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PROJETO

BRASIL
contato.grupoprojetobrasil@gmail.com POPULAR

CADERNO DE DEBATES
1
CADERNO DE DEBATES
1

SÃO PAULO, SETEMBRO/2017


ÍNDICE

5 APRESENTAÇÃO
9 GT DE CIDADES
19 GT DE REFORMA TRIBUTÁRIA
27 GT DE SEGURANÇA PÚBLICA
51 GT DE SISTEMA DE COMUNICAÇÃO
54 O CAPITAL É A REDE
MARCOS DANTAS
5
APRESENTAÇÃO

PROJETO BRASIL POPULAR

QUEM SOMOS?

Diante da profunda crise política, econômica e social que o Brasil atravessa no


último período, compreendeu-se como de suma importância criar um espaço para
reunir as diferentes forças de esquerda e suas bases sociais, estimuladas pelo desafio
de formular um projeto de desenvolvimento nacional que auxilie também na orga-
nização da luta de massas.

É importante destacar, no entanto, não ser de hoje que homens e mulheres deba-
tem um projeto de país. Entendemos que este é um debate permanente na vida dos
povos e estratégico para os setores populares, o qual, diante do desmonte da nação,
tornou-se urgente e dispõe de condições mais favoráveis a partir das necessidades
concretas que atualmente se apresentam.

A esquerda brasileira já formulou importantes contribuições sobre esse tema. Po-


rém, historicamente, o processo de produção dessas reflexões não esteve combinado
com o processo de articulação com movimentos populares e sindicais, resultando
em formulações teóricas que, embora consistentes, contaram com pouca capacida-
de de enraizamento social. Diante disso, nas últimas décadas nossas formulações e
estratégias não avançaram para a construção de um projeto de nação ou de um pro-
grama amplo, que transcendesse as medidas imediatas, as plataformas ou os progra-
mas eleitorais. Por isso, embora se trate de um tema com o qual temos permanente
preocupação, não temos conseguido produzir formulações e estratégias unitárias de
médio e longo prazos e que nos possibilite mobilizar força social em torno de uma
proposta viável de desenvolvimento para o país.

Nosso grupo entende ser fundamental que, em paralelo à formulação de propostas e


análises, possamos reafirmar a necessidade de diálogo com as bases sociais e o com-
promisso e disponibilidade para o debate de ideias com o povo. Mobilizados por essa
perspectiva, desde fevereiro de 2016 dedicamo-nos à tarefa de debater e formular o
conteúdo programático de um projeto nacional, democrático e soberano para o país, e
que represente uma oportunidade para a construção de uma nova hegemonia de forças
construída a partir do diálogo junto ao povo brasileiro, construindo assim força social
em torno dessas propostas.

O QUE QUEREMOS?

Não estamos partindo do zero. Diversos setores têm refletido ao longo da história
sobre propostas, estratégias e questões que apontam os problemas estruturais do
6 APRESENTAÇÃO

Brasil e indicado caminhos para a sua superação. O programa que estamos cons-
truindo deve expressar estes acúmulos e reflexões, além de buscar estimular o acú-
mulo de força social em torno desses esforços.

Fundamentalmente o que nos propomos a construir é um projeto para o Brasil que


aponte para a superação de todas as formas de desigualdades, de exploração e de
falta de liberdades. Portanto, um projeto que suscite rupturas com o passado escra-
vocrata, colonial, patriarcal, ditatorial e antipopular e que responda a um presente
de crise no qual essas dimensões estruturais da exploração e dominação e opressões
são intensificadas.

Acreditamos que a melhoria das condições objetivas de vida do povo brasileiro de-
pende do modelo de desenvolvimento econômico, político, cultural e ambiental
implantado, pois ele indicará como serão distribuídas as riquezas e a renda gerada
por toda a sociedade. E que as bases para a construção desse projeto popular para o
Brasil estão alicerçadas na construção de um Estado. Por isso definimos os seguintes
temas como nossos paradigmas que guiarão nossas reflexões:

Vida boa para todos/as: entender que a vida vale a pena ser vivida em
todas as suas dimensões e que por isso devemos orientar as formas de
produção dos bens, a reprodução social e os bens públicos para garantir
a qualidade de vida de todos/as. Nessa perspectiva, é preciso pensar o
ser humano em sua integralidade.
Bens comuns: prezar pela garantia e soberania dos bens compartilhados
pelas comunidades: natureza, ar, água, cultura e os espaços públicos.
Igualdade e diversidade: devemos superar as condições de opressão,
buscando engendrar novas relações sociais entre as pessoas.
Democracia, Participação e autonomia: devemos refletir sobre qual
o sentido público do Estado, retirando-o da condição de simples garan-
tidor de direitos, para estabelecer como prioridade prestar serviços de
qualidade ao povo. Devemos refletir também sobre como será exercido
o poder pelo povo e sobre como será autonomia desse Estado.
Soberania Nacional e Desenvolvimento: apontar um caminho para
o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde
os compromissos sociais submetam a lógica da economia de merca-
do. Além de formular um projeto nacional que possibilite ao nosso país
crescer com soberania.
Esses paradigmas são referências gerais para o trabalho do grupo, e também para as
discussões temáticas devendo ser considerados mesmo para elaborações mais espe-
cíficas. Em processo cíclico de construção, os Grupos de Trabalhos Temático devem
ao mesmo tempo em que partem deles para construir propostas, enriquecê-los com
novas formulações.
7
APRESENTAÇÃO

MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DO PROJETO


Partimos de um contexto histórico que leva a necessidade de um debate de projeto
de país devido sua gravidade. Entendemos que a burguesia não possui um projeto
nacional e utilizou esse contexto de crise econômica para provocar uma instabilida-
de política e impor um projeto neoliberal. Diante disso, a esquerda deve se debruçar
para a produzir um projeto popular para o país.

Portanto, precisamos recuperar a tradição civilizatória do pensamento humanista para


construir um projeto de país e, com ele, uma alternativa de sociedade construída junto
ao povo. Por esse motivo o método é tão importante quanto o resultado. Entendemos
que o programa só cumprirá sua função se for uma produção coletiva que deve com-
binar conhecimento científico e militância social. Apenas dessa forma será ampliada
nossa capacidade de mobilização: considerando o povo como protagonista das mudan-
ças no país. Por isso, devemos constantemente checar nossa reflexão com a realidade e
interpretar as contradições para a partir delas formularmos novas propostas.

O método com o qual nos propomos a trabalhar é coletivo, dialógico e dialético.


Capaz de envolver diversos setores, conjugando especificidades e especialidades, te-
mas, regiões, naturezas diversas dos sujeitos, dialogando com a visão do todo e com
a visão dos lugares desses sujeitos.

O processo de construção será numa espiral crescente, partindo da produção de


sínteses que serão retomadas para maior aprofundamento, possibilitando então no-
vas sínteses. Temos dois desafios importantes: 1) produzir um projeto de nação; 2)
transformar esse projeto em um instrumento do processo político pedagógico que
estimule nosso povo a debater, criticar e formular novas questões; 3) formular sín-
teses coletivas a partir desse acumulo e criar força social em torno dessas propostas.
Neste sentido, esse é um processo contínuo no tempo e na sua intencionalidade,
um processo permanente de disputa de hegemonia de um projeto de nação na so-
ciedade brasileira.

Atualmente possuímos 30 grupos de trabalho temáticos (GTs) que possuem a tarefa prio-
ritária de refletir sobre os temas estratégicos para a formulação de um projeto de país. Esses
grupos de trabalho são constituídos por intelectuais comprometidos com o desenvolvi-
mento do país; militantes dos movimentos populares que trazem o acumulo de propostas
de cada movimento; trabalhadores com experiência na política pública com conhecimento
em diversas áreas. Os GTs debatem e formulam propostas para que obtenhamos uma
elaboração programática que possa posteriormente ser discutida pela sociedade, buscando
com isso agregar força social e apontar para as bases de um projeto de país.

Além dos GTs, foram estabelecidos Eixos Temáticos. A discussão em eixos objetiva
potencializar a transversalidade dos temas discutidos nos grupos e garantir que os
documentos produzidos por eles tenham visibilidade e unidade programática.
8 APRESENTAÇÃO

Não devemos ter a pretensão de dar solução para tudo, muito menos em nome de
todos e todas, mas buscaremos agir em torno de um esforço coletivo e intelectual,
para formular um projeto que sirva como referência para as lutas sociais e para o
pensamento crítico brasileiro.

Somar-se ao Projeto Brasil Popular é vislumbrar a esperança de construção coletiva das


condições que irão possibilitar ao Brasil ser um país mais justo, soberano e democrático.

Eixos Temáticos
Direitos
Cultura
Educação
Esporte
Cidades
Religião, Valores e Comportamento
Saúde Coletiva
Economia, Desenvolvimento e Distribuição de Renda
Agricultura Biodiversidade e Meio Ambiente
Demografia e Migrantes
Desenvolvimento Regional
Caatinga e Semiárido
Ciência, Tecnologia e Inovação
Economia
Energia e petróleo
Financeirização
Logística e Transporte
Mineração
Reforma tributária
Seguridade Social e Previdência
Trabalho, Emprego e Renda
Estado, Democracia e Soberania Popular
Democratização da Justiça e Direitos Humanos
Estado, Democracia, Participação Popular e Reforma Política
Federalismo e Administração Pública
Sistema de comunicação
Relações Internacionais, Integração Regional e Defesa
Segurança pública
Igualdade, Diversidade e Autonomia
Combate ao Racismo e Igualdade Racial
Juventude
LGBT
Mulheres
Povos Indígenas
GT DE
CIDADES
GT DE
10 CIDADES

BR CIDADES - UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASIL


O MUNDO MUDOU, A SOCIEDADE BRASILEIRA MUDOU, A ECONOMIA BRASILEIRA MUDOU,
A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO MUDOU E O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO TAMBÉM

Diversos autores concordam que o Brasil vive o fim de um ciclo. O país cresceu eco-
nomicamente a altas taxas (PIB de mais de 7% a.a), entre 1940 e 1980, quando o
país se industrializou e se urbanizou. Esse período foi seguido pelas chamadas déca-
das perdidas (1980 e 1990) marcadas pelo fim da ditadura (1964-85) e depois pelos
anos conhecidos pelo fenômeno do lulismo (Singer, 2012): crescimento econômico
com alguma distribuição de renda seguido de crise.

No contexto internacional, durante os anos 70, vivemos a transição entre o capitalismo


do Estado-providência e a globalização neoliberal, com a flexibilização do grande acor-
do entre Estado, Sindicatos e Capitais sob a crescente hegemonia do capital financeiro.
A desigualdade e a informalidade se aprofundaram. Direitos foram flexibilizados.

Nas cidades do mundo, a globalização neoliberal escreveu vários capítulos: o plane-


jamento estratégico, o “urbanismo do espetáculo”, o urbanismo dos megaeventos, a
cidade global ou cidade mercadoria (que se vende e compete com outras para atrair
capitais), smart cities (conferir glossário) e finalmente a financeirização que levou às bolhas
imobiliárias (conferir glossário) mais evidentes nos EUA e na Espanha (Arantes, 2000; Vai-
ner, 2011; Fix, 2011). Esses capítulos também puderam ser lidos nas cidades brasileiras
(com as especificidades decorrentes da condição capitalista periférica) com algumas va-
riações proporcionadas pelos movimentos democráticos pós ditadura de 1964.

As mudanças vividas pelo capitalismo global – hegemonia do capital financeiro e


conglomerados internacionais, internacionalização da produção e do consumo, mu-
danças na tecnologia e organização da produção – impactou a indústria brasileira,
fortemente, reduzindo sua expressão e ampliando sua internacionalização, em três
momentos principais: (1) governo Collor, (2) governo FHC e, mais recentemente,
(3) no governo Temer, após impedimento da presidenta Dilma Roussef marcando
o fim de um breve período democrático e distributivo. O peso da indústria no PIB
brasileiro recuou, em 2015 às proporções de 1910 (Pochmann, 2017).

Paralelamente, enquanto o país retorna à condição primordial de exportador agrá-


rio (commodities: grãos, carnes, celulose, minérios) há uma profunda mudança na
ocupação do território com a interiorização do agronegócio e também do cresci-
mento urbano. Crescem mais as cidades médias (em PIB e em população) do que
as metrópoles, de um modo geral, a partir dos anos 80, e crescem mais as cidades
do norte e centro oeste.

Durante o período do lulismo todas as regiões do país cresceram mais, economi-


camente, do que o sudeste, que, entretanto, continua a concentrar maior poder
econômico (Araújo,2000; Diniz, 2001).
GT DE 11
CIDADES

INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO DOS BAIXOS SALÁRIOS

O processo de industrialização tardia se deu paralelamente ao processo de urbanização,


de forma concentrada, com migrantes rurais atraídos pelas metrópoles (e expulsos do
campo), principalmente da região sudeste.Essa “industrialização com baixos salários”
correspondeu uma “urbanização dos baixos salários”, isto é, a maior parte da classe tra-
balhadora migrante resolveu os problemas do seu assentamento nas cidades com seus
parcos recursos, construindo suas próprias casas, sem a atenção das políticas públicas.
Além de contribuir com o processo de acumulação, de base industrial, essa força de tra-
balho barata não disputou os investimentos públicos urbanos (habitação, saneamento,
mobilidade, etc) que se concentraram na cidade priorizada pelo mercado imobiliário,
legal, capitalista. Especulação rentista imobiliária (conferir glossário) de um lado é o con-
traponto da escassez habitacional (Maricato, 2015).

A LUTA CONTRA A DITADURA, MOVIMENTOS SOCIAIS E REFORMA URBANA

O processo de urbanização/industrialização com concentração de renda e repressão


política gerou cidades muito desiguais e problemáticas. Nos anos 70, nas fábricas e
bairros surgiram novos personagens (Sader, 1988) que se organizaram em sindicatos
e movimentos sociais para conquistar melhores salários e condições de trabalho,
e melhores condições de vida urbana. Estimulados pelas CEBs – Comunidades
Eclesiais de Base da Igreja Católica e remanescentes de esquerda, da luta contra a
ditadura, os movimentos sociais, que lutavam por moradia, transportes, água enca-
nada, creches, postos de saúde, escolas, iluminação pública, recuperaram a proposta
de Reforma Urbana do período pré-1964 e passaram a discutir uma plataforma de
cidade inclusiva e democrática. Esse processo, somado à ascensão do movimento
operário, camponês (MST) e de artistas logrou criar novas instituições (CUT, CMP,
CGT), novos partidos (PT, PDT, PSB e PCB e PC do B que saíram da clandesti-
nidade), que levaram à conquista de uma nova Constituição Federal em 1988. A
Emenda Popular Constitucional de Reforma Urbana não foi aprovada como que-
riam os movimentos sociais, mas elevou o direito à moradia à condição de direito
social, e inspirou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 88 consagrando a
Função Social da Propriedade e a Função Social da Cidade.

PREFEITURAS DEMOCRÁTICAS E POPULARES E A DEMOCRACIA DIRETA NA


DISCUSSÃO DO ORÇAMENTO PÚBLICO

Faziam parte das lutas pela Reforma Urbana profissionais (arquitetos, engenheiros, as-
sistentes sociais, geógrafos, advogados), ONGs, sindicatos e movimentos sociais urba-
nos. Enquanto a eleição direta para presidente, governador e prefeitos das capitais era
proibida, os movimentos ligados à proposta de Reforma Urbana conquistaram prefei-
turas de municípios menores e passaram a desenvolver experiências de administração
pública inovadoras. Os bairros de moradia dos trabalhadores, antes ignorados pelas
GT DE
12 CIDADES

gestões municipais, tornaram-se foco dos investimentos sob a bandeira da “Inversão


de prioridades”. Levar cidade – água, esgoto, drenagem, coleta de lixo, iluminação pú-
blica, equipamentos sociais – às periferias e favelas passou a ser prioridade de governo.
Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador iniciaram essas práticas.

Outro programa importante que nasce dessas práticas é hoje denominado Assistên-
cia Técnica à Habitação de Interesse Social. Arquitetos e engenheiros projetando
moradias populares com participação social tem permitido a construção de mora-
dias de boa qualidade arquitetônica e construtiva com baixo custo. Esse programa,
que se consolidou na gestão de Luiza Erundina em São Paulo (quando a eleição
direta nas capitais já era admitida), inspirou a Lei federal de Assistência Técnica que,
como muitas outras, espera condições favoráveis a sua aplicação.

Para driblar o alto custo dos metrôs, as prefeituras implementaram corredores de


ônibus e integração modal (conferir glossário), replicando uma proposta iniciada em
Curitiba. A criação do SUS (EC n. 29) trouxe novas práticas para a área de saúde.
Segurança alimentar se tornou tema de políticas públicas, junto com o cultivo de
alimentos saudáveis.

Tendo como referência a proposta dos Centro Integrado de Educação Popular -


CIEPs, concebida por Darcy Ribeiro para o Governo de Leonel Brizola, no Rio de
Janeiro, surge renovada a proposta de educação em tempo integral com alimen-
tação, práticas artísticas, esportivas e culturais além do ensino fundamental, nas
periferias das cidades.

Conselhos participativos se multiplicaram orientando a formalização de políticas


públicas: criança e adolescente, idoso, educação, saúde, segurança alimentar, habi-
tação, desenvolvimento urbano, mulheres, igualdade racial, LGBT, entre outros.

Mas é o orçamento participativo o programa mais bem sucedido. Na experiência


de Porto Alegre, implantou-se a democracia direta na orientação do orçamento
público, denominado “orçamento participativo”. A repercussão internacional e a
disseminação pelo Banco Mundial levaram à distorções da proposta original. A re-
ferência permanece mostrando que a gestão democrática e participativa é possível.

Um importante, moderno e avançado conjunto de leis, dirigido às cidades, teve iní-


cio com a CF 88. Faz parte dele: O Estatuto da Cidade (Lei federal 10.257/2001),
a lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei de Consórcios
Públicos (2005), a Lei do Saneamento Básico (2007), a Lei dos Resíduos Sólidos,
a Lei da Mobilidade Urbana, O Estatuto da Metrópole (2015) entre outras. Leis
avançadas para uma realidade arcaica: permanecem desconhecidas pelo Judiciário,
Ministério Público, mas também por executivos e legislativos bem como pela maio-
ria da sociedade.
GT DE 13
CIDADES

A CRISE URBANA ESCANCARADA: JUNHO DE 2013

Os acontecimentos de junho de 2013, quando milhares de pessoas foram às ruas pro-


testar contra, inicialmente, o aumento da tarifa dos ônibus urbanos exigem um maior
aprofundamento da análise. Marcam o início da perda da hegemonia do Partido dos
Trabalhadores e entidades tradicionais de esquerda nas manifestações de rua, e no-
vos movimentos e coletivos se fazem presentes. Certamente os movimentos de direi-
ta, pagos por grupos empresariais e mesmo por milionários americanos, já tinham
seus ideários ali. Mas o que as manifestações acentuam é que se torna impossível
esconder a piora nas condições de vida urbana. Basta olhar os dados do tempo cres-
cente perdido nas viagens urbanas (ANTP), os crescentes congestionamentos pro-
vocados pelo aumento da circulação de automóveis, o crescente número de mortos
ou acidentados no trânsito, a crescente poluição do ar e, o que é pior, o aumento das
tarifas por um transporte coletivo de má qualidade (Maricato, 2013).

Muitos recursos foram dispendidos em mega obras para receber a Copa do Mundo
no Brasil. Depois foi a vez de o Rio de Janeiro ser preparado para as Olimpíadas,
seguindo uma gigantesca operação imobiliária – marcada pelo “urbanismo do espe-
táculo” – que expulsou para as periferias mais de 40.000 pessoas pobres (Faulhaber
e Azevedo, 2015; Vainer et al, 2016).

Além do boom automobilístico, as cidades viveram um boom imobiliário (conferir


glossário) que fez o metro quadrado dos imóveis atingir patamares entre os mais altos do
mundo (Revista Exame, 2011). As cidades médias passaram por um forte processo
de espraiamento com a disseminação, por todo território nacional, do loteamento
fechado. O produto do mercado imobiliário que é mais lucrativo e mais se dissemi-
na, estendendo horizontalmente a ocupação urbana, contraria a lei federal 6766/79
que regula o parcelamento do solo. O Programa Minha Casa Minha Vida, lançado
em 2009 pelo Governo federal, retomou de forma espetacular o investimento em
moradia, com subsídios nunca antes praticados para a população de baixa renda,
mas esqueceu-se das lições da Plataforma da Reforma Urbana: é preciso controlar
o acesso a terra ou conter a especulação imobiliária desenfreada. E isso, segundo a
CF-1988, é tarefa dos governos municipais.

Os programas habitacionais do ciclo virtuoso das “prefeituras democráticas e popu-


lares”, a produção da habitação com assistência técnica e participação social, ficaram
com apenas 2% do orçamento do PMCMV. O restante foi orientado pelos setores
de construção e do mercado imobiliário. A máquina do crescimento tomou conta
das cidades em simbiose com os financiamentos das campanhas eleitorais.

Sobra uma constatação: no período das vacas magras, quando haviam poucos recur-
sos para as políticas públicas havia espaço para a democracia direta nas definições
da política urbana. Quando os recursos apareceram, como parte de um projeto
GT DE
14 CIDADES

desenvolvimentista para fazer frente à crise internacional de 2008, a democracia


direta desapareceu. Nem a criação do Ministério das Cidades, com seu Conselho
Nacional que inclui a participação de entidades da sociedade civil, nem as Confe-
rencias municipais, estaduais e federal participativas, nem, finalmente, o arcabouço
legal avançado conseguiram resistir à mudança na correlação de forças que engoliu
a política de coalizão (Maricato, 2011).

RETOMAR UM PROJETO PARA AS CIDADES

Um novo projeto para as cidades no Brasil deve ser antecedido da reflexão crítica
sobre a experiência recente aqui apenas esboçada.
Quais as causas do declínio do “ciclo virtuoso” da política urbana implementada
por prefeituras municipais a partir dos anos 80? Qual o peso da conjuntura interna-
cional nesse cenário? E da conjuntura nacional?
Porque os “Planos Diretores Participativos”, obrigatório nas cidades com mais de
20.000 habitantes, segundo o Estatuto da Cidade, não garantiu mudança significa-
tiva da desigualdade urbana?
Porque a Plataforma da Reforma Urbana, que tinha a questão fundiária como
central, foi derrotada, em que pese a conquista do arcabouço legal avançado?
Porque a ampliação dos espaços participativos institucionais foi acompanhada do
enfraquecimento da capacidade transformadora dos movimentos sociais?
Porque a “máquina do crescimento” (articulação entre capitais ligados à produ-
ção do espaço construído, mercado imobiliário, capitais financeiros e proprietários
fundiários) tomou o controle das cidades no período do lulismo quando muitas
políticas sociais foram implementadas?
Porque num período de políticas distributivas – aumento do salario mínimo,
bolsa família, luz para todos, Prouni, Fies, PAA, Pronaf, subsídios do PMCMV- as
condições de vida pioraram nas cidades (tempo de viagem/mobilidade, preço da
tarifa do transporte coletivo, epidemias de dengue, zika, chikungunya, aumento
estratosférico do preço dos imóveis, aumento exagerado da dispersão urbana, des-
governo metropolitano)?

ALGUMAS SUGESTOES DE PROPOSTAS

Há todo um capítulo que deve ser dedicado à aplicação da legislação urbanística


recentemente conquistada e ignorada: prioridade aos transportes não motorizados
e coletivos; aplicação da função social da propriedade e da cidade; universalização
do saneamento; respeitar a participação social no planejamento e gestão urbanos,
entre outras. Que fazer para implementar o arcabouço legal que amplia direitos? Por
exemplo, que fazer para que o Estatuto da Metrópole seja implementado garantin-
do racionalidade e articulação entre governos nas metrópoles hoje desgovernadas?
GT DE 15
CIDADES

Mesmo se considerarmos que a conquista dessa legislação não garantiu direitos e


colocá-la como prioridade foi um equívoco dos movimentos ligados à Reforma
Urbana cabe lutar por novas leis? Cabe manter a concepção descentralizadora da
CF-1988, que dá tanta autonomia aos municípios? É necessário definir melhor o
que se entende por função social da propriedade?

Sobre a questão ambiental: o ciclo que se encerra não viveu a urgência de fatos
como o aquecimento do planeta, a crise hídrica, a ameaça dos agrotóxicos e trans-
gênicos. Novos paradigmas devem ser introduzidos em um projeto para as cidades
como: a diminuição da viagem dos alimentos; a agricultura urbana; a segurança
alimentar; a proteção das reservas hídricas; proteção efetiva de APPs – Áreas de
Preservação Permanente, APMs – Áreas de Preservação de Mananciais, mangues e
dunas; a proteção efetiva e despoluição de cursos de água; a despoluição do ar com
a priorização do transporte coletivo; a cidade de uso misto e compacta com garantia
de habitação social (esta é atingível apenas com o controle efetivo sobre o uso e a
ocupação do solo).Engajar o ensino fundamental na vida da cidade combatendo o
analfabetismo urbanístico e implementar a política de extensão universitária pode-
ria ser uma contribuição fundamental para combater a alienação e a representação
da classe dominante sobre as cidades.

Muitas das propostas do ciclo virtuoso da política urbana merecem retornar à cena: as-
sistência Técnica à HIS para reformas e novas moradias, urbanização de favelas e áreas
precárias, construção de CEUs e CIEPs, entre outras, mas em especial o controle dos
recursos públicos por meio do Orçamento Participativo merece ser replicado.

O grande tema da política urbana ainda é levar cidade à periferia, ou seja, colocar a
periferia no centro: urbanizá-la, saneá-la, regularizá-la, propiciar mobilidade e quebrar
com a escandalosa desigualdade e segregação que tem no preço do solo sua lógica.

Há evidências de novos personagens em cena: mulheres, negrxs, lgbt´s, movimen-


tos ligados à cultura e à arte, movimentos ambientalistas, mobilidade urbana. Há
novidades na apropriação dos espaços públicos urbanos em consonância com a mu-
dança nas comunicações. Há a emergência de movimentos de jovens que ocupam
escolas revelando o rompimento com a tradicional uma relação alienada dos jovens
com a educação. Essa tendência se soma à mudança da classe trabalhadora que
construiu o ciclo que ora se encerra exigindo mudança estratégica da esquerda. A
desindustrialização, as flexibilizações, as terceirizações, o empreendedorismo sobre
os quais não podemos ter uma visão catastrofista.

COORDENAÇÃO:
ERMÍNIA
MARICATO E
KARINA LEITÃO
GT DE
16 CIDADES

GLOSSÁRIO
BR CIDADES - UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASIL

SMART CITIES
ou Cidades Inteligentes se refere à aplicação dos instrumentos de Tecnologia
da Informação, especialmente aplicativos em celulares, na gestão, no funcio-
namento e no uso das cidades. Esses instrumentos podem efetivamente faci-
litar, baratear e desburocratizar a relação do cidadão com a cidade bem como
tornar sua gestão mais transparente mas também podem se prestar à histórica
dominação exercida, na periferia do capitalismo, por empresas que detém a
tecnologia e cobram por seu uso.

BOLHA IMOBILIÁRIA
Aumento rápido na produção e preço de imóveis durante um certo período
seguido de queda também rápida com impacto no preços de ações, imóveis
construídos, terrenos e aluguéis. Nas bolhas americanas e espanhola (2008),
caracterizadas por especulação financeira com papeis lastreados (inicialmente)
em imóveis, houve forte impacto também nas condições de moradia devido
aos despejos motivados pelo não pagamento de dívidas.

BOOM IMOBILIÁRIO
Aumento rápido na produção e preço dos imóveis durante certo período se-
guido de queda brusca. O aumento da produção é sempre, necessariamente,
garantido pela injeção de investimentos públicos ou privados para o financia-
mento. Em mercados imobiliários não regulados, acarreta o aumento do pre-
ço da terra e de imóveis podendo, ao invés de diminuir a carência de moradia,
aumentá-la. Há uma disputa entre capitais – de construção , de incorporação,
financeiro e proprietário da terra – pelos juros, lucros e rendas gerados nessa
produção e comercialização.

ESPECULAÇÃO RENTISTA IMOBILIÁRIA


A produção de edifícios e infraestrutura urbana, bem como a legislação urba-
nística, gera valorização sobre terrenos e imóveis aumentando seu preço. Há
uma disputa, na sociedade, pelos investimentos públicos e legislação que vai
permitir ganhos rentistas pelos proprietários de imóveis ou de papéis lastrea-
dos nos mesmos. A retenção de terras ou imóveis vazios aguardando valori-
zação é a forma mais comum de especulação rentista imobiliária nas cidades
brasileiras e ela contrasta com a grande carência de moradias.

INTEGRAÇÃ O MODAL
Integração em rede das diferentes formas ou modos de viagem: a pé, de bi-
cicleta, de transporte coletivo (trilhos ou pneu) , de transporte motorizado
GT DE 17
CIDADES

individual (automóvel e moto). A mobilidade deve ser pensada como rede


integrada assim como o bilhete pago pelos transportes coletivos.

REFERÊNCIAS

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VAINER, C. et al (org.). Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas. Rio de


Janeiro: Letra Capital, 2016.

_________. Megaeventos, Cidade de Exceção e Democracia Direta do Capital: Re-


flexões a partir do Rio de Janeiro. In: Anais do XIV Encontro Nacional da ANPUR.
Rio de Janeiro: ANPUR, 2011.
GT DE
REFORMA
TRIBUTÁRIA
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1. QUESTÕES CENTRAIS
NO DEBATE SOBRE
A REFORMA TRIBUTÁRIA
Um dos principais mecanismos para a concentração de renda, riqueza e poder é
transferir o fardo dos impostos para os mais pobres e a classe média, como lembra
Noam Chomsky1. Trata-se de uma referência específica ao capitalismo em sua fase
financeira, pois nos chamados anos de ouro, a tributação exerceu um papel muito
mais amplo nos países desenvolvidos, constituindo o principal instrumento a sus-
tentar o Estado de bem-estar social e, juntamente com uma política de gastos bem
orientada, a realizar a redistribuição de renda, promover investimentos e alcançar o
pleno emprego.

A afirmação de Chomsky também nos faz lembrar do caráter eminentemente po-


lítico e ideológico da tributação. A tributação não é e nunca foi “neutra”, como
pretendem os neoliberais. Para estes, o Estado deve interferir o mínimo possível
na economia, mas, contraditoriamente, deve ser o garantidor da riqueza financeira
privada; a tributação deve se reduzir à sua função arrecadatória, não deve orientar
investimentos e nem criar obstáculos ao livre comércio e fluxo de capitais.

No Brasil, desde os anos 90, a pauta predominante da tributação segue, justamente,


as premissas do neoliberalismo e, especialmente, as recomendações do Consenso de
Washington. Na equação do ‘Consenso”, estão, de um lado, a sustentação sólida aos
gastos governamentais (leia-se gastos financeiros com os credores da dívida pública,
como demonstra a experiência dos últimos 20 anos) conjugada com a redução da
carga sobre os rendimentos dos mais ricos, e, de outro, a ampliação da base de inci-
dência (leia-se aumento da carga de tributos indiretos, voltada, portanto, aos mais
pobres). Em suma, aumentou-se a carga sobre os mais pobres para sustentar o duplo
benefício aos mais ricos: a remuneração rentista e a sua desoneração tributária.

Desde então, o foco da discussão sobre a reforma tributária tem sido, basicamente,
o tamanho da carga e a guerra fiscal: os empresários querem pagar ainda menos e os
entes federados dizem que não podem abrir mão de arrecadação. Contudo, poucos
discutem as verdadeiras deficiências e injustiças do sistema tributário que empur-
ram o ônus de financiamento do Estado para os ombros dos mais pobres, dos traba-
lhadores e da classe média assalariada, reforçando a concentração de renda e riqueza.

No campo democrático e popular, as questões que balizam este debate se iniciam


por definir qual é o Estado que queremos e a quem deve servir. Um Estado que
garanta direitos sociais universais ou não? A partir deste ponto, a questão central
não é o tamanho da carga, mas a sua distribuição: quem vai pagar a conta do finan-
1. Documentário Réquiem para ciamento do Estado e suas políticas públicas e em que proporção? A tributação será
o Sonho Americano.
um instrumento de redistribuição ou de concentração de renda e riqueza?
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TRIBUTÁRIA
CIDADES

Os diagnósticos, desafios e propostas elencados nesta primeira síntese programática


do GT de Reforma Tributária partem da premissa de que o modelo de Estado mais
adequado para a construção de uma sociedade de bem viver, deve partir das princi-
pais diretrizes elencadas na Constituição Federal de 1988, aperfeiçoando-as e rea-
lizando-as, de modo a aprofundar seu caráter democrático em todas as dimensões,
política, social e econômica.

2. PRINCIPAIS DESAFIOS
À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Dentre os mecanismos difusores da desigualdade estão a predominância dos impos-


tos indiretos na carga tributária, o esvaziamento da tributação das rendas dos donos
do capital e a baixa tributação da propriedade, herança e outras formas de riqueza.
Para além do problema distributivo, a concentração da carga tributária nos impos-
tos indiretos é também nociva à eficiência e à competitividade do sistema produtivo
brasileiro.

Não obstante, é preciso evitar o entendimento simplista de que a simples redução


da carga tributária incidente sobre o consumo já seria suficiente para a afastar o
efeito regressivo do sistema fiscal como um todo, pois esta medida tão somente
produzirá a diminuição da capacidade do Estado para promoção de políticas pú-
blicas, o que por si só, constitui um importante fator de desigualdades. A solução
encontra-se em outro sentido: é fundamental fortalecer a tributação direta sobre as
altas rendas e a riqueza.

Um sistema tributário reflete a correlação de forças políticas e sociais de um país.


No Brasil, não é diferente. A estrutura regressiva é resultado da resistência histórica
das classes proprietárias à tributação de sua renda e riqueza. Somente no bojo de
um vigoroso processo de transformações sociais com forte mobilização popular será
possível reverter tal situação.

3. PROPOSTAS PARA SUPERAR


OS PRINCIPAIS PROBLEMAS
DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

3.1. REESTABELECIMENTO DA PROGRESSIVIDADE


DA TRIBUTAÇÃO DA RENDA
2. Revogação dos dispositivos que
permitem a distribuição dos lucros e
dividendos com isenção ou tributação
A progressividade do Imposto de Renda da Pessoa Física, que visa a cobrar mais favorecida (artigos 9º e 10º da Lei
de quem ganha mais, foi neutralizada no governo FHC pela isenção concedida 9.249) e submeter esses rendimentos,
bem como, os relativos às aplicações
aos sócios e acionistas quanto aos lucros e dividendos recebidos das empresas. De financeiras e ganhos de capital à tabela
progressiva, sem prejuízo das retenções
outro lado, os rendimentos financeiros e ganhos de capital são tributados exclusi- na fonte. Sem essa medida, a elevação
da alíquota máxima só alcançará os
vamente na fonte a alíquotas mais baixas e não são submetidos à tabela progressiva rendimentos do trabalho.
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do IR. Hoje, apenas os rendimentos do trabalho são tributados de forma pro-


gressiva. Esta é a fratura exposta do sistema tributário brasileiro. Um segundo
problema no que se refere ao IR, é o fato de nossa maior alíquota do IR (27,5%)
ser muito baixa, inferior à praticada nos países desenvolvidos e mesmo aos países
com algumas características semelhantes.

PROPOSTAS:

Submeter todos os rendimentos, independentemente de sua origem


(se do capital ou do trabalho) à tabela progressiva de incidência2.

Reestruturar a tabela progressiva do IR, de modo a aumentar o limite


de isenção para o equivalente ao Salário Mínimo mensal calculado pelo
DIEESE e ampliar o número de faixas de incidência, com alíquotas mais
elevadas, a partir dos rendimentos acima de 40 SM mensais.

3.2. ELEVAÇÃO DOS NÍVEIS


DE TRIBUTAÇÃO SOBRE A PROPRIEDADE

Outro problema relevante é a baixa tributação do patrimônio no Brasil, ao contrá-


rio de países com distribuição de renda e riqueza mais igualitária. A arrecadação dos
tributos sobre o patrimônio (IPTU, ITR, ITCMD, IPVA, ITBI e IGF) é insignifi-
cante, representa apenas 4,2% do total arrecadado no país.

De todos os tributos sobre o patrimônio no Brasil, o Imposto Territorial Rural foi


o que mais sofreu a blindagem dos donos do poder. O caráter extrafiscal do ITR -
o uso do tributo como instrumento capaz de desestimular a manutenção da terra
ociosa - nunca cumpriu seu ideal, apesar da cobrança do imposto ser viável, como
demonstraram algumas breves experiências na Receita Federal. Sua arrecadação,
contudo, é irrisória unicamente por conta das resistências políticas dos grandes pro-
prietários de terras.

O Brasil é um dos países que menos tributam a herança. O imposto que grava os pa-
trimônios herdados é o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD)
de competência estadual. As maiores alíquotas praticadas no Brasil são de 8% e a
alíquota média cobrada pelos fiscos estaduais é de 3,86% sobre o valor herdado, pra-
ticamente um vigésimo da taxa praticada na França (60%), um décimo da vigente
3. A proporção restante encontra-se na Inglaterra e EUA (40%) e um terço da aplicada no Chile (13%).
em tributos de maior complexidade
com relação à sua classificação por
bases de incidência.
Por sua vez, a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas não saiu do
papel passados quase 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã.
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CIDADES

Em relação ao patrimônio urbano, estudos e comparações internacionais demons-


tram que há uma clara há uma clara subtributação dos imóveis e que o IPTU
poderia saltar dos 0,42% do PIB para mais de 1% do PIB, somente com correções
de iniquidades.

PROPOSTAS:

Administração compartilhada do IMPOSTO TERRITORIAL RURAL - ITR


entre a União e os entes federados, observando os aspectos fundiário e
ambiental que o tributo contempla como instrumento indutor do cum-
primento da função social da terra.

Elevação das alíquotas máximas do Imposto sobre Herança (ITCMD)


pelo Senado. Há também um projeto de lei que tramita no Congresso Na-
cional de tributar a herança no imposto de renda, com alíquotas variando
de 15 a 20% para heranças acima de 5 milhões (a previsão de arrecadação
seria de R$ 1,6 bi.).

Regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas.

Ampliação dos critérios constitucionais para aplicação da progressivi-


dade efetiva em relação ao IPTU.

3.3. REEQUILÍBRIO NA DISTRIBUIÇÃO


DA CARGA TRIBUTÁRIA ENTRE AS BASES RENDA,
CONSUMO E PATRIMÔNIO

No ano de 2015, quase 55% da arrecadação tributária nacional foi extraída da inci-
dência sobre o consumo das famílias. Como os mais pobres consomem tudo o que
ganham, sobre estes recai o maior peso dos tributos. Menos de 5% da arrecadação
nacional incidiu sobre o patrimônio, reflexo da resistência histórica dos grandes pro-
prietários em relação à tributação de seu patrimônio. E aproximadamente 29% do to-
tal arrecadado no país se originou da tributação da renda de pessoas físicas e jurídicas3.

O tributo indireto mais importante do país é o ICMS, de competência dos Estados


e do Distrito Federal. Responde por mais de 25% da arrecadação total do país. Em
segundo lugar está a COFINS, contribuição social destinada ao financiamento da
Seguridade Social. Portanto, a redução dos níveis de tributação indireta passa ne-
cessariamente por modificações nestes dois tributos. O desafio se situa em como
diminuir a regressividade do sistema tributário sem enfraquecer as receitas dos
entes federados e o financiamento da seguridade social.
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24 TRIBUTÁRIA

PROPOSTAS:

Aplicação efetiva do princípio da seletividade previsto na CF/88 em


relação ao ICMS e ao IPI, de modo a reduzir a tributação sobre os bens
essenciais, como os da cesta básica e outros de consumo básico popu-
lar, e, de outro lado, a aumentar as alíquotas sobre os menos essenciais,
de luxo e supérfluos.

O fortalecimento do IR da pessoa física, conforme proposta acima men-


cionada, representará significativo incremento no Fundo de Participação
dos Estados e Municípios, podendo compensar eventuais perdas de arre-
cadação dos Estados.

Redução das alíquotas da COFINS, compensando-se a perda de arrecada-


ção com maior tributação sobre a base renda ou patrimônio. Há várias alter-
nativas: aumento de alíquotas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido,
criação de Contribuição Social sobre o grande patrimônio ou sobre a rique-
za financeira ou, ainda, CS sobre a distribuição de lucros aos sócios e acionis-
tas (nos últimos dois casos, necessitaria de alterações constitucionais).

4. TRIBUTAÇÃO SOBRE O SETOR EXTRATIVO MINERAL

A tributação do setor extrativo mineral também deve ser revista por conta do seu po-
tencial arrecadatório e devido às suas peculiaridades: são recursos naturais esgotáveis
que não beneficiarão as gerações futuras e geram efeitos ambientais e sociais negativos.
A participação do Estado na renda extrativa deve se dar não apenas pela tributação,
mas também pela cobrança de royalties e compensações financeiras em virtude do es-
gotamento do recurso. Estas últimas devem ser suficientes para a geração de novas
alternativas econômicas sustentáveis sem os recursos minerais. Nem a tributação, nem
as compensações financeiras servem para reparar danos ambientais ou sociais das ati-
vidades. Estes danos devem ser internalizados como custos nos projetos de exploração.

PROPOSTAS:

Tributação diferenciada (da renda, do patrimônio e da própria extração).

Vedação legal de utilização de paraísos fiscais nas transações de recursos


minerais.

Arbitramento dos preços pela Administração Tributária para fins de


incidência dos tributos. 
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TRIBUTÁRIA
CIDADES

5. A REFORMA TRIBUTÁRIA NO ATUAL CONTEXTO INTERNACIONAL

O debate da Reforma Tributária costuma limitar-se a questões nacionais, sem levar


em conta os impactos negativos na arrecadação fiscal próprios da economia globa-
lizada: o crescente aumento do comércio intrafirmas e o uso abusivo de paraísos
fiscais nas transações internacionais, ou seja, da concorrência tributária interna-
cional desleal. A erosão da base tributável e a transferência de lucros e riquezas para
esses paraísos fiscais são, atualmente, a causa da maior perda de ingressos de receitas
tributárias, bem como de injustiça fiscal mundial, na medida em que outros con-
tribuintes, de menor capacidade contributiva, acabam por assumir uma fatia maior
da carga tributária.

PROPOSTAS:

Tributar com taxas mais elevadas as operações realizadas com paraísos


fiscais.

Rever as estruturas dos acordos fiscais para evitar que as multinacio-


nais busquem a aplicação do acordo mais favorável.

Alterar a legislação para que os preços praticados entre a multinacio-


nal e sua filial reflita a realidade.

Defender a proposta de que as multinacionais precisam ser tributadas


como entidades únicas e não considerar a filial como entidade separada
– permitindo que cada país tribute os lucros das empresas proporcio-
nalmente as atividades realizadas no país.

Exigir maior transparência dos informes tributários e financeiros das


empresas multinacionais – devem ser divulgados em todos os países
em que a empresa opera, independentemente do valor do lucro.

Divulgar os incentivos fiscais oferecidos às multinacionais – todos os


países deveriam adotar essa prática.

O Brasil deveria apoiar a criação de um organismo representativo in-


dependente a nível mundial (ONU), para monitorar os efeitos da concor-
rência tributária desleal e promover mudanças multilaterais.
COORDENAÇÃO:
Tributação sobre a exportação de commodities.
CLAIR HICKMAN E
PAULO GIL
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SEGURANÇA
PÚBLICA
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1. INTRODUÇÃO

Todas as tentativas de criar um projeto democrático de “segurança pública” no Brasil


fracassaram, inclusive aquelas que procuraram dar um verniz democrático às atividades
estatais. O resultado, perceptível a partir dos dados produzidos nos últimos anos (v.g.,
os que constam dos Anuários Brasileiros de Segurança Pública), é um quadro em que as
respostas estatais ampliaram a violência, os direitos e garantias fundamentais passaram
a ser vistos como obstáculos à eficiência do Estado e a população está a cada dia mais
amedrontada diante do “aumento da criminalidade” (sem ter ciência de que a crimina-
lidade não é uma realidade natural, mas uma construção social com finalidade política,
que nasce de fenômenos culturais – o conflitivo inerente à vida em comum – e de
políticas estatais – os processos de criminalização) ao mesmo tempo em que desconfia
das instituições, isso em razão da possibilidade real de ser vítima da violência produzida
tanto a partir de conflitos intersubjetivos quanto por ação dos agentes do Estado.

A partir da década de 1970, em todo mundo, a insegurança, que segundo o senso


comum seria ocasionada pelo fenômeno da criminalidade (embora o aumento da
“insegurança” não guarde relação necessária com o crescimento da violência), tor-
nou-se uma questão política e social significativa. Desde então, as ideias de “crimi-
nalidade” e “violência” (se a violência intersubjetiva/vulgar é percebida por todos,
a violência estrutural, inerente ao funcionamento “normal” das instituições, en-
contra-se velada) passaram a ocupar o centro das preocupações dos cidadãos e com
isso, em especial diante da manipulação política do medo nas cidades1, a questão da
segurança pública emergiu como um tema central do debate político, mesmo em
momentos ou locais em que a sensação de insegurança não correspondia ao efetivo
risco vivenciado pelas pessoas. Assim, em períodos nos quais os crimes violentos di-
minuíam, a sensação de insegurança continuava inalterada ou mesmo crescia, o que
levava à adoção de atos estatais meramente simbólicos apresentados como respostas
à criminalidade imaginária.

No Brasil, o controle da criminalidade e a construção de uma sociedade pacífica


em que todos possam desenvolver suas potencialidades durante suas vidas são pro-
messas constantes dos detentores do poder político (que, não raro, são também os
detentores do poder econômico), mas até hoje as ferramentas técnicas e politicas
apresentadas para realizar essas metas têm levado à violação sistemática dos direitos
e garantias fundamentais e ao abandono de valores centrais da vida democrática.
Bem ao gosto da razão neoliberal, avessa a regular o exercício do poder e que tem
por finalidade a potencialização dos lucros, a “segurança pública” tornou-se uma
mercadoria, sem qualquer compromisso com os direitos e garantias fundamentais,
1. Sobre o tema, por todos: BATISTA,
Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio
a ser explorada tanto por políticos quanto pelo setor privado. Em apertada síntese
de Janeiro: dois tempos de uma história.
Rio de Janeiro: Revan, 2003.
introdutória, pode-se afirmar que “a segurança das pessoas e de seus bens foi elevada
2 ROBERT, Philipe. El ciudadano, el ao nível dos problemas sociais sobre os quais se discute sem saber muito bem como
delito y el Estado. Barcelona: Atelier,
2003, p. 30. resolvê-los, de maneira que sua exacerbação se converte em capital político para
GT DE
SEGURANÇA 29
PÚBLICA

quem souber manipulalo”2. Assim, a conjugação de fortes interesses políticos com


os interesses econômicos daqueles que exploram tanto o medo do cidadão quan-
to os significantes “criminalidade”, “violência” e “corrupção”, tudo isso somado à
tradição autoritária em que está inserida a sociedade brasileira, à tendência de apre-
sentar respostas simplistas para questões complexas e à ausência de um adequado
diálogo político que permita construir consensos e administrar adequadamente os
necessários dissensos, faz com que as políticas de segurança pública apresentadas à
população revelem um estado de primitivismo, que se traduz quase que exclusiva-
mente ao recurso ao poder punitivo (ao uso da violência estatal) e à produção de leis
que aumentam penas e restringem direitos individuais.

2. DO(S) DIREITO(S) À MERCADORIA: A CONTAMINAÇÃO IDEOLÓGICA


DO SIGNIFICANTE “SEGURANÇA PÚBLICA”

Ao longo dos últimos anos não se vislumbram avanços significativos na compreen-


são e no desenvolvimento de soluções frente ao crescimento da violência (intersub-
jetiva, simbólica e estrutural) e do medo relacionado à insegurança. De igual sorte,
não foram formuladas ou executadas políticas de segurança pública que superem as
promessas populistas de exclusão ou eliminação de criminosos.

Diante da ausência de reflexão séria sobre a questão da segurança pública, da tradi-


ção autoritária em que a sociedade brasileira está lançada (que faz com que se apos-
tem em resposta de força para os mais variados problemas sociais), da insistência em
respostas mágicas para a questão da “criminalidade” e da falta de políticas públicas
efetivas para a redução das violências e a administração dos conflitos intersubjetivos,
gerou-se a ideia de que a insegurança é um fenômeno natural (como uma “peste”).
Esses mesmos fatores que, por um lado, ocultam o fato do crime e da criminalidade
serem construções sociais com funcionalidade real (controle das populações indeseja-
das) distinta daquela que consta dos discursos oficiais, por outro, fazem com que se
insista que a criminalidade deve ser enfrentada a partir da virtude, da bravura pessoal e
da honestidade dos atores sociais (messianismo). Assim, como percebeu Alberto Bin-
der, na questão da segurança pública, “a sociedade flutua entre a sensação de peste e o
messianismo que promete uma sensação milagrosa, sem admitir que ambos os extremos
partem de uma mesma atitude frente ao problema: um conservadorismo carente de
ideias, pouco disposto a aprofundar a análise e menos ainda disposto a arriscar o dese-
nho de políticas complexas que nos permitam enfrentar um problema social também
complexo e multifacetado”.3

Interessante reconhecer a utilização no campo da segurança pública do mesmo me- 3 BINDER, Alberto. Política de seguridad
y control de la criminalidad. Buenos
canismo já utilizado há séculos: o da ideia de “peste”. Explica Binder que “segundo Aires: Ad-Hoc, 2010, p. 12.
4 BINDER, Alberto. Política de seguridad
esse mecanismo a violência e a insegurança são um mal indeterminado, em sua …, cit., p. 45.
extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal. A peste gera me- 5 DIETER, Maurício Stegemann. Política
criminal atuarial: a criminologia do fim
canismos de defesa que (...) permitem dividir a sociedade em quatro categorias: os da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
GT DE
SEGURANÇA
30 PÚBLICA

doentes, os potencialmente vítimas, os transmissores e os incontamináveis”,4 que


podem ser selecionados e tratados a partir de um cálculo atuarial5.

Registre-se que a fragilidade das políticas de segurança pública começa com a fra-
gilidade da análise do fenômeno da criminalização. Não são poucas as dificuldades,
quando não se verifica a total ausência, da produção de informação e da análise
de informação relacionadas às condutas etiquetadas de criminosas. Diversos são os
fatores que dificultam a formulação de políticas públicas sem a existência de dados
confiáveis, a começar pela aposta politica em substituir a produção de informações
relevantes sobre os conflitos e a violência verificados na sociedade brasileira por
compra de material bélico e medidas de força no combate de inimigos, estes tam-
bém produzidos por opção política.

Também não há planificação, coordenação e refinamento da análise das poucas


informações sobre as condutas etiquetadas de criminosas produzidas nas diversas
cidades, nos estados-membros e na esfera federal. Os poucos esforços nessa área re-
velaram-se insuficientes, em especial porque as informações, que em regra provém
de fontes policiais e judiciais (pouco confiáveis e impregnadas de preconceitos) e
de poucas fontes autônomas, têm como lógica preponderante a de contabilizar
pessoas e casos. Apesar de úteis, esses dados (número de homicídios, de roubos, a
quantidade de droga ilícita apreendida, etc.), e mesmo os ainda mais raros dados
sobre a análise espacial da criminalização (os “mapas da criminalidade”), não per-
mitem compreender satisfatoriamente o contexto, a complexidade dos fenômenos
e a chamada “regularidade social” (ou seja, o que há de comum entre casos e
pessoas envolvidas em situações problemáticas que o legislador decidiu tornar cri-
mes), indispensável à formulação de políticas públicas sérias capazes de modificar
uma dada realidade.

Pouco se sabe sobre a dimensão social da chamada “criminalidade” e o desenvolvi-


mento dos conflitos em nosso país. Como todo “crime” é construído para dar conta
de um conflito que se pretende regular com a ameaça de uso da violência estatal, o
conhecimento da base social das situações problemáticas é indispensável à formula-
ção de políticas públicas sérias e capazes de administrar essas situações conflituosas
de forma democrática, sempre que possível sem recurso à violência. Todavia, no
Brasil tanto a formulação das políticas de segurança pública quanto os processos de
criminalização se dão sem a produção e análise de informações úteis à compreensão
e à superação dos conflitos.

O desconhecimento sobre a base social das situações problemáticas que atualmente


são etiquetadas de crime pode, ao menos em parte, ser explicada pela eleição da ideia
de “ordem” como paradigma elementar à compreensão do fenômeno “crime”. Segun-
do esse paradigma, toda situação problemática, em especial aquelas etiquetadas como
criminosas, é uma desordem, coloca em risco a harmonia social e compromete o ideal
GT DE
SEGURANÇA 31
PÚBLICA

(autoritário e ilusório) de ordem, razão pela qual deve ser combatida. Essa ideia de “or-
dem” tem fortes raízes históricas que acompanham o desenvolvimento do pensamento
ocidental (basta pensar na “ordem natural” presente no pensamento greco-romano, na
“ordem teológica” da Idade Média, na “ordem racional” da Ilustração ou na “ordem”
positivista que foi ter à nossa bandeira). Não se estranha, portanto, que para muitos a
política de segurança pública deva ser uma política de restabelecimento da ordem.

Para além da impossibilidade fática de uma “ordem” inatacável na sociedade, que só


existe como ilusão, uma vez que a história é atravessada por conflitos que renovam
as formas sociais e seus valores, não se pode deixar de afirmar o caráter anti- demo-
crático da ideia de “ordem”. Em primeiro lugar, a ideia de “ordem” (que remete à
natureza, a Deus ou à razão) estabelece um princípio absoluto que se subtrai do de-
bate democrático. Segundo: exige uma pessoa ou um grupo capaz de afirmar o que
é a “ordem” e que não admite contestação. Por fim, essa ilusão de “ordem” propicia
uma visão linear, simplista e refratária ao debate relativo ao conjunto de fenômenos
alcançados pelas políticas de segurança pública, o que impede a formulação e a
execução de formas não violentas de administrar as situações problemáticas que no
paradigma da “ordem” devem ser eliminadas.

A ideia de “ordem”, como paradigma à formulação de políticas públicas, adquire


força semântica justamente em razão de sua simplicidade e, em especial, do imagi-
nário relacionado ao seu contrário, pois a desordem é assimilada como catastrófica,
sem que seja analisada com maior profundidade. Todavia, a ideia de “ordem” acaba
por servir de óbice à construção de um modelo complexo, que respeite os aspec-
tos positivos dos conflitos, e efetivamente capaz de formular respostas, em especial
respostas não-violentas, às situações problemáticas que são inerentes ao convívio
social. Por isso, construir um modelo comprometido com os direitos fundamentais
e o respeito às diferenças passa por uma mudança de paradigma, com a substituição
das ideias de ordem e exclusão da desordem (as chamadas “políticas da ordem”: law
and order, broken windows, etc.) para a emergência de um paradigma comprome-
tido com a concretização dos direitos fundamentais a partir da compreensão e da
administração das situações problemáticas6.

De fato, sem compreender a origem, a intensidade e as características das situações


problemáticas que estão na base daquilo que hoje acaba tratado como “um caso de
polícia”, sobretudo suas funções negativas e positivas, seus vínculos tanto com outros
tipos de situações problemáticas quanto com determinadas situações consideradas ade-
quadas à vida em comum, torna-se impossível formular uma política pública efetiva 6 Há quem defenda a necessidade de
para administrar, e sempre que possível reduzir, essas situações. Se é verdade que toda um sistema institucional de gestão
dos confitos, ou seja, um conjunto
política de segurança propõe uma intervenção estatal, uma intervenção adequada à de- de regras, instancias, procedimentos,
agências e agrupamento de pessoas
mocracia deve ser, ao menos, informada, inteligente e pautada por uma visão holística cuja atividade e função se vincula
à busca de soluções à atividade de
com o objetivo de produzir a menor ingerência possível sobre os direitos e garantias administrar conflitos. Por todos:
BINDER, Alberto. Política de seguridad
fundamentais de cada indivíduo, inclusive daqueles etiquetados de criminosos. …, cit., p. 22.
GT DE
SEGURANÇA
32 PÚBLICA

Não se pode esquecer que dentre as formas de administrar situações problemáti-


cas, as menos democráticas são aquelas que recorrem ao uso da força, que histori-
camente têm demonstrado ser a fonte permanente de abusos de poder do próprio
Estado.

Em síntese, pode-se afirmar que a mudança de paradigma necessária à formulação


de políticas públicas para as situações problemáticas que apresentam regularidade
social passa por um conjunto de princípios: a) deve existir a primazia de instrumen-
tos não-violentos ou com histórico menos abusivo da pessoa; b) devem ser vedados
instrumentos violentos se a situação problemática não tem já algum componente
violento; c) não pode existir nenhuma situação problemática que por si só tenha
uma “natureza” que exija uma intervenção violenta do Estado; d) a seleção de uma
situação problemática como uma daquelas que reclamam uma intervenção violenta
não pode ser rígida, ou seja, diante do caso concreto sempre deve ser buscada uma
outra forma de intervenção que alcance o mesmo resultado social com o menor uso
da violência.

Importante frisar que a decisão política de transformar uma situação problemática


em um crime significa uma autorização para intervir sobre essa situação de forma
violenta. O populismo penal7, essa estratégia de segurança pública dirigida a obter
demagogicamente o consenso popular, que propõe responder ao medo gerado pela
conflitividade social com o uso do direito penal, em uma concepção tão duramen-
te repressiva e violadora dos direitos e garantias fundamentais quanto ineficaz no
que se refere às funções declaradas de prevenção, com suas soluções fáceis/mágicas
(“tolerância zero”, direito penal desigual, “direito penal de três velocidades”, “direito
penal do inimigo”, etc.) com o qual buscam agradar eleitores e cidadãos desinfor-
mados da funcionalidade real dessas medidas, aposta no uso da violência (inclusi-
ve como forma de solucionar, por exemplo, questões relacionadas à saúde pública
como a das drogas ilícitas e do aborto) e, hoje, representa um grave risco a toda e
qualquer política pública democrática. Impõe-se, pois, abandonar “o uso demagó-
gico, declamatório e conjuntural do direito penal dirigido a espelhar e, sobretudo,
alimentar o medo como rápida fonte de consensos”8.

Mas não é só. A razão neoliberal transformou a “segurança pública” em mercadoria


e, como tal, direcionada à obtenção de lucros, que podem ser dos agentes públicos
7 SALAS, Deni. La volonté de punir. Essai
sur le populisme penal. Paris: Hachette, responsáveis pela prevenção e repressão ao crime, dos políticos que manipulam a
2005; PRATS, Eduardo Jorge. Los peligros
del populismo penal. Santo Domingo: sensação de medo dos eleitores ou das sociedades empresariais que exploram o mer-
Finjus, 2008.
8 FERRAJOLI, Luigi. El populismo
cado da segurança privada.
penal en la sociedad del miedo. In La
emergencia del miedo. Buenos Aires:
Ediar, 2012, p. 57. Nesse particular, é importante frisar a relação entre o controle penal da força de tra-
9 Sobre o tema: RUSCHE, Georg;
KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura balho, intimamente relacionado com o modo de produção capitalista9, e a transfor-
social. Trad. Gislene Neder. Rio de
Janeiro: Revan, 2004; PACHUKANIS, mação do direito social à segurança pública, previsto na Constituição da República
Eugeni. Teoria geral do direito e
marxismo. Coimbra: Centelha, 1977. de 1988, em mercadoria.
GT DE
SEGURANÇA 33
PÚBLICA

Em cada fase do desenvolvimento do capitalismo é possível encontrar variações


no trato do poder penal. A razão neoliberal, nova forma de governabilidade das
economias e das sociedades baseada na generalização do mercado e na liberdade
irrestrita do capital, levou à ampliação do recurso ao poder punitivo como forma
de controlar/excluir aqueles que são indesejáveis ao mercado (tanto os que são inca-
pazes de produzir e consumir quanto os inimigos políticos dos detentores do poder
econômico). O Estado (que alguns identificam como “pós-democrático”) assume-se
como corporativo e monetarista, com protagonismo das grandes corporações (com
destaque para as financeiras) na tomada das decisões de governo. Um governo que
se põe abertamente a serviço do mercado, da geração de lucro e dos interesses dos
detentores do poder econômico, o que faz com que desapareça a perspectiva de re-
duzir a desigualdade, enquanto a “liberdade” passa a ser entendida como a liberdade
para ampliar as condições de acumulação do capital e a geração de lucros.

É a razão neoliberal, ao condicionar a maneira de perceber os fenômenos, que leva à


substituição dos cidadãos por consumidores acríticos (entorpecidos por televisores,
smartphones, dentre outras “próteses de pensamento”10), e que direciona as ações à
acumulação de bens, à ampliação dos lucros, aos interesses das grandes corporações
e à circulação do capital financeiro, bem como transforma direitos em mercadorias,
portanto negociáveis. Vale mencionar que o significante “democracia” não desapa-
receu na atual quadra histórica, mas perdeu seu conteúdo. A democracia persiste
como uma farsa, uma desculpa para o arbítrio, como uma senha que autoriza o
afastamento de direitos.

O mesmo acontece com o significante “segurança pública”. Em nome da “democracia”


e da “segurança pública” rompem-se os princípios democráticos. Tanto a “democracia”
quanto a “segurança pública” tornam-se vazias de significado, o que guarda relação
com o “vazio do pensamento” inerente aos modelos em que o autoritarismo acaba
naturalizado. Não por acaso, as políticas de “segurança pública” produzidas na era neo-
liberal/pós-democrática partem do paradigma da ordem (ordem, diga-se, necessária ao
funcionamento do mercado, à ampliação dos lucros e à circulação do capital financei-
ro) e optam preferencialmente por respostas violentas e excludentes para aqueles que
não interessam aos detentores do poder político e/ou econômico.

Diante desse quadro, o próprio significante “segurança pública” tornou-se o que


Nilo Batista11, inspirado em Cecília Meireles, chamou poeticamente de “palavra...
perigosa”, ou ao menos, “suspeita”, isso porque ao longo da história brasileira, mes-
mo antes do recrudescimento neoliberal das políticas de segurança pública, sempre
esteve identificada com a imposição de dor, com o recurso ineficaz ao direito penal
10 TIBURI, Marcia. Olho de vidro: a
e com o afastamento/eliminação de direitos e garantias fundamentais. televisão e o estado de exceção da
imagem. Rio de Janeiro: Record, 2011.
11 BATISTA, Nilo. Criminologia sem
A própria construção da ideia de um direito social à segurança pública serviu ao segurança pública, em Rev. Derecho Penal
y Criminologia, B. Aires, 2013, ed. La Ley,
ocultamento de que o projeto político de viés democrático prioritário deve ser o da ano III, nº 10, pp. 86 ss.
GT DE
SEGURANÇA
34 PÚBLICA

realização dos chamados direitos primários, tais como a vida, a integridade física, a
intimidade, a honra, a liberdade e, nas sociedades capitalistas, o patrimônio.

O direito à segurança pública, apesar de previsto na Constituição da República de


1988 como um direito fundamental, é, por definição, um direito/interesse secundá-
rio, isso porque o “direito à segurança” sempre se refere, ou deveria se referir, a um
outro direito/interesse, esse sim primário. A “segurança” relaciona-se com a garantia
ou a realização de um outro direito/interesse, como por exemplo, o direito à vida
ou os interesses patrimoniais: a segurança é a segurança da vida, do patrimônio,
etc. Todavia, a construção ideológica que faz da “segurança pública” um valor em
si, um direito independente dos direitos primários, desloca os projetos e investi-
mentos da realização desses direitos primários para o artificial e secundário “direito
à segurança pública”, o que faz surgir uma indústria e um mercado que lança uma
enorme quantidade de produtos e serviços de segurança (muitos dos quais inúteis)
direcionados aos órgãos de segurança pública mas sofridos pelas pessoas em geral.

Como explica Alessandro Baratta,

a segurança é uma necessidade humana e uma função geral do sistema jurídico. Em


ambos os casos carece de conteúdo próprio porque, a respeito do sistema de necessi-
dades, a segurança é uma necessidade secundária, e a respeito do sistema de direitos, a
segurança é um direito secundário. Em uma teoria antropológica e histórica-social, a
necessidade de segurança é acessória (e nesse sentido “secundária”) em relação a todas
as outras necessidades básicas ou reais, que podem ser definidas como “primárias”.
É a necessidade de certeza da satisfação de necessidades, assinalando à certeza um
duplo significado: discursivo (reflexivo) e temporal. A certeza discursiva (reflexiva) se
refere ao objeto das distintas necessidades primárias, à sua construção e definição na
esfera do intelecto e da linguagem; trata-se da necessidade de conhecer e comunicar
as necessidades. A certeza temporal se refere à continuidade da satisfação, é dizer, à
repetição dessa, para além da situação atual. Em ambos os sentidos, a necessidade
secundária de certeza é determinada por sua satisfação em uma dimensão natural e
instintiva, até alcançar uma dimensão histórica e intelectual.

No sistema jurídico a necessidade se apresenta na forma de direitos. Mas também


nesse caso a necessidade de segurança não é uma necessidade primária, mas acessória
(e nesse caso “secundária”) a todas as outras necessidades reconhecidas como direitos
nesse sistema. Em relação aos direitos, a segurança adquire, sem embargo, dois signifi-
cados diferentes, segundo seja observada de um ponto de vista externo ou interno em
relação ao sistema jurídico. Considerando a necessidade de segurança em uma teoria
sociológica do direito a pergunta que se coloca é: até que ponto o direito, entendido
como sistema de operações, pode contribuir para a segurança da sociedade? Este é
um questionamento direto da validade “empírica” do direito, na qual a segurança é
concebida como um fato.
GT DE
SEGURANÇA 35
PÚBLICA

Em uma teoria normativa (técnico-jurídica) do direito, ao contrário, o questiona-


mento da segurança se dirige à validade “ideal” do direito. Na teoria sociológica se
considera a segurança através do direito. Na teoria normativa se considera a segurança
do direito: para esta concepção se utiliza frequentemente o sinônimo “certeza”. O
ponto de vista empírico ou sociológico é externo ao sistema jurídico, o ideal ou téc-
nico-jurídico é, ao contrário, um ponto de vista interno. A segurança (ou certeza) do
direito do ponto de vista interno do sistema jurídico deve estar construída, por isso,
em referência a normas e interpretações de normas; em outras palavras: normativa-
mente e não do ponto de vista fático. Afirmar que “os direitos são certos” significa, do
ponto de vista interno, que a norma que os protege é suficientemente clara, consis-
tente com as regras e os princípios da Constituição e operacionalmente coerente com
o procedimento legal em que se deve assegurar a sua “justiça”.

Pelo que se viu até agora, deveria resultar evidente que um “direito fundamental à segu-
rança” não pode ser outra coisa que o resultado de uma construção constitucional falsa
ou perversa. De fato, tal construção será supérflua, se significa a legítima demanda de
segurança de todos os direitos para todos os indivíduos (nesse caso, antes que de um direi-
to à segurança seria melhor falar em segurança dos direitos ou do “direito aos direitos”)
ou bem será ideológica, se implica a seleção de alguns direitos de grupos privilegiados e
uma prioridade de ação do aparato administrativo ou judicial em seu favor e, ao mesmo
tempo, limitações a direitos fundamentais reconhecidos na Constituição e nas Convenções
Internacionais.12

Assim, qualquer proposta de uma política democrática de “segurança pública” deve


superar a armadilha consistente na própria construção da ideia de um “direito à
segurança pública” como algo distanciado e, não raro, em oposição aos direitos
fundamentais/primários. Em outras palavras, um projeto democrático de segurança
pública é na realidade um projeto de “segurança (e realização) dos direitos de todos”.

3. A QUESTÃO DAS “DROGAS ILÍCITAS”: A PRINCIPAL ESTRATÉGIA


DE CONTROLE DAS POPULAÇÕES INDESEJADAS

Ao lado das condutas criminalizadas em nome da proteção do patrimônio, a políti- 12 BARATTA, Alessandro. Seguridad.
In Criminologia y Sistema penal:
ca criminal das drogas etiquetadas de ilícitas (e sempre vale frisar o caráter arbitrá- compilacíon in memoria. Buenos Aires:
B de F, 2013, p. 200/202.
rio da distinção entre drogas lícitas e ilícitas) é um dos principais instrumentos de
13 DENNINGER, Erhard. Security,
controle das populações indesejadas dentro da lógica neoliberal. Impossível pensar diversity, solidarity instead of freedom,
equality, fraternity. In: Constelations.
a “segurança pública” no Brasil sem levar em consideração os danos à democracia Vol.: 7. No.: 4. Oxford: Blackwell, 2000,
p. 509. Segundo o autor, os valores de
produzidos pela política de drogas adotada. liberdade, igualdade e fraternidade
herdados da revolução francesa foram
suplantados pelos ideais de segurança,
diversidade e solidariedade.
Vale lembrar que o ideal de segurança erigiu-se como novo valor, em detrimento 14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl.
da liberdade, como elenca Erhard Denninger13. Assim, ampliaram-se as demandas La legislacion de antidrogas
latinoamericana: sus componentes de
por ordem e por projeções ilimitadas do exercício de atividades estatais de viés autori- derecho penal autoritario. In.: Fascículos
de Ciências Penais. Volume: 3. Número:
tário14. Em nome da segurança os discursos repressivos se acirraram na fantasia de um 2. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1990.
GT DE
SEGURANÇA
36 PÚBLICA

controle total incidente nas condutas do ser humano, como no uso e venda de
determinadas substâncias psicoativas, entre muitas outras.

Conhecer um pouco da história do homem significa conhecer um pouco da his-


tória do uso e do cultivo de diferentes substâncias psicoativas, quando, por diver-
sas razões, o indivíduo sempre as utilizou para produzir alteração no estado de
consciência, para efeitos mágicos, religiosos, medicinais, afrodisíacos, hedônicos
e bélicos. Mas, com o surgimento do modo de produção capitalista, as drogas
paulatinamente deixaram de ter só valor de uso e passaram a transformar-se tam-
15 OLMO, Rosa del. Geopolítica de las bém em mercadorias, reguladas pelas leis da oferta e da procura.15 Passaram a
drogas. In.: Revista Analisis, s/d, p. 56.
16 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade:
submeter-se às múltiplas formas de controle social, sendo umas difundidas, algu-
a psicanálise e as novas formas de mas regulamentadas, como as medicações psicofarmacológicas de que nos adverte
subjetivação. 5ª. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 43. Joel Birman16, e outras proibidas, reprovadas moral e criminalmente, etiquetadas
17 BATISTA, Vera Malaguti. Drogas e
criminalização da juventude pobre no como drogas ilícitas, o que autorizaria o uso da violência como resposta às situa-
Rio de Janeiro. In.: Revista Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade.
ções de uso e de comercialização.
Nº. 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1996, p. 238.
18 Revestido do lema de que o que é No Brasil, o modelo sanitário de controle institucional das drogas consolidou-se
bom para os Estados Unidos é bom para
o Brasil, o instrumento ideológico de na primeira metade do século XX, época em que a drogadição era tratada como
controle foi elaborado pela Escola Superior
de Guerra (ESG), com a colaboração da uma doença de notificação compulsória. As autoridades sanitárias aderiram às
Missão Militar Americana (MMA).
19 BARATTA, Alessandro. Fundamentos
técnicas higienistas, delineava-se um sistema médico-policial. Todavia, o ano de
ideológicos da atual política criminal sobre 1964, com o golpe militar, funcionou como uma baliza demarcatória da transição
drogas. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1992. do modelo sanitário ao bélico, de ruptura da droga com conotação libertária, usa-
20 O modelo bélico traduz-se em
uma guerra suja, na qual o inimigo
da nas manifestações pelos movimentos de contestação, ao elemento de subver-
não joga limpo. Logo, o Estado não são, onde passou a ser vista como estratégia comunista para destruir o Ocidente17
estaria obrigado, sequer, a respeitar as
leis da guerra. Desta forma, na guerra e as bases morais da civilização cristã, particularmente com a guerra fria18. Então,
contra a “criminalidade”, não seria
necessário respeitar as garantias penais e os governos militares elevaram a preocupação com a segurança pública à categoria
processuais. ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; de segurança nacional e estabeleceram os inimigos internos, inicialmente associa-
SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
teoria geral do direito penal. Vol.: I. Rio de
dos aos comunistas e que se transfeririam para a figura dos traficantes de drogas.
janeiro: Revan, 2003, p. 58.
21 Como alerta Maria Lúcia Karam: “há
uma visão delirante das substâncias A política criminal de enfrentamento às drogas foi potencializada por uma tríplice
psicoativas, como se fossem ‘o inimigo’.
O mistério e as fantasias passam a cercar base ideológica: a defesa social, a doutrina de segurança nacional e o movimento de
essas substâncias tornadas ilícitas; o
superdimensionamento de suas eventuais lei e ordem19. Ajustou-se à noção de combate ao inimigo, que deveria ser eliminado.
repercussões negativas, as informações
falsas, como o Trata-se do modelo bélico de guerra às drogas, que se consolidou após o colapso da
desgastado mito da ‘escalada’; palavras guerra fria20. Representou o deslocamento do aparato bélico e a continuidade da
vazias, de significado desvirtuado
ou indefinido, mas plenas de carga fabricação de armas, agora focadas em um novo alvo, o traficante de drogas.
emocional”. Cf.: KARAM, Maria Lucia.
Pela abolição do sistema penal. In: Curso
livre de abolicionismo penal. Rio de
Janeiro: Revan, 2004, p. 77. Alerta Nilo No imaginário social, o traficante conjuga os piores adjetivos, uma categoria fan-
Batista que “as mistificações ideológicas
retratam o dogma da ilicitude ontológica tasmática, do jornalismo, da psicologia, não tem cara, é desumanizado, funciona
da droga”. BATISTA, Nilo. Política criminal
com derramamento de sangue. In.: Revista como bode expiatório que é imolado, na conexão com as substâncias psicoativas21.
Brasileira de Ciências Criminais. Nº 20. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. Para Nilo Batista, não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a
22 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas atual “guerra santa” contra as drogas, que demoniza a figura do “traficante – he-
do sistema penal brasileiro. Coleção
Pensamento Criminológico, nº 5. Rio rege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças”22. Mas afinal de contas,
de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de
Criminologia, 2000. “o que é essa entidade, tráfico? Heresia. Existem garotos pobres que têm pai, mãe,
GT DE
SEGURANÇA 37
PÚBLICA

nome (...) são pobres com suas obras criminais toscas; suas lambanças. (...)só que-
rendo vender um mato para os garotos ricos. (...) É o único emprego do garoto que
tem 14 anos”.23

Portanto, faz-se necessário ir além dos estereótipos esboçados grosseiramente, des-


mistificá-los, para perceber que, na maioria dos casos pinçados pelo sistema penal,
verifica-se a pobreza dos incriminados, como mulitas e traficantes famélicos, que
magicamente se transformam em temíveis inimigos públicos. De onde se confirma
23 BATISTA, Nilo. Todo crime é político.
a criminalização da pobreza24 e a seletividade do sistema penal25, através da tipifica- In: Caros amigos. Ano VII. No. 77.
Agosto/2003, p. 28 a 33.
ção do tráfico de drogas. Aos jovens vendedores de droga, vasculhados nas favelas e
24 WACQUANT, Loic. Punir os pobres:
periferias, entre negros e pardos, integrantes dos substratos mais baixos, aplica-se o a nova gestão da miséria nos
Estados Unidos. Instituto Carioca
paradigma criminal. Enquanto aos jovens consumidores, integrantes dos segmentos de Criminologia. Coleção Pensamento
Criminológico. Volume: 6. Rio de Janeiro:
sociais mais altos, aplica-se o paradigma médico. Revan, 2003.
25 Zaccone desmistifica a seletividade em
função de como o agente público enquadra
Esta mesma lógica pode ser verificada em perspectiva macro, quando os países o suspeito, no tipo penal do tráfico ou do
uso de drogas, consoante seu estereótipo,
mais pobres, localizados ao sul do planeta, são identificados na nacionalidade dos por características como raça, cor, condição
social, localidade que foi encontrado.
traficantes de droga que respondem ao paradigma criminal. Já os consumidores ZACCONE, Orlando. Sistema penal e
seletividade
de droga nacionais dos países ricos, ao norte do planeta, são tratados como víti- punitiva no tráfico de drogas.
In.: Revista Discursos Sediciosos: crime,
mas, dependentes ou doentes26, consoante o paradigma médico. Logo os Estados direito e sociedade. Instituto Carioca de
Criminologia. Vol.: 14. Rio de Janeiro:
Unidos encontraram na política criminal de drogas uma forma de ingerência e Revan, 2006.
mesmo de intervenção, particularmente nos países do cone sul. A criminalização 26 OLMO, Rosa del. A face oculta da
droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
das drogas torna-se um pretexto integrante da geopolítica norte-americana, pelo 27 OLMO, Rosa del. Geopolítica de
las drogas. In.: Revista Analisis. s/d.
estratégico controle em todo o continente e sobre todos os imigrantes, associados
28 Como foi demonstrado por Vera
aos produtores, culminando até com a extradição ativa de um nacional27. Assim, Malaguti Batista, na criminalização por
drogas da juventude advinda dos estratos
assenta- se a funcionalidade mítica da droga que incide sobre os mais pauperizados subalternos da população do Rio de
Janeiro, entre 1968 e 1988, os jovens
da sociedade.28 traficantes enquadrados eram 9,1%
em 1968, em 1973 alcançaram 17,9%,
seguidamente passaram para 24,2% em
1978 e finalmente atingiram 47,5% em
O modelo de política criminal bélico adotado na atualidade expande substancialmente 1983. Desde 1995, a apreensão de jovens
pelo comércio ilegal de drogas ultrapassou
o sistema penitenciário e responde hoje pela prisão do maior número de internos. Con- 50% e já se tornou o principal motivo de
soante os dados apresentados pelo Infopen, o sistema de informações do Departamen- repressão à juventude pobre no Brasil.
MALAGUTI, Vera. Difíceis ganhos fáceis:
to Penitenciário Nacional do Ministério de Justiça, publicados em 2016, mas referentes drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro.
Instituto Carioca de Criminologia. Coleção
a 2014, 28% dos crimes cometidos são de tráfico de drogas, que corresponde a elevada Pensamento Criminológico: Volume 2. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p.88.
parcela de internos29. O tráfico de drogas hoje é um dos principais fatores de encarce- 29 Disponível em: http://dados.gov.br/
dataset/infopen-levantamento-nacional-
ramento, que elege o Brasil como detentor da terceira maior população prisional do de-informacoes- penitenciarias Acesso em:
02 de outubro de 2016.
mundo, em termos absolutos30. Assim, ainda sobrecarrega o já superlotado sistema
30 Consoante o relatório do Infopen,
penitenciário, com um déficit aproximado de 250.318 vagas31. apresentado em 2016, referente ao período
de dezembro de 2014, são 622.202 presos
no país. E o número de presos provisórios
é de 249.668 (40,13%). Todavia, segundo
Além de suprimir a liberdade, a política criminal bélica e militarizada eleva a leta- o CNJ são mais de 700.000 apenados se
computados os que se encontram em
lidade. Pois é o modelo de segurança pública do confronto que ameaça, verdadei- prisão domiciliar. Disponível em: http://
www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-
ramente, a saúde, a integridade física e a vida das pessoas, uma vez que pode ser execucao-penal/cidadania-nos-presidios.
Acesso em: 02 de outubro de 2016.
constatado o pequeno número de casos de overdoses, se comparado ao dos mortos 31 Disponível em: http://dados.gov.br/
pela guerra às drogas. Os casos de violência institucional - que culminam em le- dataset/infopen-levantamento-nacional-
de-informacoes- penitenciarias Acesso em:
talidade escamoteada nos autos de resistência ou nos desaparecimentos - crescem, 02 de outubro de 2016.
GT DE
SEGURANÇA
38 PÚBLICA

sendo significativa parcela atrelada à política criminal de drogas em voga.32 Segundo


os últimos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram oficialmente
registrados 3.009 óbitos provocados por ações policiais no país em 2014. Os estados
de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia são, respectivamente, os mais afetados, com
respectivamente 965, 584 e 278 óbitos registrados. No ano de 2016, foi apresenta-
do pelo Instituto de Segurança Pública o número de 645 mortos por autos de resistên-
cia no Estado do Rio de Janeiro33. Desde a redemocratização, neste estado já morreram
mais de 30.000 pessoas nos confrontos e mais de 100.000 desapareceram34. Não é sem
motivo que Nilo Batista intitulou de política criminal com derramamento de sangue35
aquela à qual assistimos na contemporaneidade. Já passamos “da crítica da truculência
e da militarização da segurança pública à sua naturalização, e agora, ao aplauso, adesão
subjetiva à barbárie”36, frente a um colossal filicídio, ao escândalo de uma sociedade
que mata os seus próprios filhos37.

Existem muitos modelos diferentes do atual repressor, como o terapêutico, o cor-


retivo, o reparador e o conciliador. Há alternativas ao proibicionismo, através de
32 De acordo com os dados apontados outras formas de controle às drogas como a legalização, a despenalização e a redu-
pelo Mapa da Violência de 2016, referente
ao ano de 2014, foram mortos por arma ção de danos com foco na saúde, que sugere o uso controlado ou a substituição de
de fogo mais de 42.000 indivíduos,
homens, jovens de 15 a 29 anos, negros substâncias. Por derradeiro, as substancias psicoativas devem ser compreendidas em
e pardos, de onde se pode presumir de
forma significativa o peso da política uma esfera bem mais ampla, vinculadas às questões de saúde pública e inseridas nas
de guerra às drogas. Foram registrados
59.627 homicídios em 2014. Tem-se 29,1 discussões das políticas públicas. Isso quer dizer, frente a um modelo preventivo,
mortos para cada 100.000 habitantes.
Disponívelem: www.http://flacso.org.br/ interdisciplinar e plural. Pois do contrário, teremos o que Vera Malaguti chamou
files/2016/08/Mapa2016_armas_web.
pdf Acesso em: 02 de outubro de 2016.
de política criminal de drogas do tigre de papel, cuja fraqueza provém de sua força.
33 Disponível em: http://www.isp.rj.gov. Ou seja, nada tem feito contra o demônio que finge combater: a dependência quí-
br/ Acesso em: 02 de outubro de 2016.
34 ARAÚJO. Fábio Alves. Das mica.38
conseqüências da “arte” macabra de fazer
desaparecer corpos: violência, sofrimento
e política entre familiares de vítima
de desaparecimento forçado. Tese de
Nessa esteira, adverte Maria Lúcia Karam que somente “uma razão entorpecida
doutorado: IFCS/UFRJ, 2012. pode crer que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e consu-
35 BATISTA, Nilo. Política criminal com
derramamento de sangue. In.: Revista midores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas sirva para deter uma
Brasileira de Ciências Criminais. Nº 20.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. busca de meios de alteração do psiquismo, que deita suas raízes na própria história
36 BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é
muito mais complexo. In: Paz Armada.
da humanidade”39 ou concorda com a expansão do poder punitivo, que criminali-
Criminologia de Cordel. Volume: 1. za, prende e mata, em franca ameaça aos fundamentos do Estado Democrático de
Instituto Carioca de Criminologia. Rio de
Janeiro: Revan, 2012. Direito.
37 BATISTA, Vera Malaguti. Filicidio.
In: Crianças, adolescentes, pobreza,
marginalidade e violência na América
Latina e Caribe: relações indissociáveis? 4. A POLÍTICA CRIMINAL NA ERA NEO-DESENVOLVIMENTISTA:
Orgs.: Irene Rizzini e Maria Helena
Zamora. Rio de Janeiro: Quatro Irmãos/
BALANÇO DA QUESTÃO CRIMINAL NOS GOVERNOS LULA E DILMA
FAPERJ, 2006, p. 253-260.
38 BATISTA, Vera Malaguti. O tribunal
de drogas e o tigre de papel. Disponível
em: http://www.mundojuridico.adv.br.
Acesso em: 05 de fevereiro de 2008. Luigi Ferrajoli, ao delinear as principais características dos Estados de Direito, pro-
39 KARAM, Maria Lúcia. A lei e a
razão entorpecida. In: Jornal do Brasil,
põe uma máxima que, de forma pragmática, projetaria as estruturas jurídicas e po-
23/12/2001. líticas nos sistemas democráticos ocidentais: “direito penal mínimo, direito social
40 FERRJOLI, Luigi. Direito e razão: a
teoria do garantismo penal. Trad. Juarez máximo”40. Na qualidade de tipo ideal (Weber), esse modelo-limite, denomina-
Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006. do pelo autor como sistema garantista, que pretenderia agregar as virtudes das ex-
GT DE
SEGURANÇA 39
PÚBLICA

periências políticas do liberalismo, do welfarismo e do socialismo, apresentaria,


como contraponto ótimo, os modelos de Estados autoritários, que seriam regu-
lados pela máxima “direito penal máximo, direito social mínimo”. A tensão entre
os dois tipos ideais sugeridos por Ferrajoli parece ser um interessante recurso para
diagnosticar a experiência político-criminal brasileira da última década, notada-
mente aquela que se inicia e se encerra com os governos Lula e Dilma, do Partido
dos Trabalhadores (PT).

O primeiro ponto a ser destacado é o relativo aos níveis de incidência de delito na


sociedade brasileira. Em razão dos altos índices de cifra oculta, típicos de modelos
penais caracterizados pela inflação legislativa, a concentração dos estudos ocorre, so-
bretudo, em relação aos crimes violentos, praticados contra a pessoa, e que deixam
vestígios materiais. Dessa forma, a análise das taxas de homicídio por 100 mil ha-
bitantes tem fornecido um importante parâmetro para verificar o grau de violência
em uma determinada sociedade.

A partir dos anos 80, o índice de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil au-
mentou significativa e constantemente, de aproximadamente 11 (1980) para 29,1
(2014), conforme os dados apresentados no “Atlas da Violência” pelo IPEA, em
abril de 2016. Embora no período do primeiro governo Lula, entre 2003 e 2007,
a curva de homicídios tenha apresentado um decréscimo importante (de cerca de
28,5 para 25 homicídios por 100 mil habitantes), invertendo a tendência das dé-
cadas anteriores, “a partir de 2008 parece que se alcançou um novo patamar no
número de mortes, que tem evoluído de maneira bastante desigual nas unidades
federativas e microrregiões do país, atingindo crescentemente os moradores de ci-
dades menores no interior do país e no Nordeste, sendo as principais vítimas jovens
e negros” (IPEA, 2016:05). A idade, a cor da pele, a situação econômica, a escola-
ridade e o local de residência são indicadores que permitem mapear quem é morto
no Brasil: jovens, negros, pobres,com até sete anos de escolaridade e, ainda em sua
maioria, moradores das periferias das grandes cidades. O quadro ganha sua real e
preocupante dimensão se considerarmos que o Brasil concentra 10% dos homicí-
dios mundiais. (IPEA, 2016)

Ocorre que o número de homicídios decorrente de ações policiais (letalidade poli-


cial) representou, em 2014, 5% do total de mortes violentas intencionais no Brasil,
sendo um índice 46% superior à quantidade de latrocínios registrada no mesmo
ano, conforme os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2015). Em relação ao ano de 2013, a
letalidade policial aumentou 37%, sendo possível apontar que, em 2014, a cada 3
horas uma pessoa foi morta pela polícia no Brasil. O número de pessoas mortas pela
polícia, no período de 2009 a 2013 é superior ao número de homicídios praticados
pela polícia norte- americana entre 1983 e 2012, e o homicídio de pessoas negras
foi superior em 30% ao das brancas, no quesito letalidade policial (FBSP, 2014).
GT DE
SEGURANÇA
40 PÚBLICA

Grande parte dos registros oficiais dessas mortes decorrentes de ações da polícia apre-
sentam situações em que os agentes públicos invocam uma atuação lícita, amparada
pela descriminante da legítima defesa (autos de resistência). Inúmeras investigações
empíricas, porém, como a realizada pela Human Rights Watch, têm apontado que
existem “provas confiáveis de que muitas pessoas mortas nos supostos confrontos
com a polícia foram, em realidade, executadas por policiais” (HRW, 2009:03). No
Rio de Janeiro, estudo de 314 autos de resistência, no período compreendido entre
2003 e 2009, todos com pedido de arquivamento pelo Ministério Público, revela
fortes indícios do uso abusivo do instituto da legítima defesa, na maioria dos casos
contra evidentes provas produzidas na investigação preliminar41. É no mínimo
um indicativo de distorção o fato de 99,2% dos inquéritos instaurados por auto de
resistência, a partir de 2005, terem sido arquivados com o reconhecimento da legí-
tima defesa42. Por outro lado, a “desproporção de óbitos de policiais e de suspeitos
civis nesses confrontos tem deixado muitas suspeitas de que execuções sumárias
estejam sendo tratadas como autos de resistência.”43

O alto índice de letalidade policial unifica o problema da violência produzida pelo


crime com o da seletividade igualmente violenta produzida pelas agências de contro-
le do crime. Em números absolutos, o Brasil apresenta a quarta população carcerária
mundial, superando, em 2014, a marca de 620 mil presos, representando 300 pre-
sos por 100 mil habitantes (DEPEN, 2015). A situação carcerária, porém, é ainda
mais grave se pensarmos que estes números são estáticos, isto é, refletem o quadro
de encarceramento em uma data-base anual, e desconsideram o volume (dinâmico)
de pessoas que circulam anualmente nos presídios. Além disso, se a população negra
tem 30% mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil, a possibilidade de ser
encarcerada é 18% maior do que a branca. Os dados da realidade permitem Vilma
Reis afirmar que, em relação à juventude negra e pobre, “quem não é preso, já foi
morto”44. No entanto, de forma alguma o encarceramento significa uma alterna-
tiva bem sucedida à violência, notadamente policial, pois estes sobreviventes não
estão salvos nas prisões. Pelo contrário, os apenados são submetidos diariamente às
mais radicais formas de sofrimento, visto que a realidade prisional brasileira, retrata-
da em inúmeros trabalhos acadêmicos, reportagens jornalísticas e relatórios oficiais,
permanece uma ferida aberta e insolúvel em nossa frágil democracia45, mesmo após
41 Nesse sentido: ZACCONE, Orlando. a experiência política de governos democráticos de esquerda que, no campo social,
Indignos de vida: a desconstrução do
poder punitivo. Rio de Janeiro: Revan, conseguiram importantes avanços.
2015.
42 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida
..., cit., p. 25. O paradoxal do cenário político e político-criminal na fase neo- desenvolvimentista
43 MISSE et alii, apud ZACCONE,
Orlando, Indignos de vida..., cit., p. 25. é exatamente terem os governos populares conquistado notáveis avanços no que
44 REIS, Vilma. Juristas Negros e
Negras por Vida e Liberdade no Brasil
tange à ampliação e à manutenção dos direitos sociais – e neste ponto destacam-se
in Discursos Negros: legislação penal,
política criminal e racismo. Brasília:
as políticas públicas de inclusão social através de programas de distribuição de ren-
Brado Negro, 2015, p. 05. da, redução de desemprego e ampliação do acesso ao ensino –, em harmonia com
45 CARVALHO, Salo e WEIGERT, Mariana
de Assis Brasil. Sofrimento e Clausura um modelo de direito social máximo no qual o Estado assume importante parcela
no Brasil Contemporâneo. Florianópolis:
Empório do Direito, 2016. de responsabilidade pela garantia dos direitos coletivos e transindividuais e, por
GT DE
SEGURANÇA 41
PÚBLICA

outro lado, não terem enfrentado de forma direta o avanço gradual e constante do
punitivismo, representado sobretudo pelas altas taxas de letalidade policial e pelo
superlativo encarceramento, situação que projeta um modelo de direito penal má-
ximo. A partir das tipologias propostas por Ferrajoli, nota- se uma espécie de dese-
quilíbrio em relação às expectativas com o modelo de Estado, refletido exatamente
na questão penal.

A população carcerária nacional, no período dos governos Lula e Dilma, aumentou


quase 10% ao ano e, neste mesmo período, as condições carcerárias, em seu aspec-
to material, chegaram a níveis que podem ser classificados como sub- humanos:
ausência de investimento em infraestrutura, com decorrente falta de vagas e super-
população carcerária; ausência de prestação de serviços básicos de saúde, sobretudo
em relação às mulheres presas; ausência de políticas de capacitação e valorização dos
agentes prisionais, situação que facilita e agrava a violência no interior dos presídios;
falta de programas efetivos de combate à tortura.

Não se pode negar, contudo, algumas iniciativas que, em tese, poderiam ter impac-
tos positivos na reversão do quadro acima exposto. Nesse sentido, é importante re-
ferir que foi iniciativa do Poder Executivo, através da Secretaria de Assuntos Legisla-
tivos do Ministério da Justiça, a proposição e posterior aprovação da Lei 12.403/11,
que modificou o Código de Processo Penal e ampliou as possibilidades de substi-
tuição da prisão preventiva por medidas cautelares alternativas. Se lembrarmos que
a média nacional de presos provisórios é superior a 40%, a promulgação de uma
lei desta natureza permitiria reduzir os impactos negativos da agência carcerária no
tecido social. No entanto, assim como ocorreu com leis que, na década de 90, em
razão do incipiente mas expressivo aumento da população carcerária, instituíram
novos critérios e ampliaram os substitutivos penais (penas e medidas alternativas à
prisão), notadamente a Lei 9.099/95 e a Lei 9.714/98, o panorama seguiu inalte-
rado. Note-se que no primeiro ano de implementação da Lei 12.403/11 o número
de presos provisórios aumentou em 6,3% (DEPEN, 2013), não obstante, logica-
mente, o uso das medidas cautelares alternativas como fiança e monitoramento
eletrônico. A evidente resistência dos operadores do direito às medidas alternativas
ao encarceramento provisório e definitivo revela, igualmente, a falta de capacidade
do Poder Executivo em coordenar ações conjuntas com o Poder Judiciário e o Mi-
nistério Público, através dos seus órgãos de fiscalização e controle (CNJ e CNMP).

É alarmante a situação carcerária nacional. A ausência de políticas públicas na exe-


cução penal potencializa a violência, visto a ocupação do espaço, que seria do poder
público, por grupos e facções criminosas. O efeito criminógeno da omissão dos
poderes públicos no âmbito penitenciário demonstra uma perspectiva no mínimo
ingênua na elaboração de projetos efetivamente preventivos para segurança e garan-
tia dos direitos das pessoas.
GT DE
SEGURANÇA
42 PÚBLICA

5. A NECESSIDADE DE UM PROGRAMA POLÍTICO CRIMINAL


DESENCARCERADOR: ALGUMAS PROPOSTAS

A contribuição teórica da Criminologia Crítica percebe o fracasso do sistema penal


ao identificar a incongruência abissal entre suas funções declaradas e suas funções
reais, aquilo que Vera Andrade chama de ilusões de segurança jurídica46. As funções
declaradas de prevenção da criminalidade e de ressocialização do criminoso – cujo
fracasso histórico é assinalado pelo isomorfismo reformista apontado por Foucault47
– constituem um discurso legitimador da repressão seletiva das classes subalternas,
“fundada em indicadores sociais negativos de marginalização, desemprego, pobreza
etc., que marcam a criminalização da miséria no capitalismo”48; de outro lado, as
funções reais do sistema punitivo revelam-se um sucesso histórico, visto que a gestão
diferencial das ilegalidades cumpre papel decisivo na manutenção do status quo, com
a perpetuação das desigualdades socioeconômicas49.

A ordem social injusta e desigual é ancorada na seletividade do sistema de justiça


criminal, no âmbito da definição legal, da aplicação da lei e da execução penal: “a)
em primeiro lugar, a definição legal seletiva de bens jurídicos próprios das relações de
propriedade e de poder das elites econômicas e políticas dominantes (lei penal); b)
em segundo lugar, a estigmatização judicial seletiva de indivíduos das classes sociais
subalternas, em especial dos marginalizados do mercado de trabalho (justiça penal);
c) em terceiro lugar, a repressão penal seletiva de indivíduos sem utilidade no proces-
so de produção de mais-valia e de reprodução ampliada do capital (prisão)”50. Na
atual conjuntura, a política criminal tornou-se a governamentalidade privilegiada
para conter os indesejáveis, os sobrantes da sociedade de consumo, e para criminali-
zar os que insistem em resistir. O exercício do poder punitivo revela-se central

para a manutenção das estruturas seculares de dominação no contexto do capitalis-


mo vídeo-financeiro, como diz Vera Malaguti51.
46 ANDRADE, Vera Regina Pereira de.
A ilusão de Segurança Jurídica. Porto Esta percepção evidencia-se notadamente relevante na atual quadra histórica, so-
Alegre: Livraria do Advogados, 1997.
47 FOUCAULT, Vigiar e punir. Vozes, bretudo pela tendência contraditória que se acentua a partir do contexto que se
1977, p. 239. convencionou chamar de redemocratização –culminando com a promulgação da
48 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A
Criminologia Crítica e a Reforma da Constituição da República de 1988 –, com o recrudescimento exponencial da pro-
Legislação Penal. Disponível em:
http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/ dução legislativa em matéria penal. Em matéria de política criminal, a nova república
criminologia_critica_reforma_legis_
penal.pd f. Acesso em 19/06/2015. assiste à ofensiva autoritária.
49 CIRINO DOS SANTOS, A criminologia
radical. Forense, 1981, p. 88.
50 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Neste sentido, impõe-se o esforço de elaboração de um programa de política cri-
Criminologia Crítica e a Reforma da
Legislação Penal. Disponível em: minal que se coadune com o Estado Democrático de Direito, com respeito aos
http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/
criminologia_critica_reforma_legis_ direitos e garantias fundamentais, voltado à superação das mazelas estruturais do
penal.pd f. Acesso em 19/06/2015.
atual sistema econômico. Para tanto, importa adotar a perspectiva teórico-prática
51 BATISTA, V. M., Adesão subjetiva à
barbárie, p. 1. minimalista penal, sem, entretanto, incorrer na equívoca legitimação do sistema
GT DE
SEGURANÇA 43
PÚBLICA

penal. Por este desiderato, necessário pugnar pela redução de sua incidência a um
mínimo necessário, restrita a um núcleo absolutamente essencial de condutas par-
ticularmente danosas.

A concepção minimalista preconizada por autores como Alessandro Baratta e Eu-


gênio Zaffaroni52 adota o ponto de vista das classes subalternas, apontando como
horizonte a superação das condições econômicas do capitalismo e do autoritarismo
estatal. Neste sentido, salienta Baratta:

Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente pode-
rá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas
não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica
e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma
sociedade que não tenha necessidade do direito penal burguês, e devem realizar, no
entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a reapropriação, por
parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alterna-
tivas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio.53

Considerando-se a pena como a intervenção estatal mais gravosa em face do indiví-


duo, a perspectiva minimalista estabelece que não deve ser acionado o direito penal,
e, por conseguinte, a pena criminal, caso existam outros instrumentos jurídicos
não-penais capazes de resolver ou mitigar o conflito social. O direito penal, por-
tanto, deveria ser constantemente contido pelo Princípio da Intervenção Mínima,
permeado pelas noções de fragmentariedade e subsidiariedade54.

Desta forma, preconiza a adoção de medidas de política criminal como descrimina-


lização, descarcerização, desjudicialização, diminuição das penas, alternativas penais
e justiça restaurativa.

Um programa político-criminal minimalista e redutor deve conceber o direito penal


com base nos Direitos Humanos55. O conceito de direitos humanos recebe aqui fun-
ção dúplice: uma função negativa, no que toca aos limites da intervenção penal; e uma
função positiva, a respeito da exigência de ofensa real por meio do direito penal.

Desta forma, não empresta legitimidade à pena, preconizando a retração do poder


punitivo que deve ser ao mesmo tempo limitado e definido pelo cânone dos direitos 52 BARATTA, Alessandro. Principios de
derecho penal mínimo. Para una teoría
humanos. Como salienta Cirino dos Santos: de los derechos humanos
como objeto y limite de la ley penal.
Doctrina Penal, Buenos Aires, n. 40,
A criminologia crítica sabe que cárceres melhores não existem – e, por isso, propõe a 1987. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em
busca das penas perdidas. 5ª edição
abolição do sistema carcerário –, mas também sabe outras coisas: que toda melhora (2001). Rio de Janeiro: Editora Revan,
1991.
das condições de vida do cárcere deve ser estimulada, que é necessário distinguir entre 53 BARATTA, A., Criminologia Críticae
cárceres melhores e piores, que não é possível apostar na hipótese de quanto pior, me- Crítica do Direito Penal, p. 207.
54 BATISTA, N., Introdução Crítica ao
lhor. Por tudo isso, o objetivo imediato é menos melhor cárcere e mais menos cárcere, Direito Penal Brasileiro.
GT DE
SEGURANÇA
44 PÚBLICA

com a maximização dos substitutivos penais, das hipóteses de regime aberto, dos me-
canismos de diversão e de todas as indispensáveis mudanças humanistas do cárcere56.

Deste modo, a formulação de um programa político-criminal minimalista e demo-


crático constitui um alicerce inarredável para a construção de um novo horizonte
paradigmático para a democracia brasileira, para pavimentar um projeto popular
para o Brasil. A tradição da Criminologia Crítica, de viés materialista histórico,
pressupõe que uma reforma político-criminal deve ser desenvolvida em duas dire-
ções principais: a) no sistema de justiça criminal, um programa de descriminaliza-
ção e de despenalização radicais; b) no sistema carcerário, um programa de descar-
cerização radical, com a máxima humanização das condições de vida no cárcere57.

Com esta preocupação fundante, passamos a apresentar um conjunto de proposi-


ções, de modo ainda incipiente e sintético, que podem representar um projeto polí-
tico-criminal democrático orientado à contenção do massacre humanitário promo-
vido pelo sistema penal. De um lado, trata-se de redução de danos e minimização
do sistema penal; de outro, aponta-se para a transição a um novo modelo de justiça
criminal compatível com a democracia e com a afirmação dos direitos humanos. En-
tretanto, importa ressaltar que a resposta efetiva e concreta à conflitividade social não
poderá ser assegurada apenas com a superação do sistema penal vigente, mas, sobretu-
do com a superação das estruturais mazelas socioeconômicas da sociedade capitalista.

Descriminalização

1. Política criminal antiproibicionista. Legalização e regulamentação do


comércio e uso de drogas de modo a superar o modelo bélico, puniti-
vista e ineficaz vigente.
2. Descriminalização: a) de todas as contravenções penais; b) de quase
todos os crimes punidos com detenção, cominando-se penas pecuniá-
rias ou restritivas de direitos para os restantes; c) de todos os crimes de
perigo abstrato.
3. Descriminalização dos crimes sem vítima, como o auto-aborto (art. 124
CP) e o aborto consentido (art. 125 CP). Garantir à vítima capacidade deci-
sória quanto à persecução penal, através de ampliação dos casos de ação
penal pública condicionada a sua representação ou de ação privada.
4. Descriminalização nas hipóteses do direito penal simbólico, especial-
55 BARATTA, A., Principios de derecho
mente em crimes ecológicos e tributários, substituídos por ilícitos admi-
penal mínimo. Para una teoría de los nistrativos e civis dotados de superior eficácia instrumental e social.
derechos humanos como objeto y limite
de la ley penal.
56 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A 5. Descriminalização parcial dos crimes dos arts. 228, 229 e 230, respecti-
Criminologia Crítica e a Reforma da
Legislação Penal.
vamente os crimes de Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de
57 CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Exploração Sexual, Casa de Prostituição e Rufianismo, contanto que não
Crítica e a reforma da legislação penal,
p. 7. compreendam condutas praticadas com emprego de violência, grave
GT DE
SEGURANÇA 45
PÚBLICA

ameaça ou fraude, de modo a preconizar pela regulamentação da ativi-


dade de profissionais do sexo.
6. Superação da criminalização das opressões (homofobia, racismo, etc),
por compreender que o Direito Penal não serve adequadamente à tute-
la dos Direitos Humanos.
Despenalização

1. Implementação ampla de instrumentos de Justiça Restaurativa, com


a aprovação do PL nº 7.00/2006, fomentando a superação do tradicional
modelo punitivo.
2. Extinção do sistema de penas mínimas previsto em todos os tipos
legais de crimes, abolido em legislações penais modernas por violar o
princípio da culpabilidade e contrariar políticas criminais humanistas.
3. Redução da pena máxima de todos os tipos legais de crimes subsis-
tentes, inspirados em concepção de política criminal repressivista e des-
proporcional, imbuída do ideal de prevenção pela gravidade da pena.
4. Redefinição e ampliação dos substitutivos penais (suspensão condicio-
nal da pena, suspensão condicional do processo, livramento condicional,
conciliação e transação penal) ou de extinção da punibilidade (notada-
mente, prescrição, anistia, indulto, perdão judicial) na direção da mais am-
pla despenalização concreta, com o objetivo de evitar os efeitos negati-
vos do cárcere.
5. Implementação de indulto notadamente para crimes patrimoniais
sem violência (furto, receptação e estelionato).
6. Extensão legal, por interpretação analógica in bonam partem, da ex-
tinção da punibilidade dos crimes tributários pelo pagamento, aos cri-
mes patrimoniais comuns não-violentos, nos casos de ressarcimento do
dano ou de restituição da coisa.
7. Exclusão da agravante da “reincidência”, típica do modelo, típico de
regimes autoritários, do “direito penal do autor”, com a consequente
ampliação do âmbito de incidência das respostas penal alternativas à
prisão.

Descarcerização

1. Vedação da pena privativa de liberdade para o crime de furto e de


outros crimes sem violência, com a cominação exclusiva de penas res-
tritivas de direitos ou pecuniárias.
2. Redução das hipóteses de prisão provisória somente a crimes pratica-
dos mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa.
GT DE
SEGURANÇA
46 PÚBLICA

3. Restrição dos fundamentos da prisão preventiva, revogando-se os


fundamentos com base na garantia da ordem pública e garantia da or-
dem econômica.
4. Redução do tempo de cumprimento de pena para fazer jus ao livra-
mento condicional, bem como extinção dos pressupostos gerais subje-
tivos de comportamento satisfatório e demais exigências discricionárias.
5. Reformulação da remição penal mediante redução da equação de 3
dias/trabalho = 1 dia/pena para 1 dia/trabalho = 1 dia/pena.
6. Ampliação das hipóteses de regime aberto, mediante ampliação do li-
mite da pena aplicada para concessão do benefício – de 4 (quatro) para
6 (seis) ou 8 (oito) anos, para evitar os efeitos negativos da prisão, além
da economia de custos;
7. Aceleração da progressão de regime na execução da pena, mediante
redução do tempo mínimo de cumprimento de pena no regime ante-
rior – de 1/6 (um sexto) para 1/10 (um décimo) ou 1/12 (um doze avos)
da pena, em vistas a reduzir os efeitos negativos da prisão.
8. Implementação da progressão per saltum, indicando o cabimento de
regime menos gravoso ou prisão domiciliar, na hipótese de inexistência
de vagas no regime ao qual o condenado tem direito, interrompendo
o odioso desvio de execução penal, fato corriqueiro em todo o sistema
prisional brasileiro.
9. Vedação da pena privativa de liberdade e da prisão provisória às mu-
lheres gestantes e lactantes, com o cabimento de prisão albergue domi-
ciliar e medidas cautelares não- privativas de liberdade.
10. Implementação do critério numerus clausus, de modo a impedir a
superlotação das unidades prisionais, preconizando a adoção de prisão
albergue domiciliar ou monitoração eletrônica do apenado.

Redução de danos no sistema penitenciário

1. Reforma prisional mediante prestação dos seguintes serviços públi-


cos: a) instrução geral e profissional, como condição de promoção hu-
mana; b) trabalho interno e externo, como condição de dignidade hu-
mana; c) serviços médicos, odontológicos e psicológicos especializados,
como condição de existência humana.
2. Revogação do regime disciplinar diferenciado da Lei 7.210/84, com a
redação da Lei 10.792/03, que viola o princípio de humanidade e os
princípios constitucionais de dignidade do ser humano e de proibição
de penas cruéis.
3. Implementação efetiva do Sistema Nacional de Prevenção à Tortura,
constituindo Mecanismos e Comitês de Prevenção à Tortura em todos
GT DE
SEGURANÇA 47
PÚBLICA

os Estados da federação, de modo a preconizar a erradicação da cultura


de tortura e outros maus tratos no sistema prisional.
4. Adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos pri-
sionais aos parâmetros normativos vigentes, no que tange a aspectos
como espaço mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de hi-
giene, conforto e segurança.
5. Efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como sexo,
idade, situação processual e natureza do delito.
6. Garantia de assistência material, de segurança, de alimentação ade-
quada, de acesso à justiça, à educação, à assistência médica integral e ao
trabalho digno e remunerado para os presos.
7. Adoção de medidas visando a propiciar o tratamento adequado para
grupos vulneráveis nas prisões, como mulheres e população LGBT.
8. Implementação de programas de empregabilidade de presos e egressos.
9. Vedação da revista vexatória em presos e familiares de presos.
10. Vedação expressa às propostas de privatização do sistema penitenciário.

Política Criminal Judiciária

1. Determinação a todos os juízes e tribunais que, em cada caso de de-


cretação ou manutenção de prisão provisória, motivem expressamente as
razões que impossibilitam a aplicação das medidas cautelares alternativas
à privação de liberdade, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
2. Aplicação imediata das audiências de custódia por todos os juízes e
tribunais, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a
autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.
3. Aplicação, sempre que for viável, de penas alternativas à prisão, em
razão do reconhecimento que a pena é sistematicamente cumprida em
condições muito mais severas do que as admitidas pela ordem jurídica,
pela preservação da proporcionalidade e humanidade da sanção penal.
4. Determinação que o juízo da execução penal tem o poder-dever de
abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos
do preso, como a progressão de regime, o livramento condicional e a
suspensão condicional da pena, quando se evidenciar que as condições
de cumprimento da pena são significativamente mais severas do que
as previstas na ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória.
5. Reconhecimento do poder-dever do juízo da execução penal de aba-
ter tempo de prisão da pena a ser cumprida, quando se evidenciar que
as condições de efetivo cumprimento da pena foram significativamente
GT DE
SEGURANÇA
48 PÚBLICA

mais severas do que as previstas na ordem jurídica e impostas pela sen-


tença condenatória.
6. Realização periódica de mutirões carcerários coordenados pelo Con-
selho Nacional de Justiça, de modo a viabilizar a pronta revisão de to-
dos os processos de execução penal em curso no país que envolvam a
aplicação de pena privativa de liberdade em vistas a assegurar direitos
vilipendiados dos apenados.
7. Fortalecimento e estruturação da Defensoria Pública em todos os Es-
tados da federação.
8. Dotar de eficácia o princípio acusatório: o pedido de arquivamento
de inquérito pelo MP é vinculante, como também o será o pedido de
absolvição; o MP será obrigado a quantificar a pena que postula, e seu
quantum configura o limite máximo do juiz.
9. O duplo grau de jurisdição constitui uma garantia individual: o MP
não dispõe de recurso de mérito após a absolvição do réu.

10. Vedação aos mandados de busca e apreensão genéricos.

Política Criminal Policial

1. Reformulação do sentido do trabalho policial, fora do paradigma bélico.


2. Investimento maciço em políticas sociais.
3. Controle da intervenção dos meios de comunicação social no que
tange à cobertura referente à questão criminal.
4. Superação das políticas de orientação Lei e Ordem.

6. ALGUMAS CONCLUSÕES

(a) Uma política pública de garantia dos direitos (segurança dos direitos em detri-
mento do ideológico “direito à segurança”) exige a primazia de instrumentos não-
violentos;

(b) Deve ser vedada a utilização de instrumentos violentos se a situação problemá-


tica, ainda que etiquetada de “crime”, não tem qualquer componente violento.
Impossível e desproporcional insistir com penas privativas de liberdade para
situações problemáticas não-violentas (furtos, tráfico de drogas, etc.);

(c) Todas as situações problemáticas devem admitir a possibilidade de intervenções


estatais não violentas. Em outras palavras, não existe um conflito ou uma situa-
GT DE
SEGURANÇA 49
PÚBLICA

ção problemática que por si só tenha uma “natureza” que exija uma intervenção
violenta do Estado;

d) A seleção de uma situação problemática como uma daquelas que reclamam uma
intervenção violenta não pode ser rígida, ou seja, diante do caso concreto sem-
pre deve ser possível uma outra forma de intervenção que alcance o mesmo
resultado social com o menor uso da violência;

(e) A população negra, jovem e periférica é o objeto central da letalidade policial e


da política de encarceramento;

(f ) A violência policial decorre fundamentalmente da formação militarizada e do


paradigma bélico nas políticas de segurança;

(g) O enfrentamento da violência institucional, produzida pela polícia e legitimada


pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, é um dos primeiros pontos a
serem enfrentados em uma ação que vise a redução do índice de homicídios e
do nível global de violência da sociedade brasileira, notadamente porque a vio-
lência pública legitima e potencializa formas privadas de violência na resolução
de conflitos;

(h) A incorporação do “punitivismo”, em sua versão populista, pelos poderes, em


todas as esferas, requer reformas específicas que estabeleçam vedações normati-
vas ao encarceramento, em determinadas situações;

(i) O enfrentamento da superlotação carcerária, em curto e médio prazo, pressupõe


a determinação de cláusula impeditiva (numerus clausus) de ingresso de presos
além da capacidade do estabelecimento;

(j) Em termos gerais, uma estratégia racional para o controle do aumento das hi-
póteses de criminalização e de punibilidade seria a aprovação do projeto de Lei
de Responsabilidade Político-Criminal, apresentado à Câmara dos Deputados;
COORDENAÇÃO:
(k) A questão das drogas deve ser deslocada para o âmbito das políticas públicas de VERA MALAGUTI
saúde.
GT DE
SISTEMA DE
COMUNICAÇÃO
GT DE
SISTEMA DE
52 COMUNICAÇÃO

DIAGNÓSTICO GERAL

Existe uma ampla produção ancorada em diversos coletivos, movimentos popula-


res, grupos de pesquisa e intelectuais, que têm discutido o tema da comunicação em
seus diversos aspectos no Brasil.

Essa produção, em geral, é bastante segmentada, e por vezes ganha um caráter téc-
nico, que dificulta uma apreensão pelos movimentos sociais e uma vinculação com
a construção de um Projeto para o Brasil.

Um dos desafios deste grupo de trabalho foi estabelecer seis eixos principais que
devem nos ajudar a aprofundar o debate ao longo dos próximos meses.

A. ECONOMIA
O setor de radiodifusão, o ramo editorial (jornais, revistas, livros), as empresas de te-
lecomunicações, os grupos de tecnologia e as agências de comunicação/publicidade se
constituíram em grandes grupos econômicos, organizando-se como oligopólios trans-
nacionais, com papel central no próprio processo de acumulação capitalista - para além
de sua importância como organizadores do debate político e econômico. As empresas
de Comunicação são parte do núcleo central e mais poderoso do capitalismo no Brasil.

B. TECNOLOGIA/INFRAESTRUTURA
A articulação das empresas de telecomunicação, com a generalização da internet e das
redes sociais, por meio do desenvolvimento de aparelhos cada vez menores e mais fun-
cionais, é o aspecto mais perceptível do monumental desenvolvimento tecnológico da
humanidade nos últimos 30 anos. O debate envolve ainda o alcance da TV digital e da
TV a cabo.

C. REGULAÇÃO DA RADIODIFUSÃO
O sistema de rádio e televisão no Brasil é marcado pela concentração em cinco redes
que têm mais de 80% da audiência. Essas concessões são públicas, mas se transforma-
ram na prática em propriedade privada, porque o processo de renovação é automático.
A revisão completa dessa concessões deve estar no cerne de um novo Projeto para o
Brasil.

D. PLURALISMO MIDIÁTICO
O problema mais visível do modelo de comunicação do Brasil é o que os movimen-
tos populares chamam de manipulação das informações por emissoras de TVs, rádios,
jornais e revistas, o que retrata a falta de pluralidade. A visão de mundo dos donos das
grandes empresas capitalistas monopoliza o debate na sociedade.
GT DE
SISTEMA DE 53
COMUNICAÇÃO

Nenhuma proposta para incidir nessa área conseguiu prosperar, sofrendo forte reação
dos proprietários e até mesmo da categoria dos jornalistas, que acusam qualquer medi-
da como censura. É preciso enfrentar esse debate

E. SISTEMA DE COMUNICAÇÃO PÚBLICO

O sistema de comunicação público (nem privado nem estatal) é um instrumento para a


democratização da informação e participação da sociedade na gestão. O exemplo mais
conhecido é o da Inglaterra.

Na Venezuela, a criação de canais públicos de TV foi fundamental no processo da Re-


volução Bolivariana

No Brasil, o sistema público engatinha e é bombardeado pelas mídia privada, que age
em parceria com parlamentares que são - muitas vezes - donos de retransmissoras dos
principais canais particulares de rádio e TV.

F. MÍDIA POPULAR/ALTERNATIVA (NOVA MÍDIA)

A última década foi marcada pela emergência de canais de comunicação não tradicio-
nais, ou seja, fora do controle de grandes empresas.

No começo dos anos 2000, houve um boom das rádios comunitários - atacadas pelo
aparato de Estado, mesmo sob governos considerados progressistas.

No período seguinte, cresceu a compreensão da necessidade da criação de instrumentos


de comunicação no movimento popular. A internet se converteu em um espaço de luta
ideológica, especialmente com os blogs, as redes sociais e a construção de cooperativas/
coletivos de jornalistas. Embora a disputa com as grandes empresas seja desproporcio-
nal, a mídia popular ganhou uma dimensão que não se imaginava anos atrás.

Além de estabelecer esses seis eixos básicos, que ainda demandam mais aprofunda-
mento, o GT de Comunicação acolheu as reflexões que se seguem. Trata-se de um im-
portante diagnóstico sobre o papel da Comunicação, no Brasil e no Mundo - fruto de
elaboração do professor Marcos Dantas, Professor Titular da Escola de Comunicação
da UFRJ.
GT DE
SISTEMA DE
54 COMUNICAÇÃO

O CAPITAL É A REDE
25 TESES SOBRE MEIOS DE COMUNICAÇÃO E CAPITALISMO
MARCOS DANTAS1

No capitalismo contemporâneo, o processo de acumulação está centrado na produ-


ção, distribuição e consumo de espetáculo em suas muitas formas: filmes, programas
de TV, esportes e outros espetáculos ao vivo ou transmitidos pela televisão, nisto in-
cluindo-se o jornalismo, conforme concretamente produzido e praticado nos meios
impressos ou televisionados. O espetáculo, por um lado, integra a subjetividade
social em práticas de entretenimento conectadas ao consumo de marcas de bens e
serviços, marcas estas representativas de gostos, afetos, desejos, signos de perten-
cimento identitários etc. Por outro lado, ao mobilizar o consumo, o espetáculo
impulsiona a produção e oferta dos bens e serviços que atendam a esse consumo,
logo os investimentos de capital nessa produção e venda, assim retroalimentando a
acumulação.

Os sistemas político-econômicos de comunicação (ou “meios”, ou “mídia”) não


são, por isto, um segmento entre outros da estrutura política, econômica e cultural
da sociedade (capitalista): os meios constituem o eixo central que movimenta essa
sociedade mesma. Estão a serviço de sua reprodução e são produtos dela.

Os meios integram um complexo econômico que tanto no Brasil quanto no mun-


do capitalista avançado responde por cerca de 6 a 7 por cento do PIB (brasileiro e
mundial). Esse complexo organiza-se numa cadeia produtiva de valor que articula:
produtores de conteúdos; programadores (editores); distribuidores e transportado-
res (redes); consumidores; fabricantes de sistemas e equipamentos (de produção,
transporte e uso final), todos financiados e suportados pelo capital financeiro.

1 Professor Titular da Escola de A produção de conteúdos pode ser efetuada por um número infinito de produtores,
Comunicação da UFRJ. Autor de
A lógica do capital-informação: a ainda mais depois da expansão da internet, mas o grosso dessa produção, logo do
fragmentação dos monopólios e
a monopolização dos fragmentos consumo de conteúdos, está concentrado nas mãos de um punhado de produtores:
num mundo de comunicações
globais (Ed. Contraponto); estúdios de Hollywood; organizações que controlam os principais esportes como a
Trabalho com informação: valor,
acumulação, apropriação nas FIFA, a UEFA, o COI; produtoras de televisão generalista ou segmentada, como a
redes do capital (CFCH-UFRJ);
Comunicações, desenvolvimento, Globo, no Brasil, a BBC no Reino Unido, a Fox ou a Turner, nos Estados Unidos;
democracia: desafios brasileiros
num mundo de comunicações
plataformas “colaborativas” na internet, a exemplo do YouTube e Facebook; etc.
globais (Fundação Perseu
Abramo). URL: http://www.
marcosdantas.pro.br A programação, ou edição, é uma atividade concentrada em mãos de grandes orga-
nizações que, assim, decidem qual produção “merecerá”, ou não, cair no “gosto” do
público ou ser levada a ele. As instituições programadoras podem ser verticalizadas
(exemplo: emissoras de TV, como a Globo) ou não (exemplo: editoras de livro,
GT DE
SISTEMA DE 55
COMUNICAÇÃO

cujos autores são nominalmente independentes). A programação pode ser linear


(exemplo: canais tradicionais de televisão); não-linear (exemplos: canais de televisão
pay-per-view ou editoras de livros, ambos os negócios baseados em catálogos); reti-
cular (internet).

A transmissão e distribuição é um elo da cadeia ainda mais concentrado do que o de


programação, devido aos elevados volumes necessários de capital para a construção
e operação da infra-estrutura de rede. É naturalmente um negócio para poucos
empreendedores, sejam estes de natureza privada ou pública. Depois da desregula-
mentação neo-liberal e das privatizações nos anos 1980-1990, este segmento ficou
concentrado nas mãos de poucas enormes corporações globais (AT&T, Level3,
British Telecom etc.) que, por suas redes, promoveram um processo generalizado
de internacionalização ou mundialização dos sistemas de comunicação social, até
então basicamente nacionais nas suas estruturas de controle e regulação político-e-
conômica.

O consumidor tem acesso a programas e programação através de aparelhos termi-


nais fixos ou móveis, grandes ou pequenos. Evidentemente, outros meios de distri-
buição como salas de cinema ou livraria ainda sobrevivem ou deverão sobreviver por
um bom tempo. Mas cada vez mais, o consumidor, sobretudo as novas gerações, é
“seduzido” pelo consumo de conteúdos, inclusive livros, música e filmes, em apare-
lhos terminais eletro-eletrônicos fixos ou portáteis. O objetivo é que o consumidor
possa ter acesso a qualquer conteúdo espetacular em qualquer situação de tempo e
espaço. Este acesso se dá através das operadoras de rede que faturam o preço da assi-
natura que podem cobrar ao consumidor. A elas interessa capturar o maior número
de assinantes possível, logo necessitam oferecer conteúdos atrativos de audiência.
Portanto, para serem veiculados através dessa infra-estrutura, programas e progra-
mações devem ser produtores de audiência.

A audiência é a “mercadoria”, por assim dizer, produzida pelo complexo mediático.


O valor de uso da audiência é o volume (quantidade) e também qualidade (poder
de consumo, gostos, interesses estéticos ou culturais) que possam resultar em assi-
nantes para as redes e/ou interessar ao investimento publicitário. O valor de troca
será expresso no preço que operadores de rede e/ou anunciantes estejam dispostos a
pagar pelo acesso às audiências. Os operadores de rede pagam esse valor na forma do
preço que aceitam pagar por assinante para cada canal incluído num “pacote” qual-
quer. Assim, por exemplo, nos Estados Unidos, os operadores pagam USD 4,20,
por assinante, para a ESPN pois este canal, pertencente ao grupo Disney, detendo
o monopólio das transmissões esportivas das mais importantes competições estadu-
nidenses (NBA, Super Bowl etc.), detém o “monopólio” de uma enorme audiência.
Outros canais costumam receber menos de 1 dólar por assinante. Já os anunciantes
pagam esse preço na forma de inserções por tempo ou por volume, considerando o
tamanho da audiência em cada horário ou espaço.
GT DE
SISTEMA DE
56 COMUNICAÇÃO

O capital financeiro adianta capital-dinheiro a todo esse altamente lucrativo com-


plexo. Entre 60 a 70 por cento do capital de todos os conglomerados mediáticos
mundiais (Comcast-Universal, Disney, Time-Warner, Google, Facebook, Fox etc.)
pertence a um punhado de grandes instituições financeiras, cujos nomes se repetem
na estrutura acionária de cada um deles: T. Rowe Price, State Street, Fidelity, Van-
guard, Capital Research, AXA etc. Os demais 30 a 40 por cento podem também
pertencer a instituições financeiras de menor porte ou, em alguns casos, aos sócios
controladores (Zuckerberg, no Facebook; Page e Brin, no Google, etc.). O principal
compromisso desses conglomerados é com a “remuneração dos acionistas”, donde
seus investimentos na produção e veiculação de conteúdos é focado na obtenção de
altos retornos e lucros.

Ao fim e ao cabo, nada funciona se não existirem sistemas de computadores, câ-


maras de filmagem e fotografia, cabos de fibra ótica, satélites e aparelhos receptores
(televisão, celulares etc.). O capital mediático-financeiro se move em estreita arti-
culação com a indústria que desenvolve tecnologias e fabrica os sistemas e equipa-
mentos. A tecnologia de televisão digital, por exemplo, foi desenvolvida, no Japão,
através de aliança entre a televisão público-estatal japonesa (NHK) e as grandes
corporações da indústria eletro-eletrônica do Japão (Sony, Fujitsu, NEC, Toshiba);
na Europa, entre a televisão publico-estatal européia (à frente a BBC e a ARD) e os
fabricantes europeus (Philips, Thomson, Bosh); nos Estados Unidos, entre as redes
comerciais estadunidenses e a sua indústria digital (AT&T, IBM, Apple etc.). A tec-
nologia de registro de áudio digital (“compact disc” ou CD) foi desenvolvida pela
Philips em aliança com grandes gravadoras. O desenvolvimento tecnológico atende
à necessidade da indústria de impulsionar suas vendas através da renovação do par-
que instalado de equipamentos de produção, transmissão e recepção, bem como à
necessidade das corporações mediáticas de transmitirem cada vez mais quantidade
de informação na forma de espetáculos audiovisuais, em bandas passantes que, ao
fim e ao cabo, são sempre limitadas. A tecnologia digital atende a essa necessidade
pelas suas propriedades de compressão do sinal.

A produção de audiência, como objetivo sine qua non do complexo mediático-fi-


nanceiro, apenas é possível porque o conteúdo ofertado atende a demandas, ex-
pectativas, desejos, gostos, do grande público ou de seus inumeráveis segmentos.
O conteúdo ofertado contém significados (estéticos, psicológicos, culturais etc.)
que servem à mediação das relações entre as pessoas e o mundo realmente existente
em que vivem. Se o conteúdo não estiver em consonância com os valores, as cren-
ças, as motivações, o senso comum, da grande maioria das pessoas, se não servir ao
ajuste psicológico, subjetivo, dessas pessoas às suas realidades concretas cotidianas,
esse conteúdo não “vende”. Considerando, naturalmente, que as pessoas são muito
diferentes entre si, seja por razões naturais como sexo ou idade, seja por inúmeros
aspectos sociais e culturais, o conteúdo será também segmentado para atender às
expectativas dessa demanda fragmentada. Daí porque o capital fomentou a televi-
GT DE
SISTEMA DE 57
COMUNICAÇÃO

são segmentada nas últimas três décadas (canais exclusivos de filmes, de esportes,
de notícias, de variedades, infantis, femininos etc.) e avançou uma nova fase nesse
processo através do desenvolvimento da internet que quase individua a produção
e consumo de material audiovisual. Mas mesmo na internet, conforme já se pode
perceber claramente, apesar de uma oferta infinitamente diversificada de conteúdos,
os “sucessos” (medidos em milhões de visualizações e “curtidas”) acabam se concen-
trando naqueles que reproduzem as mesmas expectativas medíocres da vida prática
cotidiana (“Kéfera”, “Whinderson Nunes” etc.). O grande público quer isso.

Nenhum produto terá valor de troca se não tiver valor de uso (ou utilidade). Toda
cadeia de valor, assim, exprime uma sequência de valores de uso redutíveis a valores
de troca. Sendo didático: o algodão contém valor de uso para o industrial têxtil (que
o consumirá fabricando tecidos) e, daí, valor de troca para o fazendeiro de algodão
(que o produziu para venda). O tecido possui valor de uso para o fabricante de rou-
pas e valor de troca para o industrial têxtil. A roupa possui valor de uso para o seu
consumidor final e valor de troca para o fabricante de roupas. Do mesmo modo, os
conteúdos audiovisuais, formas materiais do espetáculo, contêm valor de uso para
seus diversos segmentos de audiência (na forma de emoções, desejos, sentimentos,
identidades etc.) e só por isso podem conter valor de troca para seus produtores
mediáticos. Este valor de troca é pago i) diretamente, caso o acesso ao produto
exija contrato de assinatura ou outra forma de venda; ii) indiretamente através de
trabalho gratuito, isto é, tempo de atenção dedicado ao consumo de algum conteúdo,
tempo este remunerado ao produtor, mas não ao espectador, na forma de veiculação
publicitária.

Com o desenvolvimento da internet, além de tempo de atenção, o consumidor


final foi convocado a também fornecer, gratuitamente, i) conteúdos na forma de
blogs, posts, vídeos no YouTube etc., substituindo-se aos artistas, jornalistas, pu-
blicitários e demais profissionais do espetáculo; ii) dados pessoais sobre seus gostos,
desejos, comportamentos cotidianos, relacionamentos sociais, através dos quais a
publicidade pode ser orientada de modo muito mais preciso para cada pessoa, logo
favorecendo ainda mais todo o processo de produção e vendas necessário à contínua
reprodução do capital.

Embora, em princípio, qualquer produto artístico, cultural ou espetacular conteria


valor de uso e valor de troca, assim assemelhando-se a qualquer outra mercadoria,
na realidade material concreta, eles não funcionam como mercadoria porque: i) são
indivisíveis, logo não são de consumo excludente; ii) não são de utilidade necessa-
riamente decrescente no tempo; iii) são de realização aleatória pois a utilidade não
se revela necessariamente antes do próprio consumo. Os economistas neo-clássicos
reconhecem que esses produtos são “bens não rivais”, definição que caracteriza, em
princípio, os bens públicos ou comuns. Em termos práticos, a comunicação de um
bem artístico, ou espetáculo, implica sua reprodução ou replicação pelo destinatário
GT DE
SISTEMA DE
58 COMUNICAÇÃO

da comunicação (leitor, espectador, ouvinte etc.). O desenvolvimento tecnológico ca-


pitalista permitiu que essa reprodução pudesse se dar não apenas no tempo da própria
atividade de ler, assistir, ouvir, mas também em equipamentos domésticos de gravação,
desde os antigos gravadores de rolo até os atuais computadores e tocadores mp3. Na
linguagem da economia neo-clássica, a reprodução pode ser feita a “custo marginal no
limite de zero”. Na linguagem da economia política, a reprodução pode ser feita num
tempo social de trabalho no limite de zero. Implica dizer, em qualquer caso, que o va-
lor de troca foi praticamente anulado. O capital, por isso, defronta-se com o problema
crucial da realização e apropriação do valor do trabalho de produção e comunicação
do espetáculo, trabalho este efetuado tanto pelos seus produtores imediatos (artistas,
jornalistas, desportistas etc.) quanto pelos indivíduos da audiência em seus tempos de
atenção ou, mais recentemente, de interação reticular.

O capital tenta resolver o problema da apropriação através dos direitos de proprie-


dade intelectual (DPIs). Os reais detentores desses direitos (artistas, desportistas,
outros trabalhadores da cultura ou do espetáculo) cedem-nos aos capitalistas pois
estes controlam os meios de produção de cópias (livros, discos etc.) e/ou de distri-
buição e vendas. O capital passa, assim, a deter o real monopólio de acesso à obra.
Esse monopólio é reforçado pela criação de barreiras à entrada na medida em que
o processo de produção e distribuição exija altos investimentos em: i) capital fixo
e trabalho de natureza fabril (gráficas, gravadoras etc.); ou ii) capital fixo em infra-
-estrutura de comunicações (operadoras de rede, emissoras de televisão etc.). Estas
barreiras foram em grande parte dissolvidas pelas novas tecnologias digitais de in-
formação e comunicação. Durante algum tempo, as indústrias e os negócios assim
organizados pareceram condenados a desaparecer. No entanto, um novo modelo
de negócios foi desenvolvido, suportado em terminais de acesso fixos ou móveis: os
“jardins murados”. Para acessar a filmes, livros, músicas, espetáculos variados etc.,
o consumidor deve dispor de terminal apropriado (smartphones, e-readers, iPads,
notebooks, smarTVs etc.), ser assinante de alguma rede de comunicações (fixa ou
móvel) e também de um serviço fornecedor do conteúdo desejado (Amazon, Net-
flix, SporFy, iTunes etc.). O capital financeiro que comanda e controla esse sistema
total, obtém assim as rendas informacionais que justificam os grandes e altamente
lucrativos investimentos que faz nas empresas de “mídia”. O capital é a rede.

Os serviços sobre a internet tendem a constituir a “mídia” dominante do século XXI.


Uma parcela importante das novas gerações já prefere os canais do YouTube aos
programas de televisão, mesmo a segmentada; baixar música no SpotFy a comprar
CDs; assistir filmes no Netflix, às salas de cinema ou mesmo aos canais lineares de
filmes na TV paga. As novas gerações já vêm sendo “educadas” desde os primeiros
meses de vida, para aprofundar o movimento histórico de fragmentação do sujeito
empreendido pelo capital desde os seus primórdios, essencial ao seu processo de
valorização e acumulação. A internet que, quando começou a se expandir, muito
acreditaram que poderia vir a ser uma rede aberta, livre, colaborativa, já mudou de
GT DE
SISTEMA DE 59
COMUNICAÇÃO

natureza, encontrando-se sob o controle do capital financeiro, por meio do Goo-


gle, Facebook, Netflix, WhatsApp etc. Só o Facebook, hoje em dia, tem mais de 2
bilhões de participantes, significando que Mark Zuckerberg e seus sócios detém o
extraordinário poder de não apenas identificar e analisar tendências estéticas, cultu-
rais, inclusive políticas, de boa parte da humanidade, como também de moldá-las.
Para milhões de pessoas em todo o mundo, Facebook é internet, WhatsApp é inter-
net, incapazes que já são, dadas as suas práticas cotidianas imediatas, de diferenciar
a plataforma tecnológica, de suas aplicações comerciais.

O fato de a internet, hoje, estar expressando as contradições e conflitos reais da so-


ciedade, mas estar expressando-os no interior dos “jardins murados” de serviços pri-
vados, serviços aliás sediados nos Estados Unidos e que tendem a se consolidar como
monopólios mundiais, vem fazendo crescer os conflitos entre autoridades políticas
ou judiciais, de um lado, e corporações como Google ou Facebook, do outro. Esses
conflitos já estão dando lugar às primeiras formulações, principalmente na Europa,
visando regular a internet. Os próximos anos, portanto, assistirão ao processo po-
lítico-econômico de regulação da internet, similar ao que, há 100 anos, aconteceu
também na então nascente radiodifusão. É possível que esse processo regulatório
reinstale o princípio da soberania dos estados nacionais sobre os meios de comuni-
cação em seus respectivos territórios, princípio que a tecnologia da internet parece
anular. Atualmente, a China exerce integralmente o controle da internet em seu
território soberano. Alguns outros países, como a Rússia, exercem-no parcialmente.
A União Européia começa a avançar na mesma direção e vem produzindo e divul-
gando estudos a respeito.

No momento atual, os maiores opositores de qualquer regulação da internet são o


Google, o Facebook e o governo dos Estados Unidos, exceto no que se refere à “ges-
tão dos direitos digitais” (DRM, na sigla em inglês), ou seja, à proteção da proprie-
dade intelectual. Para enfrentar esta e outras violações de natureza criminal, os EUA
defendem o princípio do “notice and take down” (“noticie e derrube”), pelo qual o
provedor é obrigado a retirar de seus servidores (logo da rede), qualquer conteúdo
que seja denunciado como “impróprio” ou “ilegal” por qualquer pessoa ou empresa,
independentemente de pronunciamento ou manifestação judicial prévia. No mais,
o Estado dos Estados Unidos (Governo, Judiciário, Legislativo, autoridades regula-
tórias) sustenta que a internet deve ser gerenciada como se fosse uma mera atividade
técnica, à margem de qualquer governo. Para isso, com apoio da comunidade cien-
tífica estadunidense, instituiu uma agência supostamente independente, a ICANN,
para coordenar mundialmente essa governança ou gerenciamento. A autoridade da
ICANN vem de um contrato firmado entre ela e o Departamento do Comércio dos
Estados Unidos.

Dentre as 50 maiores corporações mediáticas do mundo, duas estão situadas na


América Latina: a brasileira Globo e a mexicana Televisa. E não há mais nenhu-
GT DE
SISTEMA DE
60 COMUNICAÇÃO

ma outra situada no que já foi denominado “terceiro mundo”: todas as demais 48


maiores corporações encontram-se nos Estados Unidos, Europa (leia-se Ocidental),
Japão, Coréia (do Sul), China, Austrália e Canadá, ou seja no “primeiro mundo”. A
Globo e a Televisa sustentam-se numa estratégia dúbia. Por um lado, naturalmente,
reproduzem, em seus espaços de produção e veiculação, as relações do capitalismo
espetacular e, nisto, buscam também participar do jogo global de alianças com ou-
tras corporações mediáticas e com o capital financeiro. Por outro lado, só podem
se sustentar nestes seus espaços próprios através de produtos diferenciados que, de
algum modo, possam ser identificados, tanto nacional quanto internacionalmente,
como expressões da cultura regional ou local. Daí o sucesso mundial que fazem as
novelas “brasileira” e “mexicana”, respectivamente. Por isto também, constituem
significativos mercados de trabalho e realização para artistas e produtores locais. De
alguma maneira, asseguram a presença de identidades nacionais periféricas num
sistema globalizado que tende a reproduzir homogeneamente apenas a cultura e
identidade dos centros de poder econômico e político, sobretudo o estilo de vida
consumista e o modo de pensar individualista hegemônico da cultura industrial
estadunidense.

O Sistema Globo conseguiu se consolidar como grande produtor de conteúdos fora


dos países centrais, sabendo aproveitar um conjunto de oportunidades favoráveis
para realizar alguns investimentos estratégicos, dentre estes a construção de um
imponente estúdio de produção (Projac). Se, no cenário mundial atual, domina-
do pelo Google, Facebook, Time-Warner (em processo de fusão com a AT&T),
Disney, Viacom etc., o Sistema Globo tem algum futuro, este se encontra na sua
consolidação como conglomerado produtor e programador, deixando de lado seus
interesses na transmissão e distribuição. Os irmãos Marinho, seus controladores,
sabem disso e já o declararam em entrevistas à imprensa.

Os demais grupos de “mídia” brasileiros já o são e tendem a se tornar cada vez mais
marginais, não apenas economicamente, mas na própria construção de algum ideá-
rio subjetivo nacional ou regional, entendido como parte integrante do capitalismo
mundializado do espetáculo. Ou seja, o mercado brasileiro tende a ser ocupado pela
Time-Warner, News Corp./Fox, Disney, processo aliás que já pode ser claramente
identificado na produção e transmissão de competições futebolísticas brasileiras. O
jornalismo impresso, reduto dos grupos Abril, Estado, Folhas e de empresas menores
provinciais, pode seguir se sustentando num público leitor de classe média, mas
explorando cada vez mais as plataformas digitais de divulgação, em dura concor-
rência com as novas “tendências” de busca de informação através das “redes sociais”
e “bolhas” construídas no interior dos “jardins murados” do Facebook, Google,
YouTube etc. Grupos de televisão como SBT e Bandeirantes, que não souberam se
consolidar como produtores e programadores de “qualidade” internacional, talvez
sobrevivam dirigindo-se a audiências popularescas, nas franjas do principal mercado
anunciante espetacularizado. O Grupo Record estaria na mesma situação mas conta
GT DE
SISTEMA DE 61
COMUNICAÇÃO

com fonte autônoma de financiamento: a exploração da crendice popular pelo fun-


damentalismo religioso da Igreja Universal. Enquanto isso, um novo fenômeno está
crescendo nos interiores do Brasil: a expansão de pequenos e médios provedores de
acesso à internet com redes próprias, em centenas e centenas de municípios brasilei-
ros mal atendidos ou não atendidos pelas grandes operadoras de telecomunicações.
Por meio deles, uma parcela da população brasileira começa a ter contato com as
plataformas Facebook, YouTube etc. Na medida em que estão semeando mercado, a
tendência natural é que, mais cedo ou mais tarde, comecem a ser absorvidos pelas
grandes operadoras. Boa parte desses provedores, embora operadores de rede, estão
se instalando sem qualquer observância às normas regulatórias. Graças à crescente
massificação da internet no Brasil, o Google já é o segundo grupo “brasileiro” de
“mídia” em termos de faturamento publicitário, perdendo apenas (ainda) para a
Rede Globo.

Nas últimas três décadas, o capital promoveu mundialmente radical privatização


dos recursos de comunicação da sociedade, no bojo de uma ampla reestruturação
econômica e política impulsionada pela crise kondratieffiana dos anos 1970-1980.
Mais do que transferir para o controle privado, nos países onde ainda não o eram, a
infra-estrutura e o conjunto da cadeia de valor, as novas legislações regulatórias re-
vogaram e aboliram completamente o princípio das comunicações como um serviço
público. Os sistemas, instituições e organizações de comunicações devem atender ao
mercado (“interesse do consumidor”). Assim, por exemplo, o Estado vem perdendo,
ou já perdeu, o seu poder concedente de canais de programação (como detinha na
“velha” radiodifusão), poder este hoje em dia inteiramente em mãos das corpora-
ções que controlam as redes e negociam o acesso a elas diretamente, em função da
atratividade de audiência, com as corporações proprietárias desses canais (quando
já não são empresarialmente integradas e verticalizadas). Também as plataformas
ou serviços privados sobre a internet, como Facebook ou YouTube passaram a deter
amplo e, cada vez mais, total controle e até poder de censura sobre perfis ou canais
pessoais ou empresariais que permitem ser veiculados.

Nesse cenário político-econômico internacional e nacional, o debate político-regu-


latório, superado o processo de liberalização e privatização dos meios de comunica-
ção, passou a ser pautado por reivindicações liberais relativas à “liberdade de expres-
são”, “direitos humanos”, “identidades”, “comportamentos” etc. Busca-se abrir o
sistema à “pluralidade de vozes”. Embora através de caminhos político-regulatórios
distintos, esse processo avança nos Estados Unidos e na União Européia. Assim, em
países como Espanha e Reino Unido, pode-se contar com mais de mil canais de te-
levisão (terrestre, a cabo ou satélite) e em muitos outros, inclusive nos Estados Uni-
dos, com algumas muitas centenas. No entanto, dois ou três canais detêm, nesses
países (exceto Estados Unidos), mais de 60 por cento da audiência, ou seja atendem
à demanda real da grande audiência. Os demais dirigem-se a segmentos consumi-
dores ultra especializados (fãs de esporte, de música “pop”, de filmes “cult” etc.) ou
GT DE
SISTEMA DE
62 COMUNICAÇÃO

grupos identitários (culturais, étnicos, lingüísticos, religiosos etc.), grupos estes sem
poder (e, muito provavelmente, também sem interesse) de comunicação para além
deles mesmos. Reforçam a fragmentação social diante do poder totalizante do ca-
pital. Todos, aliás, utilizam-se das mesmas redes de infra-estrutura controladas pelo
oligopólio de corporações mediático-financeiras.

No Brasil essa construção está bastante atrasada, embora a agenda do debate seja
também basicamente liberal. O capital periférico vem forçando mudanças regulató-
rias na medida da disputa e poder de pressão dos diversos blocos capitalistas. Assim,
foram privatizadas as telecomunicações com a entrega dos mercados mais rentáveis
para o capital estrangeiro e buscando não afetar o ainda politicamente poderoso
campo da radiodifusão aberta. Também veio sendo regulamentada a televisão por
assinatura (Lei do Cabo em 1995 e Lei do SeAC em 2011), à margem da radiodi-
fusão aberta (ao contrário do que aconteceu na Europa), atendendo em parte aos
interesses do Grupo Globo e servindo à entrada, no mercado brasileiro, das maiores
corporações mediáticas estadunidenses (Time-Warner, Disney, News Corp./Fox).
Na internet, o Brasil dotou-se de uma lei de proteção dos direitos civis (liberdade de
expressão, privacidade etc.), denominada “Marco Civil da Internet” (MCI). Esta lei
rejeita o princípio do “notice and take down” mas não é respeitada pelas plataformas
estadunidenses (Facebook, YouTube) que alegam não estarem obrigadas a respeitar
outra legislação que não seja a dos Estados Unidos. O MCI reflete, no Brasil, a
disputa capitalista entre o “novo capital” informacional-digital (Google, Facebook
etc.) e o “velho capital” das operadoras de rede que controlam a infra-estrutura de
telecomunicações, disputa esta expressa no debate sobre a “neutralidade de rede”.
Essa disputa será resolvida, tanto no Brasil quanto nos principais centros capita-
listas, na medida em que se definam repactuações no interior do próprio capital
mediático-financeiro.

Não estando posto, na atual conjuntura política e cultural, algum projeto sério de
crítica radical ao capital, poder-se-ia buscar construir, ao menos, um programa de
regulação das comunicações que forçasse em seus próprios limites o programa libe-
ral. Este programa poderia girar em torno de alguns tópicos:

i) Reafirmação dos serviços de comunicação social, inclusive a internet, como


serviços públicos, logo submetidos aos artigos 21-XI e 220 a 223 da Constituição
brasileira.

ii) Soberania nacional: recuperação do princípio da soberania nacional nas redes e


infra-estrutura de comunicação implicando, particularmente na internet:

a) defesa de transferência para agência especializada tutelada pela ONU, do


governo da internet, agência esta que promoveria a elaboração e observância
de tratados políticos, econômicos e técnicos internacionais (intra-nacionais)
GT DE
SISTEMA DE 63
COMUNICAÇÃO

similares, guardadas as devidas diferenças, aos estabelecidos para as telecomu-


nicações e radiodifusão quando essas tecnologias eram também nascentes nas
primeiras décadas do século XX;

b) manutenção, no Brasil, de servidores de corporações globais que conte-


nham e tratem dados de cidadãos(ãs) e empresas brasileiros(as).

iii) Regulação por camadas com separação dupla de camadas na internet:

a) separação tecnológica e comercial em todos os segmentos de comunicação so-


cial eletro-eletrônica, entre a camada de rede (infra-estrutura) e a de conteúdos,
implicando estender, para a radiodifusão aberta, a legislação já adotada na
radiodifusão paga (Lei 12.485/2011), na qual empresas produtoras/progra-
madoras não podem deter controle de redes de acesso e vice-versa;

b) reconhecimento da internet como uma infra-estrutura técnico-econômica


(provedores de acesso, protocolos, códigos etc.), distinta comercialmente da
rede técnica de telecomunicações que lhe dá suporte (“neutralidade de rede”)
e também dos serviços e “plataformas”, sobretudo os de natureza comercial,
fornecidos sobre ela, internet.

iv) Regulação da camada de conteúdos:

a) elaboração de lei regulatória para o conjunto dos serviços de comunicação so-


cial eletrônica nos termos da Constituição, em especial o Artº 221 combinado
com o Artº 222, § 3º, independentemente das condições econômicas e/ou
tecnológicas de acesso, lei esta que, entre outros aspectos:

a1. instituirá um Conselho Nacional de Comunicações, com partici-


pação de representantes eleitos da sociedade civil, dotado de poderes
políticos e regulatórios para formular e, uma vez adotadas pelos poderes
Executivo ou Legislativo, fazer executar ou fiscalizar, políticas de comu-
nicações incluindo as camadas de conteúdo, a internet e as telecomu-
nicações;

a2. favorecerá, protegerá e fomentará a produção nacional, local e co-


munitária, mediante cotas, fundos financeiros e outros instrumentos,
nas diversas plataformas de radiodifusão e na internet;

a3. coibirá com rigor, manifestações discriminatórias, xenófobas, racis-


tas, que possam induzir à violência contra o ser humano, a mulher, a
criança, inclusive as provenientes do exterior através das corporações
mediático-financeiras globais, da internet e de videojogos.
GT DE
SISTEMA DE
64 COMUNICAÇÃO

b) reconhecimento, na lei, dos serviços e “plataformas” que empregam a tec-


nologia da internet como provedores de conteúdos necessariamente submetidos
à Constituição e leis nacionais, considerando suas especificidades:

b1. Serviços audiovisuais: serviços de streaming que funcionam como


produtores ou distribuidores de conteúdos audiovisuais, seja distribuin-
do material de catálogo (Netflix, SpotFy), seja funcionando como ca-
nais de rádio ou televisão (YouTube), que serão reconhecidos como tais
para efeito de cumprimento da Constituição brasileira, artos 220-223, e
portanto submetidos à legislação regulatória apropriada;

b2. Serviços de mensageria: serviços de transmissão de mensagens, em


princípio neutros quanto aos conteúdos (WhatsApp, Telegram, Skype
etc.), similares pois aos Correios ou à telefonia, que serão reconhecidos
como tais para efeito de cumprimento da Constituição brasileira, artº
21-XI, e portanto submetidos a legislação regulatória apropriada;

b3. Serviços de interação social e outros remunerados basicamente pe-


los dados do usuário: são serviços de fato nascidos das potencialidades
tecnológicas e econômicas da internet, a exemplo das plataformas Fa-
cebook ou Google, que evoluíram para se tornarem corporações mun-
dialmente poderosas em termos econômicos e políticos intervindo e
afetando distintos ramos da comunicação social e da produção cultural
(jornalismo, espetáculos, publicidade, biblioteconomia, vivência coti-
diana etc., etc.), dificilmente classificável nos termos da legislação his-
tórica, por isto estando a exigir tratamento regulatório específico no
que tange à soberania e segurança nacionais, liberdade de expressão,
direito à privacidade, combate a monopólios econômicos, entre outros
tópicos.

b4. Outros serviços: muitos outros serviços apoiados na internet não


passam, realmente, de renovados negócios privados tradicionais explo-
rando as possibilidades tecnológicas da rede, logo não precisariam de
regulação, além da ordinária, a exemplo do comércio eletrônico, do táxi
privativo (Uber) etc.
PROJETO
BRASIL
contato.grupoprojetobrasil@gmail.com POPULAR

CADERNO DE DEBATES
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