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HUCITEC/POLIS

ESTUDOS RURAIS

títulos publicados
Estrutura Agrária e Produção de Subsistência na Agricultura Brasileira, José
Graziano da Silva (coord.)
Introdução Crítica a Sociologia Rural, José de Souza Martins (org.)
Roteiro do café e Outros Ensaios, Sérgio Milliet
Subordinação do Trabalho ao Capital na Lavoura Cacaueira da Bahia, Amílcar
Baiardi
Evolução Agrária e Pressão Demográfica, Ester Boserup
O Estado, a Agroindústria e a Pequena Produção, John Wilkinson
O Arrendamento Capitalista na Agricultura, Paulo Roberto Beskow
EVOLUÇÃO AGRÁRIA
E PRESSÃO DEMOGRÁFICA
Ester Boserup

EVOLUÇÃO AGRÁRIA
E PRESSÃO DEMOGRÁFICA
Tradução de
Oriowaldo Queda e João Carlos Duarte

EDITORA HUCITEC
EDITORA POLIS
São Paulo, 1 9 8 7
Traduzido da edição publicada em inglês, em 1972, com o título The Conditions of
Agricultural Growth, por George Allen & Unwin, Londres, Inglaterra.

Direitos de tradução e de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de


Humanismo, Ciência e Tecnologia "Hucitec" Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab,
3 4 4 — 0 4 6 0 2 São Paulo, Brasil. Telefone: (011) 61-6319.

Capa: Estúdio Hucitec.

Composição: Forma Composições Gráficas Ltda.

ISBN 85-271-0020-7-Hucitec

Esta obra, em parte ou no todo, não poderá ser reproduzida, por qualquer meio, mesmo
reprográfico. sem autorização escrita das editoras.

Co-edição com
LIVRARIA E EDITORA POLIS LTDA
Rua Caramuru, 1196
04138 São Paulo Brasil
Telefone: (011) 275-7586.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7
1. A DINÂMICA DO USO DA TERRA 13
A seqüência histórica 15
Uso da terra nos trópicos 16
A paisagem em mudança 18

2. INTERDEPENDÊNCIA ENTRE USO DA TERRA E MU-


DANÇA TÉCNICA 23
Sistemas de pousio e tipos de técnicas 24
Tipos de instrumentos versus fabricação de instrumentos 26

3. PRODUTIVIDADE DO TRABALHO NOS SISTEMAS DE


POUSIO LONGO E POUSIO CURTO 29
Do pousio florestal ao pousio arbustivo 30
O advento do cultivo com arado 33

4. CAPACIDADE DE SUPORTE DA TERRA E PRODUTIVI-


DADE DO TRABALHO NA AGRICULTURA INTENSIVA 37
Do pastoreio ao cultivo de forrageiras 38
Da agricultura de sequeiro à agricultura irrigada 41
Crescimento populacional e produtividade do trabalho 43

5. CRESCIMENTO POPULACIONAL E HORAS DE TRABA-


LHO . 47
Jornada curta no sistema de pousio longo 48
A estação morta no sistema de pousio curto 53
O trabalho árduo da agricultura intensiva 57
A mudança gradual dos hábitos de trabalho 59
6. A COEXISTÊNCIA DE DIVERSOS SISTEMAS DE CUL-
TIVO 63
Adaptação do uso da terra às condições naturais 65
Os casos de Java e do Japão 67
Redução da densidade populacional 70
Os efeitos do rápido crescimento da população 72

7. RENDIMENTOS DECRESCENTES DO TRABALHO E


INÉRCIA TÉCNICA 75

8. O CÍRCULO VICIOSO DA POPULAÇÃO ESPARSA E DAS


TÉCNICAS PRIMITIVAS 81
As precondicões à concentração da população 83
Padrões divergentes de agricultura 87

9. OS SISTEMAS DE USO DO SOLO COMO UM DETERMI-


NANTE DO SISTEMA DE POSSE E USO DA TERRA . . . . 89
Direitos gerais e específicos de cultivo 91
As características do sistema senhorial de posse e uso da terra 94
Os direitos de pastagem e o encurtamento dos períodos de pousio 98
Do sistema senhorial de posse e uso da terra à propriedade privada da terra .. 100

10. INVESTIMENTO E POSSE E USO DA TERRA NAS CO-


MUNIDADES TRIBAIS 103
A organização do investimento no sistema tribal de posse e uso da terra 104
A luta pelos direitos de propriedade 107

11. INVESTIMENTOS RURAIS NO SISTEMA SENHORIAL


DE POSSE E USO DA TERRA 111
A agricultura intensiva sob o domínio dos senhores feudais 113
A negligência do investimento sob o domínio colonial 115
A resposta aos estímulos de preços 117

12. OS ESTÍMULOS AO INVESTIMENTO NO SISTEMA MO-


DERNO DE POSSE E USO DA TERRA 119
O investimento na exploração familiar 122
Salários reais e emprego 124
Os preços dos alimentos e a taxação da agricultura 129

13. A UTILIZAÇÃO DE INSUMOS INDUSTRIAIS NA AGRI-


CULTURA PRIMITIVA 131

14. ALGUMAS PERSPECTIVAS E IMPLICAÇÕES 135


6
INTRODUÇÃO

O problema da relação entre crescimento da população e produção de


alimentos tem ocupado os economistas desde o momento em que eles
começaram a se interessar pelo estudo das tendências seculares das
sociedades humanas. Existem dois modos fundamentalmente diferen-
tes de abordar esse problema. Pode-se perguntar de que maneira mu-
danças nas condições agrícolas afetam a situação demográfica. Inver-
samente, podem-se investigar os efeitos de mudanças populacionais
sobre a agricultura.
Formular a primeira dessas questões é adotar a abordagem de
Malthus e seus seguidores mais ou menos fiéis. O raciocínio que eles
desenvolvem baseia-se na crença de que a oferta de alimentos e ineren-
temente inelástica, sendo essa falta de elasticidade o principal fator
determinante da taxa de crescimento da população. Assim, o cresci-
mento populacional é visto como variável dependente, determinada por
mudanças na produtividade agrícola que, por sua vez, resultariam de
fatores exógenos como, para exemplificar, um fortuito fator de inven-
ção ou imitação técnica. Em outras palavras, desde esse ponto de vista
essencialmente malthusiano, existiria para cada comunidade e em cada
tempo uma taxa esperada de crescimento populacional. A ela a taxa
real de crescimento tenderia a se ajustar.
O presente estudo parte da concepção oposta. Baseia-se na supo-
sição — que a autora acredita mais realista e mais fértil — de que a
ordem principal de causação corre na direção inversa: o crescimento
populacional é aqui considerado variável independente e o principal
fator determinante de mudanças na agricultura.

7
Esta mudança de perspectiva mostra-se aceitável quando se atenta
para alguns eventos mais ou menos recentes. Poucos estudiosos suge-
ririam que os enormes aumentos das taxas de crescimento populacional
observados no mundo subdesenvolvido no pós-guerra poderiam ser
explicados por mudanças nas condições de produção de alimentos.
Esta razoavelmente claro que a explosão demográfica é uma mudança
autônoma de condições básicas, no sentido de que a explicação para
essa mudança não deve ser procurada na melhora das condições de
produção de alimentos mas, sim, nos avanços da medicina e em outros
fatores que, para o estudioso do desenvolvimento agrícola, seriam va-
riáveis independentes.
A tarefa do presente estudo e, portanto, mostrar que, não apenas
no caso especial e óbvio do pós-guerra mas, para o desenvolvimento
agrícola em geral a linha dominante de causação corre das tendências
da população as mudanças na agricultura, não o inverso. A autora
espera ter mostrado que essa abordagem conduz a um entendimento
mais perfeito do curso histórico da agricultura, aí incluídos tanto o
desenvolvimento de padrões e técnicas de cultivo como as estruturas
sociais das comunidades agrárias.

O fato de que se tenha centrado a atenção na concepção malthusiana


de evolução da produção de alimentos como fator determinante do
crescimento da população não impediu que os economistas analisassem
também a questão de como o crescimento populacional afeta, por sua
vez, a produção agrícola. De fato, a teoria da renda da terra desenvol-
vida pelos clássicos constitui uma parte da resposta a esta questão:
o que acontece à produção de alimentos quando a população aumenta?
No entanto, a maneira pela qual os economistas clássicos abordaram
esse problema foi determinada pelas condições algo especiais da agri-
cultura do Ocidente naquela época, resultando numa visão excessiva-
mente simplificada das mudanças de padrões agrícolas produzidas pela
pressão do crescimento populacional. Este ponto tem importância cru-
cial para tudo o que se segue no presente estudo. Por isso faz-se neces-
sária uma explicação adicional.
Os economistas clássicos escreveram durante uma época em que
as terras ate então ainda não aproveitadas do hemisfério ocidental es-
tavam sendo gradualmente incorporadas a agricultura por coloniza-
dores europeus. Era natural, portanto, que aqueles economistas enfati-
zassem a importância de reservas de terras virgens e fizessem uma clara
8
distinção entre dois métodos de aumento do produto agrícola: a expan-
são da produção na margem extensiva pela incorporação de novos tra-
tos de terra e a expansão da produção através do cultivo mais intensivo
dos campos já existentes.
Essa concepção ultra-simplificada tem persistido na literatura
econômica e ainda hoje esse é o tipo de análise que se oferece quando
problemas de países subdesenvolvidos são discutidos. Essa abordagem
não e apropriada para uma teoria geral do desenvolvimento agrícola.
A razão disso é que muitos tipos de agricultura primitiva não se fazem
sobre campos permanentes: eles são itinerantes.
Esse fato, que parece ter sido ignorado pelos economistas clás-
sicos, é fundamental para o nosso problema, pois dele se segue que não
pode haver, no caso, distinção nítida entre terra cultivada e terra não
cultivada e que, da mesma maneira, é impossível distinguir claramente
entre a criação de novos campos e a mudança de métodos nos campos
já existentes.
Este estudo tenta levar em conta todas as conseqüências dessas
constatações. A própria distinção entre campos e terras não cultivadas
é descartada; a ênfase recai sobre a freqüência de cultivo. Em outras
palavras, sugere-se que se considere um contínuo de tipos de uso da
terra, do caso extremo de terra verdadeiramente virgem, nunca culti-
vada, passando pelos casos de terras onde se colhe e planta a intervalos
cada vez mais curtos, até, finalmente, aqueles territórios onde se se-
meia tão logo, a cultura anterior tenha sido colhida. A intenção é a de
prover com essa nova abordagem o quadro de referência para uma
análise dinâmica que englobe todos os tipos de agricultura primitiva,
tanto os que recorrem ao pousio prolongado, às vezes por mais de uma
geração, como os de cultivo contínuo, onde se semeia e colhe, no mesmo
campo, diversas vezes ao ano.
Quando a antiga distinção entre terra cultivada e terra não culti-
vada é substituída pelo conceito de freqüência de cultivo, a teoria eco-
nômica do desenvolvimento agrícola torna-se compatível com as teorias
de mudança da paisagem propostas pelos cientistas naturais. Os pais
da teoria econômica pensaram como sendo imutáveis (e nisso estavam
de acordo com os cientistas naturais da época) muitas das caracterís-
ticas que os cientistas de hoje consideram produzidas pelo homem,
socialmente determinadas. Em particular, a distinção entre terra natu-
ralmente fértil e terra menos fértil foi considerada como um elemento
crucial para a explicação de mudanças na agricultura.
Em contraste, quando a análise é baseada no conceito de fre-
qüência de cultivo, torna-se virtualmente impossível cair na tentação de
9
considerar a fertilidade tão-somente como um favor da natureza conce-
dido a certas porções do solo uma vez e para sempre. Assim, a ferti-
lidade do solo encontra um lugar na análise como variável estreitamente
associada a mudanças de densidade de população e relacionada com
mudanças de métodos agrícolas, ao invés de ser tratada como uma
"condição inicial" da análise, exógena e mesmo imutável.
Uma das desvantagens da abordagem usual é que ela conduz a
uma concepção unilateral da atividade agrícola. A atenção tende a se
centrar no que acontece na terra sob cultivo, em vez de considerar o
conjunto de atividades necessárias num dado sistema de agricultura.
Importância indevida é dada ao número de vezes que um campo é
arado, enquanto mudanças que ocorrem no solo classificado como "não
cultivado" passam despercebidas. Quando, ao contrário, se focaliza a
atenção na freqüência com que diferentes partes da área pertencente a
uma certa exploração agrícola, aldeia, ou tribo, são postas sob cultivo,
um importante fato salta aos olhos: a maior parte do solo adicionado a
área cultivada à medida que a população aumenta já terá sido utilizada
seja como área de pousio, como campos de caça, como pastagem, etc.
Segue-se que, quando a freqüência de cultivo de uma dada área au-
menta, os fins para os quais ela vinha até então sendo usada têm de ser
alcançados de alguma nova maneira, o que pode originar atividades
adicionais para as quais novas ferramentas e outros investimentos po-
dem vir a ser necessários. A nova abordagem ao desenvolvimento agrí-
cola, abordagem marcada pelo conceito de freqüência de cultivo, chama
a atenção para os efeitos prováveis das mudanças ocorridas na densi-
dade de população sobre a tecnologia agrícola. O que é claramente
contrastante com a concepção de que a tecnologia agrícola é um fator
autônomo e independente da dinâmica populacional.
Um problema essencial no estudo da economia das mudanças
populacionais e o de esclarecer de que maneira aquelas mudanças afe-
tam o investimento. Concorda-se que o grau de segurança da posse e do
uso e, para o cultivador, um dos importantes determinantes do investi-
mento. Uma das vantagens do conceito de freqüência de cultivo —
sugere-se neste estudo — é que ele torna possível trazer para o âmbito
da análise a observação do uso das terras em pousio, das pastagens e do
manejo dos animais e, por isso, permite apreciar o íntimo relaciona-
mento entre mudança técnica e fatores econômicos, de um lado, e posse
e uso da terra, de outro. Ou seja, esta nova abordagem nos permite tra-
tar a posse e uso da terra como um fator endógeno. Em conseqüência,
pressupostos arbitrários ou pouco realistas a respeito da posse e do uso
da terra podem ser evitados na análise de problemas de investimentos.

10
A escola neomalthusiana ressuscitou a idéia de que o crescimento
da população deve ser visto como uma variável dependente da produ-
ção de alimentos. Cheguei à conclusão, a ser substantificada nos capí-
tulos seguintes, de que, em muitos casos, a produção de uma dada
porção de terra responde a uma inversão adicional de trabalho muito
mais generosamente do que os autores neomalthusianos supõem. Se
isso e verdade, as baixas taxas de crescimento da população observadas
(até recentemente) em comunidades pré-industriais não podem ser ex-
plicadas como resultado da escassez de alimentos devida ao excesso de
população, e devemos abrir espaço para outros fatores na explicação
das tendências demográficas. O presente estudo não se ocupará entre-
tanto desses outros fatores — médicos, biológicos, políticos, etc. — que
podem ajudar a explicar por que a taxa de crescimento da população
em comunidades primitivas foi o que foi. Ocupar-nos-emos dos efeitos
do crescimento populacional sobre a agricultura e não das causas desse
crescimento.

11
CAPÍTULO 1

A DINÂMICA DO USO DA TERRA

A intensidade do uso da terra varia grandemente ao redor do mundo.


Em vastas regiões da África e da América Latina, e em algumas partes
da Ásia, o sistema de uso da terra e extensivo, seguindo-se a cada um
ou dois anos de cultivo um período de pousio de pelo menos vinte anos.
O outro extremo é encontrado no Egito e no Extremo Oriente, onde a
maioria das terras cultivadas oferece, no mínimo, duas colheitas anuais.
Entre esses extremos, ocorrem intensidades de uso intermediárias, e é
freqüente encontrarem-se, em um mesmo país, regiões sob cultivo
muito intensivo, outras sob cultivo anual e outras sob sistemas de pou-
sio mais ou menos extensivos.
Qualquer classificação dos sistemas de uso da terra de acordo
com graus de intensidade de uso é mais ou menos arbitrária. A fim de
simplificar a análise que se segue, dividiu-se o continuum de intensi-
dades de uso da terra, em cinco grupos. Em ordem crescente de inten-
sidade:
1. Cultivo com pousio longo ou florestal. Sob esse sistema, cla-
reiras são abertas anualmente nas florestas e semeadas ou plantadas
por um ano ou dois. Em seguida, são abandonadas durante um período
longo o suficiente para que a floresta as invada outra vez. O que signi-
fica que o pousio deve durar de vinte a trinta anos pelo menos. O tipo
de floresta que cresce nas áreas que são utilizadas sob esse sistema é
conhecido como floresta secundária, em oposição à primária, ou flo-
resta virgem, e que não foi jamais cultivada ou o foi há um século ou
mais.
13
2. Cultivo com pousio arbustivo. Sob este sistema o pousio e
muito mais curto, algo entre seis e dez anos. Nenhuma floresta verda-
deira crescerá num período tão curto, mas a terra cobrir-se-á gradual-
mente de arbustos e pequenas árvores. Os períodos de cultivo ininter-
rupto variam consideravelmente. Podem não se estender por mais de
um ou dois anos (como no sistema anterior) e podem ser tão longos
como o período de pousio, isto é, de seis a oito anos. Muitos autores
não fazem distinções entre os sistemas de pousio longo e arbustivo,
agrupando-os sob o rótulo de cultivo com pousio longo ou cultivo itine¬
rante.
3. Cultivo com pousio curto. Aqui a terra é deixada em repouso
por um ou dois anos somente. Num período tão curto, nada além de
capim ou mato rasteiro invadirá os campos. Sob certas condições, lon-
gos períodos de pousio não resultam em vegetação mais exuberante que
essa. É preciso, pois, distinguir, entre as áreas que apresentam esse
tipo de vegetação, quais as que se encontram sob pousio longo e quais
as de pousio curto.
4. Cultivo anual. Não é usualmente considerado um sistema de
alqueive, ou pousio, mas pode, na verdade, ser classificado como tal
porque comumente a terra é deixada em repouso por alguns meses,
entre a colheita e o plantio seguinte. Neste grupo incluem-se os siste-
mas de rotação anual, em que uma ou mais das culturas semeadas
anualmente são capins ou forragens.
5. Cultivos múltiplos. Este é o mais intensivo dos sistemas de uso
da terra, desde que a mesma área suporta duas ou mais lavouras ano
após ano. Colheita e plantio sucedem-se num breve espaço de tempo,
podendo o período de repouso ser desprezível.1
Sob a pressão de uma população crescente, tem havido nas dé-
cadas recentes uma mudança de sistemas mais extensivos para sistemas
mais intensivos em virtualmente todas as regiões subdesenvolvidas. Em
algumas partes do mundo, agricultores que praticavam até então o sis-
tema de pousio longo não puderam mais encontrar suficientes exten-
sões de floresta secundária. Tiveram, então, de recultivar áreas onde a
vegetação não havia completado seu desenvolvimento. Dessa maneira a
floresta recuou, sendo substituída por campos mais ou menos cerrados.
Ainda, em outras regiões o pousio arbustivo foi substituído pelo curto,

(1) A sucessão de diversos plantios na mesma área, num curto espaço de tempo
seguido por um longo período de alqueive, não é aqui considerada um caso de cultivo
múltiplo mas, sim, de cultivo com pousio longo.

14
e este por sistemas de cultivo anual, com ou sem irrigação. Em regiões
densamente povoadas do Extremo Oriente, o crescimento da popula-
ção, neste século, tem causado uma expansão dos cultivos múltiplos.

A SEQÜÊNCIA HISTÓRICA

O encurtamento do pousio não é um fenômeno exclusivo do século


vinte. Investigações históricas revelaram que houve uma gradual redu-
ção de alqueive na Europa Ocidental durante a Idade Média e depois
dela, terminando na adoção de cultivos anuais na segunda metade do
século dezoito. Mas a evidência de um processo de gradual encurta-
mento do alqueive na Europa não se limita ao período para o qual exis-
tem fontes escritas. Pesquisas arqueológicas indicaram a existência de
um sistema de agricultura baseado em pousio longo no período neolí¬
tico.2 Combinando os resultados de pesquisas arqueológicas e históri-
cas, podemos formar a imagem de sucessivas mudanças na Europa: do
sistema neolítico de pousio longo aos sistemas itinerantes com alqueive
arbustivo, ou curto, ao sistema de cultivos anuais nos séculos recentes.
Nosso conhecimento da história agrária de outras partes do mun-
do é muito mais fragmentário. Entretanto, pesquisas arqueológicas,
entre as quais os estudos do pólen, apontam para o uso generalizado,
no período neolítico, do cultivo em clareiras abertas nas florestas, pro-
vavelmente muito semelhante ao tipo de cultivo que hoje se encontra
em muitas comunidades primitivas. Isso contrasta com uma teoria an-
terior, segundo a qual o cultivo intensivo dos vales de rios teria prece-
dido o cultivo de terras de florestas. A teoria mais antiga parece ter-se
baseado na idéia de que o cultivo de terras de floresta seria difícil de-
mais para as comunidades primitivas. Essa suposição ignora, entre-
tanto, o fato de que a queima, e não a derrubada de árvores, era o mé-
todo empregado na abertura das terras. Os peritos na matéria tendem
a concordar que o cultivo das margens dos rios terá sido iniciado por
tribos que, em virtude da exaustão e desidratação das terras de flores-
tas que costumavam cultivar, terminaram por se aglomerar ao longo
dos rios. O Saara e outros desertos próximos a regiões de antigos cul¬

(2) O. C. Stewart, "Fire as the first Great Force employed by Man" in W. L.


Thomas, Jr. (ed.), Man's Role in Changing the Face of the Earth (Chicago, 1956), pp.
115-29; K. J. Narr, "Early Food Producing Populations", ibid., pp. 134-47; H. C. Dar-
by, "The Clearing of the Woodland in Europe", ibid., pp. 183-210; J. Iversen, The In-
fluence of Prehistoric Man on Vegetation (Copenhagen, 1949).
15
tivos fluviais estão sendo pesquisados em busca de evidências que refor-
cem ou anulem essas teorias. É difícil estabelecer a seqüência histórica
dos diferentes tipos de cultivo porque os sistemas agrícolas mais impor-
tantes — à exceção da moderna agricultura química e mecanizada —
vêm sendo utilizados há milhares de anos. Mas não é importante para a
discussão do processo geral de desenvolvimento da agricultura que cer-
tas tribos possam ter descoberto a facilidade do cultivo das margens de
um rio antes que o cultivo de terras de floresta fosse comum nas vizi-
nhanças. Ainda que não se possa ter certeza de que sistemas extensivos
de uso da terra precederam os sistemas intensivos em todas as partes do
mundo, parece não haver razão para duvidar que a seqüência típica de
desenvolvimento da agricultura constituiu uma passagem gradual —
mais rápida em algumas regiões do que em outras — de métodos exten-
sivos para métodos intensivos de uso da terra. A classificação dos tipos
de uso sugerida acima e, portanto, mais do que uma tentativa de iden-
tificar e classificar os vários tipos de agricultura que existem hoje e
existiram no passado. Ela destina-se, ao mesmo tempo, a descrever, em
largos traços, os principais estágios da evolução real da agricultura pri-
mitiva, nos tempos pré-históricos e no passado mais recente.

USO DA TERRA NOS TRÓPICOS

Nos séculos passados, colonizadores e funcionários coloniais europeus


das regiões onde predominava o cultivo com alqueive longo ignoraram
o fato de que terras em aparente desuso estavam, na verdade, sob pou-
sio. Vastas extensões daquelas terras foram expropriadas para uso dos
colonos e das companhias plantadoras ou foram declaradas reservas,
onde não era permitido aos nativos abrir clareiras para cultivo. Pen-
sava-se que nenhum dano se causaria à população nativa, desde que
lhes fosse deixada a posse das terras que estavam, na ocasião, sob cul-
tivo em adição a alguma terra não cultivada. Esta última destinar-se-ia
a extração de lenha e outros materiais e para a expansão do cultivo em
caso de aumento da população.
A expropriação das terras em pousio teria, necessariamente, de
forçar os cultivadores a reduzir os períodos de repouso do solo, condu¬

(3) R. O. White, "Evolution of Land Use in South Western Asia", in L. Dudley


Stamp (ed.), A History of Land Use in Arid Regions (UNESCO, Paris, 1961), pp. 57-114,
e outros artigos da mesma publicação.

16
zindo-o, em alguns casos, à exaustão, o que, juntamente com as quei-
xas dos nativos, acabou por abrir os olhos de muitos europeus para a
existência de sistemas de cultivo com pousio longo. Desde então, esses
sistemas têm sido objeto de estudo de economistas, agrônomos e antro-
pólogos.
A maioria das regiões onde hoje predomina o cultivo com pousio
longo encontra-se nos trópicos. Isso explica, em grande parte, porque
tal sistema foi considerado uma adaptação as condições especiais de
solo e clima da zona tropical. Temos um exemplo dessa linha de pensa-
mento no conhecido livro de Pierre Gourou, The Tropical World4
Gourou pressupõe que o solo da maior parte da zona tropical não pode
ser usada em outros sistemas que não o de pousio longo. De seu ponto
de vista, somente solos vulcânicos ou solos que recebessem regular-
mente novas camadas provenientes de outras regiões (por inundações
ou outros mecanismos) poderiam suportar cultivo mais intensivo. Esse
pessimismo em relação a fertilidade do solo tropical caminha de mãos
dadas com a interpretação malthusiana da situação demográfica nos
trópicos. O professor Gourou supõe que a maior parte dos trópicos é
esparsamente povoada porque o solo é incapaz de suportar cultivo em
mais de um ano entre vinte e, portanto, incapaz de suportar um popu-
lação numerosa. A conclusão de Gourou e que a população nos tró¬
picos atingiu o limite imposto pelas disponibilidades do território e que
qualquer aumento de população só poderá ser acomodado com base na
industrialização e no comércio exterior.
A crença de que há poucas possibilidades de uso intensivo da
terra nos trópicos não foi deixada inconteste. Ela foi discutida na Con-
ferência Interafricana do Solo de 1955, em Leopoldville.5 Tanto na-
quela conferência quanto em contribuições mais recentes de especia-
listas (entre os quais, o próprio Gourou), emergiu uma visão considera-
velmente mais otimista das possibilidades de expansão do uso de mé-
todos intensivos de cultivo na África e em outras regiões tropicais.6

(4) P. Gourou, Les pays tropicaux (Paris, 1947; edição inglesa revista, London,
1954).
(5) Comptes rendus, 2ème. conférence interafricaine des sols, Leopoldville (Brus-
sels, 1955). Ver o trabalho apresentado por H. Vine, "Is the Lack of Fertility of Tropical
African Soils Exaggerated?", ibid., pp. 389-406.
(6) Em um artigo publicado em 1962, Gourou diz o seguinte: "Enfim, tem-se dito
com excessiva freqüência que os solos tropicais são de utilização problemática... pode-se
pensar, hoje em dia, que não faltam superfícies cultiváveis na África; lá se colhe cada ano
não mais que três por cento da superfície total, enquanto que a área cultivável é de, pelo

17
Mostrou-se que a terra usada para cultivo intensivo em partes da Nigé-
ria, por exemplo, é do mesmo tipo da utilizada para rotações de pousio
longo na Nigéria e em outras partes sujeitas a condições climáticas se-
melhantes. Fertilidade pode ser o resultado do uso de métodos inten-
sivos de cultivo. Não o contrário.

A PAISAGEM EM MUDANÇA

A descoberta da presença anterior de sistemas de pousio longo em re-


giões que agora estão desertas ou sob cultivo intensivo desacreditou a
idéia de que diferentes sistemas seriam adaptações a diferentes tipos de
solo e clima. Um número cada vez maior de autores parece apoiar a
teoria dinâmica de uso do solo, baseada no reconhecimento de que a
relação entre "condições naturais" e sistemas de pousio não é unidire¬
cional, mas recíproca. Sugere-se agora que, no período neolítico, as
florestas cobriam superfícies muito mais amplas que as atuais e que as
áreas de florestas ter-se-iam reduzido em razão do uso do cultivo itine¬
rante, dos períodos de pousio muito curtos, do emprego do fogo para
fins de caça e da perda acidental de controle das queimadas na aber-
tura de clareiras para lavoura. Assim, as florestas teriam sido gradual-
mente substituídas por cerrados e campos, da mesma maneira como
hoje ocorre em regiões de pousio longo e de caça.
Quando as florestas degeneram, o mato raso avança. No bosque
denso, a erva não consegue crescer, mas quando a floresta torna-se rala
ou é gradualmente substituída por arbustos, as ervas daninhas espa-
lham-se. Suas raízes não são destruídas pelo fogo; portanto, o solo sub-
metido freqüentemente às queimadas tende a cobrir-se cada vez mais
de ervas.

menos, cinqüenta por cento da superfície total". (Em francês no original, N. dos T.). P.
Gourou, "Les conditions du développement de l 'Afrique Tropicale", em Genéve-Afrique,
Acta Africana, vol. I, nº 1 (1962), pp. 49-50. Ver também P. Gourou, "The Quality of
Land Use of Tropical Cultivators", em W. L. Thomas, op. cit, pp. 336-46; A. T. Grove,
"Population, Densities and Agriculture in Northern Nigeria", in Barbour and Prothero
(ed.), Essays on African Population (London, 1961), pp. 115-36; K. M. Barbour, "Popu-
lation, Land and Water in Center Sudan", ibid., pp. 137-56; R. Dumont, L'Afrique
noire est mal partie (Paris, 1962), p. 10; R. Morel, "Les rotations et l'agriculture centra-
fricaines", e H. Landelout, "Fallowing Techniques of Tropical Soils", trabalhos apresen-
tados à United Nations Conference on the Application of Science and Technology (Ge-
nebra, 1963), agenda item C. 3.4.

18
A substituição de florestas e bosques por campos abertos acon-
tece mais provavelmente quando o crescimento da população leva à
redução dos intervalos de pousio. Observou-se, durante o período colo-
nial e depois dele, que muitas áreas previamente cobertas por florestas
e bosques transformaram-se aos poucos em savanas e outros tipos de
campos, como resultado da recorrência de queimadas e da aceleração
das rotações.7 Muitos autores acreditam que uma grande porção das
savanas e de outros campos aparentemente naturais devem sua origem
a transformações similares ocorridas em tempos pré-históricos.
Com a substituição de florestas por campos, as forrageiras natu-
rais para bovinos, cavalos e outros herbívoros tornam-se disponíveis.
Aqueles que vêem a mão humana no aparecimento de muitas pradarias
têm, portanto, questionado a antiga teoria de que o estágio de noma¬
dismo teria geralmente precedido a agricultura. De acordo com essa
teoria, tribos nômades teriam iniciado o cultivo do solo quando se tor-
naram numerosas demais para que pudessem subsistir à base de eco-
nomia pastoril. Supõe-se agora que a seqüência tenha sido inversa:
tribos que previamente cultivavam parcelas transitórias em terras de
floresta ou bosque tornaram-se pastoris somente quando aqueles bos-
ques e florestas se transformaram em campos, depois de longos anos de
cultivo.
Alguns autores acreditam que o recuo das florestas acabou por
afetar o clima, fazendo-o mais seco e facilitando a expansão de desertos.
Outros pensam que a expansão de terras estéreis resultou primeira-
mente da erosão causada por cultivo e pastoreio excessivos por parte
das tribos nômades. Existe evidência recente, em muitas partes do
mundo, de pastagens que são destruídas por pastoreio excessivo, erosão
eólica ou queimadas que desnudam o solo, permitindo que a camada
superior, mais fértil, seja arrastada pelas águas quando chega a estação
chuvosa. Colinas áridas, desnudadas de sua vegetação primitiva e do
horizonte superior do solo, abundam nas regiões das civilizações an-
tigas, desde a China até os países das margens do Mediterrâneo. Não é
improvável que o pastoreio excessivo no passado seja o responsável pelo
atual estado dessas áreas.

(7) H. H. Bartlett, Fire in Relation to Primitive Agriculture and Grazing, an


Annotated Bibliography (Michigan, 1957, mimeografada). Trata-se de uma abrangente
coleção de informações sobre transformação da vegetação e mudanças correspondentes
no uso da terra. Ver também H. H. Bartlett, "Fire, Primitive Agriculture and Grazing in
the Tropics", in W. L. Thomas, op. cit, pp. 692-712; e C. O. Sauer, "The Agency of
Man on the Earth", ibid., pp. 49-68.

19
A importância do pastoreio e do cultivo excessivo na transforma-
ção do clima e na criação de áreas desertas é uma questão controver-
tida.8 Dudley Stamp concluiu um estudo da UNESCO sobre o uso da
terra em regiões áridas com um cauteloso resumo das opiniões recen-
tes: "O rápido desenvolvimento dos estudos ecológicos lançou dúvidas
sobre as características originárias de boa parte da vegetação tropical.
Torna-se cada vez mais duvidoso que qualquer das áreas tropicais de
'campos sujos' e savanas possa ainda ser encarada como vegetação 'na-
tural', não influenciada pelo homem. O mesmo e verdadeiro para a
vegetação de terras semi-áridas e áridas. Se os desertos se expandem,
permanece a dúvida a respeito de que parte dessa expansão reflete mu-
danças climáticas e que parte e o produto do trabalho, consciente ou
inconsciente, do homem".9
Os neomalthusianos não perderam a ocasião para interpretar a
teoria dinâmica do uso da terra como uma confirmação das crenças
malthusianas. Malthus pensava que o aumento da população além do
nível de capacidade de suporte da terra deveria levar a eliminação do
excesso de população seja diretamente, por inanição, seja através de
outras restrições positivas que, em sua opinião, poderiam ser todas
remetidas à causa básica: falta de alimentos. A nova versão malthu-
siana e baseada na idéia de que o aumento de população leva a des-
truição do solo; e que as pessoas vagam de terra em terra, fugindo da
fome e repetindo o ciclo de destruição. Os neomalthusianos coletam
todas as evidências de dilapidação dos recursos naturais e projetam um
quadro em que o mundo é um lugar onde populações crescentes pres-
sionam contra um potencial de produção de alimentos que não só não
pode crescer, mas que vai sendo gradualmente reduzido pela ação da-
quelas populações crescentes.
Não se pode negar que o potencial de produção de alimentos te-
nha sido comprometido por populações que desconheciam a maneira
de compatibilizar seus números crescentes com o uso mais intensivo de
terra sem prejudicar o solo temporária ou definitivamente. No entanto,
as teorias malthusianas são enganosas, pois tendem a negligenciar as
evidências que temos a respeito de populações em crescimento que con-
seguiram alterar seus métodos de produção de maneira a preservar e
aumentar a fertilidade de suas terras. Muitas tribos, ao invés de se tor¬

(8) As idéias em litígio são expressas nos artigos op. cit. e em L. Dudley Stamp,
op. cit.
(9) Ibid., p. 379.

20
narem nômades pela destruição da terra por seus rebanhos de animais
herbívoros, usaram esses mesmos animais para cultivar os prados em
rotações de pousio curto, com o resultado de que a fertilidade do solo
melhorou graças ao adubo animal incorporado. Outras irrigaram as
terras ressecadas e preveniram a erosão pela construção de terraços. É
verdade que algumas regiões, que outrora alimentaram populações
mais ou menos densas, são hoje plagas desoladas. Mas é igualmente
verdade que regiões, onde antigamente só podiam viver umas poucas
famílias sob o sistema de pousio longo, sustentam hoje centenas de
famílias por meio do cultivo intensivo.
Populações em crescimento podem ter, no passado, destruído
mais do que aperfeiçoado as terras que cultivaram. Mas não há razão
para extrapolar tendências do passado, porque cada dia sabemos mais
a respeito de métodos de preservação do solo e podemos, portanto,
usando as técnicas modernas, recuperar para o cultivo muito da terra
que nossos antepassados tornaram estéril.

21
CAPÍTULO 2

INTERDEPENDÊNCIA
ENTRE USO DA TERRA
E MUDANÇA TÉCNICA

Antes que os sistemas de agricultura itinerante tivessem atraído a aten-


ção dos economistas, parecia natural tomar a principal ferramenta de
cultivo como o critério central de classificação dos sistemas de agricul-
tura primitiva. Em conformidade com isso, distinguiam-se três grandes
tipos de agricultura: 1. o mais primitivo, em que não se empregavam
nem a enxada nem o arado; 2. o sistema de enxada; 3. o sistema de
arado.
A vara de plantar é a mais primitiva das principais ferramentas
agrícolas e os povos que dela se utilizam são os mais primitivos entre as
tribos agrícolas de hoje. Em contraste, os mais altos níveis de civili-
zação pré-industrial foram atingidos por povos que cultivavam com o
arado. Parecia natural, portanto, conceber o desenvolvimento agrícola
como determinado por um processo de aperfeiçoamento gradual das
ferramentas, graças ao qual o produto por hora de trabalho aumen-
tava, liberando parte da população para atividades não agrícolas. Uma
implicação dessa teoria é que haveria, em todas as comunidades primi-
tivas, um antagonismo entre aumento da população e desenvolvimento
agrícola, porque o crescimento da população tornaria necessário o em-
prego de terras menos férteis, caindo, portanto, o produto por homem-
hora. De acordo com esse ponto de vista, o destino econômico de qual-
quer povo estaria diretamente relacionado à sua inventividade (ou pro-
ximidade de civilizações avançadas) e inversamente relacionado ao seu
grau de proliferação. A teoria ignora o fato de que o tipo de ferramenta
agrícola necessária num dado contexto depende do sistema de uso da
terra: algumas mudanças técnicas materializam-se somente se o sis¬

23
tema de uso da terra se modifica concomitantemente, da mesma forma
que outras mudanças de sistema de cultivo só são possíveis com a intro-
dução de novas ferramentas.
A fim de fundamentar essa afirmação devemos deter-nos breve-
mente no exame do uso conjunto e interdependente de ferramentas,
métodos e sistemas de cultivo.

SISTEMAS DE POUSIO E TIPOS DE TÉCNICAS

O sistema de pousio longo ou florestal associa-se a um método de cul-


tivo que pouco varia de uma a outra parte do mundo. Na parcela esco-
lhida para cultivo, as árvores maiores são derrubadas a machado ou
por meio da queima das raízes quando estas secam após a abertura de
incisões anulares no tronco. A vegetação menor e igualmente quei-
mada. Troncos e raízes não queimados, assim como as cinzas, são dei-
xados nos campos. Semeia-se e planta-se diretamente nas cinzas, sem
qualquer preparo da terra e sem outra ferramenta que não, talvez, uma
estaca para afastar as cinzas e perfurar o solo. Não é possível usar o
arado em terras abertas por método tão sumário.1 Nem é necessário,
pois cinzas abundantes asseguram grande produção se o solo e o clima
são razoavelmente favoráveis. As boas colheitas duram apenas um ano
ou dois. Portanto, novas parcelas são preparadas todos os anos, en-
quanto as antigas são abandonadas à invasão da floresta depois de uma
ou duas colheitas.
Depois da queimada, o solo está livre de ervas e solto; não é ne-
cessário revolvê-lo com a enxada. Em contraste, quando o período de
pousio é encurtado e, portanto, a vegetação a ser eliminada restringe-se
a arbustos e capins, plantio e semeadura têm de ser preparados com
enxada ou instrumento similar. Assim, a enxada não é introduzida
apenas como um aperfeiçoamento técnico da vara de plantar. Ela é
introduzida, tipicamente, quando uma operação adicional se torna ne-
cessária, isto é, quando o pousio longo é substituído por pousio curto.

(1) "o uso de animais de tiro e arado exigiria uma superfície limpa. O chuço e a
enxada podem trabalhar com êxito entre os restos de uma queimada, onde os troncos
atravancam o solo e a ramagem foi apenas reduzida pelo fogo, mas o arado oferece
resultados ótimos no solo permanentemente limpo. Isto, claro, refere-se ao arado plena-
mente desenvolvido. Versões mais leves de implementos puxados por animais, como o
Hakenpflug (espécie de grade) ou o Zoche (um tipo de cultivador), foram úteis no sistema
de derrubada-queimada. São a exceção que confirma a regra". G. Pfeifer, "The Quality
of Peasant Living in Central Europe", in W. L.Thomas, op. cit., p. 250.

24
A necessidade de uma nova mudança de ferramentas aparece
quando a vegetação das parcelas a serem cultivadas torna-se ainda
mais rala devido ao cultivo muito freqüente, a devastação pelo fogo ou
a outras causas. O melhor método de limpeza do solo no sistema de
pousio longo — queima da vegetação natural — e ineficiente quando
essa vegetação se constitui principalmente de gramíneas. Assim é por-
que as raízes permanecem intactas após o fogo e porque e tremenda-
mente difícil a remoção das raízes de certos tipos de capins com o uso
da enxada. Assim, o arado torna-se indispensável e, concomitante¬
mente, o desaparecimento gradual de raízes de árvores e arbustos faci-
lita o seu uso. Além disso, com a expansão dos prados em lugar das
florestas, passa-se a dispor de forragem natural para os animais de tiro.
Regiões onde a floresta é substituída por campos são freqüentemente
invadidas por nômades. Animais herbívoros fazem, assim, seu apareci-
mento nessas regiões no momento mesmo em que os cultivadores locais
necessitam e podem fazer uso deles.
A necessidade de um arado é tão premente no sistema de pousio
curto que os agricultores tendem a evitar tal sistema quando, devido a
falta de animais ou a outras razões, não podem empregar o arado. Tais
agricultores prolongam os períodos de cultivo no sistema de pousio ar-
bustivo para oito ou mais, em vez de encurtar os períodos de pousio.
Através do cultivo em anos sucessivos eles controlam a invasão de ervas
daninhas; através de um pousio relativamente longo, elas são evitadas
no período de repouso do solo. O resultado é o tipo de sistema de pou-
sio arbustivo com características intensivas que pode ser observado em
muitas partes da África, onde períodos de cultivo de até oito anos al-
ternam-se com alqueives de similar duração. Se a população se torna
muito densa para esse tipo de cultivo, e provável que se transite direta-
mente para o cultivo anual ou múltiplo. Nesse caso, o período de re-
pouso é eliminado totalmente.
Quando o pousio é encurtado, ou mesmo eliminado, em um dado
território, outros métodos de preservação ou recuperação da fertilidade
do solo têm de ser introduzidos. Existe, portanto, relação íntima entre
sistemas de pousio e técnicas para fertilização. No sistema de pousio
longo, as cinzas deixadas pela queimada são suficientes para assegurar
boas colheitas. Sob pousio arbustivo, a quantidade de cinzas é menor e
fertilização adicional pode ser provida por meio de folhas, queimadas
ou não, e turfa trazida de bosques adjacentes e misturadas à camada
superior do solo em cultivo. No sistema de pousio curto, a fertilização
ocorre, principal ou totalmente, à base de excrementos animais e hu-
manos. Em sistemas ainda mais intensivos, e provável que se usem

25
simultaneamente vários tipos de adubação, incluindo as práticas de
adubação verde e a aplicação de compostos, excrementos de diversos
animais, dejetos domésticos, sedimentos de canais, etc.
Alguns desses métodos de adubação quase não requerem traba-
lho humano, enquanto outros o exigem em grandes doses. A quanti-
dade de trabalho por hectare cultivado deverá, pois, variar com as alte-
rações na duração do pousio. A necessidade de capinas também se rela-
ciona à duração do alqueive. As capinas são desnecessárias no sistema
de pousio longo e raramente usadas sob pousio curto ou arbustivo com
período curto de cultivo. Ao contrário, as capinas são indispensáveis
nos sistemas arbustivos intensivos (como o mencionado acima) e na
agricultura irrigada onde a umidade na estação de crescimento facilita
a aparição de ervas daninhas.
Da mesma maneira, o uso de técnicas de irrigação e outros me-
lhoramentos fundiários relacionam-se ao sistema de cultivo. As insta-
lações para irrigação e outros melhoramentos como, por exemplo, o
terraceamento, jamais são usados com pousio longo e raramente o são
com pousio curto. Mas a introdução de cultivos múltiplos depende com
freqüência da construção de canais e diques para irrigação. O mesmo
pode ser verdadeiro para cultivos anuais em regiões secas. Sistemas de
pousio curto podem, por sua vez, ser praticáveis sem irrigação mesmo
em regiões muito secas. Assim, as instalações para irrigação são um
exemplo a mais de equipamento que entra em uso quando a redução
dos períodos de pousio torna necessárias novas operações.

TIPOS DE INSTRUMENTOS VERSUS FABRICAÇÃO


DE INSTRUMENTOS

A descrição acima, da relação entre sistemas de cultivo e métodos e


instrumentos, pode ser suficiente para mostrar que sistemas de uso da
terra e técnicas agrícolas não devem ser tratados como se fossem inde-
pendentes entre si. Dado um sistema de pousio, as possibilidades de
escolha no que se refere a espécies de instrumento e inversões de tra-
balho e capital por unidade de área são bastante limitadas por deter-
minações de ordem técnica. Não podemos, portanto, aplicar funções de
produção contínuas quando desejamos considerar os efeitos de trans-
formações demográficas sobre a agricultura pré-industrial. Esse tipo de
análise seria apropriado somente se se pudesse supor que o trabalho
adicional provido pelo aumento da população seria usado como uma

26
adição marginal a inversão de trabalho em cada parcela existente, seja
para aração mais cuidada ou para capina mais escrupulosa. Mas tal
suposição seria irrealista.
Uma população rural em crescimento não produz mais alimento
aumentando o número de arações ou introduzindo a capina num sis-
tema de pousio curto em que ainda não se a praticava. Em vez de tais
mudanças, que não aumentaria muito a produção total, o que aconte-
ceria, provavelmente, seria a passagem do sistema de pousio curto para
o de cultivo anual ou múltiplo. Essa transição pode, por sua vez, reque-
rer a introdução de irrigação, melhor aração e capinas; ou, o encur-
tamento do pousio pode ter como concomitante necessária a produção
de forragem para os animais. Em outras palavras, o trabalho adicional
será usado, muito provavelmente, para provocar uma mudança radical
do sistema de cultivo em parte da área, enquanto nenhuma mudança se
processará em outras partes. A medida que a população seguir aumen-
tando, mais e mais superfície passará para o sistema intensivo de uso
da terra. Vários aspectos desse processo de evolução do uso da terra e
das técnicas serão discutidos nos Capítulos numerados de 3 a 7.
Entretanto, nem todos os tipos de mudança técnica estão ligados
a mudanças de sistema de cultivo. Um agricultor que pratique o sis-
tema de pousio longo pode usar um machado de pedra, um machado
de ferro batido feito pelo ferreiro da aldeia ou um machado de aço de
origem industrial. No que se refere a arados e equipamento de irri-
gação, as possibilidades de escolha são maiores, ainda que não se leve
em conta maquinaria motorizada. Assim, o fato de que, dado o sistema
de pousio, seja estreita a gama de possibilidades na escolha da espécie
de instrumento, não se exclui a existência de uma ampla faixa de alter-
nativas no que se refere a fabricações mais ou menos eficientes do ins-
trumento em questão. Essa distinção entre espécie de instrumento (que
é ligada ao sistema de pousio) e fabricação ou qualidade dele (que inde-
pende do sistema de cultivo) leva-nos a considerar três tipos básicos de
evolução agrícola.
1. Um tipo de mudança é aquele em que comunidades rurais
substituem espécies de instrumentos (da vara de plantar à enxada,
desta ao arado) mas continuam a recorrer à fabricação primitiva desses
instrumentos, produzidos pelo próprio agricultor ou pelo ferreiro da
aldeia.
2. Um outro tipo envolve não apenas a substituição de espécies
de instrumentos mas também o abandono gradual de instrumentos ca-
seiros em favor daqueles produzidos por artesãos e fábricas.

27
3. Finalmente, há os casos de comunidades rurais que passam a
utilizar instrumentos mais aperfeiçoados da mesma espécie. Temos
exemplo desse tipo de mudança em muitas comunidades tribais da In-
donésia que recentemente substituíram o machado de pedra pelo de
aço mas continuam a usar o sistema de pousio longo sem enxada e sem
arado. Os problemas econômicos desse tipo de comunidade serão dis-
cutidos no Capítulo 8.

28
CAPÍTULO 3

PRODUTIVIDADE DO TRABALHO
NOS SISTEMAS
DE POUSIO LONGO
E POUSIO CURTO

A argumentação nos capítulos precedentes esta baseada na suposição


de que a passagem para sistemas mais intensivos de uso da terra ocorre
em resposta ao aumento da população de uma dada área. Essa supo-
sição só é valida se: 1. sistemas intensivos de uso da terra requerem
inversões de capital tão grandes que a sua introdução torna-se impro-
vável antes que o crescimento populacional os faça necessários e com-
pensadores; 2. esses sistemas geram um produto por homem-hora infe-
rior aos dos sistemas mais extensivos. Por outro lado, se o produto por
homem-hora pode ser aumentado significativamente com pouco ou ne-
nhum investimento, pela mera adoção de um sistema mais intensivo de
cultivo, esperar-se-ia que tal intensificação ocorresse sempre que agri-
cultores se apercebessem da existência de técnicas intensivas, indepen-
dentemente da densidade da população, do crescimento ou da sua es-
tagnação. É importante, pois, indagar em que direção o produto por
homem-hora será afetado por alterações do sistema de uso da terra.
Não há resposta a priori a essa questão. Como se mencionou an-
tes, a passagem de um sistema de pousio para outro e freqüentemente
parte de um padrão complexo de mudança, envolvendo também alte-
ração das proporções de fatores, substituição de instrumentos e mé-
todos. Devemos, pois, buscar evidências empíricas, especialmente atra-
vés da comparação das diferenças de rendimento em dois sistemas de
uso da terra com as diferenças de inversão de trabalho e capital por
unidade de área nesses mesmos sistemas.
É claro que não devemos esperar uma resposta conclusiva à nossa
questão. Indicações quantitativas da produção por homem-hora na
29
agricultura primitiva podem ser encontradas em uns poucos estudos
antropológicos, levantamentos de administração) agrícola e outras fon-
tes. Mas os diferenciais de produtividade que emergem desses estudos
somente em parte podem ser explicados por diferenças de sistemas de
pousio e métodos; eles refletem, em grande medida, diferenças de solo,
clima, qualidade dos instrumentos de produção e do trabalho humano
e animal usados no cultivo. Precisaríamos de muito mais material para
poder avaliar a importância relativa de cada um dos fatores. A infor-
mação disponível reforça, no entanto, o que se tem como senso comum
e pode nos ajudar a chegar a algumas conclusões amplas e tentativas.
A questão que devemos levantar é esta: deve-se esperar que o
produto por homem-hora de uma dada população, em um dado terri-
tório, diminua, em prazo relativamente curto, quando ocorre redução
do pousio acompanhada de mudanças correspondentes de instrumen-
tos e métodos? Ou deve-se esperar que aumente? Colocando a questão
desta maneira, eliminamos a influência perturbadora que variações
geográficas exercem sobre fatores naturais e humanos e também os
efeitos de longo prazo, que não se pode esperar que influenciem a es-
colha em um momento dado.
Precisamos também eliminar o efeito das diferenças de fabrica-
ção dos instrumentos. O problema não é tão complicado quanto pode
parecer a primeira vista porque os agricultores, confrontados com a
escolha entre sistemas de cultivo, ou terão acesso a instrumentos mo-
dernos de todos os tipos, ou utilizarão fabricações primitivas de todos
os tipos de instrumentos. Na vida real, não se terá jamais de escolher
entre o sistema de pousio longo com machados de pedra e cultivo anual
com arados manufaturados.

DO POUSIO FLORESTAL AO POUSIO ARBUSTIVO

Os agricultores que subsistem no sistema de pousio florestal são muito


mais primitivos em seu modo de vida do que aqueles que usam métodos
de produção intensivos. Além disso, não fazem o preparo da terra antes
da semeadura e não utilizam outras ferramentas que não machados e
varas de plantar. Fica-se pois tentado a concluir que o produto por
homem-hora é necessariamente pequeno sob esse sistema de cultivo. A
realidade, entretanto, não e esse. Como se acentuou anteriormente, a
comparação entre os rendimentos por homem-hora em dois sistemas de
cultivo tem de ser feita de maneira tal que as diferenças no fator hu-
mano possam ser eliminadas. Assim, povos que praticam sistemas in¬
30
tensivos de cultivo mas recorrem, subsidiariamente, ao cultivo com
pousio longo referem-se a este último como um "sistema fácil", que dá
boas colheitas com poucas inversão de trabalho.
É óbvio que a chave para a questão da produtividade no cultivo
com pousio florestal está no trabalho de abertura da floresta, já que
não se necessita nenhum trabalho de preparação da terra, carpas, adu-
bação ou manejo de animais de tiro. O tempo usado na abertura e lim-
peza da floresta para um ou dois anos de cultivo varia bastante com
diferenças de clima, vegetação e fabricação do machado. É importante
notar que a abertura da floresta no cultivo itinerante constitui, em
qualquer caso, uma operação sumária. O fogo faz a maior parte do
serviço; a remoção das raízes (que consome muito tempo quando se
trata de estabelecer campos permanentes) não é necessária. O tempo
usado para limpeza superficial no sistema de pousio longo parece ser,
portanto, apenas uma fração — talvez dez ou vinte por cento — do
tempo necessário para limpeza completa.1
Muito mais tempo é necessário para carpir com enxada um hec-
tare do que para limpar, ainda que superficialmente, com machado e
fogo a mesma área.2 Quando os períodos de pousio se encurtam, vege¬

(1) Estimou-se em 230 homens-dias por hectare a inversão de trabalho necessária


para a limpeza completa da floresta na preparação para a produção de cacau (C. Daryll
Forde e R. Scott, The Native Economies of Nigeria, London, 1946, p. 92). Estimativas de
150 e 200 homens-dias por hectare para limpeza completa de campo de vegetação arbus¬
tiva, após alqueive de oito anos, são dadas em Report of a Survey of Problems of Mecha-
nization of Native Agriculture in Tropical African Colonies, Colonial Office (London,
1950), pp. 20 e 28. Para limpeza mais sumária, em preparação para a plantação de inha¬
me em Ibadã, uma estimativa de 50-60 dias-homens é sugerida em Daryll Forde e Scott,
op. cit, p. 91. Uma estimativa de 25 homens-dias por hectare para limpeza sumária da
floresta para cultivo itinerante no Brasil é mencionada em P. Gourou, "The Tropical
World", op. cit., p. 29. S. F. Nadel dá um exemplo da Nigéria, onde grupos de jovens
conseguiram, "com um ritmo febril de trabalho" limpar um campo de arbustos para a
produção de inhame no que corresponde a menos de doze homens-dias de oito horas por
hectare. Menciona ainda outro caso, onde somente oito homens-dias foram necessários.
É importante notar, entretanto, que aqueles jovens não trabalharam um dia completo,
mas somente duas horas e meia no primeiro caso e uma hora no segundo. S. F. Nadel, A
Black Byzantium (London, 1942), p. 249.
(2) As necessidades de trabalho nas diferentes operações do sistema intensivo de
pousio arbustivo foram calculadas para estações experimentais e umas poucas explora-
ções privadas nas colônias britânicas da África (Report of a Survey, op. cit.). Muitas ta-
belas mostrando as inversões de trabalho em sistemas de cultivo intensivo com enxada
estão disponíveis em J. Lossing Buck, "Land Utilization in China (Shanghai, 1937), vol.
III.

31
tação arbustiva, e não floresta, tem de ser derrubada para a implanta¬
ção das culturas. A
fazem-se necessárias. O trabalho adicional decorrente dessas operações
é maior do que o trabalho poupado em virtude de que arbustos, e não
árvores, estão sendo derrubadas. Além disso, é provável que a produ-
ção por hectares decline consideravelmente. Existem, portanto, fortes
indicações a favor da suposição de que a transição do sistema de pousio
longo para o de pousio arbustivo acompanha-se do declínio da produti-
vidade do trabalho.
Se o cultivo em pousio arbustivo é intensificado através do alon-
gamento do período de cultivação contínua de uma mesma parcela,
a área anual das derrubadas será muito menor do que a área sob cul-
tivo. Entretanto, torna-se necessário preparar a terra cuidadosamente e
a limpeza sumária deve, portanto, ser substituída por uma limpeza
muito mais completa da área a ser cultivada. Assim, a poupança de
trabalho decorrente da redução da área de derrubada é balanceada,
pelo menos parcialmente, pelo aumento dos cuidados de limpeza. Além
disso, métodos muito mais intensivos em trabalho — para preparação
da terra, adubação e capinação — tem de ser introduzidos se se deseja
manter o rendimento por área a despeito do alongamento dos períodos
de cultivo ininterrupto.3
Economistas que ignoram o processo de redução dos períodos de
pousio assumem freqüentemente que os retornos decrescentes por ho¬
mem-hora só se tornam problema importante quando uma densidade
populacional relativamente alta e atingida.4 Se se assume que se adi-

(3) "O montante de trabalho requerido em um ngasu (cultivo de primeiro ano,


incluído o trabalho de derrubada e limpeza do terreno; E. B.) é, pode parecer estranho,
só um pouco maior do que o requerido em um fute (cultivo repetido na mesma área;
E. B.). Neste último, não ha derrubada de árvores nem queimadas, o que não faz muita
diferença. O uso da enxada é aproximadamente o mesmo nas duas situações, pois o mato
em um fute de primeiro ano (isto é, um cultivo de segundo ano; E. B.) terá crescido bas-
tante até o mês de junho e constituirá, freqüentemente, uma trama mais espessa. Além
do que, são necessárias mais capinas em um fute do que em um ngasu". P. de Schlippe,
Shifting Cultivation in Africa (London, 1956), p. 121.
(4) "Enquanto havia abundância de terra de boa qualidade, o setor tradicional
podia absorver números crescentes sem queda da renda per capita e sem desemprego.
Mas a medida que a terra boa rareou, retornos decrescentes ao trabalho, subemprego e
métodos de redução do desemprego surgiram no setor tradicional". Benjamim Hggins,
"Employment Implications of the Application of Science and Technology in Less Deve-
loped Areas", trabalho apresentado à Conferência das Nações Unidas, op. cit, agenda
item B. 4.

32
ciona terra virgem à área de cultivo quando a população aumenta, é
razoável pensar que, enquanto apenas 5 ou 10 por cento da área total
for cultivada num dado ano, a terra adicionada anualmente ao cultivo
será do mesmo tipo daquela até então explorada. Por outro lado, se
consideramos que aproximadamente 5 por cento da área total é o má-
ximo que se pode anualmente cultivar em territórios onde se pratica o
pousio florestal, uma conclusão muito diferente se impõe: um aumento
da área cultivada num dado ano (digamos, de 5 por cento para 10 por
cento da área total) implicará, provavelmente, a redução do período de
pousio para cerca da metade da duração anterior. Parece inevitável que
as colheitas declinem ou que trabalho adicional tenha de ser devotado à
preparação da terra, adubação, etc. Em ambos os casos o produto por
homem-hora cairá. O declínio da produtividade do trabalho afetará
todos os trabalhadores, não apenas os recentemente adicionados, como
seria o caso se a terra por último cultivada fosse terra virgem.
Tribos primitivas parecem ter consciência do fato de que os me-
lhores resultados de um certo esforço são obtidos quando se limpam e
cultivam, florestas secundárias. Muitos observadores de comunidades
que praticam o sistema de pousio longo relatam que os campos arbus-
tivos jamais são cultivados enquanto florestas secundárias ainda estão
disponíveis. Os agricultores preferem, às vezes, recorrer à derrubada
da mata virgem — uma tarefa muito mais difícil do que a abertura da
floresta secundária — a ter de limpar campos cerrados.

O ADVENTO DO CULTIVO COM ARADO

Passemos agora da comparação entre diferentes tipos de pousio longo


para a comparação entre os sistemas de pousio curto e pousio longo.
Foi explicado, no Capítulo 2, que a aração é uma quase-necessidade no
sistema de pousio curto. Temos agora de nos perguntar de que maneira
o cultivo com arados primitivos puxados por animais é comparável ao
cultivo por meio de fogo, machado e enxada. Aceita-se, usualmente
sem muito exame, que o produto por homem-hora cresce considera-
velmente quando o arado é introduzido numa comunidade, substi-
tuindo métodos correspondentes ao pousio longo.
Essa é, no entanto, uma generalização infundada, como se per-
cebe quando a mudança ocorre de um sistema de pousio longo com
limpeza sumária (a fogo) do terreno para um outro de pousio curto ou
cultivo anual com arado primitivo, como é freqüente nos países subde-
senvolvidos.
33
Trabalhar com um arado primitivo é trabalho árduo para o cam-
ponês e para o animal; além do trabalho de arar, o camponês terá de
cuidar dos animais. A menos que ele mantenha um rebanho grande de
animais domésticos e empenhe muito trabalho na coleta, preparação e
distribuição do esterco sobre os campos, e provável que a produção por
hectare seja menor nos sistemas de pousio curto e cultivo anual do que
no de pousio florestal.5
Além do mais, os tipos de culturas possíveis no sistema de pousio
longo são, usualmente, diferentes daquelas de pousio curto. Sob o pri-
meiro, uma família que cultive e consuma principalmente raízes po-
derá satisfazer suas necessidades alimentares básicas com o cultivo de
uma área pequena. No entanto, a cultura de raízes não é apropriada ao
sistema de pousio curto porque as plantas terão de ser protegidas con-
tra ervas daninhas através de carpas manuais. Quando o alqueive longo
é substituído pelo curto, o consumo de alimentos concentra-se em ce-
reais que requerem menor inversão de trabalho mas produzem menos
calorias por hectare.6 Assim, se se deseja avaliar a diferença entre as
quantidades de trabalho necessárias, em um e outro sistema, para co-
brir os requisitos alimentares básicos, a comparação tem de levar em
conta que esses dois sistemas de agricultura de subsistência diferem em
muitos outros aspectos além da extensão do período de pousio. De um
lado, o sistema de pousio longo, onde uma área relativamente pequena
é cultivada com uso de fogo e alimentos adicionais são conseguidos
através da caça e da coleta nas florestas; de outro, o sistema de alqueive
curto, onde uma área relativamente grande e arada e semeada com
cereais e onde se abandona o uso do fogo por ineficiente contra raízes
de capins e ervas daninhas. Sob este sistema, o camponês tem o traba-
lho adicional de cuidar dos animais de tiro. Estes são às vezes usados
também como fonte de proteína.
Estou convencida de que o primeiro sistema requer menos traba-
lho pesado que o segundo. Uma importante razão para isso é que o sis-
tema de alqueive curto não permite o uso do fogo, a arma mais pode-

(5) O sistema de pousio florestal era aplicado no século dezenove em algumas


regiões da Rússia, com rendimentos por hectare três vezes maiores que o obtido do cul-
tivo com arado. Ver I. Manninem, Die finnisch-ugrischen Volker (Leipzig, 1932), pp.
274-5.
(6) "Um acre plantado com inhame pode alimentar uma família de cinco mem-
bros por um ano, enquanto que o produto de um acre de cereais cultivados na África é,
com freqüência, insuficiente para sustentar duas pessoas no mesmo período". Lord Hai-
ley, An African Survey (London, 1957), p. 869.

34
rosa jamais inventada pelo homem primitivo em sua luta contra a natu-
reza. É experiência geral que cultivadores primitivos (e não tão primi-
tivos) usualmente se recusam a abandonar o cultivo por meio do fogo
quando funcionários governamentais os proíbem, a fim de evitar erosão
e incêndios descontrolados. Há inúmeros exemplos de ofertas governa-
mentais de abastecimento de arados e animais de tiro recusadas porque
agricultores acharam mais fácil continuar com o sistema de pousio flo-
restal.7
Mencionou-se que em região coberta por floresta ou densa vege-
tação arbustiva dificilmente se encontram animais apropriados para
puxar arado. Tanto a falta de animais como o rendimento mais elevado
do cultivo em pousio florestal em relação ao cultivo com arado primi-
tivo impedem a introdução do arado nesse estágio. Mas se o encurta-
mento do período de pousio torna-se necessário em razão do cresci-
mento populacional, e provável que o produto por homem-hora decline
para todos os agricultores até o ponto em que a introdução do arado se
torne vantajosa. O uso do arado poderá, então, difundir-se, desde que
os animais convenientes estejam disponíveis e que as pastagens sejam
suficientes. Sob essas condições, a introdução do arado deve ser vista
como um meio de prevenir a queda do produto por homens-hora, e não
um meio de aumentá-lo.
Nenhuma regra geral poderá estabelecer qual a densidade de
população a ser atingida para que a introdução do arado venha a con-
tribuir para o aumento do rendimento por homem-hora ou, pelo me-
nos, para a prevenção de seu declínio. O nível crítico de densidade de-
pende de fatores naturais e do tipo de arado e outros instrumentos
porventura ao alcance da comunidade em questão. A vantagem relativa

(7) "A agricultura primitiva localiza-se nos bosques... Quanto maiores as árvo-
res, mais fácil a tarefa... É curioso que estudiosos, tendo em mente os arrumados campos
dos aradores europeus e a derrubada de árvores com machado, tenham tão freqüente-
mente pensado que a floresta repelia a agricultura e os espaços abertos convidavam-na".
C. O. Sauer, "The Agency of Man on the Earth", in W. L. Thomas, op. cit., p. 56. A evi-
dência histórica também parece apoiar a conclusão de que agricultores primitivos prefe-
rem cultivo em pousio longo na floresta ao cultivo de pousio curto nos campos. Menciona-
se, em o u t r a p a r t e da publicação c i t a d a acima, que t a n t o os p r a d o s americanos como as es-
tepes européias só vieram a ser cultivados por arado no segundo quartel do século deze-
nove, quando o arado de aço foi inventado e passou a ser fabricado em escala relativamente
grande. Assim, até que a indústria atingisse estágio relativamente avançado e o uso do
arado se expandisse largamente, terras de floresta foram em toda parte preferidas aos
campos abertos (J. T. Curtis, "The Modification of Mid-Latitude Grasslands and Forests
by Man", ibid., p. 731).

35
do arado é maior em terras planas de climas frios e úmidos, onde é
mais difícil a limpeza por meio do fogo. Nessas condições, é provável
que o arado seja introduzido antes que se atinja o alto grau de densi-
dade populacional que induziria sua introdução sob outras condições
naturais.

36
CAPÍTULO 4

CAPACIDADE DE SUPORTE
DA TERRA E PRODUTIVIDADE
DO TRABALHO
NA AGRICULTURA INTENSIVA

Atingimos agora o ponto em que nossa investigação da produtividade


do trabalho sob diferentes sistemas de uso da terra deverá levar em
consideração o problema da provisão de alimentos para animais de
trabalho.
As comunidades rurais que vivem sob sistemas de pousio florestal
não possuem animais de tiro. O suprimento de carnes para consumo
humano obtém-se da caça, da pesca e de pequenos animais domésticos
que se alimentam principalmente na floresta ou nos campos. A exten-
são da área cultivada é determinada pela necessidade de manter áreas
em repouso de maneira a não prejudicar as colheitas, e não pelas neces-
sidades de alimentação dos animais domésticos. Com a transição para
o sistema de pousio curto, em que animais de tiro são usados, uma
nova situação é criada: o limite da área cultivada é dado pela necessi-
dade de reservar grandes áreas para o pastoreio daqueles animais, que
se alimentam principalmente, ou exclusivamente, de vegetação na-
tural.
Na maior parte do mundo, a área que um animal pode lavrar
com um arado primitivo é menor que aquela necessária para o pasto-
reio. Portanto, sob pousio curto, a necessidade de prover alimento para
animais de tiro implica que uma das seguintes condições seja cum-
prida: uma parte considerável da terra deve ser transformada em pas-
tagem permanente; o período de cultivo deve ser consideravelmente
mais curto que o de pousio, no qual crescem as ervas que alimentarão
os animais; uma parte da colheita dos campos cultivados tem de ser
dada aos animais.

37
Se estes são alimentados apenas em pastos naturais, a área sob
cultivo num dado ano raramente excederá um terço do território total.
Com freqüência o máximo será inferior aquela proporção. No entanto;
a proporção máxima cultivável em um dado ano é maior no sistema de
pousio curto do que nos sistemas de pousio longo ou intermediário por-
que o período de repouso é muito menor. Segue-se que a capacidade de
sustentar a população humana pode ser grandemente aumentada
quando, num dado território, se transita do cultivo com enxada em
pousio longo para o sistema de pousio curto com arado a tração animal.
No entanto, sistemas intensivos de pousio arbustivo (ou interme-
diário) com até oito anos de cultivo ininterrupto, seguidos de igual pe-
ríodo de repouso do solo, apresentam maior capacidade de sustentar
populações humanas do que sistemas de pousio curto com uso de arado
puxado por animais. Nos lugares onde o cultivo com alqueive longo
veio a se transformar num sistema de pousio intermediário como o
mencionado, pode ser impossível reduzir a pressão populacional através
da adoção do pousio curto com alimentação dos animais de tiro em
pastagens naturais. Se a população estiver crescendo, em comunidades
desse tipo, impor-se-á a passagem direta ao sistema de cultivo anual ou
mesmo de colheita múltipla. No que se refere á técnica de cultivo,
poderá haver, então, possibilidade de escolha entre o prolongamento
do cultivo com enxada e a introdução do arado animal. Se este for
escolhido, será necessário reservar para o pastoreio uma porção consi-
derável da área total ou, alternativamente, alimentar os animais com
forragem, caso em que a área reservada para a produção de alimento
para os animais poderá ser muito menor.

DO PASTOREIO AO CULTIVO DE FORRAGEIRAS

Quando a forragem cultivada é introduzida em nossas comparações do


produto por homem-hora nos diversos sistemas de cultivo, torna-se ne-
cessário definir a produção líquida de forragem assim como computar
as horas de trabalho humano dedicado ao seu cultivo. Com a transição
para o sistema de cultivo de forrageiras, o que era dom da natureza
passa a ser produto do esforço humano. É possível que assim aumente o
produto líquido, pois aumentará a capacidade de trabalho dos animais
e a adubação com esterco será facilitada. É, entretanto, de todo impro¬

(1) Algumas regiões densamente povoadas da Nigéria estão atualmente nessa si-
tuação.

38
vável que o aumento do produto líquido seja proporcional a inversão
adicional de trabalho humano. Este seria o caso apenas quando severa
escassez de alimentos para os animais e conseqüente deterioração) do
rebanho tivessem precedido a introdução do cultivo de forrageiras. Ex-
cluído esse caso, a substituição de pastagens por forrageiras cultivadas
reduzira o produto médio por homem-hora.
Devido ao caráter sazonal da agricultura (assunto que aborda-
remos no próximo capítulo), um par de hectares é tudo que um animal
pode arar. Se um animal que ara uns poucos hectares tiver de ser ali-
mentado durante todo o ano, ou na maior parte dele, com forragens
cultivadas, a carga de trabalho do agricultor aumentara consideravel-
mente.2 Não é, pois, surpreendente observar que, em comunidades que
vivem sob o sistema de pousio curto, os agricultores hesitam em intro-
duzir o cultivo de forragens quando áreas de pousio ou pastoreio es¬
casseiam devido ao aumento de população. Em tal situação, os agri-
cultores inclinam-se a limitar o trabalho adicional submetendo os ani-
mais a quase inanição em áreas de restos culturais, excessivamente
pastoreadas, durante os longos períodos do ano em que os animais tem
pouco ou nenhum trabalho. Apenas nos curtos períodos de trabalho
mais intensivo é que se dá aos animais alguns dos cereais ou outros
alimentos localmente produzidos, a fim de conservá-los em toleráveis
condições de trabalho.
Na maior parte do subcontinente indiano, assim como no norte
da África, o aumento de população neste século contribuiu para criar
graves problemas de escassez de pastos, com o correspondente super¬
povoamento de áreas de pousio e pastagem e conseqüente deterioração
dos rebanhos. Escassez semelhante ocorreu na Europa nos séculos que
precederam a revolução agrícola. Como é sabido, o problema foi final-
mente contornado com a passagem do sistema de pousio curto para um

(2) Existem estudos de administração agrícola referentes a diversas áreas em al-


guns distritos dos estados indianos de Bombaim, Madhya Pradesh, Madras, Punjab,
Uttar Pradesh e Bengala Ocidental. Em alguns dos distritos estudados, animais de tiro
são alimentados principalmente com forrageiras cultivadas, enquanto em outros preva-
lece a alimentação em pastos naturais. Nestes últimos casos, o custo de manutenção dos
animais é, para o camponês, muito menor do que nos primeiros. Nos lugares onde os bois
eram alimentados em pastos comuns, os custos computados do trabalho bovino corres-
ponderam a menos de 10 por cento dos custos totais de uma cultura. Onde a alimentação
consistia de forragens, aquela porcentagem excedeu, às vezes, 50 por cento. (Studies in
Economics of Farm Management, Ministry of Food and Agriculture, New Delhi, 1958-
62, passim).

39
sistema de cultivo anual que incluía forrageiras como parte regular da
rotação de culturas.
Algumas das forrageiras introduzidas nos campos europeus, du-
rante a revolução agrícola, eram leguminosas. Anteriormente, o cultivo
de leguminosas para consumo humano ocorrerá apenas em pequenas
escala. A introdução desse novo elemento de fertilização e o aumento
simultâneo da disponibilidade de esterco ajudaram a provocar um
acentuado aumento de rendimentos das outras culturas incluídas na
rotação. Assim, ao longo do período em que o pousio foi reduzido a
alguns meses por ano, ocorreu considerável aumento da produtividade
por área.
Com o acréscimo dos rendimentos por hectare nas culturas tradi-
cionais e o aumento da freqüência de cultivo das terras aráveis, a pro-
dução total (animal e vegetal) cresceu grandemente. O mesmo, é claro,
ocorreu com a inversão de trabalho na agricultura. Como evoluiu o
produto líquido por homem-hora face a essas mudanças? Terá sido a
capacidade fertilizadora das leguminosas — sua propriedade de incor-
porar nitrogênio atmosférico — suficiente para contrabalançar o declí-
nio do produto líquido por homem-hora causado pela substituição de
pastes naturais por forragem cultivada na alimentação de animais
domésticos e de trabalho? Parece muito pouco provável que este tenha
sido o caso.
A transição, na Europa Ocidental, para o sistema de cultivo
anual costumava ser descrita como o resultado de uma evolução técnica
autônoma, a saber: a descoberta da possibilidade de cultivo ininter-
rupto da terra dada pela rotação com plantas forrageiras, algumas das
quais leguminosas. O rápido crescimento da população na Europa Oci-
dental era considerado mais efeito que causa dessa mudança. Essa ex-
plicação tradicional da revolução agrícola foi, no entanto, revista pelos
historiadores econômicos. Revelou-se que virtualmente todos os mé-
todos introduzidos naquele período eram de antemão conhecidos e que
a rotação de culturas com leguminosas e sem pousio fora usada no
Mediterrâneo antigo e em outras regiões.3

(3) Marc Bloch, Les caractères originaux de I'histoire rurale Franfaise (Paris,
1931), pp. 217-23; C. E. Stevens, "Agriculture and Rural Life in the Later Roman Em-
pire", in The Cambridge Economic History (Cambridge, 1942), vol. I, pp. 91-104; C.
Parain, "The Evolution of Agricultural Techniques", ibid., ver especialmente pp. 131-2.
Ver também R. O. Whyte, "Evolution of Land Use in South-Western Asia", in L. Du-
dley Stamp, op. cit, p. 86.

40
Algumas das práticas intensivas introduzidas durante a revolu-
ção agrícola na Europa haviam sido usadas em jardins e pomares; fo-
ram, então, estendidas aos campos. Outros métodos parecem ter desa-
parecido da Europa por muitos séculos, mas continuaram a ser apli-
cados em outras partes do mundo mais densamente povoadas. Seu res-
surgimento começou no populoso e altamente urbanizado vale do Pó e
dali moveu-se para a Inglaterra e o norte da França, passando pela
densamente povoada e urbanizada Flandres, onde o nabo, por exem-
plo, já era cultivado no século XIII. Esses poucos fatos sugerem que a
transição européia do sistema de pousio curto ao cultivo anual não re-
sultou de invenções contemporâneas; poder-se-ia melhor descrevê-la
como a propagação de vários métodos de cultivo intensivo, a maioria
dos quais, embora conhecidos desde a Antiguidade, eram pouco usa-
dos na Europa ate que o aumento da população urbana elevou a de-
manda de alimentos e o aumento da população rural proporcionou a
força de trabalho necessária para o cultivo mais intensivo da terra nas
regiões mais povoadas do continente.
Sugere-se, em outras palavras, que por muitos séculos não teria
compensado aos agricultores europeus a produção de leguminosas e
outras forrageiras porque o incremento do produto total, tornado pos-
sível pelo seu cultivo, não compensaria a adição de trabalho necessária
para produzi-las e alimentar com elas os animais. Enquanto os pastos
naturais foram suficientes, o conhecimento dos efeitos fertilizadores
das culturas de leguminosas permaneceu dormente. Somente mais
tarde, quando o aumento da população em algumas regiões da Europa
elevou a demanda por animais e outros produtos agrícolas, levando a
escassez de pastagens, somente então o novo padrão de cultivo come¬
-çou a se estabelecer. A técnica de fertilização via leguminosas forragei-
ras pode assim ser adicionada à lista de técnicas agrícolas que entram
em uso apenas quando uma certa densidade de população é atingida.

DA AGRICULTURA DE SEQUEIRO À AGRICULTURA IRRIGADA

Quando a densidade de população ultrapassa um certo nível numa re-


gião em que a agricultura se baseia no uso do arado de tração animal, a
transição ao cultivo de forrageiras em rotação não é a única alternativa
à escassez de pastagens. Uma outra solução consiste em interromper o
cultivo das terras mais pobres (ate então usadas em rotações com pou-
sio curto) e transformá-las em pastagens permanentes, enquanto a
terra melhor passa a ser cultivada uma vez por ano, ou mais, com o uso
41
de técnicas trabalho-intensivas de fertilização e, se necessário, irriga-
ção. Este é o método usualmente empregado na Ásia quando a densi-
dade de população excede um certo nível.
Essa intensificação de tipo asiático não apenas aumenta a área
que pode ser cultivada em um dado ano como também pode elevar o
rendimento por hectare cultivado, particularmente nos casos em que a
mudança inclui a introdução da irrigação. No entanto, esse acréscimo
de rendimento é obtido através de grande aumento da inversão de tra-
balho por unidade de área, mesmo nos casos em que a água de irriga-
ção é suprida por canais construídos e operados por outros que não o
próprio camponês. O trabalho de colheita é mais ou menos proporcio-
nal a produção por hectare, e culturas irrigadas devem freqüentemente
sofrer capinas manuais e, às vezes, transplante. O gasto total de traba-
lho por hectare de uma dada cultura pode ser duas vezes maior do que
aquele envolvido no cultivo de sequeiro, ainda quando se trata de irri-
gação por gravidade.4
Nos casos de irrigação trabalho-intensiva em que a água e tirada
de rios, tanques e poços para ser espalhada nos campos por meio de
trabalho humano e animal, somente a operação de rega requer mais
dias de trabalho humano que todas as operações da cultura de sequeiro
somadas. A produção média por homem-hora parece ser mais baixa
neste tipo de irrigação que a produção de sequeiro em circunstâncias
semelhantes. A agricultura irrigada dos camponeses chineses alcança,
algumas vezes, um rendimento extremamente elevado mesmo sem o
uso de fertilizantes químicos. Mas, em tais casos, a inversão de tra-
balho atinge 600 dias de trabalho por hectare cultivado com cereais.5
Este valor é dez a vinte vezes maior que as necessidades da cultura de
sequeiro dos mesmos cereais, segundo o sistema extensivo associado ao
arado nos países subdesenvolvidos.
Finalmente, é preciso considerar o produto por homem-hora nas
situações onde os mesmos campos fornecem mais de uma colheita por
ano. Nos cultivos sem irrigação, as colheitas múltiplas fornecem, a
maior parte das vezes, uma produção média por homem-hora menor
do que aquela correspondente a uma única colheita anual. A razão é

(4) Ver a tabela da página 44, onde se reproduzem cifras referentes a inversões de
trabalho em culturas irrigadas e de sequeiro nas mesmas aldeias indianas. Deve-se notar,
ao interpretar esses números, que a irrigação nos distritos de Bombaim e Madras é do
tipo trabalho-intensivo (poços e tanques) enquanto que nos distritos de Punjab e Uttar
Pradesh a irrigação é capital-intensiva (canais).
(5) Ver tabelas em J. Lossing Buck, op. cit., vol. III.

42
que a segunda colheita fica mais exposta à destruição por causa do
excesso ou da falta de água, ou pela estação fria, o que não ocorre
quando se tem uma única colheita. Neste caso, o seu desenvolvimento
se processa durante a estação mais favorável. Quando se aplica a irri-
gação, a necessidade de uma adubação pesada e ao mesmo tempo a
necessidade de instalações que se destinam àqueles cultivos conduzidos
fora de sua época mais adequada fazem baixar a produção por homem-
hora a um nível inferior àquele obtido na mesma terra com um único
cultivo. Mas haverá compensação caso a colheita múltipla permita um
melhor aproveitamento ao longo do ano dos animais de tiro alimen-
tados com forrageiras cultivadas. Assim, com uma densidade popula-
cional muito alta, a colheita múltipla irrigada proporciona as vanta-
gens de uma produção total mais elevada e um produto por homem-
hora relativamente alto comparado aquele obtido em colheita anual
única.

CRESCIMENTO POPULACIONAL E PRODUTIVIDADE DO TRABALHO

A análise anterior tinha por objetivo verificar se a produção por ho-


mem-hora, como ela foi definida, eleva-se ou declina quando uma dada
população de um território reduz o período de pousio e muda de forma
correspondente os métodos e instrumentos agrícolas. Chegou-se a con-
clusão de que é mais provável que ocorra uma diminuição da produção
homem-hora. Significa, em casos típicos, que o cultivador achara me-
lhor passar para um sistema mais intensivo de uso da terra somente
quando uma certa densidade populacional é atingida. Em uma região
onde este nível crítico ainda não foi alcançado, seus habitantes, mesmo
se conscientes da existência de métodos agrícolas mais intensivos de uso
da terra e mesmo podendo ter acesso a instrumentos menos primitivos,
preferirão provavelmente não utilizar estes métodos e instrumentos até
o momento em que o tamanho da população for tal que eles tenham de
aceitar um declínio da produção por homem-hora.
Se é verdade, como se sugeriu aqui, que certos tipos de mudança
técnica não se produzem antes que se alcance uma certa densidade
populacional, não se segue, é claro, que, reciprocamente, esta mu-
dança técnica se produzirá necessariamente sempre que esta condição
demográfica estiver presente. Aconteceu, não há dúvida, em muitos
casos, de a população atingir esse nível crítico de densidade sem, con-
tudo, ter conhecimento de qualquer tipo de fertilização. Poder-se-ia,
então, encurtar o período de pousio sem realizar qualquer outra mu-

43
44
dança de método. Esta situação conduziria a um declínio dos rendi-
mentos agrícolas e às vezes à exaustão dos recursos naturais. Não res-
taria mais nada a essa população que a escolha entre a inanição e a
migração.
É sabido, entretanto, que muitos métodos diferentes de fertili-
zação tem sido utilizados, em todo o mundo, desde os tempos mais
antigos. Muitas vezes, um povo pode aprender com um povo vizinho,
ou com outro grupo humano que encontre quando migrando em busca
de terras não exauridas, como preservar os rendimentos agrícolas pra-
ticando pousio de duração mais curta do que aqueles até então prati-
cados.6
A perspectiva pode ser menos sombria para uma população que,
tendo alcançado este nível crítico de densidade, ignore o arado — ou
seja incapaz de usá-lo por causa da falta de animais de tiro — se bem
que conhecedora dos métodos de fertilização do solo. Esta situação
pode, sem dúvida, obrigar esta população a aceitar um declínio do
rendimento por hora de trabalho muito mais forte do que teria sido
necessário se pudesse ser utilizado o arado, mas não se colocará a es-
colha entre inanição e migração. De fato, a população pode continuar a
crescer no mesmo ritmo, como se tivesse sido possível o cultivo com
arado, sobretudo se ela conhece as técnicas de irrigação.7

(6) As grandes migrações européias, no primeiro milênio de nossa era, parecem


ter produzido este efeito sobre numerosas tribos migrantes.
(7) Algumas regiões densamente povoadas da América pré-colombiana favore-
cem exemplos eloqüentes dessa situação.

45
CAPÍTULO 5

CRESCIMENTO POPULACIONAL
E HORAS DE TRABALHO

Sugeriu-se, nos capítulos anteriores, definir o conceito de intensificação


na agricultura de uma maneira nova, notadamente, como uma pro-
gressão gradual em direção a sistemas de uso da terra que permitem
cultivar uma superfície dada com maior freqüência. Redefinir assim a
noção de intensificação é quase equivalente a assinalar que a possibili-
dade de uma produção suplementar de alimentos em resposta ao cres-
cimento populacional é superior àquela que geralmente se supõe.
Quando se começa a cultivar um pedaço de terra de modo mais
freqüente — com técnicas pré-industriais — será necessário, em geral,
dedicar uma maior quantidade de trabalho agrícola por hectare culti-
vado, do que anteriormente. Assim, o emprego agrícola talvez cresça
por duas razões distintas: porque cresce a área total cultivada, em um
dado ano, ao mesmo tempo que a inversão anual de trabalho, por uni-
dade de área cultivada, cresce provavelmente (embora não necessaria-
mente) pois que os cultivos são mais freqüentes. Sugeriu-se que, no
caso típico pelo menos, uma intensificação do padrão de uso da terra
reduz a produção por hora de trabalho ou, em outras palavras, que o
emprego agrícola aumenta a uma taxa mais elevada do que a produção
agrícola quando, sob a pressão do crescimento populacional, se inten-
sifica o uso da terra.
A definição usual de intensificação é mais estreita que a sugerida
acima. Ela se refere somente ao emprego de trabalho adicional por
hectare de área cultivada, enquanto um ritmo mais freqüente dos cul-
tivos em uma dada área não é considerado como uma forma de intensi-
ficação. De fato, tal mudança no padrão de uso da terra não se dis¬

47
tingue — na visão tradicional — daquela em que o cultivo se expande
sobre terra virgem. Assim, a incapacidade para se compreender o papel
mutável do pousio distorce a perspectiva: o trabalho adicional aplicado
a um dado cultivo é visto não como um meio para prevenir um declínio
das colheitas agrícolas, a despeito do encurtamento do pousio, mas
como um mecanismo para elevar as colheitas a fim de produzir ali-
mento adicional para uma população crescente. Em outras palavras,
o suplemento de produção alimentar e o crescimento do emprego que
resultam de cultivos mais freqüentes são passados por alto enquanto a
atenção e centrada sobre o efeito secundário, a saber: o suplemento de
emprego proporcionado pelo aumento das horas de trabalho utilizadas
por uma dada cultura. É evidente que a possibilidade de se obter em-
prego adicional e também produção, dedicando-se mais horas de tra-
balho a uma dada cultura, é muito pequena. Portanto, toda esta argu-
mentação quase inevitavelmente leva a uma visão pessimista sobre o
aumento possível da produção de alimentos e do emprego em regiões
onde não existem terras "novas" para se cultivar.
O presente estudo esforça-se em oposição a essa visão tradicional,
no sentido de mostrar que a possibilidade de intensificação adicional
(quando o termo é definido tal como foi sugerido acima) pode ser muito
grande em regiões com pouca ou nenhuma terra virgem stricto sensu.
As implicações práticas desta conclusão são importantes para certos
economistas não familiarizados com as condições agrícolas locais e que
tendem a subestimar as possibilidades de expansão do emprego e da
produção agrícola em tais regiões, já que eles desenvolvem seus argu-
mentos com base em uma distinção artificial entre a expansão do cul-
tivo em terras "novas" e uma concepção muito estreita de intensifi-
cação da agricultura. Se, em tais regiões, o crescimento populacional e
rápido, conclui-se habitualmente que não se pode produzir uma quan-
tidade suficiente de alimentos a menos que a agricultura seja equipada
com modernos meios de produção industrializados e que a população
rural excedente não possa ser empregada na agricultura, mas, sim,
deva ser transferida para atividades urbanas ou, então, permaneça
desempregada ou subempregada.

JORNADA CURTA NO SISTEMA DE POUSIO LONGO

Os economistas têm sugerido várias teorias para explicar o baixo nível


de emprego que se pode observar em áreas rurais de muitos países não
industrializados. Uma dessas explicações considera como pedra angu-
48
lar a taxa de crescimento da população e sugere que o subemprego
rural deve emergir quando uma taxa de crescimento populacional se
torna tão alta que o investimento necessário para empregar mais pes-
soas não pode ser financiado. Deverei voltar a esta teoria nos próximos
capítulos.
Outra explicação do desemprego rural acentua o grau de densi-
dade da população rural em vez da taxa segundo a qual essa população
cresce. De acordo com essa explicação, o subemprego rural manifestar¬
se-ia quando o povoamento se tornasse tão denso que a reserva de terra
virgem cultivável se esgotasse, sem que este estado de coisas se ligue à
cadência mais ou menos rápida do crescimento populacional.1 Com
base nessa teoria do subemprego — se ela fosse plausível — seria de se
esperar a existência de um alto grau de emprego rural em regiões es-
parsamente povoadas e, ao contrário, uma alta proporção de desem-
prego em regiões muito densamente povoadas. Entretanto, considera-
ções teóricas tanto quanto observações empíricas feitas sobre comuni-
dades rurais que estão ainda no estágio pré-industrial, opõem-se a uma
tal conclusão.
Quando o crescimento da população, em uma dada área de agri-
cultura de subsistência pré-industrial, redunda em uma produção agrí¬
cola média mais baixa por homem-hora, a reação consiste, normal-
mente, em aumentar o número médio de horas trabalhadas por ano de
modo a compensar os rendimentos decrescentes por homem-hora. Mas
os economistas que tratam desta questão deixam, em geral, de admitir
a possibilidade de que a diminuição de rendimentos seja compensada
por um aumento das horas de trabalho em vez de uma redução de con-
sumo alimentar.2

(1) Ver nota 2.


(2) O Professor Arthur Lewis menciona a possibilidade de compensar a redução
da renda com trabalho mais pesado, mas somente para eliminá-la como sendo nada mais
que um efeito puramente temporário: "A curto prazo o homem tem idéias definidas a
respeito do padrão de vida que ele busca manter, sendo que este é o padrão convencional
de sua classe ... se os seus ganhos decrescem, sua reação imediata leva-o a trabalhar
mais. A longo prazo, entretanto, seus padrões são reajustados. Se a vida se torna mais
difícil ele pode rebaixar seu padrão de vida e voltar a um trabalho mais leve ... Pois, não é
somente o padrão de vida que é convencional mas também o número de horas consagra-
das ao trabalho. O efeito imediato da mudança é o de manter o padrão de vida mais ou
menos imutável enquanto as horas de trabalho são alteradas substancialmente; enquanto
o efeito final é alterar substancialmente o padrão de vida ainda que as horas de trabalho
voltem ao convencionado anteriormente". W. Arthur Lewis, The Theory of Economics
Growth (London, 1955), p. 30. É difícil compreender porque o Professor Lewis supõe que

49
A razão do malogro em reconhecer as possibilidades de prolonga-
mento do dia de trabalho nas comunidades primitivas está provavel-
mente ligada a alguma vaga suposição de que os membros de pequenas
tribos de agricultores muito primitivos são obrigados a trabalhar ar-
duamente para produzir e coletar alimentos suficientes à sua subsis-
tência, ou, então, de que eles são tão fracos (por causa da nutrição
insuficiente ou da malária) que se tornam incapazes de trabalhar mais
do que já trabalham.
Entretanto, numerosos estudos de antropólogos e de outras pes-
soas que viveram longos períodos entre povos muito primitivos, pintam
um quadro da vida diária desses povos que torna difícil acreditar que
eles utilizem integralmente sua capacidade de trabalho. A impressão
deixada por tais estudos é a de que os membros de tribos esparsas de
agricultores primitivos trabalham, em geral, muito menos, e mais irre-
gularmente, do que aqueles de comunidades camponesas mais densa-
mente povoadas.
Todas as investigações que conheço estão de acordo a respeito de
uma média muito baixa de inversão de trabalho por homem e por ano
nas agriculturas sob domínio do pousio florestal. Tomemos, por exem-
plo, a obra de Audrey Richards sobre os bembas, da Rodésia. Ela re-
vela que a Jornada de trabalho agrícola varia entre três e cinco horas
diárias. O trabalho de enxada não dura mais que duas a quatro horas.
A autora acentua que não se pode falar de um "dia de trabalho nor-
mal" entre os bembas, e que o trabalho diário, que de um simples há-
bito tornou-se para muitos europeus quase que uma necessidade fisio-
lógica, é praticado, neste tipo de comunidade, somente em certos pe-
ríodos do ano. Mesmo nas estações de muito trabalho a jornada era de
somente quatro horas para os homens e seis horas para as mulheres.
Nas estações de trabalho menos intenso, a média era de duas horas e
três quartos para os homens é seis horas para às mulheres, sendo que,
desse total, apenas duas horas eram consagradas ao trabalho agrícola
enquanto as outras quatro eram dedicadas às tarefas domésticas.
Como, por outro lado, um grande número de dias não são gastos
em trabalhos agrícolas, pode-se concluir com segurança que na comu-

as horas de trabalho são mais convencionais a longo prazo do que o padrão de vida. É,
pelo menos, pouco provável que esta seja uma suposição realística nos casos em que a
vida se torna tão mais difícil que as pessoas encontram dificuldades em satisfazer as ne-
cessidades básicas de alimentação.
(3) Audrey Richards, Land, Labour, and Diet in Northern Rhodesia (London,
1939), pp. 393-5 e Tabela E em apêndice.

50
nidade bemba a média anual de trabalho na agricultura (incluindo a
abertura de clareiras) se situa entre uma e duas horas por dia.
O estudo de Pierre de Schlippe sobre o sistema de agricultura dos
zandes, no Sudão do Sul, mostra um quadro similar. O sistema de cul-
tivo dos azandes era mais intensivo do que o dos bembas, mas também
nesta tribo os dados revelam que o trabalho é entrecortado por longas
horas de repouso. Mesmo nas estações de maior atividade, os dados
referentes ao item "sem trabalho" não caíam abaixo de um quarto ou
um quinto das atividades diárias, o que contribuía para a criação de
um período de fome num período posterior do ano.4
Informações de outras fontes confirmam as conclusões dos estu-
dos acima citados. O estudo de Forde e Scott sobre a agricultura no sul
da Nigéria menciona os cultivadores de inhame que tiram sua subsis-
tência de um quinto de hectare por família. As informações que eles
dão sobre as necessidades de trabalho por hectare levam a pensar que
os cultivadores de inhame trabalham um menor número de horas que
os bembas.5 Os autores do estudo concluem que "onde as terras culti¬
váveis são abundantes, um excedente considerável das culturas de
subsistência pode ser produzido sem grande esforço pela unidade fami-
liar, com os métodos habituais de cultivo dos nativos".6
As observações de que as tribos primitivas trabalham poucas
horas não se limitam à África. O estudo do Professor Izikowitz sobre o
povo lamet, na antiga Indochina Francesa, fornece exemplo asiático. O

(4) "14 de julho é dia de lua nova. Esta lua nova é denominada Bamburu, que
literalmente quer dizer 'o lugar que esta limpo, a clareira'. É o último mês durante o qual
um grande esforço é realizado para aumentar a área de cultivo. O regime alimentar é
claramente melhorado e, em conseqüência, a força volta ao corpo, enquanto a lembrança
dos sofrimentos da fome é ainda muito fresca... e um esforço genuíno é realizado para
evitar a sua volta no ano seguinte... neste momento o trabalho agrícola atinge o seu
máximo anual de 54 por cento do esforço total possível, e o lazer se reduz ao seu mínimo
anual de 24 por cento". P. Schlippe, op. cit, pp. 167-8 e Dados 17-20, do Apêndice, com
entradas por atividade de trabalho e lazer para cada aldeão.
(5) Daryll Forde e Scott, op. cit., pp. 81-2 e 91.
(6) Ibid., p. 42. Durante a discussão na Geographical Society, em Londres, sobre
um relatório de viagem de estudo, o Professor Daryll Forde fez a seguinte observação:
"As pessoas não estão subalimentadas no sentido de que o volume de alimento e inade-
quado, mas elas estão sofrendo, como as pessoas neste país estão, de desnutrição... Mais
feijão e legumes poderiam ser cultivados e ajustados dentro do ciclo agrícola, mas os
iacôs não estão entusiasmados com o feijão porque ele 'amadurece' muito tarde e envolve
capina adicional que teria de ser realizada pelas mulheres dentro do ciclo anual". C.
Daryll Forde, "Land and Labour in a Cross River Village, Southern Nigeria", in Geo-
graphical Journal, vol. 90 (1937), p. 49.

51
autor revela que os lamets não têm períodos de fome, embora "eles
raramente trabalhem sob pressão. Eles levam uma vida fácil, o traba-
lho é interrompido de vez em quando com uma pausa para sentar, con-
versar ou fumar cachimbo".7 No caso em que o sistema com pousio
longo é uma ocupação subsidiária, torna-se claro quão pouco trabalho
é necessário para produzir, com este método, alimento para uma famí-
lia. Na América Latina e em partes da África, os vaqueiros e os traba-
lhadores nas plantações e nas fazendas européias têm acesso as terras
pertencentes aos seus empregadores para que produzam alimento para
seu próprio consumo, sob o sistema de pousio longo. Como a quanti-
dade de trabalho necessário à obtenção da subsistência sob esse sistema
não é grande, eles podem devotar quase todo o seu tempo de trabalho
aos seus empregadores, que os remuneram mediante o fornecimento de
bens não agrícolas.
Mesmo onde o sistema de cultivo é do tipo pousio arbustivo com-
binado com o cultivo permanente de arroz irrigado, a quantidade de
trabalho pode permanecer pequena comparada àquela utilizada na
moderna agricultura dos países ocidentais. Haswell, em seu estudo
econômico de uma aldeia na savana de Gâmbia, constatou que os ho-
mens estavam despendendo, em média, cerca de 700 horas por ano em
trabalhos agrícolas e as mulheres ao redor de um quinto a mais que os
homens. Uma parte desse total era consumida em culturas comerciais
para a troca com bens não agrícolas. Na estação agrícola, os homens
trabalham, em média, seis horas por dia de trabalho e as mulheres um
pouco mais. Mas estas médias foram obtidas sem a inclusão daqueles
dias em que não houve trabalho agrícola, o que significa uma cifra ao
redor de dois terços do número total de dias para os homens e um valor
não muito menor para as mulheres. Entretanto, o trabalho não era
muito regular. Uma parte considerável das horas de trabalho registra-
das eram dedicadas ao repouso no campo, durante os intervalos de
trabalho efetivo; estes períodos de descanso variavam de 10 por cento
do total de tempo gasto nos campos para uma tarefa leve, como a co-
lheita, a 42 por cento para uma tarefa pesada, como a capina com
enxada. Em média, os períodos de descanso pareciam representar cerca
de um quarto do tempo passado nos campos.8

(7) K. G. Izikowitz, "Lamet, Hill Peasants in French Indochina" in Etnologiska


Studier (Goteborg, 1951), n.º 17, pp. 262-3.
(8) M. R. Haswell, Economics of Agriculture in a Savannah Village, Colonial
Office (London, 1953, mimeografado). Ver especialmente Tabela 3, p. 25; Tabela 19, p.
60; e Tabela 8, p. 4 3 .

52
Em alguns casos do sistema intensivo de pousio arbustivo, as exi-
gências no período de pico podem ser tão elevadas que a família, mes-
mo realizando um trabalho pesado durante o dia todo, encontra difi-
culdade para cultivar a área necessária à sua subsistência. Este caso é
evidente naquelas áreas em que a terra tornou-se infestada de pragas,
dificultando a capina ou requerendo carpas freqüentes na estação chu-
vosa. Exemplos desses períodos de trabalho árduo são encontrados em
partes do Sudão e da Etiópia, onde todos os membros da família tra-
balham assiduamente nas capinas do nascer ao pôr-do-sol durante a
9

A ESTAÇÃO MORTA NO SISTEMA DE POUSIO CURTO

Quando as terras até então cultivadas com enxadas, são aradas e usadas
em rotação no sistema de pousio curto, os picos sazonais tornam-se
mais pronunciados do que costumam ser no sistema de pousio longo.
No sistema com pousio arbustivo, a capina e a coleta de estrume podem
resultar em algum trabalho fora das estações de maior movimento,
como as de preparação para o plantio e a colheita. Além do mais existe
o trabalho de abertura das clareiras, o qual também cai fora do período
de grande atividade. Em contraste, no sistema com pousio curto não
há, virtualmente, trabalho agrícola fora dos períodos de aração e de
colheita. Geralmente, os cultivos são de cereais sem capina e em adu-
bação, exceto a que consiste em revolver com o arado os excrementos
animais deixados durante o pastoreio. Os animais buscam sua própria
alimentação pastando nas áreas em pousio ou nas áreas de pastagem
permanente. O trabalho com o arado substitui as operações de limpeza
e o trabalho com a enxada e, usualmente, deve ser feito num período
bem curto, seja por causa das condições do solo, seja pelo fato de que a
terra em pousio deve permanecer tanto quanto possível disponível para
o uso dos animais.10 Esta última consideração é importante porque em
vastas regiões do mundo a estação seca, que precede a semeadura, é
aquela onde é muito difícil para os animais encontrar alimento sufi-
ciente.

(9) Segundo uma informação de K. M. Barbour, citado in H. H. Bartlett, "Fire


in Relation to Primitive Agriculture", op. cit., pp. 69 e seguintes.
(10) Em certas partes da China, a necessidade de realizar a aração a mais tardia
possível é explicada pela presença de fortes ventos no período de inverno, o que significa
um perigo de erosão eólica". T. H. Shen, Agricultural Resources of China (New York,
1951), p. 146.

53
Nos climas secos, a superfície que pode ser cultivada por uma
família e pelos seus animais esta limitada pela curta duração do pe-
ríodo adequado a aração e à semeadura. Pela mesma razão, a área se-
meada varia grandemente de um ano a outro nas regiões secas sob
sistemas de pousio curto ou de cultivos anuais sem irrigação. A semea-
dura tardia parece reduzir a produção ou mesmo provocar o seu malo-
gro. Assim, o momento e quantidade das chuvas que caem durante o
ano são o principal determinante tanto do tamanho da superfície se-
meada quanta da produção por unidade de área.
Nos climas úmidos, o principal problema sazonal tem origem na
brevidade do período adequado a colheita. Pode ser necessário, para
evitar a destruição da colheita pela umidade, que ela seja realizada em
poucas semanas. A tendência, anteriormente mencionada, de se con-
centrar o cultivo em cereais no sistema com pousio curto, torna as coi-
sas piores, uma vez que quase todos os cereais têm aproximadamente o
mesmo período de crescimento e, se as condições climáticas em um
certo ano se tornam adversas, todos os cultivos são igualmente perdi-
dos.
Estas peculiaridades do cultivo com pousio curto podem, espe-
cialmente, explicar dois traços característicos de comunidades onde
este sistema predomina. Uma dessas características e a quebra perió-
dica (recorrência de desastres) nas colheitas, a qual pode ocasionar a
fome, a menos que haja grandes estoques governamentais ou que ali-
mentos sejam importados. Deve-se acentuar que a ocorrência de fome
em comunidades como essas não implica, como às vezes se afirma, que
a região é superpovoada ou que a terra e de baixa qualidade. Nem,
tampouco, se deve comparar esse tipo de fome com aquela que se faz
sentir em certos períodos do ano entre tribos primitivas, atribuível a um
esforço agrícola insuficiente no princípio do ano. Os cultivadores que
utilizam o sistema com pousio curto, tanto em regiões secas como em
regiões tímidas, podem ter terra suficiente e de qualidade razoável e
podem estar trabalhando arduamente no pico das estações; eles podem,
contudo, estar sujeitos a padecer de fome nos anos de clima desfavo-
rável.11

(11) Quando os animais se alimentam principalmente de pasto natural, os cam-


poneses não podem acrescentar grande coisa ao seu suprimento total de alimento, calcu-
lado em termos de calorias, através da matanç;a e consumo dos animais. É muito dife-
rente quando os animais são alimentados com raízes ou cereais de modo que a eliminação
dos animais proporcionara alimentos vegetais para o consumo humano. Onde os animais

54
A segunda característica dos sistemas com pousio curto é a de
que eles não podem proporcionar emprego agrícola a não ser durante
uma pequena parte do ano, com freqüência ao redor de um terço e,
raramente, mais da metade do ano. O padrão sazonal de trabalho é tão
pronunciado que as famílias que possuem mais terra do que podem
cultivar na época de máxima atividade agrícola não têm grande coisa a
fazer durante o restante do ano. Há sempre muito subemprego nas
comunidades que subsistem fazendo uso do cultivo com pousio curto,
mas este desemprego é sazonal e está presente, também, em comuni-
dades onde não ha pressão populacional sobre a terra.
Muito freqüentemente, todos aqueles que fazem estimativas
quantitativas do subemprego rural não distinguem entre subemprego
sazonal e outros tipos de subemprego. Muitos observadores explicam,
de modo pouco rigoroso, o subemprego agrícola como resultado de uma
superpopulação e produzem estimativas sobre o montante do subem-
prego as quais não são nada mais do que estimativas do número médio
de dias, semanas ou meses, durante os quais os camponeses estão deso-
cupados, incluindo-se o desemprego voluntário ou sazonal.
Colin-Clark, por exemplo, tem produzido estimativas sobre o
subemprego agrícola dessa maneira. Em um trabalho intitulado "O
Que é Superpopulação Rural", ele diz: "Consideremos o número de
horas de trabalho necessárias por unidade de área cultivada nas condi-
ções de uma exploração camponesa e calculemos, então, o número total
de homens que podem estar integralmente ocupados por quilômetro
quadrado de terra cultivada à razão de 3000 horas por ano. Para a
cultura de arroz no Oriente, nós chegamos a uma cifra de 42 homens
por quilômetro quadrado de terra cultivada. Para a cultura de milho (a
qual é mais trabalho-intensiva do que a de trigo) na Europa Meridional
e Oriental, o valor alcançado é de 25 homens".1
Vamos tentar aplicar este método à informação sobre o trabalho
necessário para o cultivo do trigo que existem em alguns levantamentos

são mantidos para uso na tração, o resultado da redução do seu número pode ser a fome
nos anos subseqüentes, quando a produção passa a se ressentir dessa força de tração
animal.
(12) Colin-Clark, "What Constitues Rural Overpopulation?" in Proceedings of
the Conference on World Population (Roma, 1954), vol. V (edição mimeografada), p.
229. Mais tarde, quando Colin-Clark atuou como assessor econômico do governo do
Paquistão, ele aplicou uma cifra de pleno emprego de 2.500 horas por ano mas, a exceção
desta modificação, continuou a usar o método que havia proposto na conferência de
Roma. Ver Report of the Economic Appraisal Committee of the Government of Pakistan
(Karachi, 1953), p. 77.

55
agrícolas muito meticulosos da Índia. De acordo com essas informa-
ções, seriam necessários trinta e três homens-dias de oito horas para
cultivar um hectare de trigo não irrigado em Punjab, trinta e nove no
estado de Bombaim e quarenta e sete em Madhya Pradesh.13 Ado¬
tando-se o padrão de 3.000 horas por ano de Colin-Clark, um culti-
vador seria capaz, somente com o seu próprio trabalho, de cultivar
anualmente 11 hectares de trigo de sequeiro em Punjab, 9,5 hectares
em Bombaim e 8 hectares em Madhya Pradesh. Mas, em todos esses
distritos, o preparo da terra, a semeadura e a colheita representam
juntos mais de 70 por cento de todo o trabalho utilizado; o restante é
aplicado nas operações de batedura e nos "cuidados para se evitar o
ataque de pássaros". Assim, as operações que devem ser realizadas no
começo e no final das estações de crescimento requerem juntas, cerca
de um homem-mês por hectare. Portanto, um homem não pode culti-
var uma área tão grande quanto a que seria possível com base no mé-
todo de estimação recomendado por Colin-Clark. O cultivador deve
permanecer desempregado durante a maior parte do ano, a menos que
ele possa distribuir a carga de trabalho sobre as terras irrigadas, culti-
vando produtos cujos períodos de crescimento se espalhem ao longo do
ano.
A monocultura do arroz de várzea dependente das monções é tão
sazonal quanto o cultivo de cereais de sequeiro nas regiões semi-áridas.
No estado de Bengala do Oeste, o tipo dominante de cultivo demanda
125 homens-dias de oito horas por hectare, sendo 40 por cento para o
preparo e a semeadura e 35 por cento para o trabalho de colheita.14
No cultivo de arroz sem irrigação perene, também dependente
das monções, o preparo do solo e a semeadura devem ser feitos rapida-
mente quando as primeiras chuvas tornam o solo adequado ao cultivo.
A colheita deve, também, ser feita rapidamente, mesmo não sendo
aceito o padrão de dez a quatorze dias propostos por alguns especia-
listas.15 (Obviamente, essas cifras dependem do montante de perdas na
colheita que se considera tolerável.) Claramente, um camponês ben¬
galês com este tipo de produção não pode cultivar, com seu próprio
trabalho, o tanto que sugerem os cálculos de Colin-Clark. O nível muito
baixo de emprego que se constata em numerosos distritos orientais

(13) Ver tabela à p á g i n a 44.


(14) Studies in Economics of Farm Management in West Bengal (Ministry of
Food and Agriculture, New Delhi, prefácio datado em 1959), p p . 244 e 246.
(15) P. Gourou, L'Utilization du sol en Indochine francaise (Paris, 1940), p. 432;
J. Lossing Buck, o p . c i t , vol. I, p. 13.

56
onde existe arroz não irrigado deve-se, muito provavelmente, em gran-
de parte, ao desempregado sazonal.

O TRABALHO ÁRDUO DA AGRICULTURA INTENSIVA

O subemprego estacional, uma característica própria das comunidades


rurais baseadas no sistema de pousio curto, pode ser bastante reduzido
se o crescimento da população torna necessária a passagem para for-
mas mais intensivas de uso do solo, sejam as do "tipo europeu" com
produção de forragem para os animais, sejam as do "tipo asiático",
com irrigação. A redução do subemprego estacional na agricultura da
Europa Ocidental efetivada nos séculos XVIII e XIX, quando se ado-
taram os métodos de produção de forragem e alimentação manual dos
animais, é bem conhecida e, por conseguinte, não necessita de maiores
comentários. Entretanto, é bom notar que, aproximadamente mil anos
antes da revolução agrícola, o subemprego estacional já havia sofrido
alguma redução na agricultura européia ocidental graças a introdução
do sistema dos três campos com pousio curto, que permitia cultivos de
outono e primavera e uma melhor distribuição, ao longo do calendário
agrícola, das tarefas de arar, semear e colher.16 A famosa revolução no
padrão de emprego na agricultura européia do século dezoito foi, por-
tanto, uma mudança menos radical do que aquela que pode ocorrer
quando a irrigação se torna possível em regiões ate então secas. A me-
lhora na situação do emprego provocada pela irrigação e particular -
mente espetacular se esta é do tipo contínuo, que fornece água em
quantidade suficiente durante todos os meses do ano.

(16) A introdução do sistema de três campos na Europa setentrional, depois do


ano 800 da Era Cristã, elevou a produção agrícola total através do encurtamento do pe-
ríodo de pousio e permitiu uma melhor distribuição estacional dos recursos humanos e
animais porque se tornaram possíveis duas semeaduras, uma de primavera e outra de
outono, e um melhor espaçamento entre os trabalhos de colheita. Charles Parain sugere
que esta mudança foi um meio de elevar a produção total porque a população estava
crescendo: "Como se tem um aumento considerável na produção agrícola total, o cresci-
mento da população pode ter sido, com freqüência, um fator determinante". C. Parain,
"The Evolution of Agricultural Techniques", in Cambridge Economic History, op. cit,
vol. I, p. 128. Outros autores consideram a introdução do sistema de três campos como o
resultado de uma invenção autônoma, que aumentou a produtividade do trabalho e, por
conseguinte, ajuda a explicar o progresso agrícola subseqüente na Europa setentrional
em contraste com o estancamento na Europa meridional. Ver Lynn White Jr., "Tech-
nology and Invention in the Middle Ages", in A. F. Havighurst (ed.), The Pirenne Thesis
(Boston, 1958), p. 81.

57
Foi mencionado, anteriormente, que a passagem da agricultura
de sequeiro para a agricultura irrigada envolve um grande aumento na
inversão de trabalho. Entretanto, parte deste trabalho adicional é utili-
zado no pico da estação e desta forma a mudança se torna efetiva so-
mente quando há um acréscimo do suprimento de trabalho originário
do crescimento natural da população ou da imigração de trabalhadores
agrícolas. Mas, de longe, a maior parte de trabalho adicional e empre-
gada durante a estação de crescimento (irrigação, carpas e trans-
plante), ou então durante a estação morta entre os cultivos (reparação
dos canais de irrigação e diques). Os levantamentos agrícolas, na Índia,
revelam que, quando se introduz a irrigação, a quantidade de trabalho
necessária durante o período em que as culturas estão em crescimento
— quantidade desprezível na cultura de sequeiro indiana — passa a ser
da ordem de 50 por cento de todo o trabalho exigido para o mesmo
cultivo.17 Além da mudança do padrão de emprego para uma dada
cultura, pode ocorrer uma mudança para tipos de cultivos que tenham
diferentes ciclos vegetativos. Se o sistema de cultivo múltiplo e introdu-
zido ao mesmo tempo que se opera a passagem do cultivo de sequeiro
para o irrigado, as longas temporadas sem trabalho podem desaparecer
inteiramente. Os levantamentos sobre a agricultura indiana ilustram a
diferença nas estruturas de emprego entre regiões que fazem pouco uso
da irrigação e aquelas que, ao contrário, a praticam largamente. Em
um distrito de Bengala Ocidental, onde 4 por cento da superfície são
irrigados, o emprego, durante o mês do ano onde ele é mais baixo,
representa um quinto daquele existente durante os meses de pico de
trabalho, enquanto que em outro distrito, da mesma zona, onde 28 por
cento da superfície são irrigados, a cifra corresponde a dois quintos
daquele máximo.18 Um quadro similar surge dos levantamentos agrí-
colas para outras regiões da Índia.
A densidade demográfica, excepcionalmente alta em certas áreas
da China, tornou possível uma expansão da irrigação e dos cultivos
múltiplos em proporções bem superiores àquelas praticadas mesmo nas
regiões densamente povoadas da Índia. Desta maneira, a estrutura de
emprego na maior parte da agricultura chinesa e notavelmente dife-
rente da que existe na Índia, apesar da existência de uma estação pro-
nunciadamente mais fria na China. Segundo o estudo por amostragem
de Lossing Buck sobre a agricultura chinesa nos anos de 1930 e seguin¬

(17) Ver tabela à página 44.


(18) "Studies in Economic of Farm Management in West Bengal", op. cit, pp.
16 e 31.

58
tes, um terço do número potencial de horas de trabalho nos quatro
meses de inverno permaneciam ociosas e esta ociosidade forçada repre-
sentava 80 por cento do total de desemprego rural na China. No resto
do ano, a porcentagem de desemprego rural era de somente 5 por
cento, e o tempo ocioso, incluindo o subemprego de inverno, represen-
tava um valor médio de somente 1 , 7 meses.19 As estimativas de Lossing
Buck, para a China, são calculadas em dias de trabalho, supondo uma
Jornada de 10 horas de trabalho. Vale a pena comparar estes dados
com o pequeno número de horas de trabalho das comunidades espar-
samente povoadas que praticam o pousio longo, ou mesmo com as oito
horas diárias que os estudiosos indianos geralmente levam em conta
como norma para um dia completo de trabalho naquele país.

A MUDANÇA GRADUAL DOS HÁBITOS DE TRABALHO

Vamos ousadamente supor que o montante e o padrão de emprego


agrícola que se observam hoje nas regiões esparsamente povoadas dos
países subdesenvolvidos, onde se praticam sistemas de uso extensivo do
solo, forneçam um quadro mais ou menos fiel do padrão e do grau de
emprego agrícola que existiram no passado nas regiões que hoje em dia
são densamente povoadas.20 Se esta suposição for aceita como uma
hipótese histórica razoável, pode-se considerar as mudanças no em-
prego agrícola provocadas pelo crescimento populacional e pela inten-
sificação do uso da terra, em uma dada região, como um alongamento
gradual das horas de trabalho dedicadas à agricultura.
Uma população fracamente esparsa começa a realizar um pouco
de trabalho agrícola como um suplemento à coleta de alimento e à
caça. Quando o seu território se torna mais povoado, seus habitantes
devem trabalhar mais e conseguir quase todos os alimentos por meio do
trabalho agrícola, mas este ainda pode ser realizado somente em umas
poucas horas ocasionais e não exige um trabalho regular diário. Um
posterior crescimento da população obriga-os a passar do sistema com

(19) J. Lossing Buck, op. cit, Vol. I, p. 16, e tabela Vol. III. Ver também nota 1,
página 1l2.
(20) Documentos ingleses sobre o trabalho agrícola na Idade Média mostram que
— pelo menos na Inglaterra — a Jornada de trabalho que os camponeses realizavam para
os senhores se estendia do nascer do sol ate ao meio-dia somente. Assim, uma Jornada de
trabalho normal parece ter sido a meia Jornada. Ver B. H. Slicher van Bath, The Agra-
rian History of Western Europe (London, 1963), pp. 183 e 184.

59
pousio florestal para o sistema com pousio arbustivo e a reduzir ainda
mais o pousio arbustivo ou a prolongar os períodos de cultivo. Atinge-se
finalmente um ponto em que a população deve aceitar a realização de
um trabalho realmente penoso em um ou dois picos sazonais relativa-
mente curtos. Ainda assim, eles continuam a ter longos períodos com
nenhum ou muito pouco trabalho agrícola. No curso do longo desen-
volvimento agrícola, antes que seja alcançado o ponto onde o pico de
atividades se torna excessivamente penoso para um agricultor de sub-
sistência, o cultivador, individualmente, poderá produzir mais traba-
lhando mais penosamente, sem a necessidade de investir o que quer
que seja ou de mudar o seu sistema de cultivo. Entretanto, é pouco
provável que ele o faca, pois ele ainda não alcançou o estagio mencio-
nado por Audrey Richards, onde o trabalho diário deixou de ser um
hábito para converter-se em uma necessidade fisiológica. Pode-se ad-
mitir, com toda a segurança, que tais mudanças realizar-se-iam so-
mente sob a compulsão do aumento populacional ou sob a compulsão de
uma hierarquia social. Esta última possibilidade — alias, uma possibi-
lidade muito real — será considerada, com alguma profundidade, em
capítulo posterior.
Contra esse raciocínio poder-se-ia levantar a objeção de que os
períodos de fome, que anualmente ocorrem em algumas comunidades
que praticam o sistema de pousio longo, são incompatíveis com a idéia
de que uma maior quantidade de alimento poderia ser produzida por
um agricultor médio se ele aceitasse reduzir suas horas de lazer. Entre-
tanto, este paradoxo pode ser explicado à luz dos estudos antropoló-
gicos sobre as atitudes em comunidades rurais primitivas. Os antropó-
logos destacam a ausência de previsão e a inclinação geral no sentido de
evitar o trabalho agrícola pesado.21 Os economistas se precipitam um

(21) Audrey Richards resume sua explicação sobre os períodos de fome anual
entre os bembas (Rodésia do Norte) como segue: "Em conclusão, os bembas consideram
mais ou menos normal o fato de haver escassez de alimentos. Seu sistema agrícola e seus
métodos de distribuição tornam inteiramente impossível a previsão de tal acontecimento.
As tradicionais crenças mágicas lhes ensinam que somente através de meios sobrena-
turais pode-se evitar a escassez de alimento. Esta firme convicção, combinada com o
temperamento otimista dos bembas e a sua falta de interesse pelo trabalho agrícola pe-
sado, leva-os a acreditar que, seja lá como for, alguma coisa irá acontecer antes que a
fome se instale... Seu sistema de medidas e o seu equipamento material tornam muito
difícil a realização de uma estimativa exata de seus suprimentos alimentares e, de qual-
quer modo, não vale a pena, para eles, ter muito mais alimento do que aquele que os seus
parentes armazenam nos celeiros. Todas essas razões explicam o porquê da não aquisi-
ção daquela atitude mental que os europeus descrevem como 'previdência ou 'frugali¬
dade'". Audrey Richards, op. cit, p. 208.

60
pouco quando supõem que os cultivadores primitivos recorrem a coleta
de alimentos somente quando não podem produzir alimentos suficien-
tes para sua subsistência. Estudos antropológicos sugerem que os povos
primitivos consideram usualmente a pesca, a caça e a coleta de alimen-
tos como atividades prazerosas. Lança-se mão do cultivo somente
quando outras atividades mais agradáveis malogram na provisão de ali-
mentos em quantidade suficiente. O esforço devotado a produção de
alimentos parece com freqüência limitado ao nível mínimo de horas
necessárias para evitar a inanição. Esta atitude pode ajudar na expli-
cação do porquê, em comunidades com pousio longo, com abundância
de terra e com pequena inversão de trabalho agrícola, a área cultivada
é, com freqüência, apenas suficiente para proporcionar uma colheita
que possa durar até a safra seguinte.
Quando se usa o arado nos cultivos com pousio curto, ele se torna
um meio para preservar, durante longos períodos, a liberdade em re-
lação ao trabalho penoso, mesmo quando existe uma densidade popu-
lacional elevada.
Os cultivadores que se empenham em seguir com a intensificação
do cultivo com pousio longo, além de um certo estágio de densidade
populacional, devem trabalhar durante um período mais longo do ano
para obter a mesma quantidade de alimento que se poderia obter com o
uso do arado. Somente quando se atinge uma densidade populacional
muito alta é que o agricultor se verá forçado a empregar o arado, a
renunciar a seus períodos de liberdade estacional em relação ao tra-
balho agrícola e a adquirir o hábito de um trabalho regular diário,
durante muitas horas ao longo de todo o ano.
Não se atinge esse estágio antes que os agricultores sejam obri-
gados a alimentar seus animais, durante quase o ano inteiro, com for-
ragem cultivada ou a pôr em prática uma irrigação trabalho-intensiva e
a colher safras sucessivas para poder subsistir.

61
CAPÍTULO 6

A COEXISTÊNCIA
DE DIVERSOS SISTEMAS
DE CULTIVO

Uma das principais contenções deste livro é a de que o crescimento da


população é um fator determinante básico das mudanças tecnológicas
na agricultura. Se assim é, segue-se que deve existir uma certa simila-
ridade entre o ritmo em que a população cresce e o ritmo em que a
mudança tecnológica se processa na agricultura. Este capítulo examina
o problema com certo detalhe e à luz da experiência histórica.
Até recentemente, as taxas de crescimento populacional eram
baixas ou muito baixas na maior parte das comunidades pré-indus-
triais e, de tempo em tempo, o tamanho da população era reduzido por
guerras, fome e epidemias. Assim, seria de se esperar que a marcha da
mudança tecnológica na agricultura tivesse sido lenta e interrompida
por períodos de estagnação ou mesmo de regressão das técnicas agrí-
colas. Antes mesmo que o sistema de utilização intensiva do solo tivesse
tido condições de ser aplicado sobre a totalidade do território de uma
aldeia ou região, uma regressão do crescimento populacional poderia
freqüentemente ter ocorrido e, como conseqüência, ter sido interrom-
pido o processo de mudança. Assim, novos sistemas de uso do solo e
novas técnicas agrícolas, em processo de lenta penetração, poderiam
coexistir durante longos períodos com os antigos sistemas dentro da
mesma aldeia ou em diferentes aldeias dentro da mesma região.
Será esta teoria confirmada pela informação disponível sobre o
desenvolvimento agrícola no passado e pelo panorama agrário atual
nos países subdesenvolvidos? Na minha opinião, a hipótese formulada
neste livro explica melhor os fatos do que a teoria tradicional do pro-
gresso técnico autônomo.

63
Consideremos, por exemplo, o processo de expansão do uso do
arado.1 Este foi um processo extraordinariamente lento. Na Europa,
o arado já era utilizado há milhares de anos e mesmo nos mais remotos
rincões da Europa existem vestígios de que esse instrumento já tivesse
sido utilizado há pelo menos 3.000 anos. Entalhes rupestres represen-
tando arado, datados daquela época, foram encontrados em regiões
bem ao norte, até mesmo na Suécia. Entretanto, a maior parte das
regiões européias parece haver sido cultivada pelo sistema de fogo, ma-
chado e pousio florestal até os tempos do Império Romano e não era
raro, até o século XVIII, mesmo em aldeias na França e na Alemanha,
que parcelas de terra florestal ou de capoeira fossem limpas e cultiva-
das por um ano somente.2 Mesmo no século XX, o cultivo com pousio
florestal e encontrado em alguns distritos montanhosos da Europa Cen-
tral.3 Até recentemente, aquele sistema foi largamente utilizado tam-
bém nas terras planas de países escandinavos esparsamente povoados.
Foi somente após o fim da Primeira Guerra Mundial que cessou, na
Suécia, a prática da queima de áreas florestais com o objetivo de reali-
zar cultivos durante um curto período.4 Assim, em um país de cultura
bastante homogênea como a Suécia, onde as variações geográficas das
técnicas não podem ser explicadas facilmente por uma falta de conta-
tos, o arado coexistiu com o machado e com o fogo durante pelo menos
3.000 anos.
Na Ásia, onde o arado entrou em uso muito antes da sua intro-
dução na Europa, ele jamais substituiu completamente o fogo e o ma-
chado. Existe ainda algo do sistema de pousio florestal na China meri-
dional, consideravelmente mais na Índia e em vastas áreas do sudeste
da Ásia, exceção feita a Java. O arado tem sido usado em todas essas
regiões desde há milhares de anos e muitos dos cultivos com pousio
florestal são realizados por cultivadores que, ao mesmo tempo, empre-
gam sistemas mais intensivos em outras terras da aldeia.

(1) G. Haudricourt e M. J. Delamare, L'homme et la charrue (Paris, 1955),


fornecem uma revisão sistemática do uso do arado em todo o mundo desde a Antigui-
dade.
(2) Marc Bloch, op. cit, Vol. I (Paris, 1931), pp. 26-30, e Vol. II (Paris, 1956),
pp. 23-6, 33-8 e 68-75.
(3) Dados sobre a área consagrada ao sistema de cultivo pousio florestal na Eu-
ropa Central por volta de 1900 encontram-se no artigo "Haubergwirtschaft", em Hand-
worterbuch der Staatswissenschaften, vol. IV (Jena, 1900), pp. 1123-4.
(4) H. C. Darby, "The Clearing of the Woodland in Europe", em W. L. Thomas,
op. cit., p. 210.

64
A D A P T A Ç Ã O DO USO DA TERRA ÀS CONDIÇÕES NATURAIS

Para se compreender o processo de intensificação do uso da terra é


necessário levar em conta as diferenças nas condições impostas a agri-
cultura pela natureza, condições variáveis segundo as diversas locali-
dades ou, mesmo, as diversas partes do território de uma mesma al-
deia. Quando o crescimento populacional torna necessária a mudança
do padrão de uso da terra, em um dado território, as transformações se
efetuam de modo a levar em conta esta diversidade das condições na-
turais.
Este ponto exige alguma explicação. Vamos supor, por exemplo,
que a população de uma comunidade que se utiliza do sistema com
pousio florestal esta aumentando e, vamos supor ainda, para maior
simplicidade, que esta taxa de crescimento é relativamente baixa, mas
regular. Nossos cultivadores começam expandindo gradualmente seu
cultivo — utilizando-se do sistema com pousio florestal — sobre todo o
território controlado por eles. Em dado momento, eles se tornam tão
numerosos que fica difícil encontrar novas áreas florestais adequadas.
Eles iniciam um processo de encurtamento do pousio e começam a
cultivar, primeiro, uma pequena parcela de terra e depois mais e mais;
segundo, o sistema com pousio arbustivo, em vez do antigo sistema
com pousio florestal. Se eles conhecem as técnicas de aração e têm
possibilidades de conseguir animais de tração, parece pouco provável
que continuem intensificando o cultivo com pousio arbustivo. Em vez
disso, eles seguramente hão de preferir fazer a limpeza de poucos lotes
de uma forma mais perfeita, removendo pedras e raízes, e começar a
utilizá-los no cultivo de pousio curto com arado, enquanto seguem em-
pregando o sistema com pousio longo na maior parte do seu território.
Outros campos de trabalho poderão, posteriormente, ser preparados à
medida que aumenta a população. Se a taxa de crescimento populacio-
nal for muito baixa, a mudança completa de um sistema de cultivo
para outro pode levar muitos séculos para se consumar.
A época em que nossa comunidade ainda era esparsamente po-
voada e o arado começava a ser lentamente introduzido em substituição
ao pousio longo, uns poucos campos de trabalho deveriam ser prepa-
rados a cada ano, ou a intervalos de tempo mais longos, e o número de
lotes temporários limpos anualmente na floresta sofreria uma pequena
redução, de modo a prevenir-lhe o desaparecimento completo. Séculos
mais tarde, quando nossa comunidade se tivesse tornado muito densa-
mente povoada e, por exemplo, o cultivo anual irrigado estivesse substi-
tuindo o cultivo com pousio curto, uns poucos campos seriam a cada

65
ano — ou a intervalos maiores — dotados com instalações de irrigação
e alguns campos de sequeiro seriam deixados por um certo tempo como
pastagens permanentes, de modo a alimentar o número de animais
domésticos que necessariamente iria aumentando. Quando, final-
mente, nossa comunidade se tornasse extrema e densamente povoada,
uns poucos campos seriam de vez em quando adicionados àquela parte
da área cultivada que pudesse ser semeada, e colhida duas vezes ao
ano em vez de uma, ou três vezes no lugar das duas anteriores. Se o
crescimento populacional fosse suficientemente lento, um observador
perceberia, em dado momento, muito poucos sinais de mudança.
Ele inclinar-se-ia a descrever a comunidade como tecnicamente esta-
cionária.
A cada estágio deste processo de transformação, os campos pri-
meiro escolhidos para cultivo mais freqüente seriam aqueles mais ade-
quados ao passo seguinte em direção a um padrão mais intensivo de
uso da terra. Estes deveriam ser terrenos planos quando do estágio da
introdução do arado; assim como deveriam ser terras próximas aos rios
ou mananciais quando do surgimento dos cultivos anuais irrigados; e
enfim, quando da transição para uma adubação mais intensiva, os
campos escolhidos para essa conversão deveriam estar próximos aos
centros onde se concentra o gado.
Uma vez que um sistema particular de uso da terra chegou a ser
dominante, os campos ainda cultivados de acordo com sistemas ante-
riores não serão, muito provavelmente, os mais adequados para o novo
sistema de uso da terra. Alguns cultivadores podem, por isso mesmo,
achar preferível a introdução de um terceiro sistema, ainda mais inten-
sivo no lugar de continuar a substituição do sistema antigo e mais ex-
tensivo por um sistema de intensidade média. Desta forma, seriam três
os sistemas de uso da terra coexistindo no mesmo território da aldeia,
cada um deles ocupando a terra que parece a mais adequada para cada
grau particular de intensidade de uso.5
Um observador contemporâneo que fosse realizar um estudo de
corte transversal do território dessa aldeia, seria levado, talvez, a inter¬

(5) A. T. Grove observou que naquelas zonas da Nigéria setentrional em que a


densidade populacional e inferior a 150-200 habitantes por milha quadrada, o padrão de
utilização da terra está muito pouco relacionado com as variações de capacidade "natu-
ral", pois uma parcela particular pode estar sob um bosque, em dado momento, sob
pasto em outro, ou cultivada durante vários anos e depois abandonada, enquanto que em
áreas de alta densidade populacional o uso da terra esta muito mais intimamente rela-
cionado às variações das condições do solo. Ver A. T. Grove, "Population Densities and
Agriculture in Northern Nigeria", em Barbour and Protero, op. cit., pp. 125-6.

66
pretar essas diferenças na exploração do solo segundo uma teoria geo-
gráfica estática. Ele consideraria os diferentes tipos de uso da terra
como se fossem adaptações as diferenças nas condições naturais, dado
que cada parte do território da aldeia parecia estar sendo utilizada de
forma mais conveniente para o aproveitamento da sua natural adequa-
ção. Se nosso observador fosse um malthusiano empedernido, ele não
deixaria de sublinhar, com toda a força de sua convicção, que as dife-
renças na intensidade do uso da terra haviam surgido porque a popu-
lação tinha atingido o número de indivíduos suscetíveis de serem ali-
mentados por um território com as condições naturais observadas. Indo
mais além, ele poderia afirmar que seria impossível aplicar mais tra-
balho de forma produtiva naquele território, e que a população adicio-
nal teria que enfrentar o dilema: subemprego e inanição ou emigração.

OS CASOS DE JAVA E DO JAPÃO

Observadores holandeses aceitaram, muitas vezes, um ponto de vista


semelhante a respeito da ilha de Java e concluíram, tendo em vista a
alta densidade populacional nos férteis distritos vulcânicos, que a ilha
era superpovoada.6 Essa afirmação já havia sido feita há um século e
meio7 embora hoje o número de habitantes seja dez vezes maior que
antes e eles sejam praticamente auto-suficientes em alimentos, mesmo
quase não empregando adubos químicos em sua produção.
A extraordinária expansão da produção agrícola em Java é, às
vezes, explicada como sendo o resultado da educação rural e dos inves-
timentos de capital realizados pela Holanda. Mas estas atividades dão
conta somente de uma pequena parte da produção adicional de ali-
mento levada a cabo na ilha. A principal explicação da alta elasticidade
da produção esta na difusão gradual por toda a ilha de métodos agrí¬
colas aplicados, em partes do seu território, muitos séculos antes da
chegada dos holandeses.
O padrão cultural de Java é bastante homogêneo e é impossível
explicar as diferenças geográficas dos diversos métodos utilizados no

(6) Para um exemplo recente desta informação ver F. A. van Baaren, "Soils in
Relation to Population in Tropical Regions", em Tijdschrift voor Economische en Sociale
Geografie (Rotterdam, setembro, 1960).
(7) Em 1816, um antigo diretor da província da costa nordeste de Java assinalou
que no seu tempo os campos de arroz eram cultivados em rotação porque a "população
excedia em muito o cultivo" (citado por J. M. van Der Kroef, Indonesia in the Modern
World, Vol. II (Bandung, 1956), p. 67.

67
interior da ilha pela insuficiência de contatos culturais. O arado já era
usado no século X e foi provavelmente introduzido muito antes. Quan-
do os holandeses chegaram, a maior parte da ilha estava ainda utili-
zando o sistema de cultivo com pousio florestal e pousio arbustivo, mas
o sistema de pousio longo foi gradualmente eliminado como resultado
do rápido crescimento populacional durante o período holandês. Com-
parações sistemáticas de relatórios procedentes de vários períodos da
etapa colonial têm revelado mudanças sucessivas, em algumas áreas,
do sistema de cultivo com pousio longo para pousio curto e deste para
cultivos anuais e múltiplos.
As mudanças ocorridas em Java estão bem sumarizadas por H.
Bartlett: "Durante o último século, o cultivo típico ladang (isto e, pou-
sio longo), tal como ainda hoje ele persiste em algumas partes da Indo-
nésia, foi caindo mais e mais em desuso, por causa da grande pressão
que sobre o território exercia o excessivo aumento populacional e, final-
mente, praticamente desapareceu. A terra ladang, que exigia a derru-
bada e queima da floresta e um longo período de recuperação de dez ou
vinte anos após duas ou três estações com uma produtividade agrícola
satisfatória, cessou de existir sendo substituída por cultivos de sequeiro
permanente... quando o cultivo ladang evoluiu impulsionado pela ne-
cessidade de um tipo superior de uso da terra. Antes que o cultivo
ladang com pousio florestal fosse abandonado, passava-se às vezes para
um tipo de pousio herbáceo longo, de duração limitada, e que só pode-
ria existir onde uma enorme inversão de trabalho se tornasse necessária
por causa da escassez de terra apropriada".8 Comentando o relatório
governamental de 1911 sobre o região central de Java, o autor escreve:
"Este relatório é importante, na sua totalidade, como testemunho do
que acontece quando a pressão populacional se torna tão intensa após
um longo período de uso não planejado da terra ou do seu uso abusivo.
A floresta se transforma em pastagem. Em decorrência de um pasto-
reio excessivo, aparece uma vegetação arbustiva e espinhosa nas áreas
antes ocupadas pelas pastagens. Uma agricultura permanente em ter-
ras não irrigáveis substitui a agricultura itinerante primitiva através de
vários estágios intermediários, no curso dos quais a demanda por tra-
balho se eleva, os períodos de pousio são encurtados e, finalmente, me-
diante a adoção, a contragosto, do cultivo profundo e da estrumação
alcança-se o estágio de cultivo anual, mas através de uma série de eta¬

(8) H. H. Bartlett, "Fire in Relation to Primitive Agriculture", op. cit., p. 554.

68
pas improdutivas e devastadoras".9 Hoje em dia o pousio longo desa-
pareceu quase inteiramente de Java e o cultivo múltiplo se estendeu
pelas partes mais densamente povoadas da ilha. Ao mesmo tempo em
que essas mudanças ocorriam na agricultura, o camponês javanês tam-
bém se transformou. Ele não é mais o ocioso negligente de outrora que
apenas arranhava a terra para obter alimento suficiente. Nas regiões
mais densamente povoadas, os camponeses de hoje trabalham dura-
mente seus pequenos campos procurando mantê-los completamente li-
vres de ervas daninhas e tão nivelados que nenhuma água corre provo-
cando erosão ou danos às culturas.
A agricultura japonesa, no período de 1600 a 1850, proporciona
um outro exemplo de crescimento populacional acompanhado de pas-
sagem gradual em direção a um sistema de uso da terra mais inten-
sivo.10 No começo do período, uma mudança dinástica produziu a paz
interna após uma época de turbulência, e a população cresceu rapida-
mente, em particular durante a primeira metade do período. A partir
de um certo momento, o aumento populacional parece ter causado uma
redução no tamanho médio das propriedades agrícolas e uma profunda
mudanças dos métodos de cultivo. A aração com a ajuda de animais de
tração se tornou muito freqüente, como também duas colheitas por ano
graças a irrigação e ao uso de excrementos e peixe seco como fertili-
zantes, em substituição ou como complemento dos métodos tradicio-
nais de incorporação de ervas, folhas ou cinzas nos campos de cultivo.
Por fim, uma série de publicações propagavam os métodos melhorados
de cultivo e difundiam o conhecimento de novas culturas e variedades
de plantas.
Thomas C. Smith mostra claramente, na sua interessante análise
da agricultura japonesa do período, que muito poucas dessas mudan¬
ças resultaram de invenções contemporâneas: a maior parte resultou da
difusão de técnicas conhecidas, que passavam de localidades onde já
estavam bem enraizadas para áreas onde eram desconhecidas ou não
utilizadas. Ele enfatiza, também, que para a maioria das explorações o
efeito dessas mudanças foi elevar não só a produção por hectare mas
também a inversão de trabalho por unidade de área. Entretanto, Smith
acredita que a causa dessas mudanças "permanece obscura" e explici-
tamente rejeita a idéia de que o aumento populacional pudesse ser a

(9) Ibid., p. 807. Ver também pp. 158, 651, 721 e 801-9.
(10) Thomas C. Smith, The Agrarian Origins of Modem Japan (Stanford Univer-
sity Press, 1959). Ver especialmente o capítulo sobre tecnologia agrícola, pp. 87-107.

69
força motriz. O seu argumento principal contra semelhante explicação
é de que o grosso desse aumento populacional ocorreu antes de 1725,
enquanto as mudanças técnicas e a tendência a constituição de estabe-
lecimentos menores foram mais marcantes depois daquela data.11 Este
argumento, entretanto, não é inteiramente convincente uma vez que
pode ter havido, por volta de 1600, um espaço vital considerável para
acomodar uma população adicional e aumentar a produção de ali-
mento sem que fosse necessário recorrer a subdivisão dos estabeleci-
mentos existentes e a utilização de métodos intensivos. Estes recursos se
tornaram indispensáveis em um estágio posterior, quando a densidade
populacional alcançou um certo nível crítico.

REDUÇÃO DA DENSIDADE P O P U L A C I O N A L

Tanto em Java como no Japão, as populações foram crescendo firme-


mente durante vários séculos. Este fenômeno é, entretanto, excepcio-
nal. A história agrária conhece relativamente poucos exemplos de cres-
cimento sustentado e muito mais de crescimento populacional inter-
rompido por freqüentes retrocessos, como já foi mencionado. De acordo
com a teoria malthusiana, deveríamos esperar que a população recupe-
rasse rapidamente o seu tamanho anterior após a ocorrência de tais
retrocessos, mas a evidência histórica não confirma esta expectativa.
Foi preciso um século para que a população se recuperasse das perdas
sofridas com a Guerra dos Trinta Anos na Europa Central, existindo
mesmo muitos exemplos, em todo o mundo, de recuperações ainda
mais lentas.
Nos casos em que a densidade populacional diminuiu como con-
seqüências de guerras ou outras catástrofes, parece ter havido, com
freqüência, um retorno a sistemas de cultivos mais extensivos. Muitos
dos campos de cultivos permanentes que foram abandonados após
guerras ou epidemias, nos começos da Idade Média, permaneceram,
depois, incultos durante muitos séculos. A utilização de métodos de
fertilização trabalho-intensivos, como por exemplo a margagem, per-
maneceu no abandono durante muitos séculos na França, reapare-
cendo quando a população se tornou, outra vez, densa.12 O desapareci-

(11) Ibid., pp. 87 e 104-5.


(12) Durante o período de crescimento populacional na Inglaterra e em algumas
partes da França, no século XVI, a marga e a cal foram lançadas sobre as terras pela

70
mento e a reaparição posterior dos cultivos de leguminosas já foram
mencionados.
A América Latina é a região que mais sofreu retrocessos demo-
gráficos nos séculos recentes. Em muitas regiões, a densidade popula-
cional dos tempos pré-colombianos jamais foi recuperada e a popu-
lação indígena regrediu em suas técnicas agrícolas. Mais revelador
ainda é que o mesmo processo de regressão técnica pode ser observado
quando migrantes de regiões mais densamente povoadas, com níveis
técnicos mais elevados, tornam-se colonizadores em regiões da América
Latina esparsamente povoadas. Vamos ilustrar este fenômeno citando
textualmente as palavras pronunciadas, em uma conferência interna¬
cional, por um especialista sobre as condições rurais na América La-
tina:
"Parece-me que dois pontos devem ser levantados. O primeiro
deles, como já é do conhecimento de todos nós, é que uma grande parte
de toda a área cultivada, como também dos agricultores da América
Latina, encontra-se em um estágio pré-científico... Isto se deve ao fato
de as pessoas permanecerem isoladas pela distância, por níveis cultu-
rais completamente distintos ou por inércia cultural — definida como a
resistência de uma sociedade rural conservadora a adoção de novas
idéias... O segundo e que existem certos grupos da população campo-
nesa da América Latina que, de acordo com pesquisadores de campo,
estão descendo na escala tecnológica em lugar de subir. Eles estão se-
guindo o caminho errado. Observadores como Waibel e Lynn Smith,
por exemplo, que estudaram a relativamente recente colonização euro-
péia no sul do Brasil, nos dizem que os colonos que vieram (ou melhor
dito, cujos ancestrais vieram) de países com técnicas relativamente
avançadas, como a Alemanha e a Itália, chegaram ao ponto de perder
muitas dessas técnicas. Este e um fato verdadeiro mesmo para prá-
ticas tão simples como o uso do arado ou a rotação de culturas, como
também a inclusão do gado e o cultivo de forrageiras, na economia

primeira vez desde o período romano e o século XIII (isto é, dois períodos prévios de alta
densidade demográfica). Ver B. H. Slicher van Bath, op. cit., p. 205. Nas regiões do
norte da Alemanha, onde a terra, antes da Guerra dos Trinta Anos, era alqueivada so-
mente a cada quatro, cinco, seis, sete ou oito anos, o declínio populacional causado pela
guerra conduziu ao reaparecimento do sistema de três campos que sobreviveu nessas
regiões até o século XVIII. Ibid., p. 245. Ver, também, a enumeração dos onze sistemas
de uso do solo que coexistiram na Europa Ocidental nos séculos XVII e XVIII. Ibid.,
p . 244.

71
do empreendimento agrícola, para a manutenção da fertilidade do
solo".13
Esta experiência latino-americana de aparente regressão técnica,
quando a população declina ou quando as pessoas se movem para áreas
de densidade demográfica mais baixa, esta longe de ser única.14 Mui-
tos observadores nos dão conta de aparentes regressões técnicas após
migrações para regiões de menor densidade demográfica, mesmo nos
casos em que as migrações resultaram de iniciativa governamental e
foram planejadas para promover a difusão de métodos intensivos nas
regiões de imigração. Em Tanganica, no Vietnã, no Ceilão e na Índia,
os serviços de extensão rural acabaram constatando que cultivadores
que usavam métodos intensivos em seus distritos de origem densamente
povoados abandonaram estes métodos após haverem sido reassentados
em distritos de menor densidade populacional, onde haviam recebido
maior área de terra por família. Muitas áreas de colonização que deve-
riam servir de modelo de exploração agrícola a população local resul-
taram em tristes espetáculos de campos pouco produtivos não capi-
nados e não irrigados.

OS EFEITOS DO RÁPIDO CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO

Os exemplos anteriormente apontados referem-se, em parte, a casos


em que há um aumento constante, mas relativamente lento, da popula-
ção acompanhado de mudanças nas técnicas agrícolas e, em parte, a
casos em que há um declínio da população ou migração para regiões
menos densamente povoadas, acompanhadas de um retorno às técnicas
mais extensivas e aparentemente mais primitivas. Resta agora conside-
rar os efeitos sobre os métodos agrícolas, de um crescimento popula-
cional muito rápido.
No caso de um crescimento populacional rápido, o processo de
intensificação precisa ocorrer com uma rapidez muito maior que nos

(13) Ver a comunicação apresentada por Henry S. Sterling, em 1951, na Inter-


national Conference on Land Tenure and Related Problems in World Agriculture. Ken-
neth H. Parsons et al. (ed.), Land Tenure (Madison, 1956), pp. 349-50.
(14) O professor Sauvy é categórico neste ponto: "Não se pode encontrar, na his-
tória, nenhuma estagnação ou retrocesso demográfico feliz. Um tal acúmulo de desmen-
tidos mostra que a teoria é defeituosa e ela peca em algum ponto". (Em francês no ori-
ginal. N. dos T.). A. Sauvy, Theorie generate de la population, Vol. II (Paris, 1954),
p. 20: P. Gourou dá exemplos de retorno ao uso extensivo do solo, in: "Les pays Tro-
picaux", op. cit, pp. 109, 142.

72
casos considerados anteriormente. Não somente alguns campos, mas
um grande número deles, deveriam ser limpos a cada ano ou providos
de instalações de irrigação tendo, talvez, como resultado duas colheitas
anuais, no lugar de uma. Abertura de grandes extensões de terra, me-
lhoramentos fundiários e drenagem ou investimentos em instalações de
irrigação deveriam ocorrer simultaneamente. Os observadores contem-
porâneos não deixariam de notar o aumento dessas atividades e eles
bem poderiam descrever o período de rápido crescimento da população
como um período de revolução agrícola. A revolução agrícola da Eu-
ropa Ocidental, no século XVIII, parece ter sido deste tipo, e as mu-
danças agrícolas que hoje em dia estão se processando em numerosos
países subdesenvolvidos parecem nos proporcionar um outro exemplo
da rápida expansão de técnicas de agricultura intensiva por causa da
pressão populacional. Os historiadores futuros descreverão, provavel-
mente, as décadas posteriores a 1950 como as da revolução agrícola
indiana.
Quando o crescimento da população em uma economia pré-in-
dustrial se torna tão rápido que os seus efeitos podem aparecer como
uma revolução agrícola aos olhos dos observadores contemporâneos ou
dos historiadores econômicos, surgem problemas novos e difíceis, des-
conhecidos nos casos em que o crescimento populacional se processa de
forma lenta e moderada. Os cultivadores precisam adaptar-se, por si
mesmos e de forma rápida, aos métodos que se lhes aparecem como,
muito embora eles possam ter sido usados ha milênios em outras partes
do mundo e — talvez mais difícil ainda — eles devem se acostumar,
dentro de um período relativamente curto, a um trabalho regular e
duro, no lugar de uma vida de maior lazer com longos períodos de ina¬
tividade estacional. Além do mais, a comunidade deve ser capaz, de
algum modo, de arcar com a carga de uma alta taxa de investimento e
talvez empreender uma ampla mudança no sistema de posse e uso da
terra. Deverei voltar a estes problemas de investimentos e de posse e
uso da terra nos próximos capítulos.

73
CAPÍTULO 7

RENDIMENTOS DECRESCENTES
DO TRABALHO
E INÉRCIA TÉCNICA

Uma vez aceita a idéia de que uma certa densidade populacional é


precondição à introdução de determinadas técnicas, numerosos fatos
que intrigavam os funcionários coloniais e os técnicos governamentais
dos países subdesenvolvidos aparecem sob nova luz.
A crença geral de que a ignorância é a causa principal do uso de
métodos de cultivos extensivos fez com que tanto os governos coloniais
quanto os governos independentes se laçassem ansiosamente a instru-
ção dos cultivadores primitivos no que diz respeito ao uso de métodos
de produção intensivos. É verdade que os poderes coloniais estavam
interessados em promover a produção de cultivos comerciais mais do
que no progresso das culturas alimentares, mas alguns deles estabele-
ceram, entretanto, uma rede de instrutores e conselheiros para ensinar
os cultivadores a lavrar suas terras mais intensivamente e com métodos
menos primitivos. Estas tentativas de educação agrícola foram bem
sucedidas em alguns casos, mas em outros o fracasso foi conspícuo. Em
alguns casos os cultivadores que utilizavam o sistema com pousio longo
se recusaram a abandonar o uso do fogo e utilizar o arado; em outros
casos, os cultivadores que utilizavam o sistema com pousio curto não se
dispuseram a usar a água proveniente de novos canais de irrigação for-
necidos pelos governos coloniais e recusaram a mudança para um cul-
tivo mais freqüente em terras irrigadas.
Alguns dos novos governos independentes das antigas colônias
organizaram serviços de extensão rural em uma escala mais ampla do
que aquela que foi tentada no período colonial mas os resultados foram
tão desalentadores quanto haviam sido antes. Em algumas aldeias e

75
com alguns grupos de produtores, os extensionistas obtiveram resul-
tados encorajadores, mas existem muitas queixas sobre a obstinada
resistência aos métodos preconizados pelos novos agentes técnicos.1
Muito freqüentemente o programa de extensão rural de um dado
país consiste em uma série de recomendações padronizadas e nem to-
dos os agentes da extensão rural podem estabelecer os verdadeiros cus-
tos das mudanças preconizadas na região específica onde atuam.
Algumas medidas são, às vezes, recomendadas pelo simples fato
de que foram bem-sucedidas em outros lugares, provavelmente em
comunidades com densidade populacional bastante diferentes.2 Agen-
tes extensionistas e especialistas visitantes parecem, com freqüência,
pensar quase exclusivamente em termos das potencialidades técnicas
de uma melhor utilização da terra e de uma produção total mais ele-
vada subestimando, assim, o custo adicional em trabalho que os novos
métodos acarretariam, tanto nas operações correntes como em investi-
mentos.
Uma das concepções errôneas que tende a desorientar os consul-
tores é a crença geral de que existe uma oferta excessiva de trabalho nas
áreas rurais dos países subdesenvolvidos. Os consultores técnicos que
não estão familiarizados com as condições do mercado local de trabalho
parecem supor que os cultivadores preferem um emprego regular e
abandonar o lazer estacional em troca de uma modesta recompensa que
seria obtida com um acréscimo na produção final. Eles supõem que as
práticas intensivas de trabalho podem ser introduzidas facilmente por
meio da educação e da instrução, caso essas práticas possam ser condu-
zidas na estação ociosa.3
Mas os cultivadores não esquecem e tampouco negligenciam o
trabalho adicional que teriam de realizar caso aceitassem os conselhos.

(1) Ver a publicação periódica: Evaluation Report on the Working of Community


Projects and National Extension Service Blocks (Government of India, New Delhi), pas¬
sim.
(2) A administração do programa de desenvolvimento de comunidade na Índia
foi criticada por não ter levado na devida conta em suas recomendações as condições
locais. Report of a Community Development Evaluation Mission in India, United Na¬
tions (New York, 1959), p. 32.
(3) Um exemplo extremo desta maneira de ver encontra-se no estudo sobre
subemprego rural realizado por Wilbert Moore para a Liga das Nações: "O aumento da
produtividade por homem-hora não é uma vantagem para a família camponesa cuja
oferta de trabalho é, de certo modo, uma parte dos seus custos fixos". Wilbert E. Moore,
Economic Demography of Eastern and Southern Europa (League of Nations, Geneva,
1954), p. 109.

76
Relatórios dos agentes de extensão, tanto os relativos ao período colo-
nial como os de períodos mais recentes, fornecem numerosos exemplos
de cultivadores que recusaram a introdução do arado, a técnica de
transplante, a produção de forrageiras ou outras mudanças propostas
pelos extensionistas, dando como motivo explícito de sua recusa a ne-
cessidade de empregar muito mais trabalho no cultivo. Semelhantes
objeções são freqüentemente interpretadas como ausência de interesse
em aumentar a renda total, mas pode-se sugerir que talvez seja mais
plausível explicá-las como o resultado de uma comparação bastante
racional entre o trabalho adicional requerido e o provável acréscimo na
produção.
Assim, pode ser um sólido raciocínio econômico, e não a indo-
lência, o que induz a comunidade de cultivadores que utiliza o sistema
com pousio longo a recusar o abandono do fogo e do machado quando
se lhes oferece ajuda para que adotem o cultivo com arado: preferem o
deslocamento para outra área na floresta onde existe espaço para a
prática do sistema com pousio longo. Inversamente, um raciocínio eco-
nômico assim tão sólido pode persuadir uma outra comunidade, que e
incapaz de encontrar terras adequadas para continuar o cultivo sob o
sistema com pousio longo, a aceitar a ajuda oferecida, utilizando o
arado em campos permanentes. Camponeses com muito pouca terra
para o cultivo com pousio curto e sem outras oportunidades de em-
prego, comportam-se racionalmente quando usam a água proveniente
de canais de irrigação para a prática de um cultivo mais intensivo. Mas
camponeses com terra suficiente para o cultivo com pousio curto podem
igualmente constatar que o acréscimo de produção que se obteria com
a irrigação das culturas não seria compensador diante da redução do
lazer estacional que haveriam de experimentar.
Tanto no período colonial como depois dele, os numerosos fra-
cassos das tentativas que visavam a introdução de métodos e instru-
mentos aparentemente superiores levaram agentes oficiais e cientistas
sociais a indagarem se não haveria alguma coisa errada com a teoria
básica. Parecia óbvio que a continuidade no uso de métodos primitivos
não poderia ser atribuída somente à ignorância, sobretudo quando o
governo oferecia todo tipo de ajuda, da simples orientação aos subsí¬
dios diretos e ao fornecimento de equipamento.
Já no período colonial, antropólogos e outros cientistas sociais
familiarizados com os costumes dos povos primitivos sugeriram que a
persistência dos métodos tradicionais era uma indicação não de igno-
rância mas de que as tribos primitivas e os aldeões não respondiam a
incentivos econômicos e preferiam seguir vivendo o seu modo tradicio¬

77
nal, mesmo quando esse comportamento ia de encontro aos seus pró-
prios interesses econômicos.4 Os decepcionantes resultados obtidos
pelos numerosos serviços de extensão, já sob governos independentes,
emprestaram novas cores a essa questionável teoria.
É inegável que muitas pessoas hesitam em mudar seus métodos
costumeiros, a menos que os incentivos econômicos sejam muito fortes.
É também possível que esta atitude esteja mais espalhada em comuni-
dades primitivas que nas avançadas. Mas há, por outro lado, um acú-
mulo impressionante de evidências revelando que pode haver grande
disposição para responder a incentivos econômicos, mesmo nas socie-
dades mais primitivas.5
Novos cultivos foram avidamente aceitos, quando os portugueses
os introduziram na África e na Ásia. O mesmo é verdadeiro para pe-
ríodos mais recentes.6
Mais recentemente, durante as últimas décadas, o milho, a man-
dioca e a batata se estenderam rapidamente pelas comunidades primi-
tivas, mesmo onde não houve a ajuda da propaganda governamental.
Culturas comerciais foram também aceitas rapidamente quando a pro-
dução se mostrava lucrativa, apesar da hostilidade das grandes compa-
nhias e da obstrução por parte de governos coloniais.
De acordo com este tipo de experiência, muitos antropólogos e
outros especialistas tem objeções a idéia de uma forte preferência pelo

(4) Um destacado expoente desta teoria foi J. H. Boeke. Ver, especialmente, o


seu Economics and Economic Policy of Dual Societies (Haarlem, 1953).
(5) Esta visão, que se opõe vividamente a de J. H. Boeke e de seus discípulos
holandeses, foi proposta por J. S. Furnivall: "Todavia a imagem holandesa de um mundo
primitivo no qual os valores econômicos são desprezados parece, na medida em que se
baseia sobre fatos, ter sido extraída de Java, onde durante uns duzentos anos os empre-
gadores garantiram o trabalho para as suas plantações mediante a compulsão, em vez do
incentivo em busca do proveito monetário. Na África, igualmente, ... a crença popular
na falta de interesse dos nativos por valores econômicos tem sido utilizada para justificar
a compulsão como meio de assegurar trabalho. Mas em toda parte a experiência tem
demonstrado que o desejo de ganhar pode ser facilmente estimulado, ou melhor, liberado
do controle do costume. Nas colônias britânicas sob domínio indireto, as forças econô-
micas, interpretadas segundo a tradição britânica da soberania da lei, cedo penetraram
no mundo nativo...". J. S. Furnivall, Colonial Policy and Practice (Cambridge, 1957),
p. 304.
(6) Milho, mandioca, amendoim, batata-doce, fumo e pimenta são de origem
americana e alcançaram a costa ocidental da África por volta do século XVI ou XVII.
Eles penetraram na África Central à frente da ocupação européia. A data exata do seu
aparecimento em Zandelândia (Sudão do Sul, E. B.) não é conhecida. P. de Schlippe,
op. cit., p . 262.

78
comportamento rotineiro.7 Alguns deles até mesmo se queixam da forte
atração exercida pelo lucro nas comunidades primitivas. Os padrões
sociais e culturais tradicionais, dizem eles, desintegram-se muito rapi-
damente sob a atração do lucro, resultando que as tradições imemo-
riais de solidariedade tribal e ajuda mútua se desintegram, deixando
sem proteção os membros mais fracos da comunidade.
Desta forma, a evidência empírica e contraditória. Em alguns
casos pelo menos, a contradição pode ser devida à diferente força do
próprio estímulo econômico decorrente de diferenças nas tendências da
população ou a outros fatores. Em conseqüência, sugiro que nos casos
onde observamos resistência a mudança técnica, o economista não de-
veria abandonar a explicação oferecida pelos antropólogos, sociólogos
ou psicólogos sociais antes de investigar se tem diante de si um caso
onde a mudança técnica estaria associada a rendimentos decrescentes
do trabalho, de forma que a resistência à mudança não necessitaria ser
explicada em termos de ausência de resposta a incentivos econômicos
8

(7) Dois antropólogos citados nos capítulos anteriores, S. F. Nadel e Audrey Ri¬
chards pertencem a este grupo. Nadel diz: "O fato de que o agricultor de Nupe e um
progressista em relação a certas técnicas agrícolas e 'conservador' em relação a outras
não se deve a nenhum 'conservadorismo' tribal ou racial, mas e, ao contrário, revelador
da existência da livre escolha econômica". S. F. Nadel, op. cit, p. 237. Audrey Richards
diz: "Com freqüência se diz que o cultivador primitivo segue as tradições tribais cega-
mente, sem raciocínio ou sem escolha, mas na realidade, quando o vemos dentro do seu
próprio campo, ele aparece como um homem que luta em um meio-ambiente difícil, com
um número desconcertante de possibilidades de ação, havendo tantos níveis entre o ho-
mem sábio e o tolo q u a n t o os existentes em nossa comunidade. O conservantismo da
tribo africana tem, eu penso, sido exagerado. Na realidade, a maioria dos bantus tem
mudado suas práticas agrícolas no contato com povos vizinhos ao longo de gerações e um
bom número de experiências são de fato realizadas no curso de uma vida individual".
Audrey I. Richards, op. cit., pp. 229-30.
(8) De fato, muitos dos detalhados estudos econômicos mencionados nos capítu-
los anteriores concluem que o cultivo intensivo não é remunerador nos distritos estudados
e que, portanto, os cultivadores agem com racionalidade econômica quando preferem
seguir empregando os métodos de cultivo extensivos. Haswell conclui sua análise assim:
"A análise do custo da mão-de-obra na produção de milhetos... leva a uma conclusão
que parece ser de grande importância... a produção intensiva não leva a uma redução
nos custos de trabalho... de modo geral, parece haver pequena redução nos custos como
resultado de práticas mais intensivas. Assim pode ser que os genieris e numerosos outros
povos africanos em circunstâncias similares não possuam incentivo aparente para usar
melhor suas terras produtoras de grãos". M. R. Maswell, op. cit., p. 55. Entre os seis
estudos sobre explorações agrícolas conduzidos na Índia, no período de 1956-57, dois
deles chegaram a conclusão de que o cultivo intensivo era antieconômico nos distritos

79
cobertos pelo estudo. O relatório sobre Madras contém o seguinte: "Em geral, a situação
se apresentava melhor no ano a que se refere este relatório, graças, principalmente, a alta
de preços. Mas é um pouco surpreendente que nas três culturas que se beneficiaram da
irrigação... perdas foram registradas. Em geral, nos cultivos irrigados a produção é
maior do que nos cultivos de sequeiro, mas a maior produção e assegurada, usualmente,
com uma taxa de investimento mais elevada, resultando que o custo total não pode ser
coberto". Studies in Economics of Farm Management in Madras (Ministry of Food and
Agriculture, New Delhi, prefácio datado em 1960), p. 191. O relatório sobre Bengala
Ocidental, no capítulo sobre "Economia Agrícola", conclui: "A análise do lucro mostrou
claramente a mais perturbadora característica do sistema atual de cultivo, a saber, a
tendência do lucro declinar com o aumento das inversões". Studies in Economics of
Farm Management in West Bengal, op. cit., p. 80.

80
CAPÍTULO 8

O CÍRCULO VICIOSO
DA POPULAÇÃO ESPARSA
E DAS TÉCNICAS PRIMITIVAS

Até este estágio da investigação foram ignoradas as atividades produ-


tivas não consagradas a produção de alimento. Devemos agora aban-
donar essa simplificação a fim de se obter uma visão mais completa e
realista do desenvolvimento das comunidades rurais sob pressão de
uma população em crescimento. Os sistemas de cultivo e de uso do solo
não podem ser inteiramente entendidos se não forem considerados
como parte do padrão de organização social, tornado como um todo.
No sistema com pousio florestal, os cultivadores podem produzir
alimentos para o seu próprio consumo sem muito trabalho penoso nem
transtorno. Mas eles necessitam de uma área enorme de terra por fa-
mília — incluindo, é claro, a terra deixada em pousio por um certo
período de tempo — e devem, por conseguinte, espalhar-se tenuemente
sobre um território, agrupados em comunidades relativamente peque-
nas. No interior de semelhantes grupos, pequenos e amplamente dis-
persos, somente uma rudimentar divisão de trabalho e possível e, por-
tanto, certas atividades como a produção de ferramentas, armas, uten-
sílios domésticos e vestuário supõem um consumo grande de tempo e
raramente são desenvolvidas a um alto nível de perfeição. As longas
distâncias que separam esses grupos de comunidades evoluídas tornam
impossível, ou pelos menos antieconômica, a aquisição de semelhantes
bens pela troca com alimentos básicos. Por isso, nas comunidades que
utilizam o pousio florestal, a produção de excedentes alimentares, em-
bora potencialmente grande, ocorre somente naqueles casos onde as
tribos se encontram perto de plantations ou de minas, dispondo assim
de um mercado de fácil acesso.

81
A necessidade de deslocar o cultivo de uma clareira para outra,
a cada ano, e encontrar lotes de terra que permaneceram em descanso
durante uma geração ou mais, obriga-os a remover ou a reconstruir
suas cabanas a intervalos freqüentes. Esse fato impede uma vida comu-
nitária assentada, de modo que é pouco provável o desenvolvimento de
uma organização social estável. Em outras palavras, as exigências do
sistema de pousio florestal podem fornecer amplas perspectivas para
explicar as principais características do modo de vida tribal: uma exis-
tência primitiva em pequenos grupos nômades, onde não há uma hie-
rarquia social complexa nem uma autoridade central, muito embora os
chefes das tribos possam exercer alguma autoridade e, em certas oca-
siões, recebam dádivas cerimoniais dos membros da tribo.
Com a transição para o sistema com pousio arbustivo há uma
tendência para o assentamento se tornar mais estável e para o tamanho
médio das comunidades locais se tornar maior. Alguma divisão do tra-
balho pode então desenvolver-se e mercados podem surgir nos locais
onde se trocam excedentes mais ou menos acidentais de alimentos por
bens não agrícolas. Nesse estágio, os produtores de bens não agrícolas
raramente são artesãos em tempo integral: eles usam uma parte do
tempo na produção de alimentos. Enquanto os aldeões continuarem a
se deslocar de tempos em tempos, a divisão do trabalho permanecerá
limitada e o nível de produtividade em atividades não agrícolas conti-
nuará baixo. Não existirão caminhos vicinais permanentes e o trans-
porte será lento e ineficiente. Se mercados locais existirem, poucos se-
rão os artigos ali trocados.
Com a aparição de campos permanentes, livres de raízes e pe-
dras, as habitações permanentes surgem também nas redondezas. Sob
o sistema de pousio curto os cultivadores serão sempre encontrados em
aldeias ou habitações individuais consideradas permanentes. A transi-
ção para um assentamento estável favorece o desenvolvimento de ativi-
dades não agrícolas. No lugar de cabanas temporárias são construídas
casas duráveis; torna-se conveniente construir estradas e perfurar poços
para água potável e uma estrutura social emerge, o que favorece o de-
senvolvimento de uma atividade mais duradoura e especializada da
parte de artesãos e comerciantes. Em síntese, uma organização tribal
da lugar a formas de organização social mais diferenciadas.
A elevação posterior da densidade populacional e a mudança
para sistemas mais intensivos de utilização do solo tornam a região, em
certa medida, urbanizada. As precondições para a urbanização não
consistem somente no fato de que a agricultura seja capaz de produzir
um excedente de alimentos básicos, mas também em que a densidade
82
populacional seja relativamente alta. É verdade que o produto por
homem-hora na agricultura tende a declinar com o aumento da densi-
dade populacional. Mas (como foi explicado no Capítulo 5) este declí-
nio pode ser mais ou menos compensado pelo aumento das horas de
trabalho. Por conseguinte, uma população agrícola numerosa pode
sustentar melhor uma população não agrícola também numerosa.1
Além do mais, para que ocorra uma concentração de população
não agrícola em verdadeiras cidades, um certo nível crítico de densi-
dade populacional deve ser alcançado. Isto acontece porque somente
em uma região densamente povoada pode existir um sistema relativa-
mente eficiente de transporte que não absorva uma parte excessiva do
total da força de trabalho. O transporte regular de alimentos para a
grandes cidades é somente possível quando se alcança uma densidade
populacional relativamente elevada. É, portanto, injustificado consi-
derar um baixo grau de urbanização, em regiões de agricultura com
pousio longo, como uma indicação da baixa produção por homem-hora

AS PRECONDIÇÕES A CONCENTRAÇÃO DA POPULAÇÃO

É bem conhecido que a divisão do trabalho e, portanto, a produtivi-


dade das atividades não agrícolas dependem da densidade de povoa-
(1) Muitos autores consideram que o crescimento das cidades européias nos sé-
culos XI e XII foi provocado pelas invenções técnicas na agricultura em períodos anterio-
res. Ele foi, entretanto, parte de um aumento geral da população que apareceu como
conseqüência da pacificação após séculos de guerras, invasões e lutas internas. Ver Henri
Pirenne, Medieval Cities (New York, Anchor, A. 82), p. 55. O aumento da população
rural foi acompanhado por uma ampla abertura de áreas florestais e por uma expansão
do sistema de três campos com pousio curto, como mencionado em nota de rodapé,
página 70. Pareceria que estas mudanças agrícolas tornariam possível alimentar uma
população urbana muito numerosa, mesmo se não houvesse aumento da produção anual
por homem na agricultura e, conseqüentemente, ocorresse pouca ou nenhuma mudança
na proporção da população total não necessária a produção de alimentos.
(2) As afirmações que se seguem fornecem um exemplo desta abordagem. "A
produtividade da agricultura africana é ainda tão baixa que em qualquer parte são neces-
sárias de duas a dez pessoas — homens, mulheres e crianças — para produzir alimentos
suficientes para suprir suas próprias necessidades e as de um adulto adicional não produ-
tor de alimentos. Se consideramos uma média de seis produtores para um não produtor,
significará que de uma estimativa de 120 milhões de pessoas em idade de trabalho (oito
anos e mais), não mais que vinte milhões serão capazes de deixar suas terras a qualquer
momento, sem ocasionar nenhum transtorno sério à economia agrícola". George H. T.
Kimble, Tropical Africa (edição condensada, Vol. I, New York, 1962), p. 481.

83
mento. Mas, enquanto não se reconheceu a verdadeira importância do
sistema de cultivo com pousio longo, admitiu-se com excessiva facili-
dade que uma população pouco numerosa poderia beneficiar-se da di-
visão do trabalho pelo simples fato de se agrupar em uma pequena
porção do seu território. Supunha-se que um grupo pequeno começaria
pelo cultivo de uma pequena área, aquela mais fértil ou mais facilmente
cultivável, no território sob seu controle.
Na verdade, é muito pouco provável que uma pequena população
agrícola se concentre voluntariamente em um espaço reduzido. Nos
casos típicos, uma população pequena pode obter seus alimentos com a
ajuda de uma quantidade bem menor de trabalho se, ao invés de se
concentrar sobre um ponto do território, ela se espalhar de modo que a
densidade média seja de uma ou duas famílias por quilômetro qua-
drado. Esta população, assim disseminada, pode entrar em contato
com povos vizinhos, que praticam outros métodos de cultivos e pos-
suem níveis culturais mais elevados, podendo receber deles machados e
enxadas superiores aqueles que eles próprios poderiam fabricar. Mas
é pouco provável que ela venha a adotar os métodos agrícolas de seus
vizinhos, uma vez que essa adoção levaria a uma imediata redução da
sua produção por homem-hora. Esta pequena população seria obri-
gada a trabalhar mais pesadamente, no sentido de obter as vantagens
que para ela não iriam aparecer como necessariamente ligadas as mu-
danças no seu sistema de produção de alimentos. A dificuldade é que
as vantagens, indiscutivelmente grandes, provenientes de uma aglome-
ração densa e permanente não se conseguem de um dia para outro.
Elas surgem lentamente, enquanto as desvantagens da concentração
aparecem imediatamente na forma de uma jornada de trabalho mais
penosa e longa a ser aplicada nos cultivos e nos investimentos para
melhoria do solo.
Evidencia-se assim que uma população, pequena em relação ao
território total sob seu controle, não pode, dada a sua própria peque-
nez, entrar em um processo de desenvolvimento econômico e cultural.
Tanto a história antiga como a mais recente reforçam a sugestão de que
a concentração populacional, acompanhada da passagem para um sis-
tema de cultivo intensivo, somente ocorrerá sob a pressão do cresci-
mento populacional, ou então quando uma tribo ou uma nação conse-
guem forcar escravos capturados a trabalhar na agricultura de forma
mais penosa do que estariam dispostos a fazer os membros livres da
comunidade tribal.
É uma generalização correta dizer que todas as comunidades an-
tigas que aplicaram sistemas intensivos de utilização da terra emprega-
84
ram trabalho servil, geralmente de prisioneiros de guerra ou seus des-
cendentes. Esses eram os homens e mulheres que assumiam a carga dos
trabalhos de investimentos e de uma grande parte das tarefas agrícolas
ordinárias. Onde a população é esparsa e a terra fértil é abundante e
livre, uma hierarquia social só pode ser mantida através do controle
direto, pessoal, sobre os membros das classes mais baixas. Nessas co-
munidades, as populações subjugadas e os prisioneiros de guerra são
mantidos em estado de servidão. O trabalho servil é um traço caracte-
rístico das comunidades com estrutura hierárquica situadas em regiões
onde a terra livre adequada ao cultivo com pousio longo é tanta que
torna impossível impedir que os membros das classes baixas cuidem
independentemente da própria subsistência, a menos que sejam man-
tidos em servidão. Quando a população se torna tão densa que a terra
pode ser controlada, será desnecessário manter as classes baixas em
servidão pessoal; é suficiente despojar as classes trabalhadoras do di-
reito ao cultivo independente.
Não é necessário remontar a história antiga da Europa, da Ásia
ou da América para ver a estreita relação entre população esparsa, cul-
tivo com pousio longo e a existência da escravidão. Quando os europeus
chegaram à África, eram numerosos os escravos domésticos e agrícolas
e, em muitas partes do continente, os centros administrativos e as ci-
dades comerciais eram abastecidas com alimentos produzidos em gran-
des explorações agrícolas mantidas com trabalho servil.
Ainda hoje, muito tempo depois da abolição legal da escravidão
nas colônias européias, os "trabalhadores dependentes", que pouco di-
ferem dos escravos, são numerosos em partes da África e em algumas
outras partes do mundo. Muitas mulheres, em tribos polígamas, são
escravas domésticas e escravas agrícolas disfarçadas.
Durante a época da escravidão na África, e provavelmente tam-
bém em outras partes, os escravos eram obtidos por meio de incursões
entre as tribos vizinhas, numericamente mais frágeis, que viviam no
sistema de pousio longo. Uma tribo que por qualquer razão tivesse uma
taxa de crescimento mais rápida que a dos seus vizinhos não tinha de
enfrentar a escolha entre a inanição e a conquista de territórios, como
os seguidores da linha malthusiana de pensamento esperariam. Em vez
disso, os jovens da tribo poderiam partir para a captura de trabalha-
dores adicionais fora do seu próprio território, submetendo-os ao tra-
balho agrícola. Deste modo, aproveitando-se da sua superioridade
numérica para escravizar membros das tribos vizinhas, uma tribo em
rápido crescimento populacional poderia assegurar para si as vanta-
gens de uma aglomeração densa e permanente enquanto evitava a carga

85
adicional de trabalho penoso na agricultura. Assim, um início de de-
senvolvimento econômico poderia ser alcançado pelo método de incre-
mentar a população gramas a importação de trabalho escravo. De fato,
o crescimento populacional é uma condição para o desenvolvimento
econômico nos seus primeiros estágios.3
As incursões para a busca de escravos nos tempos antigos tiveram
como efeito o aumento do contraste nas densidades populacionais e nos
níveis de civilização entre tribos vizinhas e entre povos. Aqueles nume-
ricamente fracos foram, com freqüência, dizimados pelos caçadores de
escravos. Os que escapavam aos reides podiam facilmente encontrar
subsistência graças aos sistemas com pousio longo. Entretanto, estes
grupos jamais foram capazes de quebrar o círculo vicioso "população
esparsa — agricultura de pousio longo — baixos níveis civilizatórios".
Eles continuaram, às vezes durante milênios, servindo como reservató-
rios de trabalho escravo potencial aos seus vizinhos mais prolíficos. Os
numericamente mais fortes tornaram-se mais fortes porque puderam
usar os escravos para produzir seus alimentos e outras necessidades,
consagrando-se assim a arte da guerra.5 Algumas vezes o trabalho pe¬

(3) Caso não existissem escravos disponíveis, a população poderia ser aumentada
por meio da adoção de crianças. "Há um crescimento da filoprogenitura entre a popu-
lação relativamente rica, e os lares têm sido artificialmente aumentados pela compra...
de crianças para aumentar a família e o grupo de parentesco". C. Daryll Forde, Land
and Labour in a Cross River Village", op. cit, p. 50.
(4) A caça aos escravos em benefício do mercado americano provocou um recuo
na densidade populacional nas regiões da África mais severamente afetadas. Foi prova-
velmente por essa razão que as florestas e capoeiras puderam tornar-se mais densas nas
regiões ao redor das rotas comerciais, e este pode ter sido um dos fatores que retardaram
a passagem do sistema com pousio longo para o cultivo com arado puxado por animais,
na África Central. Parece mais natural buscar a causa da lenta penetração do arado na
África na baixa densidade populacional do que colocá-la de lado com a referência usual a
"ignorância do uso do arado na África". A última explicação parece difícil de ser conci-
liada com o fato de que houve muitos contatos entre a Abissínia, a África do Norte e a
Guiné, onde o arado era usado, e regiões onde não era, e nem é, empregado. Ver também
nota 6, página 78, onde se menciona a difusão de cultivos originários da América desde a
África Ocidental até a África Central e Oriental.
(5) O recurso a caça aos escravos como meio de evitar as agruras do trabalho
agrícola é proverbial. Uma canção de Creta antiga exprime com vigor essa idéia: "A
riqueza é para mim uma longa lança, uma espada e um belo escudo. Com eles eu aro os
campos, com eles coleto os grãos e recolho o doce vinho da videira". (Em francês no
original. N. dos T.) Emile Mireaux, La vie quotidienne au temps d'Homère (Paris, 1954),
p. 111. No começo deste século, um membro dos bembas, tribo da Rodésia, expressou a
mesma idéia, jactando-se de que eles "não sabiam arar pois que seu único negócio era a
guerra". Audrey Richards, op. cit., p. 401.

86
noso dos escravos tornou possível a emergência de uma classe ociosa
com um alto grau de civilização urbana.

PADRÕES DIVERGENTES DE AGRICULTURA

O argumento desenvolvido neste capítulo e nos precedentes levou a


conclusão de que é pouco provável que uma população pouco nume-
rosa e estagnada possa ultrapassar o estágio de uma agricultura primi-
tiva e atingir um nível superior de desenvolvimento técnico e cultural,
enquanto que uma população em crescimento enfrentará a necessidade
de melhorar o solo e de promover outros investimentos na agricultura.
Não obstante, é provável que esta última experimente uma diminuição
dos rendimentos do trabalho, pelo menos a curto prazo, devendo acei-
tar longas e penosas horas de trabalho na agricultura a fim de evitar
uma queda dos padrões nutricionais.
A conclusão seria bem melancólica se isso fosse tudo. Mas, se
reconhecemos também os efeitos de longo prazo de um aumento gra-
dual da densidade populacional, um quadro mais favorável emerge. A
adaptação a um trabalho mais penoso e regular aumenta, provavel-
mente, a eficiência tanto do trabalho agrícola como do não agrícola6;
uma crescente densidade populacional abre oportunidades a uma divi-
são do trabalho mais intrincada e — em alguns casos — um alto índice
de urbanização provoca uma melhora da produtividade agrícola, uma
vez que a agricultura se beneficia de instrumentos mais perfeitos, de
melhor administração, melhor educação, etc.
No Capitulo 2, três tipos gerais de desenvolvimento agrícola fo-
ram diferenciados. Nos dois primeiros tipos, o crescimento populacio¬

(6) Existem numerosos exemplos de empregadores em plantações, minas e indús-


trias que preferem trabalhadores de regiões de agricultura mais intensiva em vez da mão-
de-obra mais instável que se origina de regiões de agricultura menos intensiva. Ver, por
exemplo, K. M. Barbour, "Population, Land, and Water in Central Sudan", em Bar-
bour e Protero, op. cit, p. 142. O autor menciona que no Sudão a preferência e pelos
trabalhadores imigrantes, que "são originários de tribos assentadas de cultivadores, de
modo que eles não tem medo de trabalho penoso". Similarmente, em várias partes da
Ásia a mão-de-obra chinesa é preferida à indiana. Prefere-se esta última, por sua vez, à
mão-de-obra malaia ou birmanesa. Existiram diferenças similares de atitudes e eficiência
entre os trabalhadores europeus, relacionadas a sua origem agrícola. Na União Soviética,
os problemas de absenteísmo, indisciplina e ineficiência eram agudos no período em que
a mão-de-obra industrial era recrutada entre jovens camponeses acostumados a grandes
variações sazonais da intensidade de trabalho.

87
nal leva a mudanças no padrão de uso do solo e no tipo do instrumento
agrícola aplicado, mas em um deles a produtividade nas atividades não
agrícolas permanece baixa, com o resultado de que somente os instru-
mentos agrícolas de fabricação primitiva são utilizados na agricultura,
apesar do aumento da população e do padrão cada vez mais intensivo
de uso do solo. No segundo tipo de desenvolvimento, o crescimento po-
pulacional é acompanhado pela elevação da produtividade nas ocupa-
ções urbanas e do melhoramento na fabricação dos instrumentos agrí-
colas, de modo que a produção por homem-hora na agricultura pode
desenvolver-se mais favoravelmente que no primeiro tipo.
O terceiro tipo de desenvolvimento ocorre em territórios onde a
densidade populacional permaneceu muito baixa. Encontra-se em re-
giões de clima muito desfavorável e naquelas comunidades, em todo o
mundo, que costumam ser vítimas de incursões de caça ao escravo. Os
membros dessas comunidades defrontam-se com a alternativa de estag-
nação econômica e cultural ou absorção por uma comunidade mais
progressista, onde ocuparão as posições mais baixas da hierarquia
social. Da mesma maneira, nas comunidades onde a escravidão foi
abolida e os cultivadores entraram em contato com civilizações avança-
das, importando instrumentos de melhor fabricação que os seus, os
membros de minorias étnicas tendem a permanecer em grupos isolados
com um baixo estágio de desenvolvimento, ou a ser recrutados para o
ingrato trabalho doméstico por grupos vizinhos de níveis de civilização
mais elevados.

88
CAPÍTULO 9

OS SISTEMAS DE USO DO SOLO


COMO UM DETERMINANTE
DO SISTEMA DE POSSE
E USO DA TERRA

Os sistemas de posse e uso da terra registrados nas antigas colônias


européias são de uma variedade desconcertante e não é pois surpreen-
dente que os economistas se inclinassem a não levá-los em conta quan-
do discutiam crescimento populacional e desenvolvimento econômico
nos países subdesenvolvidos. Era como se nenhuma generalização útil
pudesse ser feita nesse campo.
Entretanto, não se pode aquiescer como esta tradição de trata-
mento da questão da posse e uso da terra como uma variável externa,
pois as variações observadas nos sistemas de posse e uso da terra — seja
entre países distintos, seja entre regiões dentro de um mesmo país —
podem ser explicadas, em grande parte, como o resultado de dois fa-
tores: de um lado, o sistema de uso do solo em uma determinada região
e, de outro, as diferentes formas pelas quais os europeus adaptaram os
sistemas nativos de posse e uso da terra às exigências da economia colo-
nial e às suas próprias idéias sobre qual seria o melhor sistema de posse
e uso da terra.1 Na verdade, o padrão básico que os europeus encon-
traram quando de sua chegada às varias partes do mundo mostra uma
notável covariância com os padrões de uso do solo.

(1) C M . Meek, Land, Law and Custom in the Colonies (London, 1949). Este é um
amplo estudo sobre os sistemas de posse e uso da terra nativos e das mudanças que resul-
taram da influência européia. Numerosas informações adicionais sobre este assunto po-
dem ser obtidas em Land Tenure Symposium, Amsterdam, 1950 (Leiden, 1951); Ken¬
neth H. Parsons et al. (ed.), "Land Tenure", op. cit.; Daniel Biebuyck (ed.), African
Agrarian Systems (Oxford, 1963).

89
Além disso, o desenvolvimento do sistema de posse e uso da terra
fora da Europa — antes que fosse alterado pelos administradores colo-
niais — parece ser bastante semelhante ao desenvolvimento que teve o
sistema de posse e uso da terra na Europa, e que se tornou conhecido
graças aos estudos que aí foram realizados.2 Mesmo os sistemas pré-
colombianos de posse e uso da terra na América parecem ter traços
fundamentalmente comuns com os do Velho Mundo e com as regiões
subdesenvolvidas que existem ainda hoje no mundo todo. Muitas das
aparentes diferenças entre sistemas de posse e uso da terra revelam-se,
examinadas mais de perto, como mais verbais que reais: elas são pro-
venientes das diferentes maneiras de traduzir conceitos similares para
as diversas línguas européias.3
Sem nenhuma dúvida, a similaridade dos sistemas de posse e uso
da terra explica-se pelo fato de que todos os sistemas nativos são adap-
tados a certos sistemas de uso do solo, e que estes últimos são desen-
volvidos de uma maneira análoga em todas as regiões do mundo, como
já foi explicado nos capítulos anteriores. A passagem gradual para uma
sistema agrícola mais intensivo, sob a pressão do crescimento popula-
cional, foi acompanhada por um desenvolvimento do sistema de posse e
uso da terra fundamentalmente similar, malgrado variações locais em
muitos detalhes. A seguir, uma tentativa será realizada no sentido de
resumir os traços característicos deste processo de adaptação do sis-
tema de posse e uso da terra as mudanças no uso do solo.
Tanto os fisiocratas como os economistas clássicos britânicos ba-
searam suas idéias a respeito dos efeitos do crescimento populacional

(2) Alfred Marshall dirigiu sua atenção para esta afinidade entre o passado euro-
peu e o presente asiático: "A análise moderna pode ser utilizada para estudar as condi-
ções contemporâneas do sistema de posse e uso da terra na Índia e em outros países
orientais... de modo tal a lançar luz sobre as informações obscuras e fragmentárias dis-
poníveis sobre o sistema medieval de posse e uso da terra, que sem dúvida podem ser
examinadas mas não podem ser verificadas quanto a sua veracidade". Marshall, Princi-
ples of Economics, VI, X, 3.
(3) O antigo sistema indiano de posse e uso da terra fornece um exemplo das
complexidades lingüísticas em casos em que o sistema agrícola a ser analisado e a própria
língua são coisas do passado. Os velhos textos empregam um grande número de palavras
diferentes para denotar conceitos tais como campos de cultivo e vários tipos de pousio. A
situação é análoga a da linguagem africana estudada por Pierre de Schilippe (ver nota 3,
pagina 32) mas, enquanto esse autor pode conferir significados com os usuários da lín-
gua, tal método não está, obviamente, ao alcance dos estudiosos indianos que devem,
assim, permanecer incertos quanto ao exato significado da maioria desses termos. Para
certos termos, não se pode mesmo saber se eles se referem a tipos de uso do solo ou a
transações de terra. Ver Sachindra Kumar Maity, The Economic Life of Northern India
in the Gupta Period (Calcutta, 1957), pp. 23-35.

90
sobre a agricultura na suposição de que a propriedade privada da terra
emerge quando a terra agrícola se torna escassa por causa da pressão
de um número crescente de pessoas. Em outras palavras, presumiu-se
que a terra agrícola permaneceria livre, à disposição de todos aqueles
que desejassem ocupá-la e cultivá-la a seu bel-prazer, enquanto a
população em um certo território fosse pequena, mas que uma classe
de proprietários privados surgiria tão logo a terra agrícola de boa quali-
dade se tornasse escassa.4
Mas esta é uma simplificação excessiva. Na verdade, como já se
observou, a escassez de terra é um fenômeno mais complexo que o que
a teoria tradicional desejaria fazer crer. A terra pode ser muito escassa
do ponto de vista de uma tribo de cultivadores com pousio longo, vi-
vendo em um determinado território, enquanto do ponto de vista dos
colonos europeus, estabelecidos sobre este mesmo território, a terra
aparecerá como abundante. Do mesmo modo, o desenvolvimento de
normas e costumes a respeito da posse e uso da terra é um processo
muito mais lento e complexo do que os expoentes da teoria clássica
supuseram. De fato, parece nunca ocorrer uma transição direta de um
estado em que a terra é livre a um estado em que a terra é propriedade
de seu cultivador ou de um senhor absenteísta.

DIREITOS GERAIS E ESPECÍFICOS DE CULTIVO

Virtualmente, todos os sistemas de posse e uso da terra que existiram


antes da emergência da propriedade privada da terra parecem ter uma
característica em comum: certas famílias são reconhecidas como pos-
suidoras de direitos de cultivo sobre uma certa área, enquanto outras
famílias são excluídas desses direitos. A terra "livre" desaparece antes
de se ter atingido o estágio agrícola. As tribos que praticam a caça e a
coleta de alimentos consideram, com efeito, que têm o direito exclusivo
de caçar e coletar alimentos em uma determinada área, e quando pas¬

(4) "Mas a terra começa a povoar-se e a ser mais e mais desbravada. As melhores,
com o tempo, são inteiramente ocupadas... Mas, por fim, cada parcela encontrou um
dono, e aqueles que não puderam adquirir uma propriedade não têm outro recurso senão
trocar o trabalho de suas mãos... O proprietário... pode... pagar outros homens para que
cultivem sua terra... O proprietário, por conseguinte, podia então liberar-se da tarefa de
cultivar, e logo assim procedeu". Turgot, Réflexions sur la formation et la distribution
des richesses, parágrafos 10 e 1 1 . Citado da tradução inglesa que prefacia a edição de
Basle, de 1801, do livro de Adam Smith, The Wealth of Nations.

91
sam a produção de alimentos, os membros dessas tribos consideram-se
os únicos com o direito de cultivo da terra nessa área.
Sob o sistema de cultivo com pousio florestal, todos os membros
de uma tribo, que domina um certo território, têm direito ao cultivo de
parcelas de terra no interior desse território, enquanto que os não mem-
bros podem adquirir esse direito somente após o reconhecimento expli-
cito como "membros adotivos" da tribo. Esse direito geral de partici-
par do cultivo da terra que o grupo controla — ou imagina controlar—
não pode jamais ser perdido por qualquer membro das famílias de cul-
tivadores. Eles podem voluntariamente deixar o território por algum
tempo, mas podem reclamar seus direitos quando retornarem. So-
mente no caso de uma expulsão formal do grupo pode um dos seus
membros perder os seus direitos sobre o cultivo da terra.5
Para se compreender o que ocorre com o sistema tribal de posse e
uso da terra, sob a influência do crescimento da população e o encurta-
mento do pousio, uma distinção deve ser feita entre esse direito geral de
cultivo — como acaba de ser feita acima — e aquele outro, mais espe-
cífico, que uma família pode ter para cultivar uma parcela determi-
nada de terra. Em todos os sistemas de pousio, uma família terá sem-
pre o direito exclusivo a uma clareira que ela limpou e cultivou, até que
a colheita seja realizada. Mas parece que o período durante o qual o
direito exclusivo pode ser reclamado após a colheita depende do sis-
tema de uso do solo sobre o território considerado.
Usualmente, uma família pode conservar o seu direito de cultivo,
sobre uma certa parcela de terra durante todo o período de pousio,
a menos que este seja tão longo que todos os traços de um cultivo prévio
desapareçam. Mas, se após a duração normal do pousio, a família não
volta a cultivar aquela parcela de terra, ela pode perder os seus direitos
sobre ela, embora ainda conserve, é claro, o direito de roçar uma par-
cela de terra no interior do território tribal. Assim, esse direito geral de
cultivo é um elemento inseparável do status de membro da tribo e,
conseqüentemente, em princípio inalienável, enquanto o direito especi-
fico de cultivar uma parcela individual pode ser perdido por desuso,
após um período de tempo cuja extensão depende do sistema de pousio
naquele território particular.

(5) Esta norma tribal pode sobreviver durante muitos séculos após o desapareci-
mento do sistema tribal de posse e uso da terra. Os indianos que eram expulsos de suas
castas perdiam seus direitos sobre a terra até que, no século dezenove, os ingleses decla-
raram essa prática ilegal.

92
Enquanto uma tribo, praticando o sistema com pousio florestal,
dispõe de terras abundantes, não há nenhum interesse particular para
uma família retornar precisamente a mesma parcela que ela cultivou
em outra ocasião. Nestas condições, uma família que necessitasse
transladar-se a uma parcela iria simplesmente procurar áreas adequa-
das ou teria uma outra parcela atribuída pelo chefe da tribo, sem se
preocupar em sabem quem outrora já teria cultivado esta ou aquela
área.
Mas esta situação está sujeita à mudança com o crescimento da
população, quando as boas parcelas começam a escassear. Os cultiva-
dores podem, então, desejar voltar ao cultivo de uma certa parcela de
terra antes que o período normal de pousio haja transcorrido. Sob tais
condições, é provável que uma família comece a sentir-se mais ligada às
parcelas já cultivadas por ela anteriormente, uma vez que se torna difí-
cil encontrar áreas apropriadas que já não tenham sido ocupadas por
outra família. Em outras palavras, os membros da tribo tenderiam a
tornar-se mais conscientes e ciumentos de seus direitos específicos sobre
velhas parcelas e apressar-se-iam a recultivá-las para evitar que esses
direitos fossem considerados perdidos por desuso.
Nesse ponto, quando a vinculação das famílias a certas parcelas
de terra se torna mais permanente, o costume de cessão de uso da terra
muito provavelmente também surge. Se uma família não necessita cul-
tivar um certo sítio por um dado período, ela permitira que outra famí-
lia o cultive sob a condição de que a terra deverá retornar, mediante
solicitação, ao seu antigo cultivador. Este costume de permissão de uso
e, assim, um meio pelo qual uma família pode evitar a perda de seus
direitos sobre uma parcela especial de terra. Deve ser distinguido clara-
mente da venda de terra, pela qual o antigo ocupante perde todos os
seus direitos sobre a parcela vendida.
Assim, a vinculação das famílias a determinadas parcelas de terra
torna-se mais e mais importante com o encurtamento gradual do pe-
ríodo de pousio e com a redução daquela parte do território que não é
empregada na rotação de cultivos. Da mesma maneira, o direito geral
de desbravamento de novas parcelas de terra torna-se menos valioso
porque a terra que família alguma reservou para o pousio e, muito

(6) Na Europa do século XIII, um homem podia perder o seu direito sobre uma
parcela da floresta quando esta se tornasse tão alta "que ficasse a altura das esporas de
um cavaleiro montado ou que um par de bois não pudesse vergá-la com a canga". (Em
alemão no original. N. dos T.) K. Bücher, Die Entstehung der Volkswirtschaft (Tubin-
gen, 1920), Vol. II, p. 37.

93
provavelmente, de qualidade inferior ou de difícil limpeza. A medida
que aumenta a superfície objeto de direitos específicos de cultivo, muito
pouca terra restará a disposição do chefe da tribo para nova distribui-
ção, e uma terra de boa qualidade não poderá ser distribuída a não ser
quando uma família se extingue ou deixa o território. A redistribuição
da terra torna-se assim uma função menos importante e menos fre-
qüentemente exercida pelo chefe, e termina, ao final, por desaparecer
completamente, embora possa continuar por muitos séculos após a
passagem ao sistema de cultivo com pousio curto.7
Enquanto o direito geral de cultivo ainda não perdeu toda a sua
importância, uma forte distinção social existe, nas comunidades rurais,
entre famílias de cultivadores e famílias sem o direito de cultivo, consis-
tindo essas últimas de estranhos, escravos ou livres. Somente os mem-
bros das famílias de cultivadores tem o direito de se beneficiar da redis-
tribuição periódica de terra, enquanto os estranhos, sem direitos de
cultivo, ficam, é claro, excluídos. Portanto, mesmo aqueles estranhos
que não são legalmente escravos, não resta outra escolha senão a de
realizar trabalhos domésticos para o chefe ou para membros ordinários
da tribo dominante.8 Escapavam deste destino somente aqueles estra-
nhos que conseguem subsistir graças ao trabalho desenvolvido como
artesãos ou comerciantes.

AS CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA SENHORIAL


DE POSSE E USO DA T E R R A

Em comunidades rurais que ultrapassaram o estágio do cultivo com


pousio florestal, a hierarquia social não é exaustivamente caracterizada
pela distinção entre famílias com direito de cultivo e famílias sem esse

(7) Na Rússia, as distribuições periódicas de terra continuaram a ser feitas até o


século XX, enquanto na maior parte da Europa Ocidental elas cessaram cerca de mil
anos antes. No folclore da área rural indiana, existem reminiscências suficientes deste
antigo costume para apoiar o movimento de doação de terras de Vinoba Bhave.
(8) Parece que os escravos libertados tornam-se trabalhadores ou parceiros, mas
a distinção entre esses dois grupos não parece ser muito clara nos primeiros estágios de
desenvolvimento, quando ambos são remunerados com uma parte da colheita que reali-
zam para o "cultivador" real, isto é, a pessoa com direitos de cultivo no território da
aldeia. Na Índia, onde se mantiveram vivas muitas dessas antigas normas tribais, um
parceiro ainda é considerado como inelegível ao direito de cultivo sobre a terra em que
realiza a parceria, e fica, desta forma, s e m receber a menor proteção das leis que, entre-
tanto, protegem outros tipos de arrendatários.

94
direito. Acima do grupo de famílias que possuem o direito de cultivo
encontra-se, em geral, uma classe de chefes tribais ou senhores feudais,
que recebem tributes dos cultivadores — em espécie, em trabalho ou
em ambas as formas. Na maioria dos casos, a classe de senhores feudais
parece originar-se de tribos invasoras que se estabelecem como grupo
dirigente, extraindo tributes dos membros das tribos conquistadas. A
História mostra muitos casos em que a tribo conquistadora era de ori-
gem nômade. Existe provavelmente alguma relação entre esta subju¬
gação de tribos de cultivadores por tribos nômades e o processo pelo
qual florestas e cerrados degeneram em pastes, resultando no apareci-
mento de nômades na região. A emergência de uma espécie de nobreza
ou aristocracia parece freqüentemente seguir-se a introdução do cultivo
com pousio curto e tração animal.
Tem-se apenas informações esparsas sobre o processo de emer-
gência do sistema feudal na Europa e em outras regiões de velha civi-
lização. Mas, em certas partes da África, este processo data de período
mais recente e, por conseguinte, menos difícil de se estudar. Durante os
últimos séculos, na África Oriental como na África Ocidental, tribos
migraram do norte para o sul, e contatos de natureza diversa desenvol-
veram-se entre essas tribos nômades e as dos cultivadores dos territó-
rios invadidos, onde se praticava o sistema de pousio arbustivo. Algu-
mas dessas tribos nômades estabeleceram contatos pacíficos com os
cultivadores a quem cediam produtos animais em troca de alimentos
vegetais, enquanto os cultivadores fazem estercar seus campos com os
excrementos dos animais pertencentes aos nômades, mas que pastavam
em suas terras.9 Outros nômades, entretanto, na África Oriental como
na África Ocidental, estabeleceram-se a maneira de um governo feudal
ou de uma nobreza dirigente.10
A maioria dos estudiosos dos sistemas de posse e uso da terra
parece concordar que os chefes tribais devem ser vistos como uma es-
pécie de governo local e que as dádivas convencionais que recebem

(9) Ver Daryll Forde e Scott, op. cit, pp. 197-211 e p. 171 e seguintes. Ver tam-
bém o capítulo sobre "The Masai Cattle Herdes on the East African Plateau", em C.
Daryll Forde, Habitat, Economy and Society (London, 1934). Os nômades na África
hesitam em vender ou alugar seus animais como animais de tração para puxar arado ou
outro equipamento, embora sejam encorajados a proceder assim por governos de alguns
países onde habitam.
(10) O domínio feudal da tribo fulani na África Ocidental e amplamente anali-
sado em Nadel, op. cit. Os sistemas feudais de posse e uso da terra na África Oriental são
discutidos por Meek, op. cit., pp. 134-144, e Jan Vansina, "Les regimes fonciers Ruanda
et Kuba — Une Comparaison" em Biebuyck (ed.), op. cit., pp. 348-60.

95
quando distribuem terras para o cultivo, ou em outras ocasiões, podem
ser mais convenientemente descritas como pagamento por um serviço
público que como renda da terra.11 De acordo com Marc Bloch, pode-
mos também considerar as aristocracias feudais — pelo menos no seu
primeiro período — mais como agendas de governo do que como classe
de proprietários privados.12
Chega-se a uma compreensão mais clara das comunidades sob
o sistema senhorial de posse e uso da terra, se se considera o direito
que os senhores e os suseranos têm sobre a terra como simples direito
de cobrar impostos dos cultivadores.
Uma das características de um governo feudal é a de operar fa-
zendo pouco uso de transações monetárias. Os impostos são coletados e
os diversos serviços públicos são realizados não por funcionários remu-
nerados mas por intermediários locais entre o governo central e o povo.
Normalmente, estes intermediários são de "sangue nobre", o que signi-
fica que pertencem à mesma tribo ou grupo étnico do soberano ou
senhor. Eles coletam impostos pagos em espécie, podem ter o poder de

(11) Deve-se enfatizar veementemente que a prática, generalizada em toda a


África, de pagar um "tributo" aos chefes na forma de uma dádiva anual em produto
agrícola não deve ser interpretada como "renda" ou ato de "vassalagem feudal". As dá-
divas são parte de uma série de obrigações mútuas entre um chefe e o seu povo, das quais
o direito de uso indisputado de um pedaço de terra é algo meramente incidental". Meek,
op. cit, p. 132. Ver também p. 24 e seguintes.
(12) Marc Bloch tem insistido sobre a necessidade de distinguir claramente entre
"senhor" e "proprietário": "Propriedade, proprietários"... são palavras carregadas de
equívocos quando aplicadas a Idade Média! Não se caracterizava a sociedade medieval,
ao contrário, pela coexistência, sobre uma mesma fração do solo, de direitos reais con-
correntes, diferentes em natureza mas igualmente respeitáveis, de tal maneira que ne-
nhum deles tinha aquela plenitude que em nossa linguagem se associa a noção de pro-
priedade? (Em francês no original. N. dos T.) Marc Bloch, op. cit., Vol. II, p. 93. Na
China, a mesma idéia de "coexistência" de direitos sobre a terra exprime-se na atribui-
ção da propriedade da terra ao senhor e da propriedade da superfície, ou direito de uso
da terra ao ocupante ou arrendatário. T. H. Shen, op. cit., p. 98. Na citação que se
segue, S. F. Nadel chama a atenção sobre as complicações que surgem quando se usa o
mesmo termo para designar os direitos de todos os associados que "coexistem" na mesma
terra: "O território da aldeia e administrado, isto e, colocado sob salvaguarda e distri-
buído — na terminologia nupe, 'possuído' — pelo chefe. Lingüisticamente, o caráter
específico deste direito administrativo de disposição do território da aldeia não é definido
com clareza. Os nupes referem-se ao controle do chefe sobre a terra exatamente nos
mesmos termos que usam para falar da utilização direta ou da propriedade da terra por
um chefe de família ou qualquer agricultor individual. Os nupes empregam também o
mesmo o termo quando falam do território que pertence a uma aldeia, isto é, a terra que é
'possuída pelas pessoas da aldeia de uma maneira coletiva". Nadel, op. cit., p. 183. Ver
também Biebuyck (ed.), op. cit., pp. 3 e seguintes.

96
convocar a juventude rural para trabalhos obrigatórios ou para o ser-
viço militar e, como regra geral, exercem os direitos de jurisdição.
Geralmente, a posição de um cultivador com referenda aos seus
direitos sobre a terra não muda com a instalação de um governo feudal
que cobra impostos e impõe serviços civis e militares. As famílias dos
cultivadores continuam a se beneficiar dos seus direitos (gerais e espe-
cíficos) hereditários de cultivo, a redistribuição de terra pelos chefes
das aldeias pode continuar sem a interferência do senhor feudal, e a
terra pode continuar a ser inalienável. As concessões de terra feitas pelo
suserano aos membros da nobreza e a outras pessoas são simplesmente
concessões do direito de cobrar impostos e não interferem com os di-
reitos hereditários de cultivo dos camponeses. Em outras palavras, os
beneficiários dessas concessões não se tornam proprietários da terra,
no sentido moderno dessa palavra.13
Mas os senhores feudais podem muito bem utilizar o trabalho
obrigatório dos cultivadores, ou o trabalho assalariado, para limpar a
terra inculta e criar assim "explorações domésticas" ou "senhoriais".
Estas podem ser consideradas como uma espécie de exploração gover-
namental e são comparáveis às "aldeias do chefe" (que baseadas no
trabalho escravo, forneciam alimentos aos lares dos chefes africanos)
ou a empreendimentos similares nas vizinhanças das cidades-estado da
Antiguidade. Não tem sentido perguntar se esses domínios senhoriais
ou essas "aldeias dos chefes" pertenciam ao senhor a título público ou
privado, pois a distinção mesma entre as esferas pública e privada é
estranha a sociedade feudal, pelo menos nos seus primeiros estágios.
Mas nem toda a terra das "explorações senhoriais" é adquirida
através da abertura de clareiras em terras até então incultas. Nas comu-
nidades sob o domínio senhorial do solo, pode ocorrer uma transfer-
rência gradual de direitos de cultivo dos camponeses ao senhor local.
Com efeito, o senhor poderá sempre arrogar-se o direito de impedir a
redistribuição das terras desocupadas ao reivindicar que ele e o legí-
timo herdeiro das famílias camponesas que se extinguiram ou deixaram

(13) "Na teoria de Nizam ul-Mulk os direitos do muqta sobre a população no seu
igta eram somente de ordem financeira. Ele não tinha direito algum nem sobre a terra
nem sobre os cultivadores, pois que o soberano havia delegado a ele apenas certos direitos
financeiros". Ann K. S. Lambton, Landlord and Peasants in Persia (London, 1953), p.
66. "Os feudos que eles concediam (na Nigéria do Norte) eram, de fato, áreas adminis-
trativas e o direito que tinham os beneficiários do feudo de conservar para si próprios uma
parte do imposto coletado era uma recompensa pelos serviços políticos e militares. Neste
sentido, o sistema assemelhava-se ao do império mongol, nas Índias". Lord Hailey, op.
cit,, p. 788.

97
a aldeia. Assim, terra e acrescida as "explorações senhoriais", para ser
cultivada por trabalhadores ou parceiros.
O senhor pode ainda empregar um outro procedimento que con-
siste em abolir o direito dos aldeões à abertura de clareiras para o cul-
tivo nas florestas. A motivação para este ataque aos direitos consuetu¬
dinários dos aldeões pode ser a de tornar impossível a subsistência dos
camponeses em seus cultivos nas florestas, os quais dificilmente são
controlados e taxados. Coloca-se, assim, a disjuntiva: realizar o cultivo
nas terras das aldeias, pelas quais impostos devem ser pagos ou tra-
balhar para o senhor em troca de salário. Segue-se que essas restrições
ao uso de áreas nas florestas podem ser impostas durante os períodos
em que o trabalho — e não a terra — é escasso. Mas tais medidas, por
meio das quais o senhor usurpa os direitos dos aldeões sobre a terra,
acabam tornando-se mais freqüentes quando a crescente pressão popu-
lacional torna a terra de qualquer tipo (de cultivo, de pastagem ou de
floresta) escassa e a usurpação muito rentável.
A descrição anterior das principais tendências simplifica a situa-
ção que se encontra quando se examinam comunidades rurais parti-
culares. Mostrou-se, no Capítulo 6, que diferentes tipos de uso da terra
podem coexistir durante séculos, em uma e mesma localidade ou al-
deia. Pode resultar, por exemplo, que parte das terras em uma aldeia
esteja sob o domínio de um sistema de uso intensivo da terra e cultivada
por certas famílias que têm sobre ela direitos permanentes de cultivo,
ou que a mesma terra se tenha tornado propriedade privada daquelas
famílias, enquanto as terras sob o domínio de sistemas mais extensivos
permanecem à disposição de qualquer família da aldeia com direitos
gerais de cultivo. A história agrária da Europa apresenta uma tal co-
existência de sistemas de posse e uso da terra, coexistência esta que se
encontra também em países subdesenvolvidos do mundo todo.14

OS DIREITOS DE PASTAGEM E O ENCURTAMENTO


DOS PERÍODOS DE POUSIO

Qualquer que seja o sistema de pousio utilizado — longo ou curto —


a terra alqueivada esta, a qualquer momento, livremente disponível

(14) O sistema otomano de posse e uso da terra parece ser essencialmente a codi-
ficação de um tal sistema misto. A descrição deste sistema de posse e uso da terra e a sua
relação com os vários tipos de uso do solo, nas regiões da antiga África francesa, encon-
tra-se em Land Tenure Symposium, op. cit.

98
como pastagem para os animais domésticos que pertencem às famílias
com direitos de cultivo e, normalmente, não se faz nenhuma tentativa
de distinguir entre animais e áreas ou campos que pertencem a esta ou
aquela família. Mesmo com pousio curto e culturas anuais, com uma
família cultivando a mesma área ano após ano, os campos podem con-
tinuar disponíveis para o livre pastoreio dos animais pertencentes a
coletividade local dos cultivadores, durante o intervalo que separa o
momento da colheita e o da preparação do campo para o próximo cul-
tivo. Entretanto, quando as oportunidades de pastoreio se tornam ra-
ras, é provável que se elaborem normas fixando o número de animais
que uma família de cultivadores esta autorizada a possuir e a quanti-
dade de palha que cada um dos cultivadores poderá remover com a co-
lheita. As técnicas de colheita refletem, algumas vezes, as exigências
dessas regulamentações. Na França, por exemplo, não se permitiu que
a segadeira substituísse a foice enquanto o direito de alimentar os ani-
mais com o restolho continuou existindo.1S
Os direitos de pastagem podem impedir ou retardar o progresso
não só em relação ao emprego de instrumentos na colheita como tam-
bém em relação ao uso da terra. Com efeito, um cultivador que deseje
introduzir um novo método de cultivo com um período de pousio mais
curto pode ser impedido de fazê-lo porque tal ação resultaria em infra-
ção aos direitos de pastagem de outros cultivadores. Os direitos de pas-
tagem podem retardar também a passagem para a alimentação dos
animais com forrageiras cultivadas, pois o agricultor que desejasse in-
troduzir essa inovação teria de arcar com toda a carga da produção de
forrageiras e alimentação dos animais, enquanto os benefícios resul-
tantes da redução da pressão sobre as terras de pastagem comunal
iriam para os outros cultivadores.16
Não é, pois, de se estranhar que o problema dos direitos de pas-
tagem se evidencie quando a população atinge uma certa densidade,
contribuindo para criar tensões entre cultivadores e senhor feudal a
respeito dos direitos de uso de terras incultas ao redor das aldeias. Este
problema adquire, no final do período feudal, uma importância polí¬
tica capital.
Os direitos comunais dos cultivadores ao uso de terras em pousio
para pastoreio de seus animais sobreviverão, freqüentemente, muito

(15) Em Java, constitui regra muito estrita, sancionada por idéias religiosas, que
o arroz deve ser cortado com uma pequena faca imediatamente abaixo das panículas.
(16) Veja nota 2, pagina 39.

99
tempo depois de o direito geral de abrir novas clareiras nas florestas ter
desaparecido. Na Europa Ocidental, o direito de pastagem comunal
nas terras em pousio não desapareceu antes que o sistema de pousio
curto tivesse sido substituído pelas culturas anuais. Em muitas outras
partes do mundo a pastagem comunal nos campos já colhidos conti-
nua, mesmo em áreas cultivadas uma ou duas vezes cada ano.

DO SISTEMA SENHORIAL DE POSSE E USO DA TERRA


A PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA

O desaparecimento gradual do direito geral de abrir novas clareiras e


de realizar livremente o pastoreio nas terras em pousio e nos prados
comunais, a substituição desses direitos pelo direito permanente de
cada família sobre um pedaço particular de terra, são apenas um elo na
cadeia de eventos que pouco a pouco vão alterando a estrutura agrária
de tal maneira que a propriedade da terra se torna uma característica
dominante. Uma outra seqüência de mudanças esta ligada a gradual
penetração, nas aldeias, das transações monetárias, um processo que
evidentemente se relaciona ao grau de urbanização.
Exceção feita às localidades atravessadas por estradas e as econo-
mias abertas do tipo colonial, os pagamentos em dinheiro tendem a
desempenhar um papel marginal nas aldeias até que o estágio do pou-
sio curto seja alcançado. Nas aldeias distantes dos centros urbanos,
os pagamentos em dinheiro podem estar ausentes, mesmo na fase das
culturas anuais ou múltiplas. Nesses casos o governo central continua a
contar com os senhores locais como intermediários para a coleta dos
impostos em espécie e para a organização dos serviços públicos como
trabalho obrigatório.
O processo de abandono do sistema feudal de posse e uso da terra
pode assumir diversas formas. Às vezes a posição dos senhores feudais
em relação aos cultivadores e enfraquecida; eles perdem seu poder so-
bre a maior parte, ou mesmo a totalidade, dos camponeses e terminam
como meros proprietários privados de suas explorações domésticas. Em
outros casos, os senhores feudais, ao contrário, conseguem eliminar
completamente os direitos consuetudinários dos cultivadores e termi-
nam como proprietários privados de todas as terras sobre as quais eles
tinham direitos feudais enquanto que os cultivadores acabam reduzi-
dos à condição de arrendatários à sua disposição.17

(17) Na Pérsia, este processo parece ter ocorrido ainda no século XX: "A tendên-
cia geral dos acontecimentos desde a concessão da Constituição de 1906... tem sido a de

100
A Inglaterra, é claro, fornece um exemplo clássico deste último
tipo de desenvolvimento. A inteireza com que os senhores feudais fo-
ram transformados em proprietários privados e os cultivadores em ar-
rendatários refletia-se no fato de que a Inglaterra contemporânea não
distingue entre um senhor feudal e um moderno proprietário de terra:
ambos recebem o mesmo nome de "landlord". O tradicional conceito
econômico de posse e uso da terra mencionado no começo deste capí-
tulo reflete os argumentos com os quais os senhores feudais franceses e
ingleses defendiam sua causa, invocando o precedente da Lei Ro-
mana.18 Os direitos hereditários de cultivo dos camponeses são ignora-
dos e a terra é considerada como um recurso livre onde não haja "es-
cassez" e como propriedade privada do senhor. Nos demais lugares ele
pode exigir uma renda que é determinada não pelo costume mas pelo
mercado e, se for do seu desejo, ele pode mesmo despejar os campo-
neses.
Este conceito de posse e uso da terra bloqueia o caminho para um
entendimento da dinâmica do sistema de posse e uso da terra, como
determinado primariamente pelas mudanças nos métodos de cultivo.
O uso, em inglês, do mesmo termo "landlord" para duas funções
econômicas bem diferentes pode ajudar a explicar o mal-entendido dos
administradores coloniais britânicos que não possuíam discernimento
algum sobre os sistemas tribal e feudal de posse e uso da terra. Eles
tratavam os chefes das tribos e os senhores feudais como se ambos
fossem proprietários privados sem nenhuma função pública. Mesmo
hoje em dia, pode-se encontrar na literatura econômica referências
sobre senhores, por exemplo, no Oriente Médio, que "possuem cente-
nas de aldeias". A verdade é outra: eles possuem "direitos senhoriais"
sobre essas aldeias, são "senhores" mas não "proprietários". Nos casos
em que é impossível fazer vista grossa ao fato de que os senhores feu-
dais tem certas funções públicas e não são proprietários no sentido
moderno da palavra, o termo apropriado, "landlord", é freqüente-
mente substituído por outros enganadores, tais como: "chefes de guer-
ra" ("warlords"), "generais", ou "coletores de impostos" ("revenue

alterar a posição do grande proprietário de terra que passa de pequeno príncipe terri-
torial a um proprietário ordinário. Esta mudança não tem sido... brusca: começou nos
albores do período constitucional e culminou sob o reinado de Riza Shah". Lambton, op.
cit, p. 260. Ver também, ibid., pp. 330-1.
(18) Marc Bloch, op. cit., Vol. I, pp. 189-90.
(19) No sentido do Antigo Regime Francês. (N. dos T.)

101
CAPÍTULO 10

INVESTIMENTO
E POSSE E USO DA TERRA
NAS COMUNIDADES TRIBAIS

Em todas as comunidades, exceto as mais primitivas, uma alta taxa de


crescimento populacional necessita uma taxa elevada de investimento.
Sugere-se freqüentemente, na literatura sobre problemas econômicos de
países pré-industriais, que a renda per capita e tão baixa que se torna
impossível sustentar a poupança em níveis compatíveis com as taxas de
investimento necessárias para manter a renda per capita crescente, ou
mesmo estável, frente a altas taxas de crescimento populacional.
O problema geral do financiamento do investimento nos países
subdesenvolvidos não e uma preocupação deste estudo. O interesse está
centrado mais particularmente nos problemas de investimento e pou-
pança na agricultura durante os períodos de crescimento populacional.
A primeira coisa importante que se nota a respeito do investimento
agrícola e que uma grande parte dele pode ser realizada pelos próprios
cultivadores. Além disso, é comum que os cultivadores tenham perío-
dos de lazer mais ou menos longos durante o ano, quando o trabalho
agrícola ordinário e mínimo, de modo que se pode dispor de capaci-
dade de trabalho para aplicar em investimento adicional. Em outros
termos, não se deseja saber se os cultivadores são capazes e estão dis-
postos a restringir o seu consumo para poder investir. A questão e saber
se o crescimento de sua família proporciona estímulo suficiente para
justificar o trabalho adicional e se o sistema de posse e uso da terra é tal
que permita o acesso a novas terras de cultivo e garanta segurança
suficiente para que os melhoramentos fundiários sejam considerados
um investimento que valha a pena ser feito.
Viu-se, nos capítulos anteriores, que a natureza do investimento
necessário, a proporção de lazer na estação morta e o sistema de posse e

103
uso da terra mudam consideravelmente quando um sistema de uso da
terra é substituído por outro. É, pois, fútil buscar uma explicação uni-
versalmente válida de como um aumento na taxa de crescimento popu-
lacional poderá afetar o investimento e a poupança nas comunidades
rurais. A análise deverá ser conduzida separadamente para cada sis-
tema de posse e uso da terra e de uso do solo. Por amor à brevidade,
somente três estágios típicos serão discutidos:
a) o primeiro é o de uma comunidade na qual os cultivadores
praticam o sistema de pousio longo e são obrigados — para poder res-
ponder ao crescimento da população — a abrir novas clareiras ou reali-
zar melhoramentos nas terras já trabalhadas para passar a sistemas
mais intensivos de uso da terra. A suposição relevante a respeito da
posse e uso da terra, neste tipo de comunidade, e que o direito geral de
cultivo ainda vigora e que o direito específico de cultivar uma área
particular ainda não resultou em uma situação onde todas as famílias
ocupam permanentemente lotes individuais.
b) o tipo seguinte é o de uma comunidade camponesa estabele-
cida em que o crescimento demográfico obriga a criar áreas aráveis
adicionais para a prática de um sistema de pousio curto ou a investir
em melhoramentos de outro gênero com o fim de tornar mais freqüente
o cultivo nas terras já existentes. Neste caso a suposição relevante a ser
feita a respeito do sistema de posse e uso da terra é que a família culti¬
vadora ocupa de modo permanente uma certa área de terra arável, a
título de um direito hereditário de cultivo sujeito à autoridade feudal e
a taxação.
c) No terceiro tipo, o sistema moderno de posse e uso da terra
predomina, os cultivadores, em sua maioria, possuem a terra que cul-
tivam e pagam em dinheiro o trabalho agrícola a ser realizado e os bens
de consumo não agrícola, enquanto continuam fazendo pouco ou ne-
nhum uso de insumos industriais nas atividades agrícolas.
O presente capítulo e consagrado a discussão dos problemas de
investimento no primeiro dos três tipos de comunidade. Os Capítulos
11 e 12 tratam dos outros dois. Alguns problemas que surgem do em-
prego de insumos industriais na agricultura serão brevemente tratados
no Capítulo 13.

A ORGANIZAÇÃO DO INVESTIMENTO NO SISTEMA TRIBAL


DE POSSE E USO DA TERRA

Nas comunidades muito primitivas que utilizam o sistema de pousio


longo, onde uma determinada área não é cultivada senão por uma ou
104
duas estações e onde as cabanas são freqüentemente removidas e re-
construídas, não se pode afirmar que exista uma distinção entre ativi-
dade de investimento e trabalho agrícola ordinário. Quando o capital e
de curta duração, o montante do investimento por habitante deve ser
virtualmente o mesmo qualquer que seja a taxa de crescimento da
população. No sistema de organização tribal a maior parte da abertura
de clareiras e realizada por homens jovens da tribo trabalhando em
comum. É, pois, do interesse da tribo que um grande número de crian-
ças do sexo masculino devam tornar-se adultas para que possam reali-
zar este tipo de tarefa. Nestas comunidades, um rápido crescimento da
população não acarreta dificuldade a abertura de clareiras mas pode
criar problemas de esgotamento e erosão da terra, como já foi mencio-
nado.
Se a população, nessas comunidades sob o sistema de pousio
longo, torna-se tão densa que os períodos de cultivo devam ser prolon-
gados, o desmatamento superficial de uma área relativamente grande e
substituído por um trabalho mais cuidadoso da limpeza de uma fração
da área a cada ano. O montante total de trabalho dedicado anualmente
ao desmatamento, por uma população de um certo tamanho, e apro-
ximadamente o mesmo nos dois casos mas como o período de investi-
mento torna-se mais longo, o montante de trabalho despendido anual-
mente por habitante deve variar significativamente com mudanças na
taxa de crescimento da população. É pouco provável, entretanto, que o
trabalho disponível à realização das tarefas anuais nas clareiras seja
um fator limitante, mesmo com uma rápida aceleração da taxa de cres-
cimento da população, já que a limpeza das áreas é feita com auxílio do
fogo. Muitas tribos têm uma grande parte dos seus homens jovens au-
sentes durante anos, em trabalho obrigatório ou assalariado nas minas,
plantações e cidades, mas o desmatamento continua, no entanto, sendo
conduzido por aqueles que permanecem nas aldeias. Se os homens jo-
vens permanecem e o sistema de cooperação tribal continua a funcio-
nar, há pouca dúvida de que as comunidades que praticam o sistema
com pousio longo possam cobrir os investimentos necessários, decor-
rentes de um aumento das taxas de crescimento populacional.
Mencionou-se que no passado muitas tribos prolíficas preferiam
que os seus homens jovens se consagrassem as operações de guerra e
que os cativos dessas guerras, bem como os seus descendentes, realizas-
sem o trabalho pesado. Uma grande parte da inversão de trabalho, nas
tribos em rápido crescimento populacional, foi provavelmente reali-
zada pelo trabalho escravo. Não somente a abertura de clareiras pode
ter sido realizada desse modo mas também os melhoramentos necessa¬

105
rios à passagem do pousio longo para o cultivo com arado ou para o
cultivo intensivo em terraços irrigados.
Quando as regiões com pousio longo caíram sob a influência eu-
ropéia, as condições para as atividades de investimento freqüentemente
se alteraram, em parte porque os escravos foram exportados ou a escra-
vidão foi abolida, enquanto trabalhos obrigatórios e o trabalho assala-
riado não agrícola foram introduzidos, em parte porque os europeus
introduziram mudanças no sistema de posse e uso da terra. Em alguns
casos, os europeus confiscaram terras tribais para o seu próprio uso.
Em outros casos o advento dos europeus teve o efeito de barrar o livre
acesso às terras tribais por parte dos seus membros porque a alegação
de um chefe tribal, ou de qualquer outra pessoa, de ser o dono da terra
podia obter o apoio dos estrangeiros. Muitos administradores coloniais
começaram com a idéia preconcebida de que era do interesse geral a
introdução da propriedade privada tão rapidamente quanto possível e,
freqüentemente, interesses de ordem pessoal ou razões de conveniência
fizeram com que reconhecessem tanto os europeus como os chefes tri-
bais como proprietários com plenos direitos sobre grandes extensões de
terras tribais. Os membros das tribos que não desejassem transformar-
se em assalariados ou arrendatários dos novos proprietários deviam
migrar para as cidades, minas, grandes plantações ou para regiões me-
nos densamente povoadas.
Quando os chefes tribais conseguem a sua confirmação como
proprietários privados das terras tribais, pode seguir-se uma ruptura
em toda a organização tribal de investimento porque os homens jovens
podem se recusar a realizar as tarefas de desmatamento a título de ser-
viço gratuito para a comunidade tribal. Em outros casos, o primeiro
passo em direção a ruptura da solidariedade tribal e dado pelos pró-
prios jovens. Com efeito, ao trabalharem para os europeus, ou por meio
de outros mecanismos, os homens jovens da tribo caem sob a influência
de atitudes individualistas que se manifestam em relação ao trabalho e
a sua remuneração e, como conseqüência, podem recusar o trabalho
não pago a ser feito nas clareiras, em benefício da tribo como um todo,
insistindo na posse privada de lotes nas áreas tribais em vez de se sujei-
tarem à autoridade do chefe.1 Nas regiões onde os jovens reagem desta

(1) Os efeitos da influência européia sobre a organização tribal na África são


discutidos na obra de Georges Balandier, Sociologie actuelle de l'Afrique Noire (Paris,
1955). Ver especialmente p p . 209-18, 258-70 e 364-6; Lord Hailey, op. cit., p p . 775-815;
Meek, op. cit., passim; Land Tenure Symposium, op. cit., ver especialmente p. 98 e
Biebuyck(ed.), op. cit., passim.

106
maneira, o chefe tribal torna-se o defensor do sistema tradicional de
posse e uso da terra contra os elementos "modernizantes" da popula-
ção nativa. Os europeus serão vistos apoiando um lado ou outro, de-
pendendo de seus próprios interesses ou da atitude geral da adminis-
tração colonial responsável pelo governo local.

A LUTA PELOS DIREITOS DE PROPRIEDADE

As atitudes individualistas são mais pronunciadas naquelas regiões tri-


bais da Ásia e da África onde os missionários, as companhias minera¬
doras ou as grandes plantações criaram oportunidades de contatos com
os europeus e introduziram uma educação do tipo ocidental. Tais re-
giões são igualmente aquelas onde o progresso da medicina e da saúde
contribuíram para reduzir a mortalidade, incrementando a taxa natu-
ral de crescimento populacional. Além do mais, estas regiões, onde um
certo grau de urbanização foi atingido, atraem imigrantes de outras
regiões tribais de mais baixa densidade populacional. Assim, as regiões
tribais onde a população esta crescendo mais rapidamente são aquelas
em que os contatos com os europeus durante largos períodos de tempo
criaram vários tipos "mistos de posse e uso da terra" ou, pelo menos,
possibilitaram o conhecimento da existência de sistemas de posse e uso
da terra do tipo europeu.
Um crescimento sustentado e rápido da população acaba criando
a necessidade de introduzir melhoramentos fundiários como uma pre-
condição da transição para sistemas com períodos de pousio mais cur-
tos ou mesmo sem nenhum período de pousio. Nas regiões onde a in-
fluência européia tem sido forte, nenhum dos antigos modos comunais
de organização dos investimentos e possível hoje em dia. Aqueles que,
sob a influência européia, desejam romper com o padrão tradicional,
procurarão introduzir a propriedade privada das terras com a finali-
dade de criar a necessária segurança para o investimento individual.
Esta decisão pode criar problemas com os senhores feudais já existentes
ou com as tribos nômades que desejam preservar as áreas de pastagens
como propriedade privada ou tribal. Mas estes não são os únicos pro-
blemas, nem mesmo os mais difíceis. As maiores dificuldades surgem
dos conflitos entre os próprios cultivadores, inevitáveis tão logo a pro-
priedade privada da terra faz a sua aparição nas comunidades que
ainda praticam os sistemas com pousio longo.
Estes conflitos entre os cultivadores são prováveis quando o cres-
cimento natural da população ou a concentração perto dos centros ur-
banos foram tão rápidos que o problema da propriedade da terra se
107
apresenta como tal, enquanto o direito geral de abrir clareiras nas par-
celas comunais permanece ainda uma realidade viva e antes que as
famílias dos cultivadores restabeleçam uma vinculação permanente a
uma parcela particular de terra. Nos casos em que a redução gradual
do período de pousio leva uma família a cultivar a mesma parcela de
terra durante muitas gerações, a distribuição da terra entre as famílias
de cultivadores e pouco problemática. Somente a eliminação dos inter¬
mediários feudais pode estar em questão. Mas, nos casos em que as
famílias dos cultivadores ainda estão deslocando os seus cultivos de
uma para outra parcela de terra, ou quando o deslocamento se fez até
recentemente, pode ser impossível, mesmo para um técnico não envol-
vido, deslindar os direitos de propriedade sobre uma parcela determi-
nada.
A dificuldade do problema deveria ser evidente pelo que foi dito
no capítulo precedente a propósito da diferença entre o direito geral de
abrir clareiras, o qual é ilimitado no tempo, e o direito especial a uma
certa parcela de terra, limitado no tempo, mas cuja duração pode ser
prolongada por uma concessão condicional. A noção dessa concessão,
destinada somente a prolongar um direito especial, precário, pode sus-
citar dificuldades quanto a distinção entre o arrendamento moderno,
de um lado, e a venda de terra, de outro.2 Nas comunidades onde todos
esses tipos coexistem, e onde alguns ou mesmo todos os sócios nas tran-
sações com terras são analfabetos e tem idéias muito diferentes sobre o
tipo de contrato que estão realizando, chega-se inevitavelmente a uma
situação legal confusa, difícil de ser manejada por um árbitro honesto e
fácil de ser mal usada pelas partes mais hábeis envolvidos nas transa-
ções.
Nas comunidades deste gênero, cada novo passo em direção a
propriedade privada é de natureza a enfraquecer a segurança da posse
e uso da terra mais do que reforçá-la, e o resultado, óbvio, é um grande
número de litígios. Litígios acompanharam as tentativas de introdução

(2) "O arrendamento da terra é desaprovado, embora esta prática seja conside-
rada menos objetável ao direito existente no caso da renda assumir a forma de uma parte
da produção, o que faz com que essa transação caia dentro do que é considerado um
cultivo em sociedade". Lord Hailey, op. cit., p. 803. "Os proprietários nativos (em Quê-
nia, E. B.) são, em geral, avessos ao recebimento de uma renda regular, uma vez que este
procedimento pode ser interpretado como concessão dos seus interesses sobre a terra".
Meek, op. cit., p. 98. Nadel trata do mesmo problema (op. cit., pp. 192-5). Ver também
A. J. Kobben, "Land as an Object of Gain in a Non-Literate Society, Land-Tenure
among the Bete and Dida (Ivory Cost, West Africa)", in Biebuyck (ed.), op. cit., p.
257-9.

108
da propriedade privada da terra na Roma antiga, o mesmo aconte-
cendo durante a colonização européia na Ásia, na América Latina e na
África.3 Também depois que as antigas colônias se tornaram indepen-
dentes, hábeis indivíduos ou grupos fizeram tentativas para se transfor-
marem em proprietários legais das terras sobre as quais outras pessoas
tinham direitos consuetudinários de cultivo. Os últimos perdiam a
segurança da posse e uso da terra, enquanto os primeiros podiam não
obter segurança real, uma vez que novos litígios podiam terminar rever-
tendo as decisões anteriores.4
Em alguns casos, as partes em conflito são chefes tribais contra
os seus próprios membros da tribo, ou os membros empreendedores de
uma tribo contra seus próprios companheiros, cujos interesses o chefe
da tribo defende com lealdade. Em outros casos, os adversários per-
tencem a tribos diferentes, ou o conflito se estabelece entre os membros
de uma tribo e os elementos mais avançados "não tribais", da popu-
lação. Nestes casos a questão pode degenerar em uma luta intestina
entre grupos étnicos distintos.
Os governos coloniais tiveram, muitas vezes, interesse em prote-
ger tribos contra a maioria nacional, ou proteger as tribos mais fracas
contra as mais fortes, como parte do princípio de "dividir para reinar".
Após a independência, os grupos minoritários perderam esta proteção
e, às vezes, não lhes restou senão a escolha entre ver seus direitos sobre
a terra corroídos pela crescente população rural pertencente a grupos
majoritários ou empreender uma ação ilegal para protegê-los. Tais
questões sobre as mudanças no uso da terra por causa do crescimento
numérico dos grupos majoritários e minoritários estão por trás das
muitas lutas intestinas nas antigas colônias e contribuíram para em-
prestar paixão a algumas das guerras civis no período após-guerra. O
problema surgiu com destaque primordialmente na Ásia e na África,
mas é latente em partes da América Latina.5

(3) J. S. Furnivall, op. cit., pp. 134-7 (litígios em Burma); E. H. Jacoby, Agrarian
Unrest in South-East Asia (1949), p. 180 (litígios nas Filipinas); Francisco Ponce de
Leon, "The Poblem of Land Ownership in Peru" em Kenneth H. Parsons, op. cit., p. 271
(litígios no Peru); T. Olawale Elias, Nigerian Land, Law and Custom (London, 1953),
especialmente pp. 257-8 e 301 (litígios na Nigéria); Georges Balandier, op. cit., p. 365
(litígios no Congo); Meek, op. cit., pp. 169 ss. (litígios em Gana); Lambton, op. cit., p.
289 (registro de terras seguido de litígios nas áreas tribais da Pérsia).
(4) C. K. Meek menciona o fato de que as pessoas adiam suas reclamações legais
sobre a terra até o momento em que o posseiro haja realizado amplos melhoramentos
fundiários. Meek, op. cit., p. 25.
(5) "Os conflitos originados de reclamações das comunidades indígenas do Peru
sobre direitos de propriedade de terras cultivadas e pastagens constituem uma das mais

109
O crescimento rápido da população nas regiões sob o domínio do
sistema de cultivo com pousio longo pode causar lutas pela terra e, às
vezes, seria erosão do solo, mas os efeitos positivos do rápido cresci-
mento populacional em tais regiões não devem ser passados por alto.
O mais sério impedimento ao desenvolvimento econômico em regiões
esparsamente povoadas e a sobrecarga dos investimentos públicos, os
quais uma população esparsa e pobre e incapaz de sustentar sem ajuda
externa. É verdade que muitos tipos de investimentos públicos são de-
terminados pelo tamanho da área mais do que pelo número de habi-
tantes. Um aumento da população reduz o custo per capita de tais
investimentos e serviços na área rural e esta vantagem é, provavel-
mente, tão ampla que pode mais do que compensar a sobrecarga, rela-
tivamente pequena, de algum investimento agrícola adicional. Por essa
razão, mesmo um rápido e prolongado aumento populacional nas re-
giões tribais poderá ser uma benção em vez de uma maldição, caso os
problemas politícos ligados a posse e uso da terra, bem como os proble-
mas técnicos ligados a prevenção da erosão do solo, sejam resolvidos.6

vivas manifestações do tão decantado problema indígena, cujas causas derivam de pro-
blemas demográficos, econômicos e sociais mais do que de diferenças raciais". Alberto
Arca-Parro, "Land Tenure Problems Rooted in the Ethnic History of Latin America",
em Kenneth H. Parson, op. cit, p. 282.
(6) A Missão Real para o Este Africano (The East Africa Royal Comission) para
os anos de 1953-5, concluiu o seu relatório afirmando: "à medida que as mudanças
econômicas e sociais necessárias se produzem, um aumento populacional poderá real-
mente contribuir à elevação do padrão de vida geral". Lord Hailey, op. cit., p. 1355.

110
CAPÍTULO 11

INVESTIMENTOS RURAIS
NO SISTEMA SENHORIAL
DE POSSE E USO DA TERRA

Como foi explicado nos capítulos anteriores, as comunidades onde as


terras se acham sob domínio senhorial possuem sistemas de cultivo
marcados por um padrão de emprego agrícola altamente sazonal. A
estação entre os picos de atividade presta-se, exceto por períodos onde
o solo se congela, ao desenvolvimento de atividades de investimento,
como a abertura de novos campos, e a execução de trabalhos leves de
irrigação, investimentos esses que podem ser realizados pelos cultiva-
dores na vizinhança de suas aldeias, com os mesmos instrumentos usa-
dos no trabalho corrente. Assim, a precondição indispensável para este
tipo de investimento é a de que o crescimento da população rural for-
neça braços em quantidade suficiente para cultivar mais terra ou para
colher safras maiores em uma área determinada.
Poder-se-ia objetar, talvez, que tais investimentos podem ser im-
pedidos pelos senhores da terra. Parece, entretanto, pouco provável
que a necessária expansão da produção de alimentos viesse a ser frus-
trada por uma política senhorial restritiva em relação aos cultivos. É
claro que, uma vez que os senhores aboliram o direito geral de abrir
clareiras nas terras incultas, os cultivadores devem solicitar permissão
para cultivar parcelas adicionais de terra. Mas, durante os períodos de
rápido crescimento populacional, os senhores feudais devem ter todo o
interesse em ver os jovens camponeses fixados à terra. É verdade que
virtualmente todos os impostos e serviços devidos ao senhor feudal cres-
cem, grosso modo, em proporção ao número de famílias camponesas
sob sua jurisdição. Quanta mais numerosos forem os camponeses es-
tabelecidos nas aldeias sob o seu domínio e quanta maior o número

111
de aldeias que ele puder criar, maior será a sua renda e a do seu suse-
rano.
Para aumentar o número de famílias camponesas, fonte de suas
rendas, os senhores e os seus suseranos, em todas as regiões do mundo,
organizaram as aberturas de clareiras nas florestas, a drenagem de
pântanos e a construção de aldeias sempre que o crescimento da popu-
lação tornou possível a criação de novas unidades agrícolas. Os reis
europeus, quando em dificuldades financeiras e necessitados de fontes
adicionais de renda, mostravam-se particularmente ansiosos na fixação
dos filhos dos camponeses em seus domínios. Freqüentemente, muitos
dos investimentos eram realizados por meio do trabalho obrigatório
levado a cabo pelos próprios jovens. Quando terminavam os investi-
mentos, eles eram instalados nas terras que eles mesmos haviam lim-
pado e melhorado.
No entanto, nem os senhores feudais nem tampouco os reis po-
dem pretender instalar toda a juventude rural. Além da renda, eles
precisam de criados, guarda-costas e soldados e estas exigências deter-
minam um limite superior à atividade de investimentos agrícolas que
eles estão dispostos a organizar. Quanto ao limite inferior, este e esta-
belecido pela produtividade do trabalho agrícola. Se o senhor aumen-
tar muito prodigamente o número de seus criados e o rei exige um
número muito grande de soldados, pode acontecer que os camponeses
que permanecerem dedicados às tarefas agrícolas sejam muito poucos
para alimentar um número excessivo de pessoas fora da agricultura. Os
estoques alimentares seriam reduzidos e quando um fracasso nas co-
lheitas ocorresse o resultado final seria a fome. As quebras nas colhei-
tas, como já foi mencionado, são freqüentes no sistema com pousio
curto, que repousa inteiramente sobre a monocultura de algum cereal e
depende do regime das chuvas.
É crença comum que as crises de fome nas comunidades feudais
originam-se da superpopulação sobre a terra, e a explicação é que as
regras do sistema feudal de posse e uso da terra constituem um deses¬
tímulo a intensificação da agricultura. Contrariamente a essa opinião,
creio ser mais provável que a fome ocorra nessas comunidades como
resultado da escassez da população rural em relação a população total
e em relação a produtividade agrícola. Os senhores feudais e os gover-
nantes tendem a induzir o despovoamento das aldeias, na sua busca
por mais soldados, criados e suntuosidades, que os leva a taxar pesada-
mente os camponeses. Produz-se, então, muito pouco alimento e gran-
de parte dele é extraída das aldeias, as quais são deixadas sem ne-
nhuma provisão para enfrentar os anos de má colheita.

112
A idéia de que as epidemias de fome são provas de uma superpo-
pulação rural e, em grande medida, uma inferência derivada do fenô¬
meno comumente observado do subemprego rural. Como já se expli-
cou, entretanto, este subemprego nas aldeias sob o sistema feudal de
posse e uso da terra e, antes de tudo, sazonal e parece absolutamente
improvável que os senhores feudais permitissem que um número consi-
derável de pessoas fisicamente capazes permanecesse subempregado
nas aldeias se este não fosse necessário no pico da estação.1

A AGRICULTURA INTENSIVA SOB O DOMÍNIO DOS SENHORES FEUDAIS

Nas regiões onde o clima é menos úmido que o da Europa Ocidental,


as organizações feudais podem tirar uma grande parte de suas rendas
da taxação sobre a água necessária a irrigação. Pode-se perguntar como
uma tal taxação — que consiste, geralmente, em uma parte de todos os
produtos colhidos nas terras irrigadas — influência o uso do solo. É
sabido que nos sistemas modernos de agricultura as práticas de par-
ceria são de natureza a desencorajar a intensificação da produção agrí-
cola. Seria, entretanto, injustificado inferir que a parceria agrícola com
pesadas contribuições para pagar a irrigação constitua um obstáculo
análogo nas condições do sistema feudal, onde o camponês não é livre
para decidir-se sobre a utilização, ou não, da irrigação. Se o senhor
realiza a construção de canais para suprir de água o campo, o campo-
nês é obrigado a entregar uma parte elevada de sua produção e se vê
obrigado a usar a água para poder saldar a dívida. A questão crucial,
por conseguinte, diz respeito mais aos incentivos que levam o senhor
feudal a organizar investimentos em obras de irrigação que aos incen-
tivos que tem os camponeses para utilizá-las.
A taxa que o senhor pode cobrar do camponês pelo uso da água
não é o único benefício que ele aufere ao prover meios de irrigação. A
terra irrigada produz maiores e mais freqüentes colheitas que as terras
não irrigadas. Em conseqüência, o montante dos impostos ordinários,
em geral diretamente proporcional a colheita, eleva-se como resultado
dos trabalhos de irrigação promovidos pelo senhor. Mediante o forne-
cimento de água, o senhor pode, em geral, obter uma parte maior de
uma colheita maior uma ou duas por ano, no lugar de uma parte menor

(1) "A preocupação principal é instalar todo mundo no trabalho, não tolerar
nenhum parasita. O senhor não tem jamais servidores em excesso". A. Sauvy, op. cit,
Vol. I (Paris, 1952), p. 138. (Em francês no original. N. dos T.).

113
de uma colheita menor de sequeiro a cada dois ou três anos. Existe,
portanto, pouca dúvida de que o senhor mobilizara os camponeses para
a construção das instalações para irrigação tão logo o crescimento da
população nas aldeias permita a produção e a manipulação de maiores
e mais freqüentes colheitas que aquelas até então obtidas.2
Se a parte da colheita que o senhor recebe e aumentada por causa
do fornecimento de água, o camponês não se torna necessariamente
mais pobre. É muito mais provável que sua renda líquida cresça porque
ele obterá uma parte menor de colheitas muito maiores. Entretanto, ele
terá de trabalhar muito mais horas por ano nas culturas irrigadas do
que fazia nas culturas de sequeiro, como se discutiu no Capítulo 5, e irá
ressentir-se da redução provocada no seu costumeiro lazer sazonal. Re-
gimes feudais empreendedores são, com freqüência, acusados de prati-
car uma política opressiva em relação aos camponeses, porque, em pe-
ríodos de crescimento da população, estes são obrigados a realizar
melhoramentos fundiários e trabalhar pesado para poder pagar ao
senhor uma parte elevada da produção.3
De fato, e uma generalização válida afirmar que nas economias
feudais os períodos de maior prosperidade são aqueles em que as popu-
lações estão em rápido crescimento e, deste modo, a limpeza, a irri-
gação e a construção de terraços nas encostas estão em pleno avanço.
Nos períodos de rápido crescimento da população, o desejo de aumen-
tar o efetivo militar e os gastos suntuários pode, mais facilmente que
nos períodos de população estagnada, ser satisfeito sem provocar o
despovoamento das aldeias nem o declínio da agricultura. Em outras
palavras, o crescimento populacional parece ser, com freqüência, a
causa da prosperidade, em agudo contraste com a causação prosperi-
dade — crescimento populacional — pobreza, sugerida por Malthus.

(2) Em um antigo texto indiano, o Kamandaka, a construção de barragens nos


rios e o povoamento de áreas inabitadas eram mencionadas como duas das oito fontes de
renda. Ver Maity, op. cit., p. 55.
(3) O reino mongol, na Índia, parece fornecer um exemplo deste fato. Na litera-
tura indiana moderna, a opressão deste regime é com freqüência ilustrada pela elevação
da renda em produto de um sexto, sob os antigos reinos hindus para um terço ou a
metade sob o domínio dos mongóis. Entretanto, fontes datando do primeiro milênio
D.C. revelam valores que vão de um sexto para terras improdutivas e rochosas, até a
metade, para terras irrigadas pelos rios. (Maity, op. cit., p. 56). Quando a irrigação com
água procedente dos rios se generalizou sob o domínio dos mongóis, rendas mais elevadas
ter-se-iam tornado mais freqüentes, mesmo onde as taxas costumeiras para terras de
uma dada qualidade permaneceram inalteradas.

114
A NEGLIGÊNCIA DO INVESTIMENTO SOB O DOMÍNIO COLONIAL

Como já se disse, o sistema senhorial de posse e uso da terra pode


ser considerado como um tipo de organização governamental que se
sobrepõe aos restos do sistema tribal de posse e uso da terra. Três prin-
cipais casos referentes as condições para o investimento agrícola podem
ser distinguidos sob esse tipo de posse e uso da terra:
a) O soberano ou o governo central se encontra em uma posição
de força e pode efetivamente controlar o cumprimento dos deveres pú-
blicos por parte dos senhores locais. Se necessário, o governo central
destinará parte de sua própria renda aos investimentos agrícolas e ser-
viços rurais complementando aquela parte que e fornecida pelos se-
nhores locais.
b) Um soberano forte ou um governo central assegura-se de que
os senhores locais não só arrecadem como impostos mas também trans-
firam a maior parte da arrecadação a autoridade central, a qual utiliza
esta renda principalmente para cobrir despesas militares ou gastos sun¬
tuários. Esta política da autoridade central não é incompatível com o
desenvolvimento da economia urbana, mas é, obviamente, inimiga do
investimento agrícola e tende, como resultado, a provocar o despovoa¬
mento rural.
c) O soberano ou o governo central é fraco e não tem nenhum
controle efetivo sobre os senhores. A eles se permite negligenciar seus
deveres públicos, sem que sejam depostos de suas funções pela autori-
dade central.
A maioria das administrações coloniais européias pertenciam a
esta terceira categoria. Isso poderia, às vezes, ser explicado pela longa
distância existente entre a metrópole e a colônia. Este foi o caso da
Espanha, cujo governo foi incapaz de controlar a classe dos senhores
feudais espanhóis na América Latina. Em outros casos, os administra-
dores coloniais se abstiveram deliberadamente de controlar os senhores
feudais não europeus nas colônias porque desejavam, por razões polí-
ticas, manter boas relações com a classe dirigente da colônia. A admi-
nistração francesa na África do Norte e a administração inglesa em
partes da Índia são exemplos.4 Tal política foi possível porque a maior

(4) Uganda fornece um outro exemplo. Cf os comentários que seguem sobre os


resultados da concessão dos direitos de propriedade aos senhores feudais no começo do
século XX: "A propriedade de terra tem estado separada do exercício daquelas funções
políticas das quais o controle sobre a terra dependia previamente, de modo que a relação
entre o senhor e o arrendatário torna-se agora puramente comercial". Lord Hailey, op.
cit, p. 787.

115
parte da renda do governo provinha de fontes outras que não a agricul-
tura nativa e porque os alimentos podiam ser importados de outras
colônias, caso a negligência com que era tratada a agricultura local
levasse a escassez dos alimentos.
Não importava muito para a agricultura européia ocidental se o
governo era incapaz de controlar os senhores feudais, porque os inves-
timentos agrícolas na Europa Ocidental, no período feudal e sobretudo
durante as últimas etapas desse mesmo período, eram principalmente
do tipo que as famílias camponesas podiam realizar com seus próprios
meios, se necessário. O problema era mais sério quando os senhores
feudais falhavam na realização de suas funções normais nas regiões que
dependiam da irrigação em larga escala, tais como certas áreas da Áfri-
ca do Norte e da Ásia e algumas civilizações pré-colombianas na Amé-
rica.
Quando tais regiões eram deixadas sob incontrolado domínio de
uma classe de senhores de origem estrangeira ou em aliança precária
com o conquistador estrangeiro, os investimentos rurais estavam amea-
-ados de negligência, porque esse tipo de senhor procura, inevitavel-
mente, lucros rápidos e patrimônio líquido. Em casos extremos, o re-
sultado é a inanição e o despovoamento como parece ter ocorrido em
larga escala na América Latina.5
Em outros casos, a população continua a crescer mas como o
investimento é insuficiente para permitir a expansão da produção agrí-
cola e do emprego que seria necessário a este crescimento, resulta o
subemprego e a emigração segue em suas ondas. Quando os adminis-
tradores europeus proibiram o emprego dos habitantes em trabalhos
servis, sem porém abolir o sistema senhorial como tal, o investimento
rural dificilmente poderia deixar de ser afetado. Tais regiões onde a
irrigação foi negligenciada são, com freqüência, exibidas como exem-
plos típicos dos desastrosos resultados do crescimento populacional,
sem o devido exame das causas especiais da angustiosa situação da
agricultura local.
O exemplo clássico da interferência colonial sobre o sistema de
posse e uso da terra nativo é o da Índia britânica. A posse e uso da terra
nas regiões produtoras de arroz da Índia, as quais tinham estado sob o

(5) Tem sido sugerido que o despovoamento do antigo império inca pode ser ex-
plicado em parte pelo fato de que os senhores espanhóis transferiram mão-de-obra para
atividades não agrícolas tais como minas, manufatura de têxteis e cultivo de cacau, de
sorte que a produção de alimentos básicos foi negligenciada. Alberto Arca-Parró, op.
cit, em Kenneth H. Parsons, op. cit, pp. 277-83.

116
domínio mongol, era do tipo feudal habitual com obrigações muito
altas. Os conquistadores britânicos começaram concedendo aos senho-
res feudais hindus o mesmo status que os senhores haviam obtido na
Inglaterra. Mais tarde esta política teve de ser revista e foi substituída
por uma legislação sobre a posse e uso da terra que regulamentava a
renda a ser paga em dinheiro, ao mesmo tempo que restabelecia os
direitos hereditários de cultivos para os camponeses. O aumento dos
preços agrícolas, durante o período colonial, reduzia o valor real das
rendas sob controle tendo como resultado a perda por parte dos senho-
res tanto dos estímulos como dos meios para realizar investimentos com
a finalidade de controlar as águas.
Também neste caso, os efeitos da desorganização do sistema feu-
dal foram muito distintos dos efeitos das mudanças similares ocorridas
na Europa, porque as necessidades de investimento eram de outro tipo.
Na Índia, os arrendatários protegidos pela legislação não possuíam or-
ganização alguma para empreender um esquema compreensivo de con-
trole da água. O próprio sistema de posse e uso da terra legalmente
bloqueado era um obstáculo aos pequenos investimentos agrícolas.
Assim, a desorganização do sistema feudal contribuiu para impedir
que a produção agrícola acompanhasse o crescimento da população e o
sistema feudal de posse e uso da terra teve de ser abolido antes que os
governos federais e estaduais independentes, tanto na Índia como no
Paquistão, pudessem empreender as primeiras medidas para estabe-
lecer um sistema de uso do solo mais intensivo

A RESPOSTA AOS ESTÍMULOS DE PREÇOS

Muitos especialistas em posse e uso da terra e muitos economistas que


lidaram com os problemas da agricultura pré-industrial consideram
que as regras do sistema feudal de posse e uso da terra silo obstáculos
ao investimento e contribuem, assim, para criar subemprego na agri-
cultura nos períodos de rápido crescimento populacional. A discussão
precedente sugere que o sistema feudal não se constitui sempre em
obstáculo ao investimento agrícola. Se a organização feudal permanece
intacta, é bem provável que ela absorva todo o excedente na população
rural, seja no emprego puramente agrícola, seja em outros empregos,
pelo menos no que se refere ao pico das estações do trabalho agrícola.
Todavia, existem exceções a essa regra. Tanto o sistema feudal de
posse e uso da terra como o sistema tribal pode constituir-se em obstá-
culo a intensificação da agricultura. Já se viu que isso é o mais provável

117
quando o sistema feudal se desorganiza naquelas regiões que depen-
dem de irrigação em larga escala. Outros exemplos bem conhecidos da
história agrária européia podem ser citados: os das culturas em faixas,
que impedem a eliminação do pousio, ou os em que os direitos de pas-
tagem em comum retardam a introdução do cultivo de plantas forra-
geiras. Todavia, tais obstáculos proporcionados pela posse e uso da
terra são às vezes varridos quando os incentivos econômicos que favo-
recem a intensificação da agricultura tornam-se muito fortes. Vimos tal
coisa em regiões da Europa Ocidental onde os senhores feudais toma-
ram eles próprios a iniciativa de abolir o feudalismo uma vez que os
preços, em conseqüência do rápido crescimento da população e do de-
senvolvimento concomitante da urbanização, se tinham tornado sufi-
cientemente atraentes para induzir ao uso intensivo do solo.6
Se o sistema feudal de posse e uso da terra existe em regiões onde
a crescente população rural é incapaz de encontrar emprego suficiente
por causa da sobrevivência de formas extensivas de uso do solo, uma
explicação que com freqüência se utiliza e a de que o comportamento
dos senhores feudais e antieconômico, revelando mais interesse no
prestígio que a propriedade da terra lhes confere do que nos lucros que
uma agricultura intensiva poderia proporcionar.
Pergunto-me se esta teoria de uma atitude fortemente tradicional
dos senhores feudais repousa sobre um fundamento sólido. Quando um
crescimento geral da população estimula a utilização intensiva do solo e
também a mudança no sistema de posse e uso da terra nas regiões
próximas aos centros urbanos em expansão, o uso extensivo do solo
pode continuar sendo, provavelmente, mais rentável do que o intensivo
naquelas regiões mais distantes dos centros urbanos. Os senhores feu-
dais, nessas regiões, podem estar imbuídos de racionalidade econômica
quando recusam mudanças no uso do solo e na posse e uso da terra.
Parece-me mais pertinente considerar as migrações rurais que acom-
panham essas tendências divergentes no uso do solo e na posse e uso da
terra como uma concomitante necessária da concentração de atividades
não agrícolas em regiões particulares do que interpretá-las como uma
conseqüência do comportamento não econômico dos senhores feudais.

(6) Para uma discussão da inter-relação entre o desenvolvimento da posse e uso


da terra no final do período feudal e os processos de industrialização na Europa e Ásia,
ver M. Boserup, "Agrarian Sctructure and Take-off", em W. W. Rostow (ed.), The Eco-
nomic of Take-off into Sustained Growth (London, 1963), pp. 201-24.

118
CAPÍTULO 12

OS ESTÍMULOS
AO INVESTIMENTO
NO SISTEMA MODERNO
DE POSSE E USO DA TERRA

Os capítulos anteriores trataram dos efeitos do crescimento populacio-


nal sobre os investimentos agrícolas nos sistemas tribal e feudal de pos-
se e uso da terra. Resta-nos tratar do problema dos efeitos do cresci-
mento populacional sobre os investimentos agrícolas no sistema de
posse e uso da terra onde os cultivadores possuem suas terras ou as ar-
rendam de proprietários privados pagando renda em dinheiro ou em
espécie.
Em comunidades rurais nesse estágio, renda, salários e impostos
podem ser pagos em dinheiro ou em espécie e, em muitos casos, são
consideráveis as compras de bens de consumo feitas em dinheiro pelos
cultivadores e pelos trabalhadores. Todavia, a economia rural está
ainda muito longe de ser uma economia monetária no amplo sentido da
palavra, já que as compras de insumos industriais pela agricultura são
insignificantes e os camponeses produzem uma parte relativamente
grande de gêneros alimentícios para o seu próprio consumo. Enquanto
a economia à qual essas comunidades pertencem apresentar um baixo
nível de industrialização, é pouco provável que a agricultura use mais
do que quantias insignificantes de insumos industriais, e quase todo
o investimento privado que nela se fizer lançará mão de trabalho local e
de instrumentos tradicionais.1 Entretanto, a organização dos investi-

(1) Os economistas de países industrializados são muito propensos a subestimar o


montante dos investimentos realizados pelos próprios camponeses neste tipo de comuni-
dade durante os períodos de crescimento populacional. Por exemplo, em um estudo im-
portante e muito conhecido sobre o problema econômico colocado pelo crescimento po¬

119
mentos de larga escala em irrigação tornou-se uma atribuição de gover-
nos centrais ou locais, sendo que tais investimentos são realizados por
mão-de-obra assalariada com o auxílio de pouco ou nenhum equipa-
mento industrial moderno.2
Imagine-se que o governo tome a iniciativa de realizar investi-
mentos em larga escala necessários a expansão da produção agrícola na
medida em que a população cresce e que ele recrute os trabalhadores
no mercado de trabalho rural e financie os trabalhos com impostos
arrecadados dos próprios cultivadores, de tal modo que o setor urbano
não realize nenhuma contribuição para o financiamento desse investi-
mento rural.
Sob tais condições, a parcela da população rural que trabalha
nas unidades agrícolas e reduzida quando a taxa de crescimento da
população se expande, pois os trabalhadores rurais são recrutados para
os investimentos públicos. Portanto, aqueles que permanecem devem
realizar mais trabalho per capita para pagar os impostos, agora mais
elevados, e cuidar do aumento do investimento privado na agricultura,
o qual se faz necessário por causa do aumento da taxa de crescimento
da população. A questão fundamental é saber se os agricultores podem
e aceitam prolongar suas horas de trabalho para fazer face a estas exi-
gências.
A afirmação de que um aumento na taxa de crescimento da po-
pulação deve criar uma carga adicional de trabalho por pessoa, no lu-
gar de subemprego adicional, está em flagrante contraste com aquilo
que é geralmente dado como certo nas discussões sobre o assunto e que

populacional na Índia, o autor sugere que esse tipo de investimento "não monetarizado"
consiste fundamentalmente de construção de habitações rurais e que declinaria, prova-
velmente, na década de 60, a despeito do rápido crescimento populacional. Ver Ansley J.
Coale e Edgar M. Hoover, Population Growth and Economic Development in Low In-
come Countries (Princeton, 1958), pp. 235-6. Em anos recentes, entretanto, a impor-
tância desse tipo de investimento começou a ser mais amplamente reconhecida na Índia.
(Ver, por exemplo, o trabalho de Mahaviar Prasad, assessor para irrigação do governo da
Índia, "Problems of Irrigation and Water Use in India". Trabalho apresentado a Confe-
rência das Nações Unidas, op. cit, agenda item C.3.2.) O índice, perturbadoramente
baixo, de utilização das novas instalações de irrigação construídas pelas autoridades pú-
blicas é agora atribuído, de modo geral, à insuficiência da participação dos cultivadores
que não proporcionam sua parte nos esforços de investimento, na forma de canais ali¬
mentadores e outros investimentos não monetarizados".
(2) Os grandes projetos com objetivos múltiplos destinados a proporcionar insta-
lações de irrigação como um subproduto da produção de energia hidráulica em larga
escala são exceções, é claro, a esta afirmação.

120
é fundado sobre a suposição tácita de que nem o governo nem tam-
pouco os cultivadores fariam qualquer tentativa de assegurar os investi-
mentos necessários para enfrentar o aumento da taxa de crescimento
da população ou ainda que tais investimentos devam ser realizados,
necessariamente, com equipamento mecanizado e pouco uso de traba-
lho rural. Tais suposições conduzem evidentemente à conclusão de que
o crescimento acelerado da população resulta no aparecimento da es-
cassez de alimentos e, ao mesmo tempo, na redução das oportunidades
de emprego.
E agora, duas questões se apresentam. Pode-se realistamente su-
por que os cultivadores se empenhem em efetuar os investimentos ne-
cessários? São eles capazes de os realizar? Consideremos a última ques-
tão em primeiro lugar. A resposta a esta questão depende, de um lado,
do montante e da natureza do investimento adicional necessário, tanto
privado como público e, do outro lado, do montante de trabalho que já
está a cargo dos agricultores antes que o crescimento populacional co-
mece a se acelerar.
Com uma certa taxa de crescimento populacional em um deter-
minado território, o montante de investimento per capita tornar-se-á,
provavelmente, tanto maior quanto mais densamente povoado o terri-
tório se tornar, porque os melhoramentos fundiários com custos de in-
vestimento mais baixos por unidade de produção adicional serão pro-
vavelmente escolhidos antes daqueles que remunerem menos. Além do
mais, a utilização crescentemente intensiva do solo reduz os períodos
de lazer da estação morta e, como conseqüência, a capacidade de tomar
sobre os ombros uma carga adicional de trabalho torna-se cada vez
menor a medida que essa carga cresce. Uma vez que o peso da carga
depende também da taxa de crescimento da população, a conclusão é
que a taxa de crescimento populacional que uma comunidade rural
pode sustentar pelos seus próprios esforços decrescem com o aumento da
densidade populacional do território.
A capacidade de trabalho das famílias dos camponeses e dos tra-
balhadores fixa um limite superior ao processo de adaptação por meio
do esforço adicional. Quando todos os membros fisicamente capazes
das comunidades rurais, homens e mulheres, jovens e velhos, estão tra-
balhando do nascer ao pôr-do-sol durante o ano todo, a comunidade
atingiu o ponto onde o investimento adicional somente poderá ser em-
preendido se o trabalho corrente for reduzido e se declinar o consumo
per capita de alimentos. A introdução das comunas agrícolas na China
foi, sem dúvida, um esforço para evitar o declínio da produção per

121
capita de alimentos impelindo o desempenho do trabalho ao ponto de
3

O INVESTIMENTO NA EXPLORAÇÃO FAMILIAR

Nas discussões sobre investimentos nas comunidades tribais (Capítulo


5), acentuou-se que não somente a capacidade física para suportar uma
carga de investimento adicional mas também os estímulos que levariam
a realização de tal empreitada devem ser tornados em consideração.
O mesmo pode-se dizer das comunidades que ultrapassaram o estágio
tribal. Em outras palavras, deve-se perguntar se é provável que a soli-
dariedade familiar em comunidades camponesas estáveis sobreviva me-
lhor do que a solidariedade tribal ao longo do processo de monetari¬
zação da economia.
A teoria do professor Leibenstein sobre o crescimento econômico-
demográfico está fundada na suposição de que em uma economia atra-
sada o crescimento populacional poderá ter somente um efeito limitado
como indutor de um nível mais alto de investimento. Ele não acredita
que o investimento adicional seria empreendido, em uma economia
atrasada, só porque o número de bocas para alimentar estivesse cres¬

(3) Admite-se aqui que um alto nível de emprego rural prevalece na China. Esta
suposição está de acordo com os resultados de um velho inquérito de Lossing Buck (men-
cionado no Capítulo 5, nota de rodapé 19, página 59) e com as opiniões de T. H. Shen
(op. cit, pp. 115 ss.). A suposição de um alto nível de emprego rural também combina
com fatos mais recentes como, por exemplo, o fracasso do governo em seus esforços de
fazer com que as comunas produzissem uma quantidade suficiente de alimentos en-
quanto o volume de investimentos e o trabalho não agrícola realizados pelos camponeses
eram, ao mesmo tempo, consideravelmente aumentados. Tais considerações podem pa-
recer categoricamente negadas pelos fatos narrados pelo professor Dumont em Révolu-
tion dans les campagnes chinoises (Paris, 1957). René Dumont observou que, em muitas
das cooperativas agrícolas por ele visitadas em 1955-6, o número médio de dias, por ano,
relatado como tendo sido despendido em trabalho coletivo foi muito baixo. Entretanto,
os dias de trabalho gastos em atividades tais como a coleta e o preparo de esterco para a
cooperativa não foram calculados como dias de trabalho coletivo, pois o esterco tinha de
ser enviado em espécie individualmente pelos membros (de acordo com René Dumont,
op. cit., p. 16). Igualmente, todo o trabalho dos camponeses em seus lotes privados e com
seus animais estava, é claro, excluído. Além do mais, as explorações agrícolas visitadas
não constituíam uma amostra representativa, pois tinham produções muito acima das
médias regionais. É possível que obtivessem esses altos rendimentos, não usuais, porque
tivessem uma oferta excessiva de trabalho e pudessem utilizar práticas trabalho-inten-
sivas em proporção maior do que as explorações onde a relação terra-trabalho era mais
típica.

122
cendo. Em sua opinião, os investimentos somente ocorrerão quando
um maior poder de compra for antecipado, o que supõe, por sua vez,
um nível de renda mais elevado.4
Em minha opinião, Leibenstein presta muito pouca atenção ao
fato de que as motivações que governam as decisões sobre investimento
são diferentes entre comunidades com empreendimentos familiares e as
com empreendimentos em larga escala e que utilizam principalmente,
ou exclusivamente, trabalho assalariado. O filho de um camponês ou
de um artesão esta muito intimamente ligado a sua família e tem inte-
resse muito forte no empreendimento realizado por ela. Mesmo sob o
domínio de uma economia monetária, é provável que ele permaneça no
lar e use o seu tempo, quando já se tornou um trabalhador eficiente
mas ainda não tem sua própria família, para trabalhar um número de
horas cuja extensão depende de certas circunstâncias, entre as quais se
inclui a necessidade de realizar investimentos considerados importantes
para ajudá-lo a manter sua futura família.
Enquanto a carga anual de trabalho por homem na comunidade
for tão moderada que a geração jovem possa realizar na estação morta
os investimentos necessários a manutenção das famílias futuras sem
que haja redução da sua participação nos trabalhos agrícolas ordiná-
rios, esse investimento não se tornara um fator limitante à produção
agrícola, mesmo com uma taxa de crescimento considerável da popu-
lação. A1ém do mais, o homem jovem não precisa realizar ele mesmo
todo o trabalho de investimento: ele pode ser ajudado por outros mem-
bros da família. É bem conhecido o fato de os pais estarem dispostos a
aceitar considerável privação para poder pagar o preço de uma esposa
para o filho ou o dote para as núpcias de uma filha. Seria estranho que
eles fossem menos generosos quando se tratasse de trabalhar para po-
der acomodar os novos casais.
Em uma família de cultivadores com um único filho, que esta se
aproximando da idade de casar, e muito provável que ele faça grande
parte do trabalho corrente, enquanto as mulheres e os anciãos reser-
vam sua participação para os períodos de pico das atividades. Em uma
família que tem dois filhos para instalar, estes jovens dividirão a maior
parte do trabalho pesado necessário para prover a subsistência futura
de duas famílias, em vez de uma só Enquanto isso, os membros fisica-
mente menos capazes da família terão uma carga de trabalho corrente

(4) H. Leibenstein, "Population Growth and the Take-off Hypothesis", em W.


W. Rostow(ed.), op. cit, pp. 179-80.

123
maior que a dos membros de famílias menores. Este método de viabi-
lização dos investimentos assemelha-se ao do sistema feudal, onde os
senhores utilizavam os filhos dos camponeses para trazer os investi-
mentos necessários à instalação de suas futuras famílias, enquanto os
outros membros da comunidade camponesa trabalhavam pesado em
seus próprios pagos para poder pagar os impostos em espécie, os quais
eram usados para alimentar os trabalhadores incumbidos dos investi-
mentos em curso.
Da análise que se fez do uso da terra, nos capítulos anteriores,
segue-se que a habilidade de criar capital agrícola adicional para a
instalação de uma nova e mais numerosa geração não depende da pos-
sibilidade de acesso a terras não cultivadas. Um camponês com dois
filhos pode melhorar sua terra e permitir que seus filhos partilhem da
terra familiar, tendo cada um deles o suficiente para viver. Para atingir
esse objetivo, eles não precisam passar necessariamente para outro pa-
drão de culturas, nem tampouco ficar na dependência da existência de
mais facilidades de mercado para culturas especiais. A idéia ampla-
mente difundida de que a família somente poderá subsistir em áreas
menores se encontrar mercado para culturas trabalho-intensivas e de
altos rendimentos esta baseada na suposição de que o sistema de uso da
terra permanece o mesmo. Mas isto significa ignorar que se a terra é
cultivada com maior freqüência do que antes, a área pode ser reduzida
sem a introdução de novas culturas. Por exemplo, dois filhos podem
partilhar a terra de seus pais conduzindo uma cultura irrigada de trigo
a cada ano, no lugar de uma cultura de sequeiro a cada dois anos, ou
ainda, duas culturas de arroz por transplante por ano, no lugar de uma
só, feita a lanço. O aumento da população na Ásia neste século tem
sido acompanhado de uma redução da área de pousio e de um aumento
substancial na área irrigada e cultivada mais de uma vez por ano, mas
a natureza das culturas não mudou muito.

SALÁRIOS REAIS E EMPREGO

O raciocínio anterior não leva em conta o fato de que, em virtualmente


todas as comunidades camponesas, uma parte dos cultivadores usa tra-
balho alugado para cultivar suas terras, seja como complemento, seja
em substituição ao trabalho familiar. Pelo menos alguns desses culti-
vadores teriam outras possibilidades para arranjar o futuro de seus fi-
lhos além da intensificação do padrão de uso da terra. A produção, nas
propriedades baseadas principalmente no trabalho alugado, tornar-
124
se-á intensiva somente se o crescimento da população provocar elevação
dos preços dos alimentos sem aumento correspondente dos salários
monetários ou redução destes sem alteração dos preços dos alimentos.
Se os últimos permanecem inalterados, a despeito de um aumento da
população, faltará à exploração agrícola fundada no emprego de traba-
lho alugado o estímulo para intensificar a produção e a tendência será
de falta de oportunidades de emprego para um número crescente de
famílias que somente encontrarão emprego na agricultura oferecendo¬
se para trabalhar em troca de salários monetários mais baixos.5
Alguns economistas negam a possibilidade de ambos os processos
de adaptação. Eles observam que o valor real dos salários agrícolas é
muito baixo na maioria das comunidades pré-industriais e afirmam
que os salários reais não podem ser reduzidos ainda mais sem provocar
a completa inanição dos trabalhadores assalariados. O corolário é de
que o equilíbrio deve ser restabelecido por um aumento da mortalidade
e não pela expansão da produção agrícola. Isto somente seria correto se
não se pudesse aumentar de forma significativa o índice médio de em-
prego por família, mediante a redução dos salários reais ou se esses
salários baixassem a um nível tal que os ganhos derivados do emprego
adicional não fossem nem mesmo suficientes para comprar o consumo
suplementar de alimentos das pessoas que passassem a trabalhar. Du-
vido que essas premissas possam ser realistas em qualquer país subde-
senvolvido.
Já se viu, no Capítulo 5, que uma intensificação do padrão de uso
da terra, particularmente quando acompanhada da introdução de me-
lhor controle da água, tende a provocar uma mudança fundamental no
padrão sazonal de emprego na agricultura. Nesses casos, uma redução
dos salários reais por homem-hora pode ser mais do que compensada
pelo emprego adicional. Assim, nesse estágio do desenvolvimento da
agricultura, um declínio dos salários reais por homem-hora pode acom-
panhar-se de um aumento das rendas reais anuais das famílias traba-
lhadoras.
Mas mudanças no padrão sazonal de emprego não são os únicos
meios graças aos quais as famílias trabalhadoras, nesse estágio do de-
senvolvimento agrícola, podem beneficiar-se de emprego adicional.

(5) Uma pressão baixista sobre os salários rurais pode ocorrer também por outras
razões. Camponeses que se acostumaram a arrendar parte de suas terras podem subs-
tituir cada vez mais arrendatários por membros de suas próprias famílias quando estas
estiverem crescendo. Os membros das famílias dos arrendatários seriam, assim, lançados
no grupo de trabalhadores assalariados.

125
Quando o crescimento da população torna necessário passar para uma
utilização mais intensiva do solo, a parcela do emprego total correspon-
dente aos trabalhadores sem terra tende a aumentar e pode, talvez,
crescer mais do que a proporção de trabalhadores sem terra na popu-
lação agrícola total. Com a finalidade de explicar este ponto é necessá-
rio examinar a estrutura do mercado de trabalho rural nas economias
pré-industriais densamente povoadas.
Em tais economias, uma aldeia típica apresenta um pequeno
grupo de cultivadores empregando somente trabalho assalariado no
cultivo de suas terras e um grupo maior que emprega algum trabalho
assalariado, principalmente no pico das estações, mas que depende ba-
sicamente do trabalho familiar. Os trabalhadores empregados por esses
dois grupos também se enquadram em duas categorias: uma delas con-
siste de pessoas sem terra enquanto a outra — algumas vezes muito
mais numerosa — consiste de camponeses, eles mesmos cultivadores de
pequenos lotes de terra própria ou arrendada, mas que trabalham,
além disso, para outros, principalmente durante o pico das estações.
Se os salários reais declinam, seja pelo aumento dos preços dos
alimentos, seja pela diminuição dos salários monetários, os trabalha-
dores sem terras não têm outra escolha a não ser reduzir o seu tempo de
lazer, assim como o de suas mulheres e crianças, e se oferecer para
trabalhar em troca de salários muito baixos durante a estação morta.
Ao contrário, aqueles trabalhadores que possuem alguma terra para
cultivar reagirão, provavelmente, limitando a sua oferta de trabalho e
cultivando seus próprios campos de maneira mais intensiva com a
ajuda da mão-de-obra familiar. Dado que eles costumavam empregar-
se principalmente no pico das estações, esta limitação na oferta de tra-
balho pode evitar um declínio maior do salário real nesse período e,
portanto, estabelece-se um nível abaixo do qual as rendas dos traba-
lhadores sem terra não podem cair facilmente. Há com freqüência, nas
comunidades pré-industriais, uma grande discrepância entre salários
rurais no pico das estações e na estação morta.
A redução dos salários reais na estação morta é um estímulo im-
portante para a intensificação do uso da terra nas explorações agrícolas
baseadas no trabalho alugado, uma vez que o emprego adicional que
acompanha o uso mais intensivo da terra incide grandemente no pe-
ríodo da estação morta, como se explicou anteriormente.
O grupo de trabalhadores sem terra pode conseguir emprego adi-
cional não só devido a existência de mais trabalho na estação morta e,
talvez, menor competição da parte dos trabalhadores com terra pré-

126
pria. Eles podem também obter emprego adicional porque os baixos
salários reais na estação morta podem induzir alguns cultivadores, que
até então empregavam assalariados somente no pico das estações, a
executarem também os trabalhos da estação morta, ou parte deles,
com tais trabalhadores. Nas comunidades rurais onde a pressão da po-
pulação faz baixar o salário real na estação morta a um nível muito
baixo e provoca uma elevação da renda do solo, os camponeses com
terra própria agarrarão a oportunidade que a sua forte posição como
empregadores (e talvez, também, como arrendadores de terra) lhes
proporciona e começarão a usar o trabalho alugado em operações que
antes realizavam com trabalho familiar. Chega-se a um processo onde o
desemprego sazonal na aldeia é reduzido mas onde, ao mesmo tempo,
as famílias dos cultivadores em melhores condições limitam o trabalho
familiar a algum tipo de ajuda aos trabalhadores empregados no pico
da estação.
O resultado dessas mudanças e uma revolução na estrutura de
emprego dos trabalhadores sem terra. Eles passam de uma situação
caracterizada por longos períodos de ociosidade a uma de pleno em-
prego, ou de quase pleno emprego, durante o ano todo, enquanto o
subemprego sazonal remanescente na aldeia se concentrará sobre os
mais abastados. Parece haver pouca razão para se supor que este pro-
cesso conduza os trabalhadores a fome: eles, provavelmente, comem
melhor do que quando eram subempregados com longos períodos de
ociosidade. Se esse não fosse o caso, eles não seriam capazes de realizar
trabalho pesado o ano todo. Mas a melhora no seu padrão geral de
consumo, se existe alguma, não esta em proporção ao esforço adicional
que todos os membros fisicamente capazes das famílias devem supor-
tar. Deve-se ter sempre presente esta crescente desigualdade na distri-
buição de trabalho e lazer nas aldeias pré-industriais densamente po-
voadas se se deseja compreender a lógica dos movimentos populares de
reforma agrária do tipo chinês, nos quais as pessoas corriam o risco de
serem executadas à menor evidência de que suas mãos não estivessem
marcadas pelo trabalho.
As mudanças que se produzem na estrutura do emprego e as
possibilidades de tendências divergentes dos salários da estação morta
e da estação de plena atividade implicam que não se pode esperar a
existência de correlação estreita entre as mudanças no salário real por
hora marginal de trabalho na agricultura (definido pelo seu valor na
estação morta) e o padrão de vida das famílias dos trabalhadores agrí¬
colas. Os salários podem declinar de modo considerável enquanto o
padrão de vida pode permanecer constante ou mesmo melhorar.

127
Mas, mesmo que a renda real das famílias de trabalhadores de¬
crescesse, o resultado não seria necessariamente a fome, porque o con-
sumo de alimentos poderia mudar no sentido do uso de alimentos mais
baratos, não produzidos ou pouco consumidos, mesmo pelas famílias
mais pobres, quando a população era menor. Existe evidência de que
em países densamente povoados da Ásia e em outras regiões os traba-
lhadores agrícolas e os membros de outros grupos de baixa renda subs-
tituem o consumo de cereais caros, como trigo ou arroz, pelo de cereais
que podem ser cultivados em terras fracas e tubérculos de alto rendi-
mento, como a tapioca e a batata, quando a população se torna mais
densa e os preços dos alimentos aumentam ou os salários declinam.6
As tendências da agricultura asiática e da agricultura da Europa
Ocidental no último século são tão marcadamente divergentes que se
corre o risco de passar por alto as similaridades do seu desenvolvimento
em tempos passados. Durante o século de rápido crescimento popula-
cional que se seguiu à revolução agrícola européia, tanto os trabalha-
dores agrícolas como os pequenos camponeses precisaram trabalhar
muito mais duramente no campo e contar com a ajuda, em proporção
crescente, dos membros da família para atividades tais como o manejo
do gado, a produção de culturas trabalho-intensivas destinadas ao con-
sumo humano e animal. Algumas dessas culturas, como o nabo e a
batata, exigiam trabalho manual penoso em certos períodos do ano
que, no passado, haviam sido os períodos de lazer. Esse trabalho era,
em grande parte, realizado por membros das famílias dos trabalhado-
res e dos pequenos camponeses, obrigados a se assalariar. O número
médio de horas trabalhadas por família e por ano deve ter aumentado
assustadoramente durante o período que vai da revolução agrícola até o
momento em que o uso das máquinas agrícolas se tornou difundido.
A renda real anual dos trabalhadores e dos pequenos camponeses
na Europa Ocidental experimentou pequena, se alguma, melhora nesse
período. Parece que os padrões de consumo no campo mudaram de
natureza, passando de produtos derivados da criação de gado e de ce-

(6) "O cultivo de batata estendeu-se em muitas províncias em meados do século


XVIII, acredita-se que em razão do grande crescimento da população chinesa durante o
período de governo estável e condições pacíficas". T. H. Shen, op. cit., p. 212. Uma
mudança similar de consumo, envolvendo a substituição de arroz por outras culturas,
parece ter ocorrido do Japão do século XIX. Tobata Seiichi, An Introduction of the
Agriculture of Japan (Tokyo, 1958), p. 5, e Kazushi Ohkawa et al., The Growth of
Japanese Economy (Tokyo, 1957), p. 5 1 . Da mesma maneira, a mandioca vem ganhando
terreno em Java, em décadas recentes.

128
reais, para uma crescente dependência da carne de porco e batatas, as
7

OS PREÇOS DOS ALIMENTOS E A TAXAÇÃO DA AGRICULTURA

A capacidade de trabalho dos assalariados e das famílias camponesas


determina o limite do processo de adaptação que consiste em aumentar
as tarefas penosas realizadas pela população rural, como já se mencio-
nou. Quanto mais se aproxima esse limite, maior se torna a carga que a
produção de alimento adicional coloca sobre a população urbana. Em
casos extremos, poderá ser necessário reduzir a proporção da popula-
ção total ligada às ocupações não agrícolas a fim de se acelerar a produ-
ção de alimentos. A exceção das economias do tipo chinês, o meca-
nismo que faz passar da população rural à população urbana para o
fardo do crescimento populacional consiste geralmente da melhora nas
relações de troca para a agricultura em relação aos setores não agrí¬
colas.
Tal desenvolvimento das relações de troca setoriais foi observado
no Japão cuja população, já densa, esteve crescendo bastante até bem
recentemente. O crescimento da densidade populacional elevou os pre-
ços dos alimentos básicos a um nível que marcou um recorde mundial
após o término da Segunda Grande Guerra, enquanto os preços dos
produtos industriais se mantiveram baixos em comparação com os de
outros países. O resultado desse estado de coisas foi pressionar os agri-
cultores — e os não agricultores — a trabalhar arduamente, empre-
gando uma parte de suas rendas na compra dos alimentos básicos, e
encorajar os agricultores à adoção de práticas trabalho-intensivas, apli-
cando grande quantidade de insumos industriais na agricultura.
O governo japonês encorajou a intensificação do trabalho por
pessoa engajada na agricultura mediante uma prática de preços eleva-
dos dos gêneros alimentícios aliada a uma taxação relativamente alta
sobre a agricultura.8 Os altos impostos obrigaram os camponeses pro-

(7) O declínio dos salários reais na agricultura da Europa Ocidental entre a me-
tade do século XVIII e a metade do século XIX é descrito por B. H. Slicher van Bath, op.
cit, pp. 255-7. A passagem para alimentos mais baratos é mencionada pelo mesmo autor
e na mesma obra, op. cit., p. 237 e 264-70. Ver também F. K. Rieman, Ackerbau und
Viehhaltung im vorindustriellen Deutschland (Kitzingen-Main, 1953), pp. 126-31.
(8) Os impostos fundiários representaram 78% da renda ordinária (o grosso da
renda total) de 1868 a 1881 e, muito embora as cifras apresentassem uma tendência
declinante depois, os impostos ainda representavam 50% da renda em 1890. Elevado

129
prietários a utilizar a terra intensivamente e participar no trabalho ma-
nual, apesar dos altos preços dos alimentos. É interessante comparar
essa política com a praticada na Índia, onde tanto a política de preços
como a política fiscal são notavelmente diferentes das do Japão.
A Índia independente continuou com as políticas de baixos pre-
ços dos alimentos e baixos impostos agrícolas que se tornaram costu-
meiras durante o período colonial. Os preços pagos aos produtores são
mantidos baixos mediante a importação de alimentos, enquanto os im-
postos sobre a terra e sobre a água somados representam menos de 2%
do valor da produção agrícola.9 Os baixos preços não encorajam evi-
dentemente uma utilização intensiva da terra1 e os baixos impostos
permitem que os camponeses com terra desfrutem de um lazer mais
amplo e de um nível de consumo que, embora baixo em comparação
com os padrões de vários outros países asiáticos, são consideravelmente
mais elevados que os dos trabalhadores agrícolas.
Sendo os preços insuficientes para encorajar o uso intensivo da
terra, a expansão da produção agrícola indiana torna-se dependente
dos investimentos e subsídios governamentais e, já que os impostos
sobre a agricultura são baixos, esta situação acaba sobrecarregando os
setores não agrícolas.11 Nestas condições, o crescimento rápido da
população indiana converte-se em sério empecilho ao desenvolvimento
dos setores não agrícolas, mas é possível argumentar que estas dificul-
dades devam ser imputadas nem tanto ao rápido crescimento popula-
cional quanto a uma política agrícola que permite aos proprietários de
terra evadir-se da sua parte do fardo econômico imposto por aquele
crescimento.

como era, o nível de taxação não era superior aos níveis que vigoraram no período Toku¬
gawa. Já ao final daquele período, a coleta feita pela classe dos guerreiros sobre a agri-
cultura era imensa e o governo Meiji não fez senão redirecioná-la para outros canais. Em
conseqüência, produziu-se a modernização sem que houvesse redução do padrão de vida
no campo ou mesmo sem extorquir a elevação que se produzia na produtividade. Thomas
C. Smith, op. cit., p. 211.
(9) De acordo com as tabelas em "Studies of the Economics of Farm Manage-
ment", op. cit.
(10) Ver nota 8, página 79.
(11) Em um ensaio sobre a política econômica no Ceilão, o professor Hicks suge-
riu há alguns anos que, a fim de estimular o cultivo mais intensivo do solo, um imposto
universal sobre a terra deveria ser introduzido mesmo que ele tivesse de ser acompanhado
por um aumento posterior do já elevado preço mínimo do arroz. Ver J. R. Hicks, Essays
in World Economics (Oxford, 1959), p. 203.

130
CAPÍTULO 13
A UTILIZAÇÃO
DE INSUMOS INDUSTRIAIS
NA AGRICULTURA PRIMITIVA

Nas discussões sobre a utilização de insumos industriais na agricultura


primitiva, alguns economistas fazem uma clara distinção entre os insu-
mos industriais poupadores de mão-de-obra e os poupadores de terra.
Segundo esses autores, os insumos industriais que poupam mão-de-
obra são inadequados às economias dos países subdesenvolvidos nos
períodos de rápido crescimento populacional, a exceção sendo os países
com muita terra inculta, onde tais insumos podem ajudar a elevar tanto
a produção total como a produção por pessoa ocupada na agricultura.
Em países com pouca ou nenhuma terra inculta apropriada ao cultivo,
somente os insumos industriais poupadores de terra, como, por exem-
plo, os fertilizantes e outros produtos químicos, deveriam ser utili-
zados, uma vez que esses insumos elevariam a produção por pessoa
ocupada e também a produção agrícola total enquanto que o emprego
de insumos poupadores de mão-de-obra elevaria em nada, ou em muito
pouco, o produto total mas poderia desalojar trabalhadores agrícolas
além das possibilidades de absorção do setor urbano. É esse temor de
criar desemprego e subemprego na agricultura que se encontra por trás
do desejo de distinguir entre insumos que poupam mão-de-obra e insu-
mos que poupam terra.
Até que ponto esta distinção é relevante? Ela é relevante, parece,
somente se e quando for lícito desconsiderar a possibilidade de intensi-
ficação das formas de uso da terra. Em outras palavras, ela é relevante
se o desenvolvimento agrícola é concebido como compreendendo a in-
corporação de terras virgens ao cultivo e a melhora nos rendimentos
agrícolas mediante aplicação de unidades adicionais de trabalho e ca-

131
pital. Mas, se além dessas possibilidades se concebe o uso de insumos
industriais como uma ajuda à passagem para cultivos mais freqüentes,
torna-se então evidente que aquele raciocínio omite um ponto muito
importante e que as conclusões que dele derivam podem, muito bem,
ser enganosas.
Joan Robinson propôs que o progresso técnico e a acumulação de
capital, porque se originam na América esparsamente povoada, têm
um viés inerente em relação ao uso da terra, de modo que a produção
por unidade de trabalho aumenta mais rapidamente que a produção
por unidade de área quando se empregam as técnicas agrícolas moder-
nas.1 Esta afirmação e sem dúvida verdadeira se se consideram as in-
versões de trabalho e de capital em uma única cultura e em uma dada
área. O aumento percentual da produção que pode ser obtido por meio
de inversões de produtos químicos é pequeno se comparado ao declínio
percentual nas inversões de trabalho que resulta do uso de equipa-
mentos mecanizados em substituição a enxadas e arados de tração ani-
mal. Mas a conclusão é menos óbvia quando se muda a perspectiva e se
leva em consideração que os equipamentos mecanizados e os produtos
químicos podem ser ambos utilizados para possibilitar o cultivo mais
freqüente da terra.
Nesta perspectiva, quando se examina a passagem dos métodos
agrícolas tradicionais para o uso de insumos industriais — não de um
quadro de referência estreito de um cultivo individual mas sim de um
mais amplo que englobe o padrão de uso da terra em uma dada região
— então, pode-se dizer que os equipamentos mecanizados, como tam-
bém os produtos químicos, podem, segundo as circunstâncias, poupar
terra ou trabalho. Assim, os equipamentos mecanizados e os produtos
químicos tendem a ser empregados como poupadores de terra nos casos
em que o crescimento populacional e preços atrativos constituam estí-
mulo- suficiente para o uso mais intensivo da terra, e como artifícios
poupadores de trabalho nos casos em que o uso mais intensivo da terra
afigura-se inútil por causa da estagnação da demanda, da competição
de alimentos importados ou por outras razões.
Considere-se primeiro um país com população constante. O cres-
cimento necessário da produção total de alimentos seria aquele reque-
rido para enfrentar o aumento da renda per capita e não haveria,
assim, quase nenhuma necessidade de mudar substancialmente o pa-
drão de uso da terra. Caso houvesse algum estimulo à utilização de

(1) Joan Robinson, The Accumulation of Capital (London, 1956), p. 321 e 323-4.

132
insumos industriais, estes seriam, primariamente, instrumento para
liberar mão-de-obra agrícola, o que poderia ser obtido seja pela intro-
duçao de equipamento mecanizado em substituição ao trabalho hu-
mano, seja pela introdução de fertilizantes químicos em lugar de méto-
dos de fertilização trabalho-intensivos, seja pelo uso de fertilizantes
químicos como instrumento para concentrar a produção nas melhores
terras enquanto o trabalho seria poupado pela desistência do cultivo
em terras de pior qualidade. No último caso, haveria pequena mudança
na intensidade média de utilização da terra.
Considere-se agora um país cuja população cresce rapidamente e
onde não haja nenhuma possibilidade de alimentar os habitantes adi-
cionais por meio da importação de alimentos. Caso haja alguma possi-
bilidade de se aplicar insumos industriais na agricultura, o estímulo
consistiria em utilizá-los como um instrumento para se obter uma mu-
dança significativa no padrão de utilização da terra e, neste caso, po-
der-se-ia também atingir esse objetivo utilizando-se de equipamentos
mecanizados ou produtos químicos ou — mais provavelmente — fa-
zendo-se uso de uma combinação de ambos. Os fertilizantes químicos
seriam empregados, não para substituir mas, sim, para suplementar
outros meios de fertilização, permitindo cultivos ainda mais freqüentes.
A força mecânica seria usada para fornecer água onde fosse impossível
ou muito difícil a sua extração pelos métodos convencionais. Os tra-
tores seriam utilizados antes de tudo na aração em contorno e em ou-
tros melhoramentos do gênero, os quais tornam possível uma utilização
mais eficiente da terra. Quando o equipamento mecanizado é usado
com tais objetivos, longe de rejeitar e substituir o trabalho humano ele
provoca um aumento das oportunidades de emprego.
Em muitos países existem áreas que somente podem ser irrigadas
a um custo exorbitante, se é que podem ser irrigadas, afinal. Se o cres-
cimento rápido da população torna impossível prescindir da produção
nessas terras de sequeiro, a alternativa que se apresenta é o subemprego
rural permanente nessas regiões ou despovoamento parcial, que se
torna possível graças à mecanização de todas as operações de pico. Se a
população agrícola excedente é transferida para empregos menos irre-
gulares em regiões mais adaptadas à irrigação e cultivos múltiplos, en-
tão a tratorização parcial aplicada as regiões agrícolas áridas e pobres
pode significar uma ajuda substancial à produção total e ao emprego
agrícola.
Quando se levam em conta as possibilidades de intensificação do
uso da terra por meio de insumos industriais, a potencialidade produ-
tiva plena dos métodos agrícolas modernos torna-se aparente. Para se

133
avaliar a potencialidade produtiva plena dos fertilizantes químicos,
deve-se recordar não somente dos frutos que eles produzem, sob a for-
ma de um aumento dos rendimentos por hectare cultivado, mas tam-
bém dos efeitos que resultam da substituição do pousio e da introdução
de cultivos múltiplos nos casos em que seria preciso, sem eles, recorrer
a sistemas mais extensivos de uso da terra. Para se avaliar a potenciali-
dade produtiva total do trator agrícola — particularmente em regiões
muito densamente povoadas — deve-se ter presente não somente os
melhoramentos fundiários que podem ser obtidos, mas também os efei-
tos poupadores de terra, ao tornar supérfluas as pastagens para ani-
mais de tração, ao possibilitar a salvação de cultivos que de outro modo
seriam perdidos, e ao facilitar cultivos múltiplos.
A economia de terra que pode ser obtida pela substituição dos
animais de tração pelo uso do trator (e o esterco pelos fertilizantes quí-
micos) não necessita de nenhum comentário complementar. É uma
economia, claro, particularmente em regiões onde os costumes ou as
crenças religiosas impedem qualquer outro uso dos animais de tração.
A utilidade do trator para evitar danos às culturas, seja porque a se-
meadura pode ser feita em tempo oportuno, seja porque a colheita pode
ser feita rapidamente, não é menos óbvia.2 Mas a maior vantagem da
tratorização em regiões densamente povoadas parece ser a possibili-
dade de realizar as operações de pico rapidamente de maneira a dar
lugar a um cultivo adicional em uma mesma e limitada estação de cres-
cimento. A agricultura japonesa que já alcançou um alto grau de meca-
nização é agora capaz, a despeito de uma estação fria relativamente
longa, de obter três colheitas anuais em uma grande parte de sua área
cultivada.

(2) Os tratores foram introduzidos no Paquistão oriental, uma região de popu-


lação extremamente densa, a fim de que as terras pudessem ser trabalhadas rapidamente
após as chuvas, melhorando, assim, os rendimentos agrícolas. J. R. Andrus, The Econo-
my of Pakistan (Stanford, 1958), p. 39.

134
CAPÍTULO 14

ALGUMAS PERSPECTIVAS
E IMPLICAÇÕES

A agricultura na Europa e nos Estados Unidos passou por uma trans-


formação radical no último século. Métodos científicos de cultivo foram
introduzidos e equipamentos mecânicos e outros produtos industriais
tornaram-se largamente utilizados.
Contraposta a essa revolução técnica nos procedimentos agrícolas
do mundo já desenvolvido, a mudança agrária nos países subdesenvol-
vidos pode parecer trivial, e é compreensível que muitos economistas
presumam que, em países onde a agricultura ainda não atingiu o esta-
gio dos métodos científicos e industriais, ela seja estagnada e tradicio-
nal, quase por definição.
Os capítulos precedentes deveriam ter revelado que esta visão e
injustificada e que nas comunidades, supostamente imutáveis, de agri-
cultura primitiva estão ocorrendo, de fato, mudanças profundas.
Os estudiosos da histórica econômica não deixaram de descrever
as mudanças sucessivas que se produziram no interior dos sistemas
agrícolas primitivos mas estes estudos, em grande parte, passaram
despercebidos pelos economistas. A tendência foi olhar os métodos de
cultivo existentes e os sistemas de uso da terra como traços permanen-
tes de uma determinada localidade, reflexos de condições naturais par-
ticulares, em vez de considerá-los como fases de um processo de desen-
volvimento econômico. De acordo com essa visão, considerou-se como
sendo uma atribuição dos geógrafos a explicação causal dos diversos
sistemas de cultivos. E eles naturalmente se inclinam a explicar as dife-
renças nos métodos agrícolas em termos de condições climáticas, tipo
de solo e outros fatores naturais os quais independeriam das mudanças

135
no tamanho das populações. Está na lógica dessa abordagem esperar
que aumentos importantes da população agrícola resultem na emer-
gência de um excedente de trabalhadores sobre a terra e uma conse-
qüente pressão para migrar em direção a outras regiões ou áreas ur-
banas.
A investigação levada a cabo nas páginas precedentes não em-
presta suporte algum à idéia de que excedentes populacionais agrários
emergem como resultado do crescimento populacional. Descobriu-se
que não se pode ter uma visão realista das coisas se se considera os sis-
temas de cultivo como adaptações a diferentes condições naturais e que
eles podem ser explicados mais plausivelmente como resultado das dife-
renças na densidade populacional: enquanto a população de uma dada
área é muito esparsa, os alimentos podem ser produzidos com pequena
inversão de trabalho por unidade de produto e virtualmente sem in-
versões de capital, desde que um período de pousio longo ajude a pre-
servar a fertilidade do solo. À medida que a densidade da população
aumenta, a fertilidade do solo não pode mais ser preservada por meio
do pousio longo, o que torna necessária a introdução de outros sistemas
que exigem uma força de trabalho agrícola muito maior. Graças a mu-
dança gradual que faz passar de um sistema onde cada lote cultivado
coexiste com vinte outros lotes similares em pousio para outros sistemas
onde o pousio não e necessário, a população que existe, em determi-
nada área, pode dobrar várias vezes sem risco de fome ou falta de opor-
tunidade de emprego agrícola.
Alguns historiadores econômicos, tendo notado o processo de
encurtamento gradual do pousio que acompanha as mudanças de mé-
todo em muitas comunidades rurais, observaram que essas mudanças
ocorreram em períodos de crescimento da população. A simples obser-
vação dessa relação levanta uma questão adicional que é a de saber se o
crescimento populacional é causa ou efeito das mudanças agrárias.
O estudo empírico da seqüência histórica não presta grande ajuda
para responder a essa questão. Mudanças no padrão de utilização da
terra e nos métodos agrícolas ocorrem, em geral, gradualmente, du-
rante longos períodos de tempo e o mesmo é, com freqüência, verda-
deiro em relação às mudanças demográficas. Portanto, é muitas vezes
difícil, ou mesmo impossível, determinar através da pesquisa histórica
se a mudança demográfica foi a causa ou o efeito das mudanças nos
métodos agrícolas. Na ausência de uma resposta clara, que pudesse ser
fornecida pelas fontes históricas, muitos historiadores se inclinaram a
propor uma linha de causação de acordo com a teoria malthusiana, isto

136
é, as mudanças agrárias como causa e a tendência demográfica a longo
prazo como efeito.
Os Capítulos 3 e 4 do presente estudo tentam abordar de outro
ângulo esta importante questão. O método é indireto e consiste na com-
paração dos custos do trabalho por unidade de produto nos principais
sistemas de agricultura primitiva. A conclusão que se tirou desta com-
paração foi que as mudanças complexas que se produzem quando as
comunidades primitivas passam para um sistema de pousio mais curto
tendem a elevar os custos de trabalho por unidade de produto. Por-
tanto, não parece plausível explicar as mudanças ascendentes nas taxas
de crescimento populacional como resultado desse tipo de mudança
agrária. É mais sensato olhar o processo de mudança agrícola nas co-
munidades primitivas como uma adaptação ao crescimento gradual da
densidade populacional ocasionado por mudanças nas taxas de cresci-
mento natural da população ou por imigrações.

(1) Como se indicou na Introdução, este livro não pretende, de nenhum modo,
determinar as causas dos movimentos demográficos; ele estuda somente os seus efeitos.
Certos críticos da edição inglesa viram nesta restrição — que se constituiu em um meio de
limitar um campo de investigação já muito vasto — uma intenção de negar os efeitos da
evolução agrária sobre as taxas de crescimento da população. A fim de evitar um novo
mal-entendido sobre este ponto, eu creio acertado citar aqui um artigo que escrevi, em
1965, para a Conferência de Belgrado sobre a População Mundial, quando a edição
inglesa da minha obra ainda se encontrava no prelo: "Um bom número de mudanças,
que surgem quando o crescimento da população se fez acompanhar de uma utilização
mais intensiva do solo, tem um efeito reflexo sobre as taxas de mortalidade e de natali-
dade. Assim, existe uma relação de duplo sentido entre a tendência demográfica e o
desenvolvimento agrário. Será suficiente citar alguns exemplos que ilustram essas rela-
ções para melhor revelar sua significação: parece que a malária tem sido uma das causas
essenciais das elevadas taxas de mortalidade — e, talvez, das baixas taxas de natalidade
— nas numerosas comunidades de baixa densidade populacional que praticam o sistema
de pousio longo; contudo, se a população cresce ao ponto de forçar a drenagem dos
pântanos e introduzir sistemas de irrigação controlada a incidência da malária tem chan-
ces de diminuir e pode resultar em um revigoramento do crescimento demográfico. As
mudanças no sistema de pousio conduzem muitas vezes a substituição de certas culturas
por outras que são mais adaptadas ao novo sistema e os tipos de proteína animal, empre-
gadas na nutrição humana, podem assim mudar com as modificações introduzidas no
trabalho da terra.
Daí as variações do regime alimentar que podem ter uma influência sobre a taxa de
crescimento da população, seja aumentando, seja diminuindo o valor nutritivo da ali-
mentação típica. A mortalidade acarretada pela fome, em uma certa região, ira variar
segundo os diferentes sistemas de cultivo empregados.
Se uma agricultura mais intensiva, por causa do crescimento populacional, acar-
retar a introdução da irrigação, ela reduzirá verdadeiramente o número de mortes provo-
cadas pela fome, porque as más colheitas serão menos freqüentes nos campos irrigados

137
De acordo com a explicação que aqui se oferece, o crescimento da
população conduz à adoção de sistemas agrícolas mais intensivos nas
comunidades primitivas e a um aumento. da produção agrícola total.
Entretanto, esse processo muito dificilmente poderá ser considerado
como crescimento econômico, no sentido geralmente aceito desse ter-
mo, desde que o seu efeito imediato sobre a produção por homem-hora
é diminuí-la. Mas o crescimento sustentado da população total e da
produção total em um certo território produzem efeitos secundários os
quais — pelo menos em alguns casos — podem desencadear um pro-
cesso genuíno de crescimento econômico com produção crescente por
homem-hora, primeiro em atividades não agrícolas, e mais tarde na
agricultura. Esses efeitos secundários resultam de dois mecanismos
diferentes. De um lado, a intensificação da agricultura pode compelir
os cultivadores e os trabalhadores agrícolas a trabalhar de forma mais
árdua e regular. Isto pode provocar mudanças nos hábitos de trabalho,
as quais ajudam a elevar a produtividade global. De outro lado, a cres-
cente densidade populacional facilita a divisão do trabalho, a expansão
das comunicações e a educação. Um importante corolário desta propo-
sição é que comunidades primitivas com crescimento populacional sus-
tentado têm melhor chance de entrar em um processo genuíno de de-
senvolvimento do que comunidades com população estagnada ou em
declínio, sob a condição, evidentemente, de que os investimentos agrí-
colas necessários sejam realizados. Essa condição poderá não ser preen-
chida em comunidades densamente povoadas se forem altas as taxas de
crescimento da população.
De acordo com a teoria proposta acima, um período de cresci-
mento populacional sustentado teria, primeiro, o efeito de reduzir a
produção por homem-hora na agricultura, mas a longo prazo o efeito
poderia ser o de elevar a produtividade do trabalho em outras ativi-
dades e, eventualmente, elevar a produção por homem-hora também
na agricultura. Em um padrão de desenvolvimento desse gênero, e pro-
vável que haja um estágio intermediário onde a produtividade do tra-
balho na agricultura declina enquanto a produtividade em outras ativi-
dades cresce. É muito provável que este período seja também um pe-
ríodo de considerável tensão política e social porque as pessoas nas
áreas rurais, em vez de aceitarem voluntariamente o trabalho árduo de

do que se ficassem tão somente sujeitas à ação das chuvas e das inundações. (Nota de
rodapé de Ester Boserup extraída da versão francesa da obra Évolution agraire et prés-
sion démographique, Flamarion, Éditeur, Paris, 1970, p. 202. N. dos T.)

138
uma agricultura mais intensiva, buscarão obter ocupações não agríco-
las menos árduas e mais compensadoras. É provável que nesses perío-
dos ocorram migrações massivas em direção aos centros urbanos, o que
resulta no endurecimento da competição nos mercados de trabalho ur-
banos. A fuga à terra pode alcançar uma tal proporção que impeça a
expansão da produção de alimentos nas aldeias, resultando que a
população das cidades deverá arcar com uma dupla carga, isto é, falta
de oportunidades de emprego e preços elevados dos alimentos. Difi-
culdades desse tipo ocorreram na maioria dos países subdesenvolvidos
do passado e foram tratadas de maneiras muito diferentes: alguns paí-
ses europeus chegaram ao ponto de reintroduzir a servidão rural a fim
de refrear a corrente de jovens rurais em direção às cidades; outros ten-
taram neutralizar as migrações internas por meio de restrições legais ou
pela introdução de reformas agrárias, como estímulo à permanência
das pessoas nas áreas rurais.
Nos casos em que as migrações das aldeias às cidades continuam
permitidas nesse estágio do desenvolvimento econômico, o aumento re-
lativo dos preços dos alimentos que acaba por resultar pode prover o
necessário incentivo à intensificação da agricultura e ser seguido de um
aumento do salário monetário rural que ajuda a manter a migração
dentro de certos limites.
Uma alternativa à aceitação da elevação dos preços dos alimentos
é permitir a sua importação. A importação crescente de alimentos,
nesse estágio do desenvolvimento, funciona como um instrumento para
se evitar os distúrbios políticos e sociais que devem surgir nas áreas
urbanas como conseqüência da elevação dos preços dos alimentos em
relação ao nível dos salários urbanos. Entretanto, se a importação de
alimentos contribui para impedir ou retardar a intensificação da agri-
cultura doméstica, a afluência de trabalhadores rurais as cidades pode
continuar. O resultado pode ser um mercado de trabalho frouxo nas
áreas urbanas e rurais, particularmente nos casos em que a necessidade
de financiar o alimento importado leve a uma série de medidas que
reduzem as oportunidades de emprego nas áreas urbanas.
No século passado, a pressão do crescimento populacional foi
mitigada em muitos países subdesenvolvidos graças à possibilidade da
expansão sustentada da produção de produtos tropicais para exporta-
ção. O rápido crescimento da população e da renda per capita, em
muitos países de zonas temperadas, proporcionou uma expansão dos
mercados para essas culturas a preços que eram tão elevados que os
cultivadores, ao passarem da produção de alimentos para consumo
doméstico a produção de produtos de exportação, puderam ganhar sa-

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lário ou renda de subsistência por meio de inversão de trabalho menor
do que aquela necessária para obter a mesma renda por meio da pro-
dução de alimentos em sistemas agrícolas intensivos. Por isso, um nú-
mero crescente de membros da população em expansão em países sub-
desenvolvidos passaram a cultivar produtos de exportação.
O tipo de desenvolvimento acima descrito caracteriza-se por um
forte contraste entre o setor de produtos de exportação e o setor que
continua a produzir alimentos para subsistência. Um número crescente
de pessoas no setor de exportação esta consumindo principalmente ali-
mentos e bens não agrícolas importados de outras áreas. A população
estagnada ou gradualmente declinante no setor de subsistência conti-
nua a produzir seus próprios alimentos por meio dos sistemas de pousio
longo, com baixa divisão do trabalho e contribuindo pouco para o cres-
cimento da urbanização, limitada esta a um ou poucos centros de co-
mércio exterior.
Os mercados mundiais para produtos tropicais de exportação não
mais se expandem tão rapidamente que possam constituir-se em escoa-
douro da produção das incessantemente crescentes populações rurais
dos países tropicais. Estas defrontam-se com a escolha entre trabalho
árduo na produção mais intensiva de alimentos ou migração em dire-
ção às áreas urbanas. Parecem, na maioria dos casos, escolher a última
solução, em número tão elevado que os mercados de trabalho urbano se
tornaram saturados com trabalhadores não qualificados, enquanto a
oferta de trabalho em áreas rurais é insuficiente para permitir a mu-
dança necessária do pousio longo à agricultura mais intensiva. Parece,
pois, que agora, como no passado, existe uma escolha entre a elevação
dos preços dos alimentos, a importação de alimentos ou a intervenção
direta do governo para conter as migrações.
Poder-se-ia objetar que a recente revolução das técnicas agrícolas
alterou fundamentalmente a situação a este respeito, e que agora existe
disponível uma solução adicional, a saber, modernizar e aumentar a
produção de alimentos por meio de insumos industriais, equipamentos
mecanizados e fertilizantes químicos. Mas, em comunidades rurais pri-
mitivas de países onde o alimento é barato em comparação com os
preços dos bens industriais, parece haver pequeno incentivo à utili-
zação de insumos industriais na agricultura. Assim, a possibilidade de
se fazer avançar a produção agrícola por meio da introdução de mo-
dernos insumos industriais não pode ser realizada a menos que ocorra
uma elevação nos preços agrícolas em relação aos bens industriais.
Tudo isto leva a uma questão final: quais são as implicações que
se pode tirar do presente estudo sobre as possibilidades de promover o
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crescimento econômico nas áreas subdesenvolvidas do mundo? Pode a
história ensinar-nos alguma coisa com vistas ao futuro, ou tornou-se ela
irrelevante, sob as condições modernas, diante da possibilidade de se
usar os métodos científicos e os produtos industriais na agricultura dos
países subdesenvolvidos?
É claro que não se pode responder a esta questão pela simples
referência ao fato de que a produção por homem-hora na agricultura
cresce por saltos quando métodos industriais são introduzidos em co-
munidades rurais de países já industrializados. Semelhantes mudanças
provocam uma elevação menor da produção por homem-hora quando
são introduzidas em países subdesenvolvidos, onde as habilidades ru-
rais e as comunicações permanecem em níveis primitivos. O aumento
modesto na produção por homem-hora que pode ser obtido pelo uso de
produtos industriais ou dos métodos científicos em tais comunidades
pode não ser suficiente para recompensar os escassos recursos em tra-
balho qualificado e divisas estrangeiras que eles absorvem. Parece algo
irrealista, portanto, admitir que uma revolução das técnicas agrícolas
por meio de métodos científicos e industriais modernos venha a ocorrer
em futuro próximo em países que ainda não alcançaram o estágio da
industrialização urbana. Não é muito provável, em outras palavras,
que venhamos a presenciar uma reversão da seqüência tradicional, na
qual o setor urbano tende a adotar métodos modernos muito antes do
setor agrícola experimentar uma transformação correspondente. Expe-
riências passadas podem, portanto, ter ainda alguma relevância para o
planejamento do crescimento agrícola no mundo subdesenvolvido.

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