas e judiciárias e nos cargos
políticos, de fiscalização e magistratura, que sejam capazes de compreender, engajar-se,
e garantir a implementação do nosso projeto político de emancipação popular.
GT DE
FEDERALISMO E 47
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

No campo da Administração Pública, propomos a construção de uma agenda de de-


bates com especialistas, beneficiários e representantes da população em geral. Sem a
pretensão de esgotar todos os aspectos referentes à Administração Pública, segue abaixo
uma lista preliminar de itens a serem debatidos:

Competências federativas e arranjos inter-federativos;


Parcerias com as organizações da sociedade civil;
Mecanismos de participação social na gestão;
Mecanismos de articulação e coordenação (intra e inter setoriais) de políticas públicas;
Oferta e qualidade dos serviços públicos;
Força de trabalho no setor público (recrutamento e seleção, formação, avaliação,
remuneração, mobilidade, etc.);
Planejamento, Orçamento, Finanças Públicas e seus instrumentos (LOA, LDO,
PPA, LRF, Leis 4.320/64 e 10.180/01 e DL 200/67, entre outros);
Órgãos de controle interno e externo;
Contratações (uso do poder de compra, arranjos com setor privado, etc.);
Autonomia da administração indireta;
Administração do patrimônio;
Logística, TI, bases de dados.

Embora possua elementos em comum, a administração pública não é igual à adminis-


tração de uma empresa privada. Assim, a simples transposição de técnicas e procedi-
mentos empregados neste tipo de organização para a esfera pública tende a apresentar
resultados frustrantes, ou até desastrosos. Diferentemente da empresa privada, cujo
objetivo central e inquestionável é aumentar seu lucro o máximo possível, o gover-
no opera em um ambiente em que interesses divergentes e mesmo contraditórios se
digladiam, e onde a hierarquia de valores e objetivos da organização pública não são
claros nem pré-definidos. A escolha desses valores e objetivos, a mediação de atores
sociais, a construção de consensos e busca de apoios, a priorização de interesses e a
forma como isso é feito, são elementos cruciais que determinam o funcionamento do
aparato governamental, mas que simplesmente inexistem na empresa privada. Por isso,
para fazer as escolhas políticas e para ser capaz de perseguir os objetivos de um governo
com eficiência é necessário aplicar métodos específicos ao setor público, métodos que,
inclusive, vinculem a própria noção de eficiência na gestão e a responsabilidade com a
coisa pública e interesses coletivos aos objetivos para os quais ela é direcionada. 

A orientação pelo lucro – ou para uma única dimensão da vida coletiva –– no âmbito
do Estado é incompatível com uma ética verdadeiramente cidadã. Por isso, é impor-
tante que as esquerdas que realmente pleiteiam ocupar posições de liderança para cons-
truções coletivas, a partir do Estado e da sociedade civil, para promover o combate às
desigualdades e construir um Brasil justo e solidário, plural e cidadão, não caiam no
canto da sereia de “mercadores de soluções de mercado” para problemas que, em geral,
envolvem questões sociais muito mais complexas. É preciso ter claro que o uso de técni-
GT DE
48 FEDERALISMO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

cas e ferramentas de gestão “importadas” do meio empresarial é possível e pode ajudar,


mas devem ser sempre aplicados com enorme senso crítico e sensibilidade política, e
sempre com flexibilidade para que se ajustem às contingências da esfera pública.

Daí advém o porquê de refutarmos o chamado “choque de gestão” como processo e


como conceito. Uma boa administração pública medida pelo uso de modernas técnicas
gerenciais não pode se ater à contabilidade, ao corte de cargos e funções, e à aplicação
das ferramentas da moda na Administração de Empresas. A administração pública –e,
portanto, qualquer choque de gestão governamental – não pode ser um fim em si
mesmo. Uma boa administração se mede pela capacidade de promover o bem-estar da
população, pelo incremento das igualdades, pela ampliação de direitos, em suma, pela
capacidade de ampliar a segurança, a saúde, a educação e a qualidade de vida a cada vez
mais pessoas, e produzir um ambiente coletivo que seja acolhedor e sustentável para
esta e para as próximas gerações. Nesse ponto, convém recordar as palavras do nosso
companheiro Marcelo Déda5:

[...] nós vivemos num país que às vezes repercute aquilo que já foi no passado, o chamado pen-
samento único dos teóricos de uma globalização excludente. É o que eu chamo de fetichização
da Gestão. Tem alguns que já defenderam antes o divórcio da economia da política, que hoje
defendem o divórcio da gestão da política, como se a gestão fosse auto-justificável, como se a
vida, como se o espaço público fosse uma sala de cirurgia, perfeitamente isenta de qualquer
germe, anódina. A vida pública é a vida do conflito, é a vida da disputa.

 A ferramenta de gestão é indispensável. Ela é fundamental, mas atrás da ferramenta tem que ha-
ver a política, porque a política é o ato de escolher. Se a política é ruim, não há Fundação Getúlio
Vargas, não há MIT, não há prêmio Nobel de economia que seja capaz de produzir uma teoria de
gestão que transforme uma política ruim em política boa, que transforme uma visão de mundo
excludente numa visão compartilhada, que abra mão da concentração de renda em benefício da
distribuição dos benefícios para todos os habitantes de um espaço político de uma Nação.

 Nesse sentido, acreditamos que o desafio do planejamento e da gestão pública é criar as


condições para efetivar os direitos sociais inscritos na Constituição de 1988, e ir além.
Para tanto, será fundamental, a um só tempo, enxergar e revelar os gargalos sociais.
Como disse nosso Presidente Lula, “colocar os pobres para dentro do orçamento é pos-
sível”. Por isso é fundamental a implementação de políticas capazes de atender de modo
especial os mais pobres e promover a redução das desigualdades sociais.

Nas últimas eleições presidenciais, mas também em grande parte das eleições estaduais
e municipais, houve um embate claro entre dois projetos políticos diferentes. Enquanto
nós defendemos que os desafios do país passam pela ampliação das conquistas sociais
5. Trecho do discurso do ex-governador
Marcelo Déda realizado no lançamento
que viabilizam o crescimento com redução de desigualdades, os principais adversários
de novas ações do Brasil Sem Miséria, afirmavam que o principal problema do Brasil era a ineficiência da gestão pública. A
no dia 19 de fevereiro de 2013, no
Palácio do Planalto.  forma rasa com a qual posicionaram o debate sobre a gestão cumpriu o objetivo de
GT DE
FEDERALISMO E 49
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

esconder do público o problema do financiamento e fazer crer que as gestões voltadas


aos interesses populares seriam menos eficientes, menos profissionais ou menos éticas.

Diante disso, é importante saber conduzir o debate sobre a gestão pública, revelando os
problemas que enfrentamos e a necessidade de respaldo popular para que avancemos,
desmistificando o fetiche em torno do assunto, valorizando as soluções construídas
coletivamente e de forma plural e propondo novos horizontes (de sonho e esperança)
inspirados nas administrações da esquerda brasileira, latino-americana e mundial dos
últimos anos, mas ressaltando, ainda, a necessidade de respaldo popular e construção
coletiva de programas, projetos, métodos e práticas de governo, e de preparar as comu-
nidades e os servidores públicos para os desafios dos mandatos e jurisdições.
GT DE
SEGURIDADE
E PREVIDÊNCIA SOCIAL
GT DE
52 SEGURIDADE E
PREVIDÊNCIA SOCIAL

GT DE SEGURIDADE E PREVIDÊNCIA SOCIAL1

A proteção à velhice é um direito humano assegurado por convenções internacionais.


Trata-se de requisito para que a vida possa ser vivida em todas as suas dimensões, pen-
sando o ser humano na sua integralidade. O artigo 25 da clássica Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 reza o seguinte: “Todo ser humano tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive ali-
mentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e
direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros
casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”.

A partir da década de 1950, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) pôs em


marcha uma “segunda geração”2 de instrumentos visando a ampliar e difundir a Seguri-
dade Social como um direito universal. Um dos mais importantes é certamente a Con-
venção nº 102 (1952), que estabelece “Normas Mínimas para a Seguridade Social”.
Em 1966, a visão da seguridade social como “direito humano” também foi reconhecida
pela Organização das Nações Unidas (ONU) no Pacto Internacional de Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais (Pidesc).·.Posteriormente, esse mesmo direito foi estendi-
do, por meio de diversos instrumentos jurídicos internacionais e regionais, para outros
segmentos vulneráveis e objeto de discriminação3.
1. Baseado em Previdência:
Reformar para Excluir? (http:// Ademais, a longevidade é desejável. A queda da mortalidade, que é a causa da maior
plataformapoliticasocial.com.br/
previdencia-reformar-para-excluir- longevidade da população brasileira, é claramente fenômeno positivo e importante in-
completo/) e Por um Brasil Justo
e Democrático, volume II (http:// dicador de bem-estar. O fato de o brasileiro viver mais mostra que, apesar das desigual-
plataformapoliticasocial.com.br/por-
um-brasil-justo-e-democratico-2/). dades ainda existentes, as condições de vida melhoraram no país nas últimas décadas.
2. () Destacam-se, especialmente, as
Convenções: 102, de 1952 (norma
mínima de seguridade social); 103, de
1953 (proteção à maternidade); 162,
Enfim, a longevidade é desejável e o envelhecimento não é “o fim do mundo”. O
de 1962 (igualdade de tratamento); gasto previdenciário aumentará inexoravelmente, mas isso também não é “o fim do
121, de 1964 (acidentes de trabalho
e doenças ocupacionais); 128, de mundo”. Como se sabe, democracias desenvolvidas enfrentaram e superaram essa
1967 (aposentadoria por idade, por
invalidez e pensão por morte); 130, questão no século passado, sem destruir a proteção social, e hoje gastam, em regra,
de 1969 (assistência à saúde); 157,
de 1982 (conservação de direitos); e, mais que o dobro em Previdência, como proporção do PIB, na comparação com o
168, de 1988 (fomento do emprego e
prevenção do desemprego). Brasil. Nesse sentido, por que tratar como “catástrofe” o aumento da expectativa de
3. () Ver especialmente os seguintes vida, tão dedicadamente buscado em todo o mundo?
instrumentos promulgados pela
ONU: Convenção sobre a eliminação
de todas as formas de discriminação
contra a mulher (Resolução 34/180 A Previdência e a Seguridade social são os principais mecanismos de proteção social
de dezembro de 1979); Convenção
sobre os direitos das crianças do Brasil. A Constituição de 1988 institui a Seguridade Social, conceito clássico
(Resolução 44/25 de novembro de
1989); Convenção internacional sobre que resulta da construção histórica dos chamados regimes de Estado de Bem-Estar
a eliminação de todas as formas de
discriminação racial (Resolução 2106 Social. Originado na Alemanha do final do século 19 e desenvolvido na Europa no
de dezembro de 1965); e Convenção
internacional sobre a proteção dos pós-Segunda Guerra, a proteção social passou a ser vista como um direito da cidada-
direitos de todos os trabalhadores
migrantes e de seus familiares nia, e os direitos sociais passaram a ser “universais”. Na Constituição, prevaleceu o
(Resolução 45/158 de dezembro de
1990).
princípio da “Seguridade Social”, em que todos têm direito mesmo sem ter contri-
GT DE
SEGURIDADE E 53
PREVIDÊNCIA SOCIAL

buído monetariamente, ante o princípio do “Seguro Social”, em que só tem direito


quem paga. Instituiu-se a forma clássica de financiamento tripartite entre emprega-
dos, empregadores e Estado (através de impostos gerais pagos por toda a sociedade).

Este modelo está consagrado por convenções e declarações internacionais de organis-


mos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a própria Organização
das Nações Unidas (ONU). Em linha com as diretrizes consagradas internacionalmen-
te, a Seguridade Social brasileira é, ao mesmo tempo, o mais importante mecanismo de
proteção social do País e poderoso instrumento do desenvolvimento. Parte do sistema
de Seguridade Social, a Previdência tem por função garantir a cobertura de uma renda
substitutiva nos casos de ocorrência de eventos de resultem em incapacidade laboral
dos trabalhadores. A Constituição de 1988 criou um sistema universal, estendendo aos
trabalhadores rurais os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos.

O papel central que cumpre a Previdência Social no sistema brasileiro de proteção


social, com a repercussão no mercado interno de consumo de massas vital para o
ciclo recente de crescimento econômico. Os benefícios de Previdência e Assistência
asseguram uma renda mínima para milhões de brasileiros: em 2015, o Regime Geral
de Previdência Social (RGPS) mantinha 28,3 milhões de benefícios diretos, sendo que
os aposentados viviam em famílias com mais 2,5 membros. Em média, estima-se que
indiretamente sejam favorecidos outros 70,7 milhões de brasileiros. Ou seja, o RGPS
beneficia 99 milhões de pessoas, quase a metade da população do país!

Seguindo o mesmo raciocínio, mas agregando o Benefício de Proteção Continuada


(BPC) e o Seguro Desemprego, somam-se outros 40 milhões de beneficiados, direta
e indiretamente, por transferências da Seguridade. Ou seja, em 2015 transferiu-se
renda para 140,6 milhões de indivíduos, cujos benefícios são próximos do piso do
salário mínimo.

A maioria dos idosos brasileiros está protegida.


No Brasil 82% dos idosos brasileiros tem proteção na velhice, contando, ao me-
nos, com as transferências de renda da Previdência e do BPC.

A Previdência fomenta a agricultura familiar e combate o êxodo rural.


A aposentadoria e as pensões para os trabalhadores rurais funcionam como seguro
agrícola fomentando a agricultura familiar e contribuindo para fixar a população
ao campo. A proporção de jovens que permanece no campo, por exemplo, au-
mentou de 60% na década de 1980, para 85% na década passada, ou seja, junto
com a vigência dos benefícios da Previdência aos trabalhadores rurais pós 1988.

A Previdência promove a economia regional.


As transferências da Previdência ativam a economia local, sendo a principal fonte
de transferência de recursos para 70% dos municípios brasileiros.
GT DE
54 SEGURIDADE E
PREVIDÊNCIA SOCIAL

O papel redistributivo nos municípios mais pobres


A Previdência Social reduz as desigualdades regionais, pois se observa que, quanto
mais baixo é o PIB do município, maior é a importância dos montantes pagos em
benefícios para a economia local. Ou seja, os benefícios previdenciários promo-
vem também o desenvolvimento municipal.

A Previdência reduz a desigualdade da renda.


Entre 2003 e 2012, houve significativa redução do índice de Gini, de 0,581 para
0,527. Segundo o IPEA, quase 30% desta queda decorreu do pagamento de apo-
sentadorias e pensões pelo Estado.

A Previdência e a Assistência Social reduzem a pobreza.


Em 2014, apenas 8,76% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com renda
menor ou igual a ½ salário mínimo. Caso não houvesse a Previdência e o BPC, o
percentual de idosos pobres aos 75 anos superaria 65% do total.

Sem a Previdência e a Assistência Social a pobreza extrema seria muito maior.


Em 2014, apenas 0,5% da população de 60 anos ou mais estava em situação de
extrema pobreza. Sem a Previdência, o BPC e as pensões, mais de 55% dos idosos
viveria em situação de pobreza extrema.

1. A PREVIDÊNCIA SOCIAL EM FACE DA HEGEMONIA LIBERAL


E O ESTADO MÍNIMO

A partir do final dos anos de 1970, a ideologia neoliberal ganha expressão no cenário inter-
nacional. Esse movimento criou condições favoráveis para a ruptura dos compromissos se-
lados nos “anos dourados” de capitalismo regulado. Essa ascensão inicia-se nos anos 1960,
quando as teses de Hayek e Milton Friedman e de tantos outros começaram a ganhar
espaço nas universidades norte-americanas. O decisivo da passagem da teoria para a prática
ocorreu com a chegada ao poder das forças liberal-conservadoras, a partir da vitória elei-
toral de Thatcher (Reino Unido, 1979), Reagan (EUA, 1980) e Kohl (Alemanha, 1982).

No plano econômico, a estratégia de ajustamento imposta aos países subdesenvolvidos


era complementada pela adoção de um conjunto de reformas liberais do Estado, volta-
das para a liberação financeira e comercial, desregulação dos mercados, privatização das
empresas estatais e mitigação da influência dos Estados Nacionais.

No campo político, o capitalismo minou as bases da democracia liberal representativa,


ocorrendo uma ampla submissão da sociedade civil e do Estado à economia. O “ataque”
aos sindicatos e aos direitos trabalhistas foi um dos núcleos da ofensiva dos mercados.

A revanche dos mercados voltou-se ainda contra o Estado de Bem-estar, atacado em


favor do ideário do Estado Mínimo, que representa a negação daquele: focalização
GT DE
SEGURIDADE E 55
PREVIDÊNCIA SOCIAL

versus universalização; assistência versus direitos; seguro social versus seguridade social;
mercantilização versus serviços públicos; contratos flexíveis versus direitos trabalhistas
e sindicais. Neste cenário, procurou-se impor a focalização “nos mais pobres” como a
única política social possível. Poucos percebem a funcionalidade desses programas para
o ajuste macroeconômico, pois são relativamente mais baratos (0,5% do PIB) que po-
líticas universais (Previdência Social, por exemplo, 8% do PIB).

A tática ideológica enaltece as supostas virtudes desses programas, que visavam pavi-
mentar o caminho para as reformas que desconstruíssem as políticas universais. Além
do ajuste fiscal, a estratégia abre as portas para a privatização dos serviços. Ao Estado
cabe somente cuidar dos “pobres” (aqueles que recebem até dois dólares por dia). Os
que estão “acima” dessa arbitrária “linha de pobreza” (a “nova” classe média?), precisam
buscar no mercado privado os serviços sociais que necessitam.

O Chile foi o laboratório do paradigma liberalizante para os países subdesenvolvidos.


Com base na experiência chilena, no início da década de 1990, a privatização foi im-
posta para setores essenciais como previdência, saúde, saneamento e transporte público.
Em alguns países (como o Chile), a educação também foi privatizada.

No Brasil, a redemocratização e as reformas da proteção social coincidiram com o es-


gotamento do “Estado Nacional Desenvolvimentista”. Este cenário abriu brechas para
que se formasse “o grande consenso favorável às políticas de ajuste e às reformas pro-
pugnadas pelo Consenso de Washington”4 ( No campo econômico, houve uma opção
“passiva” pelo modelo liberal, ou seja, as elites dirigentes foram conquistadas pela con-
vicção de que “não há outro caminho possível”.

As bases materiais e financeiras do Estado foram destruídas em consequência das pri-


vatizações, do baixo crescimento, dos juros elevados e do endividamento crescente. A
selvagem abertura financeira e comercial expôs a indústria à competição desigual, que
provocou internacionalização e destruição das cadeias produtivas de setores estratégicos.

No campo da cidadania social, os valores do Estado de Bem-estar, inscritos na Carta de


1988, eram incompatíveis com a agenda do Estado Mínimo. A conservação do status
quo social passava a exigir a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social”. A previ-
dência e a Seguridade social foi um dos focos privilegiados dessa investida. A Desvincu-
lação de Receitas da União (DRU), criada em 1993, capturou recursos constitucionais
asseguradas ao setor. As isenções fiscais concedidas para grupos econômicos e de famí-
lias de alta renda também minaram essas bases financeiras. Recursos da Seguridade So-
cial também têm sido aplicados em outras finalidades não previstas pela Constituição.

Os governos optaram por descumprir princípios fundamentais da organização e do


4. FIORI, J. L. (1993). Ajuste,
orçamento da seguridade social e dos mecanismos que asseguram o controle social transición y gobernabilidad: el
enigma brasilero, mar. Washington:
sobre os rumos das políticas de saúde, previdência e assistência social: BID, mimeo.
GT DE
56 SEGURIDADE E
PREVIDÊNCIA SOCIAL

O poder público não organizou a Seguridade Social, como rezam os artigos 165,
194, 195 da Constituição (e o artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias).
O Executivo jamais apresentou e executou o Orçamento da Seguridade Social
(art. 195) rigorosamente como reza a Carta Magna.
O Executivo jamais instituiu o Conselho Nacional da Seguridade Social, mecanis-
mo de controle social previsto no art. 194.
Desde 1989, o Ministério da Previdência não considera a previdência como parte
Seguridade Social. Interpreta que as contribuições dos empregadores e trabalha-
dores urbanos devem ser suficientes para custear os benefícios previdenciários ur-
banos e rurais. Nenhum centavo da Contribuição Sobre o Lucro Liquido (CSLL)
e da Constribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), cria-
das em 1988 para financiar a Seguridade Social (artigo 195 da CF) sãp contabili-
zados como receita da Previdência Social.

Com a globalização financeira nas últimas décadas, a desigualdade de renda tem


aumentado continuamente na maioria das economias avançadas e nas principais
economias de mercados emergentes, especialmente na Ásia e no Leste Europeu.
Estudo realizado pela a OXFAM revela que os recursos acumulados pelo o 1% mais
rico do planeta subiram de 44% do total de recursos mundiais em 2009 para 48%
em 2014. Recentemente, os alertas sobre a “explosão da desigualdade” passaram a
influenciar até mesmo organismos como o Banco Mundial e o FMI.

A criação de uma sociedade mais igualitária requer que a gestão macroeconômica


crie um ambiente favorável para a redução contínua da desigualdade, como objetivo
de longo prazo. Não obstante, o arcabouço institucional adotado pelos organismos
internacionais desde os anos 1990, consubstanciado no chamado tripé macroeco-
nômico (câmbio flutuante, superavit fiscal e regime de metas de inflação) vai na
contramão desse propósito e tem por objetivo maior preservar a riqueza financeira.
Posicionamento recente do próprio FMI reconhece os erros das políticas de “auste-
ridade” receitadas para enfrentar a crise da Europa. Após a crise de 2008, esse “esta-
do da arte” da teoria monetária entre os economistas da ordem passou a ser revisto.
A própria ortodoxia internacional já o trata como o “velho consenso”. A revisão vem
sendo implantada por diversos países antes mesmo da crise internacional.

Já no Brasil, a radicalização do projeto liberal a partir do golpe de 2016 (OK), der-


rotado nas últimas quatro eleições, representa uma oportunidade para que os deten-
tores da riqueza concluam um serviço iniciado há trinta anos. O propósito é levar ao
extremo a reforma do Estado iniciada nos anos de 1990. A ideia é “privatizar tudo
o que for possível”, tanto na infraestrutura econômica quanto na infraestrutura so-
cial. Está em curso o reforço extremo das políticas de “austeridade” e da arquitetura
institucional do “tripé” macroeconômico.
GT DE
SEGURIDADE E 57
PREVIDÊNCIA SOCIAL

Outro propósito é a destruição do Estado Social e a implantação do Estado Míni-


mo Liberal. Os porta-vozes do mercado argumentam que a crise fiscal decorre da
trajetória “insustentável” de aumento dos gastos públicos desde 1993, por conta dos
direitos sociais consagradas pela Carta de 1988. Para essa corrente, “as demandas
sociais da democracia não cabem no orçamento”.

Este processo de destruição do Estado Social pela asfixia financeira está sendo ence-
nado, em seis atos principais:

A ampliação da desvinculação constitucional de recursos para o gasto social (am-


pliação de 20% para 30% do percentual de impostos da Desvinculação de Recei-
tas da União);
O “Novo Regime Fiscal” (PEC 55) cria, por 20 anos, um teto para crescimento
das despesas vinculado à inflação, com o propósito de reduzir a despesa primária
do governo federal de cerca de 20% para 12% do PIB entre 2017 e 2036, apro-
ximando o Brasil do patamar de gastos realizados por diversos países africanos;
Na prática, o “Novo Regime Fiscal” acaba com as vinculações constitucionais de
recursos para educação e saúde;
A Reforma da Previdência Social que tem por propósito exterminar o direito hu-
mano de proteção à velhice;
A reforma trabalhista, cujo propósito é fazer com que esses direitos retrocedam ao
estágio em que estavam antes da Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943; e,
A Reforma Tributária que não corrige a injustiça fiscal e embute ameaças de des-
monte das bases de financiamento das políticas sociais conquistadas pela Consti-
tuição de 1988.

2. A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O PROJETO NACIONAL DE CARÁTER POPULAR

O equilíbrio financeiro da Previdência Social não requer a criação de novos impos-


tos e tributos, no curto prazo. Basta que os artigos 194 e 195 da Constituição de
1988 sejam cumpridos, fato que nunca ocorreu desde 1989.

Apenas em 2015, com esse descumprimento deixou-se de contabilizar nas contas da


Seguridade Social, como “contribuição do governo”, a arrecadação proveniente da
Cofins (R$202 bilhões), da CSLL (R$61 bilhões) e do PIS-Pasep (R$53 bilhões).
Nesse mesmo ano, a Seguridade Social também deixou de contar com R$157 bi-
lhões por conta das desonerações tributárias (incluída a isenção da contribuição
patronal para a Previdência) e de uma parte dos R$61 bilhões por conta das Des-
vinculações das Receitas da União (DRU).

Dessa forma, o equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo requer,


simplesmente, que a Constituição da República seja cumprida no que diz respeito à
GT DE
58 SEGURIDADE E
PREVIDÊNCIA SOCIAL

organização da Seguridade Social e ao Orçamento da Seguridade Social. Além disso,


é preciso instituir o Conselho Nacional da Seguridade Social, previsto no parágrafo
único do artigo 194 da Constituição Federal, jamais implantado.

Será preciso também enfrentar a questão do suposto “deficit” pela alteração da for-
ma de contabilização das contas do RGPS considerando, nos termos dos artigos
194 e 195 da Constituição, os recursos da Cofins, da CSLL e parte do PIS/Pasep
como contribuição do governo para o financiamento da Previdência.

Será preciso, além disto, extinguir a Desvinculação das Receitas da União (DRU),
criada em 1994 e renovada continuamente e acabar com as renúncias tributárias
que incidem sobre o Orçamento da Seguridade Social. Esses mecanismos subtraem
anualmente da Seguridade Social aproximadamente R$60 bilhões e R$160 bilhões,
respectivamente.

Também será preciso extinguir as desonerações patronais sobre a folha de paga-


mento e as isenções previdenciárias para entidades filantrópicas, que implicaram
subtração de receitas de R$25 bilhões e R$11 bilhões, respectivamente, em 2015.

O mesmo se coloca no tocante ao setor de agronegócios que desde 1997 recebeu


isenção fiscal e deixou de contribuir para a Previdência Rural (nos últimos oito anos
as empresas exportadoras do setor deixaram de recolher aproximadamente R$32
bilhões para a seguridade social).

Será preciso ainda alterar a forma de contabilização das renúncias previdenciárias


adotada pelo governo que, como mencionado, não considera as essas renúncias
fiscais como parte da receita da Previdência Social. Propõe-se a promulgação de le-
gislação específica que inclua a rubrica “transferências da União para compensação
de renúncias previdenciárias” como fonte de receita da Previdência Social.

A melhoria da fiscalização interna da Previdência Social poderia ampliar conside-


ravelmente a arrecadação. Essa melhoria requer a recriação do Ministério da Pre-
vidência Social e, sobretudo, a maior determinação da Receita Federal do Brasil. A
fragilidade fiscalizatória é observada pelo fato de que, entre 2011 e 2015, o estoque
da Dívida Ativa previdenciária passou de R$185,8 bilhões para R$350,7 bilhões,
montante quase quatro vezes maior que o alegado “rombo” da Previdência de R$85
bilhões; e apenas 0,32% do montante total da dívida foram recuperados.

A melhoria da fiscalização da Previdência Social, em conjunto com a inspeção do


trabalho, também pode reduzir significativamente a sonegação das contribuições
previdenciárias. Cerca de R$90 bilhões deixaram de ser arrecadado pela Previdência
em 2015 por conta de fraudes praticadas pelos empregadores (vínculo empregatício
não reconhecido, sobretudo).
GT DE
SEGURIDADE E 59
PREVIDÊNCIA SOCIAL

3. ASPECTOS RELACIONADOS À POLÍTICA MACROECONÔMICA

Ao isolar a “crise da previdência” e associá-la exclusivamente ao “excesso” de des-


pesas, deixa-se de considerar as decisões de política macroeconômica que afetam
drasticamente as receitas da Previdência e da Seguridade Social. Nesse sentido, há
alternativas que passam pela revisão de decisões equivocadas de política macroeco-
nômica.

O crescimento econômico é requisito para o equilíbrio financeiro da Previdência,


pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das em-
presas. A recessão deprime as receitas e o inverso ocorre com o crescimento. Nesse
sentido, o financiamento previdenciário reflete fatores externos ao setor, relaciona-
dos à política econômica e ao mercado de trabalho. O equilíbrio não pode depender
apenas dos cortes de gastos e regressão de direitos.

O crescimento econômico também é requisito para a inclusão dos trabalhadores in-


formais, potencializando as receitas previdenciárias. Em 2014, 37,7% da população
ocupada não estava coberta por algum dos regimes de Previdência Social. São quase
cinco milhões de trabalhadores que estão fora do sistema, não contribuem para a
Previdência e não terão proteção na velhice.

O ajuste fiscal e o equilíbrio financeiro da Previdência também podem ser alcança-


dos pelo reforço da capacidade financeira do Estado obtido pela maior equidade na
contribuição das classes de maior renda. A primeira alternativa é reduzir a taxa de
juros que transferiu para os detentores da riqueza R$503 bilhões em 2015 (superior
ao gasto previdenciário nesse ano). O descolamento do Brasil com o restante do
mundo (onde se pratica juros reais negativos) é patente.

O equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo requer a revisão das


desonerações tributárias. Em 2015, o total das desonerações foi de R$282 bilhões
(4,9% do PIB). Isso significa que, anualmente, o governo federal todo ano abre mão
e deixa de arrecadar cerca de um quarto das suas receitas. É importante sublinhar
que mais da metade das renúncias de receita do governo federal (56% do total) são
feitas com recursos da Seguridade Social.

O equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo também requer a rea-


lização de reforma tributária. Diversos analistas apontam que a estrutura de tribu-
tação é extremamente perversa com os mais pobres e a classe média e benevolente
com os mais ricos. Há, portanto, uma ampla gama de medidas que poderiam ser
adotadas para ampliar a arrecadação sobre a renda e o patrimônio. Com a reforma
tributária que corrija a injustiça fiscal seria possível, simultaneamente, ampliar a
arrecadação, retomar o crescimento, preservar o Estado Social e reduzir as desigual-
dades.
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PREVIDÊNCIA SOCIAL

O ajuste fiscal e o equilíbrio financeiro da Previdência Social também requer o deci-


dido combate à sonegação de impostos. Estudos internacionais apontam que o Bra-
sil é vice-campeão mundial em sonegação de impostos (13,4% do PIB). Análises do
Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional revelam que a sonegação
em 2015 atingiu R$452,9 bilhões, 23,0% da arrecadação tributária e 7,70% do
PIB. É um valor que, em 2015, representa mais de quatro vezes o déficit primário
da União e mais de cinco vezes o suposto “déficit” da Previdência.

Portanto, apenas o enfrentamento da questão dos juros, das desonerações e da so-


negação pode viabilizar, para o governo, um espaço para economizar parcela signi-
ficativa dos cerca de R$1,26 trilhão por ano transferido para as camadas de maior
renda, tornando desnecessária a economia de R$67,8 bilhões por ano, que suposta-
mente se obteria com a reforma da Previdência hoje em estudos.

O equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo, bem como o ajuste


fiscal, também requer o decidido empenho do governo no sentido de recuperar o
brutal estoque de recursos do cidadão que foram capturados pelos sonegadores de
impostos. A frouxidão legal e fiscalizatória no combate à sonegação conduzem ao
estoque da Dívida Ativa da União que chega a incríveis R$1,8 trilhão, superando a
arrecadação federal de 2015 (R$1,3 trilhão). Estudos revelam que apenas 135 pes-
soas físicas e jurídicas devem mais de R$370 bilhões ao fisco. O mais grave, é que
recuperação desse dinheiro é lenta: somente 1% da dívida é resgatado anualmente. 

É contraditório que o governo, ao invés de cumprir o seu papel constitucional de cobrar


os tributos devidos à sociedade, optou, mais uma vez (dezembro de 2016) por instituir
o “Programa de Regularização Tributária”, um novo programa de parcelamento dos
débitos em até 96 meses, no padrão “Refis”, para empresas e pessoas físicas que devem
impostos que venceram até 30 de novembro de 2016. Na mesma perspectiva, editou
a Medida Provisória, permitindo que produtores rurais inscritos em Dívida Ativa da
União liquidem o saldo devedor com bônus entre 60% a 95%. Também é digno de
nota, que o governo e Congresso articulam perdão de multas e a transferência de bens
dos contribuintes a empresas de telefonia que, segundo informa auditoria feita pelo Tri-
bunal de Contas da União, o valor total pode passar de 100 bilhões de reais.

Por fim, a sustentação financeira da Previdência requer, sobretudo, que se enfrentem


as profundas inconsistências do regime macroeconômico e fiscal brasileiro. A crôni-
ca desigualdade brasileira se reflete até mesmo nas categorias usadas para classificar
os gastos do governo. Convencionou-se que o chamado gasto “primário” (que be-
neficia a maioria da população de menor renda) seria ruim; e que o chamado gasto
“nominal” (que beneficia os detentores da riqueza financeira) não teriam qualquer
implicação para as contas públicas. Estabeleceu-se que os gastos sociais seriam a raiz
do desajuste fiscal brasileiro. E que cortar esses gastos primários seria pré-requisito
para a redução dos gastos financeiros.
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PREVIDÊNCIA SOCIAL

Ocorre que a realidade aponta exatamente na direção contrária. O déficit nominal


no Brasil mais que triplicou, de 3,0% do PIB em 2013 para 10,3% do PIB em 2015,
quase o triplo da média mundial de 3,7% do PIB. Como consequência, a dívida
bruta aumentou de 56% do PIB (dezembro de 2013) para 70% do PIB em junho
de 2016. Assim, em apenas dois anos e meio, a dívida bruta aumentou 14 pontos
percentuais do PIB, o que equivale a quase dois anos de despesas previdenciárias.

Esse resultado decorre, fundamentalmente, da conta de juros, que saltou de 4,7%


do PIB em 2013 para 8,5% do PIB em 2015. Nesse ano, o déficit nominal cresceu
10.3% pontos percentuais do PIB. O déficit das contas primárias (não financei-
ras) contribuiu com apenas 1,9 pontos percentuais do PIB nesse acréscimo do
déficit nominal. O restante (8,5 pontos percentuais do PIB) decorreu da política
de altos juros.

Nesse sentido, equilíbrio financeiro da Previdência no longo prazo também depen-


de de que sejam superadas as enormes inconsistências do regime macroeconômico
brasileiro. É preciso desatar o nó da gestão macroeconômica, se o verdadeiro objeti-
vo for equacionar os problemas fiscais. A ideia que se disseminou no Brasil, de que
ao governo só compete controlar os gastos primários, não havendo nenhum limite
para os custos financeiros, deve ser revista, para não ficarmos eternamente transfe-
rindo riqueza pública para os detentores da riqueza privada.

4. FORÇAS POPULARES E ENERGIAS SOCIAIS TRANSFORMADORAS


E CRIADORAS QUE DEVEMOS MOBILIZAR PARA VIABILIZAR
A REALIZAÇÃO DO PROJETO NESSA ÁREA

A crise do Estado Nacional Desenvolvimentista nos anos de 1980 encerra um ciclo


iniciado na década dos 30, no qual o Estado cumpriu as tarefas fundamentais num país
de industrialização tardia. O caso brasileiro é considerado um dos mais bem-sucedidos
de realização do projeto latino-americano de desenvolvimento nacional, nos termos
defendidos pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). Nesta
etapa, havia esforços do campo progressista na formulação de um projeto de país que
enfrentasse e superasse o subdesenvolvimento em suas diversas dimensões.

Em meados do Século XX, essas ações concentraram-se na transição da economia pri-


mária-exportadora para a “industrialização pesada”. Em linha com os propósitos da
CEPAL, destacam-se os esforços de Celso Furtado em torno das chamadas “Reformas
de Base” (Plano Trienal, 1963/65).

Nos anos de 1970, o próprio regime militar (1964/85) empreendeu medidas no sen-
tido de adequar a estrutura produtiva à realidade da 3ª Revolução Industrial (II Plano
Nacional de Desenvolvimento, 1975/79). A última iniciativa consistente neste sentido
ocorreu em 1982 com o documento “Esperança e Mudança”, elaborado pelo MDB.
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PREVIDÊNCIA SOCIAL

FRAGMENTAÇÃO DA LUTA POLÍTICA


A redemocratização do país nos anos de 1980 abriu espaço para a emergência dos
movimentos sociais. Entretanto, esse fato extremamente positivo teve como elemento
colateral adverso o crescente abandono da visão mais ampla relacionada à superação do
subdesenvolvimento político, econômico e social.

Na ausência da ação mobilizadora dos partidos, observa-se a fragmentação das pautas


em torno de questões setoriais específicas. Em geral, perdeu-se a perspectiva de que
pouco poderá ser feito em termos setoriais na ausência de um projeto de transformação.

A interdição do debate sobre o desenvolvimento não ocorreu, evidentemente, devido


unicamente à fragmentação dos movimentos sociais (que, como se sabe, tem por natu-
reza tratar de temas também setoriais ou específicos).

ETAPA ATUAL DA CONCORRÊNCIA CAPITALISTA


O fator determinante é que esse processo ocorreu simultaneamente a hegemonia da
concorrência capitalista desregulada sob o comando do capital financeiro e da ideologia
neoliberal que mitigou o papel da democracia na representação dos interesses gerais da
sociedade; esvaziou a esfera pública ante os valores do individualismo e da meritocracia;
enfraqueceu os Estados Nacionais que perderam a capacidade de coordenar projetos de
transformação. Forjaram-se cultura e ideologia retrógradas em relação ao desenvolvi-
mento.

Em síntese, em função desses fatores, a fragmentação da luta política do campo pro-


gressista tem prevalecido ante o debate de temas estruturais. “Os partidos estão desen-
gonçados, os movimentos sociais fracionados, os sindicatos aquém do espaço que lhes
cabe”, alerta a professora Maria da Conceição Tavares5.

Com raras exceções, perdeu-se a perspectiva de que o encaminhamento de muitas des-


sas pautas segmentadas depende de que sejam superados constrangimentos estruturais
políticos, econômicos e sociais pensados na ótica de um novo projeto de transformação.

Nunca é demais repetir que cada ponto percentual de aumento da taxa de juros básicos
da economia é uma meta a menos do Plano Nacional de Educação que deixará de ser
cumprida; que não se fará reforma agrária no Brasil sem que as mazelas do sistema polí-
tico e da mercantilização do voto sejam enfrentados – como evidenciadas na eleição da
bancada do agronegócio com mais de duas centenas de representantes; que, em apenas
um dia, os direitos trabalhistas e sindicais conquistados no Século XX foram destruídos
sem que houvesse mobilização, à altura da gravidade da situação, por parte dos diversos
5. Maria da Conceição Tavares.
“Resistir para avançar. O resto é
movimentos sociais, enredados em seus labirintos específicos e tópicos; e, que as Refor-
arrocho”. Entrevista a Saul Leblon, mas Previdenciária e Tributária, que tramitam no Congresso Nacional, não enfrentem a
Carta Maior, 11/06/2014. http://
www.cartamaior.com.br/?/Editorial/ oposição ferrenha desses movimentos, mesmo que essas reformas representem o ultimo
Maria-da-Conceicao-Tavares-Resistir-
para-avancar/31125 suspiro do Estado Social conquistado em 1988 e aperfeiçoados posteriormente.
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PREVIDÊNCIA SOCIAL

DESAFIOS PARA O SÉCULO XX


A diversidade e a complexidade dos temas estruturais a serem enfrentados pressupõem
a formulação de uma agenda de transformação.

No Brasil do Século XXI, a formulação de um projeto dessa natureza coloca novos


desafios ao pensamento estruturalista. É preciso que também se enfrentem as múltiplas
faces da desigualdade social brasileira. Isso requer, necessariamente, o resgate da demo-
cracia e da política, o reforço do papel do Estado e a gestão macroeconômica voltada
para esse objetivo.

Nesse cenário os movimentos sociais, sindicatos e partidos progressistas são as forças


populares e energias sociais transformadoras e criadoras que devemos mobilizar para
viabilizar a realização do projeto nessa área. Entretanto, para isso, será preciso um
esforço no sentido de que essas instituições deixem de restringir o seu campo de atu-
ação as suas respectivas “caixas” setoriais específicas e passem a ampliar a sua atuação
e mobilização política em torno de uma pauta mais ampla proporcionada por um
projeto de país.
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PREVIDÊNCIA SOCIAL
contato.grupoprojetobrasil@gmail.com

CADERNO DE DEBATES
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