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1 CÓMO SE HACE UNA NOVELA


2 Miguel de Unamuno
3
4 “Méteme, Padre eterno, en tu pecho,
5 misterioso hogar, dormiré allí,
6 pues vengo deshecho del duro hogar”.
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8 Epitáfio de Miguel de Unamuno
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10 “Nihi quaestio factus sum”.1
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12 Confissões, Santo Agostinho
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14 Prólogo

15 [...] Quem põe por escrito seus pensamentos, seus sonhos, seus sentimentos, os vai
16 consumindo, os vai matando. Quando um pensamento nosso fica fixado pela escritura, expressado,
17 cristalizado, fica morto, e não é mais nosso do que será um dia nosso esqueleto sob a terra. A
18 história, a única coisa viva, é o presente eterno, o momento fugaz que fica passando, que passa
19 ficando. E a literatura não é mais que morte. Morte de que outros podem tirar vida. Porque quem lê
20 um romance pode vivê-lo, revivê-lo –e quem diz um romance diz uma história – e quem lê um
21 poema, uma criatura – poema é criatura e poesia é criação – pode recriá-lo. Entre eles o próprio
22 autor. E pode um autor, sempre, ao voltar a ler uma antiga obra sua, voltar a encontrar a eternidade
23 daquele momento passado que faz o presente eterno? Não lhe ocorreu nunca, caro leitor, pôr-se a
24 meditar diante de um retrato seu, de si mesmo, de uns vinte ou trinta anos atrás? O presente eterno é
25 o mistério trágico, é a tragédia misteriosa de nossa vida histórica ou espiritual. [...]
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27 Como se faz um romance


28 Eis me aqui diante destas brancas páginas –brancas como o negro porvir: terrível brancura! –
29 buscando reter o tempo que passa, fixar o fugidio hoje, eternizar-me ou imortalizar-me enfim,
30 mesmo que eternidade e imortalidade não sejam uma única e mesma coisa. Eis me diante destas
31 páginas brancas, meu porvir, tratando de derramar minha vida a fim de continuar vivendo, de dar-me
32 a vida, de arrancar-me da morte de cada instante. Trato, ao mesmo tempo, de consolar-me de meu
33 desterro, do desterro de minha eternidade, deste desterro de dar-me à vida ao que quero chamar meu
34 des-céu.
35 O desterro, a proscrição! E que experiências íntimas, até religiosas, lhe devo! Foi então, ali,
36 naquela ilha de Fuerteventura49, à que amarei eternamente e desde o fundo de minhas entranhas,
37 naquele asilo de Deus, e depois aqui, em Paris, cheio e desbordante de história humana, universal,
38 onde escrevi meus sonetos50, que alguém comparou, pela origem e a intenção, aos Castigos escritos
39 contra a tirania de Napoleão o Pequeno51, por Victor Hugo52 em sua ilha de Guernesey. Entretanto
40 não me bastam, não estou neles com todo meu eu do desterro, parecem-me muito pouca coisa para
2
1 eternizar-me no presente fugidio, neste espantoso presente histórico, já que a história é a
2 possibilidade dos espantos.
3 Nestas circunstâncias e em tal estado de ânimo me ocorreu, já faz alguns meses, depois de ler
4 a terrível Pele do onagro, de Balzac62, cujo argumento conhecia e que devorei com uma angústia
5 crescente aqui, em Paris e no exílio, de colocar-me num romance que viria a ser uma autobiografia.
6 Contudo, não são por acaso autobiografias todos os romances que se eternizam e duram eternizando
7 e fazendo durar seus autores e seus antagonistas?
8 [...]

9 Nestes dias de meados de julho de 1925 – ontem foi 14 de julho – li as eternas cartas de amor
10 que aquele outro proscrito que foi Giusepe Mazzini 63 escreveu a Judit Sidoli. Um proscrito italiano,
11 Alcestes de Ambris, emprestou-me; não sabe bem o favor que com isso me fez. Numa dessas cartas,
12 de outubro de 1834, Mazzini, respondendo a sua Judit que lhe pedia que escrevesse um romance, lhe
13 dizia: “É impossível escrevê-lo. Você sabe muito bem que não poderia me separar de ti e colocar-me
14 num quadro sem que se revelasse meu amor... E desde o momento em que ponho meu amor perto de
15 você o romance desaparece.” Eu também coloquei a minha Concha, a mãe de meus filhos, que é o
16 símbolo vivo de minha Espanha, de meus sonhos e de meu futuro, porque é nesses filhos em quem
17 hei de eternizar-me, eu também a coloquei expressamente em um de meus últimos sonetos e
18 tacitamente em todos. E neles me coloquei. E, além disso, repito, não são, em rigor, todos os
19 romances que nascem vivos, autobiográficos e não é por isso que se eternizam? E que não choque
20 ninguém minha expressão de nascer vivos, porque: a) se nasce e se morre vivo, b) se nasce e se
21 morre morto, c) se nasce vivo para morrer morto, e d) se nasce morto para morrer vivo.
22 Sim, todo romance, toda obra de ficção, todo poema, quando é vivo é autobiográfico. Todo
23 ser de ficção, todo personagem poético que um autor cria faz parte do autor mesmo. E se este autor
24 põe em seu poema um homem de carne e osso a quem conheceu, é depois de tê- lo feito seu, parte
25 de si mesmo. Os grandes historiadores são também autobiográficos. Os tiranos descritos por Tácito 64
26 são ele mesmo. Pelo amor e a admiração que ele lhes consagrou - se admira e até se ama aquilo a
27 que se execra e que se combate... Ah, como amou Sarmiento65 ao tirano Rosas66! – apropriou-se
28 deles e os fez ele mesmo –. É mentira a suposta impessoalidade ou objetividade de Flaubert 67. Todos
29 os personagens poéticos de Flaubert são Flaubert e mais que nenhum outro Emma Bovary. Até o Sr.
30 Homais, que é Flaubert, e se Flaubert se burla do Sr. Homais é para burlar-se de si mesmo, por
31 compaixão, quer dizer, por amor a si mesmo. Pobre Bouvard! Pobre Pécuchet 68!
32 Todas as criaturas são seu criador. E jamais sentiu-se Deus mais criador, mais pai, que
33 quando morreu em Cristo, quando nele, em seu Filho, experimentou a morte.
34 [...] Todos os que vivemos principalmente da leitura e na leitura, não podemos separar os
35 personagens poéticos ou romanescos dos históricos. Dom Quixote é para nós tão real e efetivo como
3
1 Cervantes, ou melhor, este é tão real como aquele. Tudo é para nós livro, leitura. Podemos falar do
2 Livro da História, do Livro da Natureza, do Livro do Universo. Somos bíblicos. Podemos dizer que
3 no princípio era o Livro. Ou a História. Porque a História começa com o Livro e não com a Palavra,
4 e antes da História, do Livro, não havia consciência, não havia espelho, não havia nada. A pré-
5 história é inconsciência, é o nada.
6 .
7 Viver na história e viver a história! [...] A essência de um indivíduo e a de um povo é sua
8 história, e a história é o que se chama filosofia da história. É a reflexão que cada indivíduo, ou cada
9 povo faz do que lhes acontece, do que acontece neles. Com acontecimentos, acontecidos, se
10 constituem fatos, idéias feitas de carne. No entanto, como o que me proponho, no presente, é contar
11 como se faz um romance e não filosofar ou historiar, não devo distrair-me mais e deixo para outra
12 ocasião explicar a diferença entre acontecimento e fato, entre o que acontece e passa e o que se faz e
13 fica.

14 Diz-se que Lênin74, em agosto de 1917, um pouco antes de apoderar-se do governo, deixou
15 inacabado um folheto, muito mal escrito, sobre a Revolução e o Estado, porque acreditou ser mais
16 útil e mais oportuno experimentar a Revolução que escrever sobre ela. Mas escrever sobre a
17 Revolução não é também fazer experiências com ela? Karl Marx 75 não fez a Revolução Russa tanto
18 ou até mais que Lênin? [...]
19 [...]
20 Meu romance! minha lenda! O Unamuno de minha lenda, de meu romance, o que fizemos
21 juntos meu eu amigo e meu eu inimigo e os demais, meus amigos e meus inimigos. Este Unamuno
22 me dá vida e morte, me cria e me destrói, me sustenta e me afoga. É minha agonia. Serei como me
23 creio ou como me crêem os outros? E eis aqui como estas linhas se convertem numa confissão ante
24 meu eu desconhecido e inconhecível; desconhecido e inconhecível para mim mesmo. Eis que faço
25 aqui a lenda em que hei de enterrar-me. Contudo, vou ao caso de meu romance.
26 Porque imaginei, há alguns meses, fazer um romance no qual queria colocar a mais íntima
27 experiência do meu desterro. Criar-me, eternizar-me sob os traços de desterrado e de proscrito.
28 Agora penso que a melhor maneira de fazer esse romance é contar como se tem que fazê-lo. É o
29 romance do romance, a criação da criação. Ou Deus de Deus, Deus de Deo.
30 [...]
31 U. Jugo de la Raza se aborrece de uma maneira soberana – e, que aborrecimento o de um
32 soberano! – porque já não vive mais que em si mesmo, no pobre eu sob a história, no homem triste
33 que não se fez romance. E por isso gosta dos romances. Gosta e os busca para viver nos outros, para
34 ser outro, para eternizar-se no outro. Isso, pelo menos, é o que ele crê, mas na realidade busca os
35 romances a fim de descobrir-se, a fim de viver em si, de ser ele mesmo. Ou melhor, a fim de escapar
4
1 do seu eu desconhecido e inconhecível até para si mesmo.
2 [...]
3 E enquanto isso eu, Miguel de Unamuno, romanesco também, quase não escrevia, quase não
4 agia por medo de ser devorado por meus atos. [...] E lá, na minha Espanha, meus amigos e meus
5 inimigos diziam que não sou um político, que não tenho temperamento para tal, e menos ainda para
6 revolucionário, que deveria consagrar-me a escrever poemas e romances e deixar de políticas. Como
7 se fazer política não fosse outra coisa que escrever poemas, e como se escrever poemas não fosse
8 outra maneira de fazer política!
9 [...] Eu lia os livros que caíam por acaso em minhas mãos, sem plano nem intenção, apenas
10 para satisfazer esse terrível vicio da leitura, o vicio impune de que fala Valéry Larbaud 82. Impune.
11 Isso sim! Que saboroso castigo! O vício da leitura leva o castigo da morte contínua.
12 [...]
13
14 Às vezes, nos instantes em que acredito que sou criatura de ficção e faço meu romance, em
15 que represento a mim mesmo, diante de mim mesmo, me ocorreu sonhar, ou que quase todos os
16 demais, sobretudo na minha Espanha, estão loucos, ou que eu o estou. E posto que todos os demais
17 não podem estar loucos quem deve estar louco sou eu. Ouvindo as opiniões que emitem sobre
18 minhas palavras, sobre meus escritos e sobre meus atos, penso: “Não seria, talvez, que eu pronuncie
19 palavras diferentes das que ouço pronunciar ou que talvez ouçam pronunciar palavras diferentes
20 daquelas que pronuncio?” E não deixo então de me lembrar da figura de Dom Quixote.
21 [...]
22 Coloco-me, por acaso fazendo minha lenda, meu romance e fazendo a deles, a do rei, a de
23 Primo de Rivera, a de Martínez Anido, criaturas do meu espírito, entes de ficção. Será que minto
24 quando lhes atribuo certas intenções e certos sentimentos? Eles existem como os descrevo? Será que
25 nem existem? Existem, seja como for, fora de mim? No entanto, as minhas criaturas são criaturas do
26 meu amor mesmo que se revistam de ódio. Eu já disse que Sarmiento admirava e amava o tirano
27 Rosas; eu não direi que admiro a nosso rei, mas que o amo sim, pois é meu porque eu o fiz. Amo-o
28 fora da Espanha, contudo o amo. E será que amo, por acaso, esse mentecapto do General Primo de
29 Rivera, que se arrependeu do que fez comigo, como no fundo deve estar arrependido com o que fez
30 com a Espanha. Por aquele pobre epilético Martínez Anido que, num de seus ataques,
31 espumando-lhe a boca e todo trêmulo, pedia minha cabeça, sinto uma compaixão que é ternura
32 porque presumo que nada deseja mais que meu perdão, sobretudo se suspeita que rezo diariamente:
33 “perdoai-nos nossas dívidas assim como nós perdoamos a nossos devedores”. Mas, ah! Há o papel!
34 Volto à cena! À comédia!
35 [...]
36 Hipócrita! Porque eu que sou, de profissão, um ganha-pão helenista, – é a cátedra de grego
5
1 que o Diretório fez a comédia de tirar-me, deixando-a vacante – sei que hipócrita significa ator.
2 Hipócrita? Não! Meu papel é minha verdade e devo viver minha verdade, que é minha vida.
3 [...]
4 Entretanto, a pobre mulher de letras buscava o que busco, o que busca todo escritor, todo
5 historiador, todo romancista, todo político, todo poeta: viver na duradoura e permanente história,
6 não morrer. Nesses dias li Proust102, protótipo de escritores e de solitários e, que tragédia a sua
7 solidão! O que o aflige, o que o permite sondar os abismos da tragédia humana é seu sentimento da
8 morte, mas da morte de cada instante, é que se sente morrer momento a momento, que disseca o
9 cadáver de sua alma, e com que minuciosidade! Em busca do tempo perdido! Sempre se perde o
10 tempo. O que se chama ganhar tempo é perdê-lo. O tempo: eis aqui a tragédia.
11 [...]
12 E vejam como eu, que abomino o gongorismo, que encontro poesia, isto é, criação, ou seja,
13 ação, onde não há paixão, onde não há corpo e carne de dor humana, onde não há lágrimas de
14 sangue, deixo-me dominar pelo mais terrível, pelo mais antipoético do gongorismo que é a erudição.
15 [...]
16
17 A Divina Tragédia! E não como Dante, o crente medieval, o proscrito gibelino, chamou a
18 sua: Divina Comédia. A de Dante era comédia, e não tragédia, porque nela havia esperança. [...] A
19 viva esperança vence a divina vontade! Crer nisto sim que é fé e fé poética! Aquele que espera
20 firmemente, cheio de fé em sua esperança, não morrer, não morrerá...! Em todo caso, os condenados
21 de Dante vivem na história, e assim, sua condenação não é trágica, não é de divina tragédia, e sim
22 cômica. Sobre eles, e apesar de sua condenação Deus sorri...]
23 [...]
24 O que vou fazer com meu Jugo de la Raza? Como isto que escrevo, caro leitor, é um
25 romance verdadeiro, um poema verdadeiro, uma criação, e consiste em dizer para você, como se
26 faz e não como se conta um romance, uma vida histórica, não tenho por que satisfazer seu
27 interesse folhetinesco e frívolo. Todo leitor que lendo um romance se preocupa em saber como
28 acabarão seus personagens, sem preocupar-se como ele próprio se acabará, não merece que se
29 satisfaça sua curiosidade.
30 [...]
31 O mesmo Góngora era um mentiroso. Ouçam como começam suas Soledades, onde disse
32 que “a erudição engana.” Assim: “Era del año la estación florida / en que el mentido robador de
33 Europa…”
34 O mentido! O mentido? Por que se via obrigado a dizer-nos que o roubo de Europa por
35 Júpiter convertido em touro é uma mentira? Por que o erudito culteranista via-se obrigado a dar-nos
36 a entender que eram mentiras suas ficções? Mentiras e não ficções.
6
1 [...]
2 Mas a este leitor indignado o que indigna é que lhe mostro que ele é, por sua vez, um
3 personagem cômico, romanesco e nada menos que isso, um personagem que quero pôr em meio ao
4 sonho de sua vida. Que faça do sonho, de seu sonho, vida e se salvará. Como não há nada mais que
5 comédia e romance, que pense que o que lhe parece realidade extracena, é comédia de comédia,
6 romance de romance, que a essência inventada por Kant é o mais fenomenal que pode se dar e a
7 substância o que há de mais formal. O fundo de uma coisa é superfície.

8 Agora, para que acabar o romance de Jugo? Este romance, e, além disso, todas as coisas que
9 se fazem, e não é que a gente se contente em contá-las, em rigor, não terminam. O acabado, o
10 perfeito, é a morte e a vida não pode morrer. O leitor que busca romances acabados não merece ser
11 meu leitor. Ele já está acabado antes de ter-me lido.
12 [...]
13 A despeito do assunto que algum leitor voltará a perguntar-me: “Bem, como acaba este
14 homem? Como o devora a história?” Pergunto, então: como acabará você, caro leitor? Se não é mais
15 que leitor, ao acabar sua leitura, e se é homem, homem como eu, ou seja, comediante e autor de si
16 mesmo, então não deve ler por medo de esquecer-se a si mesmo.

17 [...]
18 Em todo caso, além do mais, não quero morrer para não dar o gosto a certos leitores incertos.
19 E você, caro leitor, que chegou até aqui, está vivo?
20
21 Continuação
22 Hendaya [junho-julho] de 1927
23
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25 Sexta-feira, 17 de junho de 1927
26
27 [...]
28 Bem presumi que não se atreveriam a comunicar-me nada por escrito, que permanece, e por
29 isso resisiti à palavra que o vento leva. Mas... será que permanece o escrito? Leva o vento a palavra?
30 Tem a letra, o esqueleto, mais essência duradoura, mais eternidade, que o verbo, que a carne? Eis me
31 aqui de novo no centro, nas profundezas da vida íntima, do “homem de dentro” que diria São Paulo
32 (Efésios, III, 15)127, no tutano do meu romance, de minha história. O que me leva a continuá- la, a
33 acabar de contar para você, caro leitor, como se faz um romance.

34 [...]
35 Pois bem, um dia em que consegui entrar na vedada e litúrgica sala de recepção, encontrei
7
1 meu pai – papai! – que me acolheu em seus braços, sentado numa das poltronas forradas, diante de
2 um francês, um certo senhor Legorgeux – a quem conheci depois – e falando em francês. Que efeito
3 pode produzir em minha infantil consciência [...] O francês era então para mim uma língua de
4 mistério.
5 Descobri ao pai –papai! – falando uma língua de mistério e talvez me acariciando na nossa
6 língua. Mas pode o filho descobrir o pai? Não será o pai quem descobre o filho? Será a filialidade
7 que levamos nas entranhas que nos descobre a paternidade, ou será a paternidade de nossas
8 entranhas a que descobre nossa filialidade? “A criança é o pai do homem”, cantou para sempre
9 Wordsworth137. Mas não será o sentimento – que pobre palavra! – de paternidade, de perpetuidade
10 para o futuro, o que nos revela o sentimento de filialidade, de perpetuidade para o passado? [...]
11 “Pai, em tuas mãos ponho meu espírito!”, clamou o Filho (Lucas, XXIII, 46)138 ao morrer,
12 ao desnascer, no parto da morte. Ou segundo outro Evangelho (João, XIX, 30)139, clamou:
13 tetélestai!”
14 [...]
15 Ficou cumprida sua obra e sua obra foi seu espírito. Nossa obra é nosso espírito e minha obra
16 sou eu mesmo que estou me fazendo dia a dia e século a século, como sua obra é a sua mesmo, caro
17 leitor, que você está fazendo momento a momento, como agora ouvindo-me como eu lhe falando.
18 Porque quero crer que você me ouve mais que lê, como eu falo com você mais que escrevo para
19 você. Somos nossa própria obra. Cada um é filho de suas próprias obras, ficou dito, e o repetiu
20 Cervantes, filho do Quixote. No entanto, não somos também pai de nossas obras? E Cervantes, pai
21 do Quixote. De onde a gente, sem conceptismo, é pai e filho de si mesmo e nossa obra o espírito
22 santo. Deus mesmo, para ser Pai, nos ensina que teve que ser Filho, e para sentir-se nascer como Pai,
23 teve que descer para morrer como Filho. “Vai-se ao Pai pelo Filho”, nos diz o quarto Evangelho
24 (XIV, 6)141, e quem vê o Filho vê o Pai (XIV, 8)142. Na Rússia se chama o Filho de “nosso paizinho
25 Jesus”.
26 [...]
27 No entanto, há outro mundo, romanesco também: há outro romance. Não o da carne, e sim o
28 da palavra, o da palavra feito letra. Este é propriamente o romance que, como a história, começa
29 com a palavra ou propriamente com a letra, pois sem o esqueleto não se mantém em pé a carne. E
30 aqui entra a questão da ação e da contemplação, a política e o romance. A ação é contemplativa, a
31 contemplação é ativa; a política é romanesca e o romance é político. Quando meu pobre Jugo,
32 errando pelas margens – não as pude chamar ribeiras – do Sena, deu com o livro agourento e pôs-se
33 a devorá-lo e se introverteu nele. Converteu-se num puro contemplador, num mero leitor, o que é
34 algo absurdo e inumano; padecia o romance, mas não o fazia. Eu quero contar-lhe, caro leitor, como
35 se faz um romance, como faz e tem de fazer você mesmo. Seu próprio romance. O homem de
36 dentro, o intra-homem, quando se faz leitor, contemplador, se é vivente tem de fazer-se, meu caro
8
1 leitor, contemplador do personagem a quem vai, ao mesmo tempo, lendo, fazendo, criando;
2 contemplador de sua própria obra. O homem de dentro, o intra-homem – e este é o mais divino que
3 o trás-homem, o super-homem nietzcheniano – quando se faz leitor faz-se pelo mesmo autor, ou seja
4 ator, quando lê um romance, faz-se um romancista; não será quando lê história, historiador. Todo
5 leitor que seja homem de dentro, humano, é, meu caro leitor, autor do que lê e está lendo. Isto que
6 agora você está lendo aqui, meu caro leitor, você está dizendo a si mesmo e é tão seu quanto meu.
7 Se não é assim, é que você nem o lê. Por isso peço perdão a você, caro leitor meu, por essa mais que
8 impertinente insolência que soltei de que não queria dizer a você como acabava o romance de meu
9 Jugo, meu romance e seu romance. Peço perdão a mim mesmo por ele.
10 [...]
11 ...de Nicola Abbagnano143, e é isto: “Compreender não quer dizer penetrar na intimidade do
12 pensamento alheio, e sim tão somente traduzir no próprio pensamento, na própria verdade, a
13 experiência subterrânea em que se fundem a própria vida e a alheia.” Mas, não será por acaso,
14 penetrar na entranha do pensamento do outro? Se eu traduzo em meu próprio pensamento a
15 subterrânea experiência em que se fundem minha vida e sua vida, caro leitor, ou se você a traduz no
16 seu próprio pensamento, se chegamos a compreender-nos mutuamente, a prender-nos
17 conjuntamente, não será porque penetrei na intimidade do seu pensamento, enquanto você penetra
18 na intimidade do meu e que não é nem meu nem seu, e sim comum a ambos? Não é, por acaso que
19 meu homem de dentro, meu intra-homem, se toca e até se une com seu homem de dentro, com seu
20 intra-homem, de modo que eu viva em você e você em mim?
21 [...]
22 Um problema não pressupõe tanto uma solução, no sentido analítico, ou dissoluto, quanto
23 uma construção, uma criação. Resolve-se fazendo. Ou dito em outros termos, um projeto se resolve
24 num trajeto, um problema num metablema, numa mudança. Somente com a ação se resolvem
25 problemas. Ação que é contemplativa como a contemplação é ativa, pois crer que se possa fazer
26 política sem romance ou romance sem política é não saber o que se quer fazer.
27 [...]
28 Deus me livre de comparar o rei dom Alfonso XIII, o extravagante Primo de Rivera ou o
29 epilético Martínez Anido, tiranos da Espanha, com um Péricles, com um Cleón 145 ou com um
30 Alcebíades146, contudo estou convencido de que eu, Miguel de Unamuno, levei-os a fazer e dizer
31 não poucas coisas e entre elas muitas tolices. Se eles me fazem pensar e fazer em meu pensamento –
32 que é minha obra e minha ação– eu lhes faço obrar e acaso pensar. Enquanto isso eles e eu vivemos.
33 Assim é, meu caro leitor, como se faz para sempre um romance.
34

35 Terça-feira, 21 de junho de 1927.


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2 Acrescenta logo Azorín:
3
4 “Todo romancista, motivado por um romance seu, deveria escrever outro livro – romance
5 veraz, autêntico – para mostrar o mecanismo de sua ficção. Quando eu era criança – suponho que
6 agora acontece a mesma coisa – me interessavam muito os relógios. Meu pai, ou algum de meus
7 tios, costumava mostrar-me o seu; eu o examinava com cuidado, com admiração. Colocava-o junto
8 ao meu ouvido, escutava o precipitado e perseverante tique-taque; via como o ponteiro dos minutos
9 avançava com muita lentidão. Finalmente, depois de ver todo o exterior, meu pai ou meu tio
10 levantava – com a unha ou com um estilete – a tampa posterior e me mostrava o complicado e sutil
11 organismo... Os romancistas que agora fazem livros para explicar o mecanismo de seu romance,
12 para mostrar como eles procedem ao escrever, o que fazem, simplesmente, é levantar a tampa do
13 relógio. O relógio do senhor Lacretelle é precioso; não sei quantos rubis tem a maquinaria; mas todo
14 ele é polido, brilhante. Contemplemo-la e falemos algo sobre o que observamos.”
15 O que merece comentário.
16 Primeiro, que a contemplação do relógio está muito mal feita e responde à idéia do
17 “mecanismo de sua ficção”. Uma ficção de mecanismo, mecânica, não é nem pode ser romance. Um
18 romance, para ser vivo, para ser vida, tem que ser, como a vida mesma, organismo e não
19 mecanismo. Não basta levantar a tampa do relógio. Antes de tudo porque um verdadeiro romance,
20 um romance vivo, não tem tampa, e depois porque não é maquinaria o que tem que se mostrar, e sim
21 entranhas palpitantes de vida, quentes de sangue. Isso se vê de fora. É como a cólera que se vê na
22 cara e nos olhos, sem necessidade de levantar tampa alguma.
23 O relojoeiro, que é um mecânico, pode levantar a tampa do relógio para que o cliente veja a
24 maquinaria, mas o romancista não tem que levantar nada para que o leitor sinta a palpitação das
25 entranhas do organismo vivo do romance, que são as entranhas do próprio romancista, do autor. E as
26 do leitor identificado com ele pela leitura.
27 Mas, por outra parte, o relojoeiro conhece reflexivamente, criticamente, o mecanismo do
28 relógio. O romancista, no entanto, conhece dessa forma o organismo de seu romance? Se há tampa
29 neste, a há para o próprio romancista. Os melhores romancistas não sabem o que põem em seus
30 romances. Ao pôr-se a fazerem um diário de como as escreveram é para descobrirem-se a si
31 mesmos. Os homens de diários ou de autobiografias e confissões, Santo Agostinho, Rousseau,
32 Amiel149, passaram a vida buscando a si mesmos – buscando a Deus em si mesmos – e seus diários,
33 autobiografias ou confissões não foram senão a experiência dessa busca. Essa experiência não pode
34 acabar senão com sua vida.
35 [...]
36 Cuidado para não cair no diário! O homem que se põe a manter um diário – como Amiel –
10
1 transforma-se no homem do diário, vive para ele. Já não aponta em seu diário o que pensa
2 diariamente, e sim o que pensa para apontar. No fundo, não é a mesma coisa? A gente brinca com
3 isso do livro do homem e do homem do livro. Há homens que não sejam de livro? Mesmo os que
4 não sabem nem ler nem escrever, todo homem, verdadeiramente homem, é filho de uma lenda,
5 escrita ou oral. Não há mais que lenda, ou seja, romance.
6 No entanto, ficamos, pois, em que o romancista que conta como se faz um romance conta
7 como se faz um romancista, ou seja, como se faz um homem. Mostra suas entranhas humanas,
8 eternas e universais, sem ter que levantar tampa alguma de relógio. Isso de levantar tampas de
9 relógios fica melhor em literatos que não são precisamente romancistas.
10 [...]
11 Eis por que toda a expressão de um homem histórico verdadeiro é autobiográfica. Eis por
12 que um homem histórico verdadeiro não tem tampa. Ainda que seja hipócrita. Já que são
13 principalmente os hipócritas os que mais levam as entranhas na cara. Têm tampa, no entanto, é de
14 cristal.
15
16 Quinta-feira, 30 de junho de 1927 – IV.
17
18 Contar a vida, não é por acaso um modo, e talvez o mais profundo, de vivê-la? Não viveu
19 Amiel sua vida íntima contando-a? Não é seu Diário sua vida? Quando acabará essa contraposição
20 entre ação e contemplação? Quando acabarão por compreender que a ação é contemplativa e a
21 contemplação é ativa?
22 [...]
23 Vivo agora e aqui minha vida contando-a. O agora e o aqui são da atualidade, que sustentam
24 e fundem à sucessão do tempo assim como a eternidade a envolve e junta.

25
26 Segunda-Feira, 4 de julho de 1927 - VII.
27
28 *Sobre o jogo de cartas: paciência.

29 O resultado depende, em parte, de como se comece; tem que se saber, pois, aproveitar o
30 acaso. E não é outra a arte da vida na história.
31 Enquanto sigo o jogo, obedecendo a suas regras, suas normas, com a mais escrupulosa
32 consciência normativa, com um vivo sentimento do dever, da obediência à lei que me criou – o jogo
33 bem jogado é a fonte da consciência moral –, enquanto sigo o jogo é como se uma música silenciosa
34 embalasse minhas meditações da história que vou vivendo e fazendo. [...] E se uma jogada não dá
35 certo volto a misturar as cartas e a embaralhá-las. Isso é um prazer. [...] Paciência, pois, e
11
1 embaralhar!
2

3 Terça-feira, 5 de julho de 1927 - VII.


4
5 [...] A vantagem do bom jogador de paciência não é que jogue mais depressa e sim que
6 abandone mais rápido as jogadas começadas que perceba que não têm solução. Na arte suprema de
7 aproveitar a superioridade do jogador consiste em resolver a abandonar a tempo a partida para poder
8 começar outra.
9
10 Quarta-feira, 6 de julho de 1927 - VII.
11
12 Isso me recorda aqueles dois heróis imortais – heróis, sim! – do ocaso de Flaubert, modelo
13 de romancista – que romance é a sua Correspondência! – os que o fizeram quando decaía para
14 sempre, que foram Bouvard e Pecuchet. E Bouvard e Pecuchet, depois de percorrerem todos os
15 cantos do espírito universal acabaram como escreventes. Não seria melhor que acabasse o
16 romance do meu Jugo de la Raza fazendo-o que, abandonada a leitura do livro fatídico, ele se
17 dedicasse a jogar paciência e jogando paciência esperasse que lhe acabe o livro da vida? Da vida e
18 da via, da história que é o caminho. [...]

19

20 Quinta-feira 7 de julho de 1927-VII.


21
22 O caminho, sim, a via, que é a vida, e passá-la jogando paciência –esse é o romance–. Mas os
23 jogos de paciência são paciência para um só. Não participam deles os demais. A pátria que há depois
24 desse caminho de jogos de paciências é uma pátria de solidão – de solidão e de vazio. Como se faz
25 um romance? Bem, para que se faz, no entanto? O para que é o porquê? Por que, ou seja, para que se
26 faz um romance? Para fazer-se o romancista. E para que se faz o romancista? Para fazer o leitor,
27 para fazer-se como o leitor. Somente com alguém fazendo o romancista e o leitor do romance,
28 ambos se salvam de sua solidão radical. Enquanto o fazem alguém, atualizam-se e, atualizando-se,
29 eternizam-se.
30 [...]
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1 NOVELA DE U. JUGO DE LA RAZA EN CÓMO SE HACE UNA NOVELA
2
3 Miguel de Unamuno
4
5
6 U. Jugo de la Raza, errando pelas margens do Sena, ao longo do cais, nas bancas de livros
7 usados, encontra um romance que começou a ler antes de comprá-lo, e este o domina enormemente,
8 tira-o de si, o introduz no personagem do romance –romance de uma confissão autobiográfica
9 romântica – o identifica com aquele outro, lhe dá uma história, enfim. O mundo grosseiro da
10 realidade do século desaparece ante seus olhos. Quando por um instante, desgrudando os olhos das
11 páginas do livro, fixa-os nas águas do Sena, parece-lhe que essas águas não correm, que são um
12 espelho imóvel e aparta delas seus olhos horrorizados e os devolve às páginas do livro, do romance,
13 para encontrar-se nelas, para nelas viver. E eis que aqui encontra uma passagem, passagem eterna,
14 em que lê estas palavras proféticas: “Quando o leitor chegar ao fim desta dolorosa história morrerá
15 comigo.”
16 Então, Jugo de la Raza sentiu que as letras do livro se apagavam ante seus olhos, como se se
17 aniquilassem nas águas do Sena, como se ele mesmo se aniquilasse; sentiu um ardor na nuca e um
18 frio em todo o corpo, suas pernas tremeram e sentiu no espírito o espectro da angina de peito que o
19 estivera perseguindo anos antes. O livro tremeu-lhe nas mãos e teve que se apoiar no parapeito do
20 cais. Por fim deixando o volume no lugar de onde o tomara, afastou- se ao longo do rio, em direção
21 a sua casa. Sentiu em sua testa o golpe de vento causado pelas asas do Anjo da Morte. Chegou em
22 casa, à casa provisória, deitou-se na cama, desvaneceu-se, acreditou morrer e sofreu a mais íntima
23 angústia.
24 “Não, não tocarei mais nesse livro, não o lerei, não o comprarei para terminá-lo –dizia a si
25 mesmo–. Seria minha morte. É uma tolice, eu sei. Foi um capricho macabro do autor colocar ali
26 aquelas palavras, mas estiveram a ponto de matar-me. É mais forte que eu. Quando ao voltar para
27 cá, atravessei a ponte da Alma – a ponte da alma! – senti vontade de jogar-me no Sena, no
28 espelho[...].”
29 Entretanto, o pobre Jugo de la Raza não podia viver sem o livro, sem aquele livro. Sua vida,
30 sua existência íntima, sua realidade, sua verdadeira realidade já estava definida e irrevogavelmente
31 unida à do personagem do romance. Se o continuava lendo, vivendo-o, corria o risco de morrer
32 quando morresse o personagem romanesco, porém se não o lia já, se não vivia já o livro, viveria? E
33 depois disto voltou a passear pelas margens do Sena, [...] Passou sem abrir o livro, dizendo-se:
34 “Como seguirá essa história? Como acabará?” Estava convencido, no entanto, de que um dia não
35 poderia resistir e de que lhe seria necessário tomar o livro e prosseguir a leitura, ainda que tivesse
36 que morrer ao acabá-la.
14
1 [...]
2 E enquanto isso eu, Miguel de Unamuno, romanesco também, quase não escrevia, quase não
3 agia por medo de ser devorado por meus atos. [..]. Mas estas cartas que faziam história em minha
4 Espanha, me devoravam. E lá, na minha Espanha, meus amigos e meus inimigos diziam que não sou
5 um político, que não tenho temperamento para tal, e menos ainda para revolucionário, que deveria
6 consagrar-me a escrever poemas e romances e deixar de políticas. Como se fazer política não fosse
7 outra coisa que escrever poemas, e como se escrever poemas não fosse outra maneira de fazer
8 política
9 [...]
10 Voltemos, pois, ao romance de Jugo de la Raza, ao romance de sua leitura do romance. O
11 que haveria de seguir, é que um dia o pobre Jugo de la Raza não pôde resistir mais, foi vencido pela
12 história, quer dizer, pela vida, ou seja, pela morte. Ao passar junto à banca de livros, no cais do
13 Sena, comprou o livro, colocou-o no bolso e começou a correr ao longo do rio, em direção a sua
14 casa, levando o livro como se leva uma coisa roubada, com medo de que alguém o volte a roubar.
15 [...] E olhando sobretudo para as águas do Sena, o espelho fluido, abriu o livro e leu algumas linhas.
16 Mas voltou a fechá-lo rapidamente. Voltava a encontrar o que, anos antes, tinha chamado de
17 dispnéia cerebral, acaso a enfermidade X de MacKenzie 84. E acreditava até estar sentindo um tipo de
18 cócegas fatídicas em todo o braço esquerdo e entre os dedos da mão. Em outros momentos dizia
19 para si mesmo: “Chegando àquela árvore cairei morto”. E depois que passou por ela, podia ouvir
20 uma vozinha, que desde o fundo do coração, lhe dizia: “Talvez você esteja realmente morto...” E
21 assim chegou a sua casa.
22 Chegou a sua casa, comeu tratando de prolongar a refeição, – prolongá-la com pressa - subiu
23 ao seu quarto, despiu-se e se deitou como para dormir, como para morrer. Seu coração batia
24 apressado. Estendido na cama, rezou primeiro um pai-nosso e logo uma ave-maria, detendo-se em:
25 “seja feita vossa vontade assim na terra como no céu” e em “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por
26 nós, os pecadores, agora e na hora de nossa morte”. Repetiu três vezes, fez o sinal da cruz e esperou,
27 antes de abrir o livro, que o coração se acalmasse. Sentia que o tempo o devorava, que o porvir
28 daquela ficção romanesca o tragava. O porvir daquela criatura de ficção com a qual tinha se
29 identificado. Sentia afundar-se em si mesmo.
30 Um pouco mais calmo, abriu o livro e retomou a leitura. Esqueceu-se de si mesmo
31 completamente e então, sim, pôde dizer que tinha morrido. Sonhava o outro, ou melhor, o outro era
32 um sonho que se sonhava nele, uma criatura de sua solidão infinita. Finalmente despertou com uma
33 terrível agulhada no coração. O personagem do livro acabava de voltar a lhe dizer: “Devo repetir ao
34 meu leitor que ele morrerá comigo”. E desta vez o efeito foi espantoso. O trágico leitor perdeu
35 conhecimento em seu leito de agonia espiritual. Deixou de sonhar o outro e deixou de se sonhar a si
36 mesmo. Quando voltou a si, jogou o livro, apagou a luz e procurou, depois de fazer o sinal da cruz
15
1 outra vez, dormir, deixar de sonhar. Impossível! De tempo em tempo, tinha que se levantar para
2 beber água. [...] Levantou-se, acendeu a lareira e queimou o livro, voltando em seguida a deitar-se. E
3 conseguiu, enfim, dormir.
4 [...]
5 Voltemos, mais uma vez, ao romance de Jugo de la Raza, ao romance de sua leitura do
6 romance, ao romance do leitor [do leitor ator, do leitor para quem ler é viver o que lê]. Quando se
7 despertou na manhã seguinte, em seu leito de agonia espiritual, encontrou-se bem calmo, levantou-
8 se e contemplou por um momento as cinzas do livro fatídico de sua vida. E aquelas cinzas lhe
9 pareceram, como as águas do Sena, um novo espelho. Seu tormento renasceu então: como acabaria a
10 história? E foi ao cais do Sena procurar outro exemplar sabendo que não o encontraria e por quê não
11 havia de encontrá-lo. Sofreu por não poder encontrá-lo. Sofreu a morte. Decidiu, então, empreender
12 uma viagem por esses mundos de Deus. [...] Enquanto isso se dizia: “Como acabará essa história?”
13 [...]
14 Pensava fazê-lo empreender uma viagem para fora de Paris, à procura do esquecimento da
15 história. [...] Colocaria, em meu romance, recordações de minhas viagens [...] em sua chegada a uma
16 dessas cidades, meu pobre Jugo de la Raza se aproximaria de uma banca de livros e encontraria
17 outro exemplar do livro fatídico, e todo temeroso o compraria e o levaria a Paris propondo-se a
18 continuar a leitura até que sua curiosidade se satisfizesse, até que pudesse prever o fim sem chegar a
19 ele, até que pudesse dizer: “Agora já percebi como vai acabar isto.”[...].
20 Logo meu pobre leitor trágico iria contemplar a cascata que o Nive forma e sentiria como
21 aquelas águas, que não são em nenhum momento as mesmas, fazem como um muro. Um muro que é
22 um espelho. Espelho histórico. E seguiria, rio abaixo, até Uhartlize detendo- se ante aquela casa em
23 cuja soleira se lê: “Vivons en paix Pierre Ezpellet et Jeanne Iribar. ne. Cons. Annee. 8e 1800.” E
24 pensaria na vida de paz – vivamos em paz! – de Pierre Ezpeleta e Jeanne Iribarne quando Napoleão
25 estava enchendo o mundo com o fragor de sua história.
26 Em seguida, meu Jugo de la Raza, ansioso por beber com os olhos o verdor das montanhas
27 de sua pátria, iria até a ponte de Arnegui, na fronteira entre a França e a Espanha. [...] Ali na
28 humilde ponte de Arnegui, poderia parar Jugo de la Raza meditando que os aldeãos que habitam
29 aquela região não sabem nada de Carlos VII, o que passou dizendo ao virar a cara para a Espanha:
30 “Voltarei, voltarei!”
31 Por ali, por aquela mesma ponte ou por perto dela, deve ter passado o Carlos Magno da
32 lenda; por ali se vai a Roncesvalles95 onde ressoou a trombeta de Rolando96 – que não era um
33 Orlando97 furioso–, que hoje cala entre aqueles estreitos vales de sombra, de silêncio e de paz. E
34 Jugo de la Raza uniria em sua imaginação, nessa nossa sagrada imaginação que funde séculos e
35 vastidões de terra[...], recordando quando ele, Jugo, visitou Yuste 98 e, por falta de outro espelho de
36 águas, contemplou o tanque onde se diz que o Imperador, desde uma varanda, pescava tainhas. [...]
16
1 E Jugo de la Raza, pensando em tudo isso, a caminho da ponte de Arnegui a Saint Jean Pied de Port,
2 diria a si mesmo: “Como vai acabar tudo isto?”
3 [...]
4 Ele, então, assim que eu o fizesse voltar a Paris trazendo o livro fatídico, se proporia ao
5 terrível problema de acabar de ler o romance que tinha se convertido em sua vida, devendo morrer
6 ao acabá-lo ou renunciar a lê-lo e viver, viver, e, por conseqüência morrer também. Uma ou outra
7 morte, na história ou fora da história. E eu o faria dizer estas coisas num monólogo que é uma
8 maneira de se dar vida:
9 “No entanto, isto não é mais que uma loucura... O autor do romance está rindo de mim... Ou
10 sou eu quem está rindo de mim mesmo? E por que tenho que morrer quando acabe de ler este livro e
11 o personagem autobiográfico morra? Por que não hei de sobreviver a mim mesmo? Sobreviver a
12 mim mesmo e examinar o meu cadáver. Vou continuar lendo um pouco até que ao pobre diabo não
13 reste mais que um pouco de vida, e então, quanto tenha previsto o fim, viverei pensando que o faço
14 viver. [...]” Não. Não vou continuar lendo. Vou guardar o livro ao alcance da mão, à cabeceira de
15 minha cama, enquanto durma e pensarei que poderia lê-lo se quisesse, mas sem lê-lo. Poderei viver
16 assim? De todos os modos tenho de morrer, pois todo mundo morre...”[...]
17 Voltarei ainda, depois da última vez, depois que disse que não mais voltaria ao tema, a meu
18 Jugo de la Raza. Perguntava-me, se consumido por sua fatídica ansiedade, tendo sempre ante os
19 olhos e ao alcance da mão o agourento livro e não se atrevendo a abri-lo e a continuar a leitura para
20 prolongar assim a agonia que era sua vida, perguntava-me se não o faria sofrer um ataque de
21 hemiplegia ou qualquer outro acidente do gênero. Se não o faria perder a vontade e a memória ou
22 em todo caso, o apetite de viver, de modo que se esquecesse do livro, do romance, de sua própria
23 vida e se esquecesse de si mesmo. Outro modo de morrer e antes do tempo. Se é que há um tempo
24 para morrer e se possa morrer fora dele.
25 [...]
26 Meu Jugo deixaria o livro de lado, renunciaria ao livro fatídico, a acabar de lê-lo. Em suas
27 correrias pelos mundos de Deus, para escapar da fatídica leitura, iria dar em sua terra natal, à de sua
28 infância, e nela se encontraria com sua infância, com sua infância eterna, com aquela idade em que
29 ainda não sabia ler, em que ainda não era homem de livro. Nessa infância encontraria seu homem
30 interior, o eso anthropos. [...] Este homem de dentro se encontra em sua pátria, em sua eterna pátria,
31 na pátria de sua eternidade, ao encontrar-se com sua infância, com seu sentimento – e mais que
32 sentimento, com sua essência de filialdade–, ao sentir-se filho e descobrir o pai. Ou seja, sentir em si
33 o pai.
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