Você está na página 1de 165

CASTELO

DE
ESTRELAS

Adriana Falqueto Lemos

COLETIVO CINE-FÓRUM
2023

1
2
CASTELO
DE
ESTRELAS

Adriana Falqueto Lemos

2023

3
Copyright © 2023 COLETIVO CINE-FÓRUM

ISBN: 978-65-980905-0-0

UM LIVRO DE
Adriana Falqueto Lemos As opiniões expressas pelos auto-
res pertencem a eles e não refle-
Diretora Editorial tem necessariamente a opinião do
Liaki Paha Conselho Editorial ou da Editora.

Revisão Esta obra possui finalida-


Anna Catharina Izoton A. Mariano de literária, de caráter reflexivo.

Diagramação Todos os direitos são reservados. Ne-


Renan da Silva Dalago nhuma parte deste livro podem ser
reproduzidas por quaisquer meios
Capa existentes sem autorização por es-
Adriana Falqueto Lemos crito dos autores e detentores do di-
reitos. Conforme a Lei 9.610/98.
Conselho Editorial
Coletivo Cine-Fórum

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lemos, Adriana Falqueto


Castelo de estrelas / Adriana Falqueto
Lemos. -- Campo Grande, MS : Coletivo Cine-Fórum,
2023.

ISBN 978-65-980905-0-0

1. Ficção brasileira I. Título.

23-165610 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira B869.3

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

4
5
6
SUMÁRIO

Prefácio ................................................................................... 09

Capítulo I ............................................................................... 13

Capítulo II .............................................................................. 23

Capítulo III ............................................................................ 47

Capítulo IV ............................................................................ 71

Capítulo V .............................................................................. 91

Capítulo VI .......................................................................... 109

Capítulo VII ......................................................................... 127

Capítulo VIII ........................................................................ 145

7
8
PREFÁCIO

Começo esse prefácio na tentativa de falar mais ou menos sobre


o que estou pensando. Inicialmente quando penso em Castelo de
Estrelas quero descrever uma história de raiva, não necessariamen-
te vingança ou medo ou rejeição, mas raiva.
A escrita da Adriana nos leva para dentro de um lugar fechado
e sombrio de onde só nos é possível avistar uma saída: seguir em
frente. Apesar do tema pesado, a sua leitura é relativamente leve e
calma, o que contrasta com suas cenas e cria uma experiência apa-
vorante. Assim como a construção de uma faca que tomou anos
de desenvolvimento e aperfeiçoamento para exercer sua função, o
texto dessa história caminha pelas linearidades e memórias para
construir um estudo sobre a raiva. Como a raiva surge, como ela se
alimenta, onde ela vive em nós, como é possível canalizá-la e talvez
como ela é indispensável para as nossas relações.
As histórias de fantasia e de temas sobrenaturais frequentemen-
te nos ajudam a desenvolver metáforas para observarmos a nós
mesmos e as nossas relações com o mundo. O fato de carregar e
utilizar uma lanterna, cigarros ou uma espada transforma-se em
diferentes maneiras de trabalhar a empatia e a forma de expres-
sar a energia do universo no seu entorno. A sutileza nem sempre
é garantida nessas histórias (tampouco nem sempre é desejada) e
em Castelo de Estrelas ela se apresenta como uma perseguição de
serial killer: caminhando devagar enquanto a gente corre, mas se
aproximando mesmo assim.

9
Enquanto escritor, sempre me fascina quando diálogos são bem
utilizados para contar a história sem se tornarem extremamente
expositivos ou maçantes. Enquanto leitor, um dos melhores elogios
para um livro é quando passamos a sentir saudades das persona-
gens depois da leitura. Já são mais de dez anos que tenho contato
com esse romance em seus momentos de criação. E apesar de preci-
sar de um tempo de digestão para reler e voltar a passar tempo com
essas personagens, tenho muito carinho e certeza que são diálogos
e personagens que deixam saudades.

João Chagas
Capixaba, escritor que publicou
“A paz dos vagabundos” (2014),
“Tem sol na ponta do deque” (2016)
e “Quiche” (2018).

10
11
12
Capítulo I

13
14
Começo contando esta história na tentativa de falar mais ou
menos sobre o que estou pensando. Sei que não conseguirei ser
completamente claro e, pra falar a verdade, nem eu mesmo tenho
certeza do que vejo ou certeza de que quero ser claro, mas me es-
forço para cerrar os olhos e mover as lentes do aparelho para opto-
metria. Ajuste após ajuste vai se cristalizando uma visão diante dos
meus olhos, eu não sei ao certo do que se trata, mas vejo, cada vez
mais claramente, um borrão que se torna primeiro um menino, eu
acho, depois tenho certeza de que é um homem, embora pequeno e
magro. E assim, depois que vejo seus cabelos, seus olhos fechados,
sua pele, suas mãos, o reconheço: é ele.
Ele está num lugar escuro e já não se lembra há quanto tempo
está ali. Seus olhos se acostumaram com a escuridão e, por isso,
tudo o que ele consegue enxergar é sombrio e nefasto. Seu olfato
também já se acostumou com o cheiro forte de terra e de maté-
ria orgânica humana, mas isso não significa que tenha aprendido
a gostar do cheiro que sente, initerruptamente, desde que chegou
àquele lugar. O homem tenta se lembrar do que lhe aconteceu da
última vez em que esteve num lugar diferente, fora dali, e sua men-
te desesperada o atrapalha, porque parte de si, cerca de mais de
80%, só deseja sair, se alimentar e parar de respirar aquele cheiro.
Em última instância, tomar um banho seria bem agradável – mas
primeiro parar de sentir o cheiro, que fique claro.
Estou tentando evitar que você, para quem estou contando esta
história, tenha que pensar nesse cheiro, porque somos normalmen-
te tão suscetíveis que acabamos nos impressionando com as coisas
e somos levados a sentir isso ou aquilo, quem sabe um cheiro, uma
tristeza, uma dor, uma mágoa, sem nem mesmo estarmos passando
por tal situação. Mas o cheiro é tão forte que não basta dizer que é

15
forte, eu preciso lhe explicar: Trata-se de uma mistura de lixo apo-
drecido, lixo orgânico mesmo, daqueles que a gente deixa na co-
zinha e se esquece de tirar quando viaja e, depois de uma semana,
ao voltar de uma praia paradisíaca, se depara, toca e cheira aquela
sacola azul – que também poderia ser muito bem uma sacola do
supermercado mais próximo da sua casa – cheia de vermes e suco
de lixo. Esse cheiro forte, de lixo em decomposição, maravilha da
natureza, se mistura ao cheiro de terra molhada, cheiro forte de um
tipo de terra vermelha macia e de ferro. O ferro vem, naturalmente,
de sangue e ossos que, ao se decomporem, também viram matéria
orgânica apodrecida. Esse cheiro impregna o nariz, os olhos e a
boca do homem que jaz ali deitado; ele, consequentemente, sente
não apenas o odor, mas também o gosto dessa matéria. Chegou a
cogitar do que era feito o lixo e o que aquelas pessoas, ou as partes
delas que ali estavam, haviam comido antes de terem encontrado
com seu destino, porque passavam pela sua língua sensações as
mais diversas, e ele podia cuspir o quanto fosse: era impossível
evitar o gosto corrupto como parte da saliva que engolia, do ar que
respirava e das lágrimas que já havia derramado.
Esse homem, e agora que vejo melhor percebo que se trata de
um jovem que não passa dos 30 anos, já esteve num lugar melhor
e numa situação melhor, já esteve fora desse fosso no qual se en-
contra há dias, ou semanas, ou meses – ele já não sabe há quanto
tempo está ali. Já tentou, também, sair do fosso, só que só seria
capaz disso se pudesse criar asas e voar para fora dali. Subiu cerca
de três metros tentando se sustentar em alguns ossos que conseguiu
organizar no canto da parede e com a ajuda de pequenas covas que
fez com as mãos, mas quando caiu teve a certeza de que alguma
de suas costelas havia feito um barulho estranho e não voltou a

16
tentar. Também entendeu que o fosso era muito mais fundo do
que três metros e acabou desanimado. Estava debilitado por falta
de alimentação, por falta de sol, por falta de tudo. Não que não
comesse. Comia porque alguém, de tempos em tempos, lhe dava
um banho de lavagem, bem, um banho é mesmo uma lavagem, e
tudo aquilo que sobrava em cima de seu corpo virava comida. Suas
mãos ávidas iam catando os pequenos restos do que quer que fosse
e enfiando-lhe boca adentro o mais rápido que pudesse, mas é claro
que não foi assim que tudo começou. No início, qualquer um sen-
tiria nojo daquele alimento azedo e por alguns dias ele se esforçava
para não vomitar quando o líquido seboso e ocre caía fosso abai-
xo, mas, depois de uma semana de privação, esperou pela primeira
lavagem que comeria quase que ansiosamente. Planejou, pensou e
se enganou, imaginando que não era tão ruim assim e que precisa-
va sobreviver, acima de tudo, que faria qualquer coisa para sair do
fosso com vida, e precisava ter energia se quisesse sair dali.
Vou parar de falar das suas atuais precárias condições e da sua
descrença em sair daquela situação, porque ele já havia chegado
ao ponto de pensar que nada existiria no dia seguinte. Diante das
adversidades, temos apenas duas opções: desistir ou lutar. Nosso
protagonista estava diante dessa fina linha, essa linha muito tê-
nue entre uma decisão e outra. Poderia esperar a vida inteira para
tomar a decisão entre simplesmente deixar a fome lhe consumir,
esquecer seu pouco brio e esperar que a morte lhe levasse embora
para onde quer que fosse. Não pensava também em lutar porque
isso já lhe dava algum trabalho e frustração prévia. Pensava era no
desespero que sentiu ao cair de mais de três metros naquele fosso,
no desconsolo, nas lágrimas sujas que saíam dos seus olhos, na
raiva. A raiva já havia lhe sustentado até ali, mas simplesmente

17
sentia-se tão desvalido que seria um luxo, depois de estar reduzido
à miséria e à privação tão absolutas, que continuasse com qualquer
ideia revolucionária. Já não esperava nada do “amanhã”, esse lu-
gar especial no futuro que lhe estava reservado como um prêmio
pela perseverança e valor e também não acreditava mais que um
milagre aconteceria. Havia duas coisas, porém, que o mantinham
em um estado de sanidade.
A primeira era a certeza de que não queria morrer. Não pense
que isso é um valor primordial do ser humano e que por isso ele
tentava, a cada dia, viver com toda a graça, emoção e paz de espí-
rito que pudesse. Esse jovem protagonista que aparece diante dos
nossos olhos não queria morrer porque tinha medo do que aconte-
ceria depois que o último sopro de ar se esvaísse dos seus pulmões.
Aconteceram tantas coisas em sua vida curta, embora agitada e
controversa, que não tinha certeza se queria saber o que aconte-
ceria caso viesse a morrer. Já havia pensado em desistir, em se ma-
tar, ou esperar simplesmente por ser arrebatado, fechar os olhos
e meditar até estar fora do corpo; mas morrer representava um
risco muito grande, e o desconhecido poderia ser um encontro com
coisas com as quais ele não desejava se encontrar ou o julgamento
de suas ações passadas. Esses fatos serão dissecados posteriormen-
te. Você pode pensar que ele está sendo um fraco por ter medo da
morte. Não é necessário temê-la, pelo menos não no meu ponto
de vista, afinal, ela é inevitável. Como ter medo de algo que vai
acontecer com você? Bem, talvez seja essa a questão, o inevitável é
tão inescrutável e inexorável – e, ao mesmo tempo, completamente
fora de controle – que só nos resta criar uma ansiedade angustiada.
Estou sendo muito rígido, claro que você tem o direito de sentir
medo da morte.

18
O segundo motivo pelo qual ainda mantinha a sanidade era
mais interessante, acho eu. Ele se perguntava, olhando para todos
os minutos e segundos passados em sua vida, quando havia plan-
tado tamanho ódio em alguém. Havia passado por um estado de
confusão ao cair no fosso. Perdeu o senso dos dias que ficou ali e
já estava planejando começar a calcular isso em breve, embora ti-
vesse se negado a fazer isso porque acreditava piamente que logo
estaria livre. De qualquer forma, depois de tomar consciência do
cativeiro, pensou que aquilo era uma preparação para a morte.
Ao mesmo tempo, pensou que, se fosse para morrer, isso já estava
demorando demais para acontecer. Dia após dia se lembrava do
motivo que o tragou para o fosso e tentava organizar as memó-
rias e compor uma narrativa lógica: “eu vim até aqui, caí”, bem,
mais ou menos assim, se é que você me entende. Parece esquisito
que alguém esteja numa situação dessas e que não saiba bem o
que está fazendo, mas é que uma grave confusão mental o aco-
meteu assim que ganhou consciência dentro do fosso. Não é que
estivesse apenas num fosso escuro e úmido, ele era também um
fosso escuro e úmido. Cada célula sua era de terra e seu corpo era
um buraco negro sem qualquer razão de ser, porque o desespero
de sua situação o havia tirado de seu sentido, se é que já tivesse
tido algum, e nada lhe dava a vontade de ser: seu desalento era
por ter se tornado o próprio fosso negro.
Eu estava dizendo que esse motivo era interessante e preciso dar
conta disso: nosso protagonista sabia vagamente do que se tratava
estar dentro do fosso. Sua mente, em meio à confusão negra da
lama apodrecida, um dia (ou noite? Que seja) simplesmente des-
pertou num raio vermelho que lhe cobriu o corpo. A luz vermelha
se instalava como uma lanterna sobre seu corpo, iluminando todos

19
os dejetos que faziam parte dele. Aquela luz vermelha iluminou seu
rosto sujo e lhe veio uma revelação tão alucinada que parecia uma
burrice não ter pensado nisso anteriormente: Havia alguém ali que
o odiava tão profundamente que não lhe permitia morrer, mas que
tampouco permitia que vivesse. O protagonista se sentou e olhou
aquela vermelhidão ao seu redor e todos os buracos malfeitos da-
quela escultura aprisionadora do fosso e pensou: é verdade.
Cruzou os braços e os apoiou nos joelhos; descansou o queixo
em cima dessa estrutura esquálida que havia rudimentarmente ar-
quitetado. Havia chegado a uma residência isolada no campo por-
que havia descoberto onde morava, onde se escondia e para onde
um dos assassinos mais famosos dos últimos 30 anos levava suas
vítimas. E havia descoberto a identidade desse assassino apenas
alguns minutos antes de ir até a casa no campo. Tudo havia acon-
tecido tão rapidamente que nem se deu conta de que estava indo
encontrá-lo de maneira desprotegida. Mas não era um policial, não
era um cidadão comum e não era nada além de um religioso, o que
haveria de levar? Levou, sim, claro, um volume da bíblia consi-
go, porque sempre levava no bolso uma versão pequena que havia
ganhado sei lá quando e, bom, não tinha mesmo uma arma. Era
um pacifista, além de ser um burro. Como poderia, pensou, ali no
meio do lixo fedorento de sua existência ridícula e patética, ter
pensado em encontrar com o assassino dessa maneira? Mas agora,
sim, lembrava, ele conhecia (melhor, sabia de quem se tratava) esse
assassino há muitos anos, porque eles cresceram juntos nessa casa
e ele mesmo havia ajudado a criar esse fosso. Foi essa realização
que o trouxe de volta à realidade e fez com que desejasse viver,
foi esse o motivo que fez com que suportasse mais um segundo,
mais um minuto, mais uma hora, mais um dia e daí por diante.

20
Enquanto suportava a agrura de pertencer a e de ser aquele fosso,
ia remontando em sua mente o seu passado para que fosse possível
entender as origens do ódio que esse seu amigo sentia por ele. Esse
grande ódio só poderia ter sido nutrido por muitos anos e só pode
ter começado a existir por causa de algo que ele lhe havia feito,
algo muito ruim, claro. Como ignorava completamente qualquer
ação maldosa que tivesse feito e que fosse responsável por deixá-lo,
quase que 20 anos depois, dentro de um fosso por sei lá quanto
tempo, tratou de repetir em sua mente, passo após passo, a sua
história de vida.

21
22
Capítulo II

23
24
Era um menino de orfanato que não se lembrava muito bem do
passado antes de chegar na casa de campo. Ficou até os oito anos
numa instituição religiosa mantida por uma congregação que tinha
uma espécie de filiais por todo o mundo. Ele tinha uma irmã três
anos mais velha chamada Maria. Maria era uma daquelas pessoas
que lhe intrigava a mente, por isso a enchia de perguntas a todo
tempo. “Ela está triste? Está satisfeita? Está com fome? Está cha-
teada comigo? Lhe fiz algo? Fiz? Então fiz, o que foi? Não sei, o
que será que foi? Sou um monstro”. Essa era Maria.
Maria era ruiva e seus cabelos muito lisos e ralos. Pode-se dizer
que ela criava em outros olhos uma visão um pouco perturbadora
quando criança e também quando adulta. Era uma criança ma-
grinha e cabeçuda e seus olhos eram desinteressados e apáticos.
Sua boca pequena quase não se abria para falar de quase nada e
dava a impressão irritante que ela estava insatisfeita o tempo todo
por qualquer que fosse o motivo, mas o infernal era que tentavam
saber o que havia de errado, porque o rosto da menina era tão sin-
cero e sofrido em sua solidão que dava a certeza de que quem a via
havia, sim, feito algo de ruim contra ela.
Maria tinha as perninhas finas e compridas, e dava a ver que
seria bem alta quando crescesse. Seus bracinhos brancos pouco se
movimentavam, e ela gostava de ficar muito só. Mesmo o irmão não
entendia nada. Era pequeno, era bobo, era tudo menos uma pessoa
capaz de lidar com o comportamento errático da irmã. Achou que
durante os anos que passaram no orfanato pouco contato tiveram
e pouco se falaram. A irmã o olhava com certo desprezo. Maria,
os lábios de Maria eram pequenos e doces, e qualquer um gostaria
que ela sorrisse ou mostrasse os dentes uma vez que fosse, por que
não? O irmão olhava os lábios rosados de Maria e queria fazer

25
algo com eles, mas havia um abismo entre os dois que se abria no
chão toda vez que Maria o olhava. Maria, os olhos de Maria. Re-
dondos, castanhos ou verdes, grandes, desinteressados e grandes.
Pois bem, Maria era essa pessoa isolada que volta e meia surgia
diante dos olhos do irmão. Ela ficava constantemente no pátio do
orfanato, onde podia ter contato com os animais, era disso, afinal,
que ela gostava. Os olhos da menina tinham brilho quando ela
olhava para um passarinho que vinha pra perto dela e, surpreen-
dentemente, dava para perceber que os animais, de forma geral, se
aproximavam dela com facilidade e interesse. Cansou de ver passa-
rinhos ao redor da irmã, pombos e gatos selvagens que viviam por
ali. No orfanato não tinha cachorro e nem gato, não tinha mais
nada que fosse dar mais trabalho do que todas aquelas crianças de
quem as religiosas já tinham que cuidar.
A irmã sempre teve cabelos longos e finos, e ela costumava
prender com uma presilha os fios que caíam sobre os olhos, porque
os cabelos eram muito finos, como eu já disse. Quando criança, ela
costumava não se preocupar muito com roupas e frequentemente
passava o dia usando uma camisola que havia sido doada ao or-
fanato por instituições de caridade. A menina andava calmamen-
te pelo campo durante o dia, observando os ramos de capim que
cresciam sem cuidado e, durante o outono, quando normalmente
a vegetação se esmaece, ela se confundia com as cores quentes dos
arbustos que havia nos arredores da casa. Por muitas vezes ela era
chamada à mesa para comer, visto que se esquecia das refeições e
preferia ficar errando pelo espaço que tinha ao redor do orfanato.
Sentava-se no chão empoeirado e observava as formigas, depois se
levantava e olhava os pássaros ao longe. Alguns minutos de obser-
vação e logo andorinhas vinham conversar com ela como se fossem

26
da mesma espécie. O irmão às vezes se pegava observando Maria
tão fixamente que não percebia quando as outras crianças já esta-
vam implicando com ele.
— Olha o bobo!
Só ouvia quando uma bola lhe batia na cabeça e ele era obri-
gado a olhar de onde ela vinha, mais um motivo para as crianças
rirem do comportamento do menino. Havia sim outras pessoas
que olhavam Maria, que ficavam confusas com seu jeito solitário
e indiferente, mas essas não tinham um grau de parentesco com
ela e, portanto, não precisavam lidar diretamente com aquilo. Eu
digo isso simplesmente pelo fato de que, sendo irmão, Felipe sentia
uma obrigação tão grande de pertencer ao mundo da menina que
se perdia em questionamentos infindáveis. É claro que ninguém
é obrigado a entender ninguém, mas, jovem como era ele, ainda
persistia em descobrir o que estava errado com ela e por que Maria
nunca conversava com ele.
Havia algo no distanciamento entre os dois que provocava em
Felipe uma sensação estranha e uma necessidade de dissolver aque-
la espécie de nuvem. Não que houvesse explicitamente um motivo
para que eles não se falassem; só que simplesmente não havia diá-
logo. Quer dizer, havia.
Todos os dias de manhã uma freira tocava a sineta que ficava
na cozinha do orfanato. As crianças deveriam levantar-se pron-
tamente, arrumar as roupas e ir tomar café. As meninas ficavam
num quarto e os meninos num outro. Um cômodo ficava de frente
para o outro, separados apenas por um corredor que levava para
a já referida cozinha. Logo que chegaram, Felipe foi levado para
o quarto dos meninos e não soube o que aconteceu com sua irmã,
mas se lembra de ter tido muita angústia quando, durante essa

27
simples separação, não conseguiu mais segurar a mão da menina.
Refazendo a cena, a começar do princípio, já não se lembrava
de onde estavam quando foram resgatados, mas se lembrava de
que foi durante uma situação de resgate que algumas mãos usaram
cobertores para cobrir os irmãos e tirá-los da posição de sentados
onde estavam já fazia algum tempo. Uma cena difícil de engolir
havia lhe sido negada pela memória, pelos olhos e pelos sentimen-
tos, mas, afinal, lembrava com detalhes da faca ensanguentada no
chão da cozinha da casa onde vivia. O piso era de cerâmica branca
e os rejuntes eram amarelados e ali, junto de gotas vermelhas, jazia
uma faca de cozinha. Essa faca de cozinha havia sido projetada e
moldada durante séculos com o intuito de facilitar a perfuração
de tecidos animais que oferecessem suposta resistência ao corte,
sobretudo, ela foi precisamente arquitetada para que furasse e que,
a partir do furo, pudesse estabelecer um deslizar macio e quente,
derramando fluido corporal e rompendo as fibras do tecido – te-
cido que poderia ser adiposo, cartilaginoso e até mesmo ósseo. A
faca, sonhada e criada, havia chegado ao ápice do momento de sua
existência e dormia, tranquila, aos olhos de Felipe, até o momento
em que forças mais importantes, experientes e especializadas pe-
gassem nela e a levassem para uma espécie de cantinho especial ou
céu das facas, lugar onde as facas mais especiais ficam depois que
traçam sua trajetória de vida. Essa faca foi colocada numa sacola e
apresentada, posteriormente, diante de muitas pessoas e por mui-
tas vezes, até ser, finalmente, guardada pra sempre.
A importância de uma faca como essa não deve ser menospre-
zada, principalmente numa história como a de Felipe. Veja você,
ela nunca mais fora esquecida, e digo isso diante do esquecimento
do fato. O menino logo tratou de nem olhar para os corpos dos

28
pais, mas a faca, ali, tão singela e abandonada, digo, na verdade a
faca estava exultante e jubilosa, a faca era tudo. A faca reunia to-
dos os aspectos da cena, sua história, sua projeção, seu ápice, sua
imortalização, seu estado divinal finalmente eterno, jazendo num
espaço guardado, longe dos olhos daqueles para quem significou
tanto quando ainda lhes era visível. A faca não seria posta de lado,
a faca não seria jogada fora. O que acontece com essas evidências
criminalísticas? Antes que eu me sinta curioso suficiente para pro-
curar na internet e perca meu tempo com bobagens das quais não
quero a resposta, eu já sei a resposta: a faca se imortaliza.
Voltando ao assunto, eu estava falando dessas duas crianças
que foram acobertadas por um grupo de religiosas que as sal-
vou da cena de horror da qual participavam. Interrogadas, muito
bem, as crianças foram encaminhadas para adoção, tendo em vis-
ta a falta de parentes que pudessem lhes estender a mão ou ofertar
qualquer espaço em casa. Fica ao seu critério se eles tinham mais
parentes ou se eles não tinham, mas Felipe e Maria foram passar
a noite já no orfanato e de lá não saíram até completarem certa
idade, posteriormente.
Na noite em que foram para o orfanato, Felipe e Maria fo-
ram conduzidos por um corredor estreito de onde brotava uma
luz única, proveniente de uma lâmpada acesa que pendia do teto
feito de tábuas corridas de madeira. Quando alcançaram o final
do corredor, as crianças ainda estavam de mãos dadas, mas não
conseguiram manter os laços enquanto as mulheres as puxavam
cada uma para o seu devido quarto. Na casa onde moravam eles
dormiam no mesmo quarto, e sempre dividiram as mesmas coisas,
inclusive a mesma mãe e o mesmo pai. Ali, não podiam pertencer
ao mesmo espaço.

29
Felipe sentiu a pequena mão de Maria se descolando da sua e
seus dedos tentaram, a todo custo, segurar os da irmã. Ao ponto
de machucá-la, teve, finalmente, que se deixar levar. Tentou cho-
rar, mas ao olhar nos olhos da irmã, ele entendeu que deveria ter
dignidade.
Sentiu-se dignamente triste e chorou quieto na cama do quarto
imenso enquanto tinha certeza de que outras crianças o olhavam
e até achavam-no um idiota. Chorava imenso também, porque
sentia que seu corpo expandia de calor e que, enquanto bufava
soluçando, o vapor ia aumentando o seu corpo, como se fosse um
bolinho. Encolhido na cama, coberto dos pés à cabeça, soluçava e
tremia de tristeza, raiva, ódio, pânico e, finalmente, de um alívio
espiritual que lhe veio milésimos de segundos antes de adormecer,
alívio esse completamente involuntário e anônimo.
Acordou com a sineta do refeitório sendo tocada e calculou que
deveria ser muito cedo porque o sol ainda não estava jogando seus
raios alaranjados pelo céu. Olhou as crianças ao redor e, vendo
aquela correria desenfreada na arrumação das camas e de si pró-
prias, ele acabou por se animar e fazer o mesmo que elas. Não se
lembrava muito bem de tudo que havia acontecido no dia anterior,
mas subitamente, como se alguém lhe tivesse dado uma pancada
forte na cabeça, a faca ensanguentada e o desenlace com sua irmã
o trouxe de volta para o mundo real e ele se sentou. Sentou-se na
cama segurando o tecido do lençol entre as mãos, o olhar havia se
estatizado num ponto cego onde nada havia. Ao novo soar da si-
neta, levantou-se maquinalmente e fez a cama, em seguida foi para
onde as crianças estavam indo.
Pois foi quando saiu do quarto rumo ao corredor que escutou
risadas de crianças e até sorriu porque, mesmo confuso, aquelas

30
risadas o embalavam como uma canção convidativa. Andando
lentamente, viu cerca de cinco ou seis crianças rindo de algo que
havia no quarto em frente ao dos meninos, o quarto das meninas.
Começou a rir também porque as risadas eram bem contagiantes
e, conforme os meninos iam entrando e encontrando as meninas
que já estavam lá dentro rindo e apontando os dedos, ia rindo
também. Todos olhavam uns para os outros e, mesmo parecendo
que não havia tanto motivo assim para rir, eles sustentavam uma
risada com a força de suas barrigas e de seus pulmões. Felipe foi
entrando já rindo e acabou sabendo o porquê quando seus olhos se
encontraram com os de sua irmã. Nem ela e nem a cuidadora que
estava segurando um colchão sujo de xixi estavam rindo, embora
todo mundo achasse que aquilo era muito engraçado.
Felipe parou de rir, mas notou algo em sua irmã, algo como
uma insegurança e uma tristeza que brotavam lenta e profunda-
mente do canto de seus olhos. A mulher dispensou as crianças e
rapidamente vieram outras cuidadoras para espantá-las dali, mas
Maria ficou parada onde estava e se amuou. Felipe também foi
retirado dali de maneira estorvada e aos poucos, com cada garfada
boca adentro e cada lufada de ar que lhe penetrava nas narinas ia
passando o tempo, e lá se foi o dia e a noite e outro dia. Com a sua
incapacidade de falar sobre o que os afligia, foram-se meses. Felipe
acabou construindo, de maneira sucessiva, uma rede de implica-
ções que lhe traziam certo conforto em relação à sua incapacidade
de falar com a irmã. A princípio, logo nas primeiras horas depois
que a tinha visto naquela situação vexatória, foi até o quarto e es-
perou, do lado de fora, que ela estivesse calma. Não sabia ao certo
o que iria dizer e acabou saindo para voltar mais tarde. No mesmo
dia, durante o começo da noite, voltou ao quarto e as meninas

31
estavam chacoteando Maria, rindo dela e dizendo coisas horríveis,
“seus pais morreram porque eles tinham uma filha mijona”, “seu
irmão te odeia também”. Felipe não conseguiu intervir porque
achou que iriam lhe chacotear também, mas logo disse a si mesmo
que não quis atrapalhar a irmã numa possibilidade de ela própria
se defender, afinal, se ele a defendesse, as pessoas ainda assim conti-
nuariam a ofendê-la, ainda mais a chamando de covarde. Durante
a madrugada, sem conseguir dormir, foi até o quarto dela e não
pôde entrar porque ficou com vergonha. No dia seguinte, também
não conseguiu falar com Maria porque os meninos o chamaram
pra brincar no quintal e ele não queria perder seu tempo. Depois
os dias foram passando e Felipe assegurou a si mesmo que Maria já
havia esquecido aquilo tudo e que era inútil retornar a um assunto
tão fastidioso, e que, afinal, ela era muito forte para resolver aquilo
sozinha. Convenceu-se de maneira brilhante que não poderia aju-
dá-la sempre que precisasse, porque, afinal de contas, eles não esta-
riam juntos para sempre e era melhor que ela aprendesse a se virar.
Depois de alguns meses, Felipe já tinha a certeza de que Maria
gostava muito de chamar a atenção das pessoas, com alguns tru-
ques sutis como, por exemplo, fazer xixi na cama. No fundo, no
fundo a menina gostava mesmo era de ser paparicada pelas religio-
sas e quando as meninas e meninos implicavam com ela, ela não
estava nem aí. Também, por ser diferente, Maria havia parado de
falar com o irmão e ele não entendia muito bem isso, mas também
não queria se incomodar tanto. Ao cabo da situação, preferia não
conversar muito com ela porque ela também não era lá uma pes-
soa muito interessante. Sempre procurando pequenos bichinhos e
insetos que pudessem estar ao seu alcance, a menina passava o dia
praticamente todo num canto isolado do orfanato e Felipe achava

32
mesmo que ela se sentia importante quando as pessoas falavam
dela. Olhava para seu rosto e sentia-se muito incomodado, porque
via em seus olhos uma dor profunda e sincera, mas o menino tam-
bém não entendia o motivo daquilo tudo, então evitava que seus
olhos se encontrassem com os dela – na realidade, ela é que evitava
esse confronto, porque sabia que Felipe não tinha feito nada de
errado e encará-lo era uma perda de tempo.
Mas Maria não se calava em seu silêncio e seus olhos falavam
por ela.
Felipe acabou desistindo de tentar observar Maria pra saber o
que se passava com ela, e logo depois de uns dois ou três dias já
estava mais integrado com aquela pequena comunidade, um pouco
caótica e um pouco religiosa. Os pequenos adultos sórdidos cha-
mados de crianças por algumas das mulheres que ali trabalhavam
ficavam agitados durante a maior parte do dia; os de idade mais
avançada eram vistos pelos cantos dos olhos. Maria ia se distan-
ciando do grupo a cada dia que Felipe se aglutinava e, ao final de
duas semanas, o menino já nem se lembrava mais do que havia
acontecido antes de eles irem para aquele lugar.
Claro que ele não tinha esquecido, é muito confortável que eu
diga isso e que você entenda isso – mas se você entendeu que al-
guém se esquece da morte é um terrível mal-entendido. Todas aque-
las pessoas daquela pequena comunidade religiosa lembravam-se
da morte de maneiras peculiares e durante momentos de um dia
normal. Ou quando estavam introduzindo um pedaço de pão na
boca, durante o desjejum; ou senão enquanto tentavam entender
alguma palavra fosca de um texto; às vezes, a lembrança da morte
vinha durante o escovar dos dentes, enquanto a pasta de dente se
esvaía pelas cerdas frouxas do objeto e os lembrava de que, por

33
mais coloridas e gostosas que fossem (e às vezes, ácidas), sua exis-
tência corria para o ralo, para o esquecimento depois da leitura da
palavra, para a deglutição do universo. Felipe se lembrava da mor-
te de seus pais com certa constância e inicialmente lhe doía muito
e continuou a lhe doer até não saber quando – até que o momento
virou contemporâneo, ou seja, até ele ser. A dor da morte não pas-
sa, mas acaba por incorporar em parte do corpo do ser até que se
torne invisível, porém, sempre pungente e suscetível a ressurgir ao
sinal de qualquer traço de similaridade com o cotidiano.
Veja você aí, sentada, lendo este texto. Eu sei que é você e penso
em você em meus desejos quando penso que não quero mais dizer
nenhuma palavra. Sei que você não sofre com quase nada porque
nunca sofreu, mas que, se houvesse sofrido por amor, acabaria por
sofrer novamente quando alguém lhe contasse sobre um amor per-
dido. Eu sei que você acha que Felipe poderia se esquecer da morte
dos pais, mas isso seria impossível. Você saberia se pudesse.
Mas retornarei à história mesmo com você pensando que ele
poderia esquecer... Ah, que decepção, não, ele não iria esquecer!
Não iria...
Certa vez, Felipe foi incluído num grupo interessante dentre as
crianças. Era formado principalmente por meninas mais velhas e
as mais avançadas dentre as mais novinhas, e algo nelas era muito
parecido. Além de se vestirem de maneira igual porque usavam um
mesmo uniforme padrão de cores claras, elas eram mais atraentes
do que a maioria das garotas – era uma seleção dentre o já seleto
grupo de cerca de 30 meninas que residia na casa. Essas meninas
chamaram Felipe um dia para dentro de um quarto da casa e co-
meçaram a lhe encher de perguntas sobre Maria. Ele não sabia
responder algumas das perguntas porque, pra falar a verdade, nem

34
gostava de ficar muito perto da irmã. Maria era tão estranha que,
caso chegasse perto, tinha medo de ficar estranho também. Mas
também achava rude a forma como ela o tratava: bastava que ele
chegasse perto que ela mudava de lugar, ou olhava para o canto ou
simplesmente ia-se.
— Sua irmã já é moça? – Uma das meninas mais velhas per-
guntou.
Felipe não sabia do que aquilo se tratava e continuou calado,
porque também ficou com medo de ser tido por ignorante. Mas,
conforme as perguntas iam se desenrolando, ele ia ficando mais e
mais interessado.
— E então, ela é ou não é?
— Eu não sei, eu quase não falo com ela.
As meninas olharam umas para as outras e para dentro de si
mesmas e ficaram ali paradas por alguns segundos. Depois, uma
delas disse:
— A gente desconfia de uma coisa muito séria, queremos saber
se é verdade. Ficamos sabendo que sua irmã está dando algo para
o homem que cuida dos animais na fazenda ao lado. Achamos que
ela está indo lá quando não está aqui.
— Mas como assim? – Felipe não entendeu nada e, se já estava
confuso, ficou ainda mais.
— Eu não sei. – disse a mais alta. — Mas nós não vamos deixar
uma pessoa como ela conviver com a gente. Ela não presta, nós não
gostamos dela. Mas é possível que nós tenhamos sido precipitadas,
pode ser que não seja isso. Você podia ver aonde ela vai quando
sai daqui do orfanato e tranquilizar a gente, pode ser que não seja
nada demais, certo?
— Certo.

35
Felipe achou que aquilo fosse razoável, mas não soube, porém,
se foi impressão sua quando entendeu que a alta estava mentindo
ao expressar uma preocupação tão singela. Achou que era uma
preocupação trabalhosa demais para se ter e simplesmente ignorou
sensações de ansiedade.
— Acho que ela não deve ir logo, porque nós a vimos saindo
ontem. De qualquer forma, preste atenção e fique atento. É para o
bem dela.
Felipe se resignou a ignorar, paulatinamente, informações mui-
to complicadas que pudessem lhe tirar dos eixos. Seus eixos, natu-
ralmente, eram as frivolidades das brincadeiras que administrava
no tempo livre; coisas que iam para além disso lhe pareciam ser
muito trabalhosas. Acordava e ia colocar comida na boca, depois
escutava os planos que as crianças tinham para o dia e seguia-os
reticentemente. Ia daqui para ali sem muito questionar, e isso era
uma coisa muito boa e muito bem vista por todos. Ao contrário,
sua irmã era vista com certo incômodo. Seu olhar ressabiado fazia
brotar quaisquer dúvidas que as pessoas tinham e as incomodava
por demais. Felipe achava que aquilo era, de fato, ruim e queria
proteger a irmã, mas, de alguma forma, sentia que algo o impedia
de fazê-lo. A falta de coragem e de amor foi dita como falta de
oportunidade, e ele gostou desse nome.
— Faltou-me oportunidade de te ajudar. Tentei, mas não sabia
como fazê-lo. – Foi o que ele pensou em dizer certa vez, mas tam-
bém faltou oportunidade de fazê-lo. Faltou porque a boca não abriu
e simplesmente não disse, o que, em si, é uma enorme perda. Perdeu
o mundo sem aquele testemunho incrível de força de vontade.
Mas chegou o dia em que ele viu Maria sair sonsamente pela
porta da cozinha. Claro que ele poderia nada ter feito como em

36
várias outras ocasiões, mas acreditou que algo poderia fazer dife-
rença naquela rotina morna de todos os dias. Quer dizer, não que
estivesse interessado em saber o que sua irmã fazia, mesmo porque
não queria estar interessado; achou, porém, que, ao seguir a meni-
na de cabelos vermelhos poderia ver algo de diferente, quem sabe
algo simplesmente não acontecia?
E aconteceu mesmo, porque, assim que Felipe levantou-se da
cadeira, foi como se todo o orfanato espreitasse cada um de seus
movimentos. Claro, ele não podia ver seus olhares, mas sentia –
como se alguém tocasse suas roupas – que alguém o estava olhan-
do. As religiosas serviam a comida para as crianças e o menino foi,
passo a passo, até a porta. Girou a maçaneta e lá estava diante da
visão de Maria, que ia se distorcendo e ficando pequenininha, rumo
ao horizonte. Colocou o primeiro pé, depois o segundo, e logo es-
tava correndo. Cabelos ao vento, sol da manhã, as pastagens que
circundavam o orfanato logo foram dando lugar à plantação de
trigo, que radiava sob a luz do sol. Seu cabelo loiro ia balançando
e as luzes iam deixando-o quase branco. Era um milagre que sua
irmã não estivesse ouvindo-o enquanto ele a seguia.
Depois de correr por muito tempo, e eu digo a você que deve se
tratar de mais ou menos 5 km (penso que ele não deve ter corrido
durante todo o trajeto, às vezes caminhou, às vezes simplesmente
tentou recuperar o fôlego), teve que se agachar no chão para que
não fosse visto. Maria parou na porta de um celeiro e esperou um
tempo. Depois, viu com seus olhinhos matreiros um homem barbu-
do aparecer e sorrir. Ele não escutou o que eles conversaram, mas
Maria entrou e o homem fechou a porta. Felipe andou devagar
até o celeiro, tentando não fazer barulho, e procurou alguma fres-
ta pela qual pudesse enxergar. Mesmo que o sol já estivesse forte

37
naquela hora do dia, lá dentro era muito escuro e ele teve dificul-
dade para ver o que estava acontecendo. Depois que seus olhos se
acostumaram, sentiu um calafrio forte e, mesmo suando, sentiu
frio. Não sabia que seu coração iria voltar a bater tão rápido assim
depois da noite do assassinato, e sentiu dor.
— Depois eu posso ficar com os coelhinhos?
Foi o que ele ouviu a irmã perguntar enquanto estava parali-
sado como uma pedra. Mas algo aconteceu; algo muito estranho
aconteceu, mais estranho do que a cena que o menino presenciou.
Felipe observava quase que instintivamente. Queria desviar o
olhar, queria ir embora, queria simplesmente sentar no chão e ficar
ali até morrer, mas simplesmente assistia à cena, onde uma pré-
-adolescente de 13 anos pedia um favor a um adulto. Claro, esse
favor só podia ser concedido se aquele que faz a petição demons-
trasse verdadeiro comprometimento com o bem-estar daquele que
concede o favor. E isso, meu caro amigo, digo que existe desde o
início dos tempos, desde que a primeira ameba teve que sair do
limbo para a terra – sim, essa ameba pediu um favor a alguém, seja
lá quem esse alguém fosse.
Voltando à cena instigante, o estranho é que Maria olhou nos
olhos de Felipe. Ali, debruçada por sobre uma mesa cheia de poeira,
aranhas, feno e cocô de galinha, Maria olhou-o. Ela se virou para
trás e o olhou bem nos olhos, com seriedade; seus olhos estavam
arregalados e a sobrancelha arqueada. Ele ouviu em sua mente:
— Eu sei que você está vendo. A culpa é sua.
Não, sabia que não, queria que não fosse – e não era. Olhou
novamente e lá estavam os olhos de Maria o perseguindo. A garota
era balançada, os cabelos lhe cobriam parcialmente o rosto, mas
mantinha firme o olhar reprovador.

38
Felipe deu as costas e saiu correndo desabalado, como se 5 km
pudessem virar 500 metros. Logo depois de curta distância, caiu
no chão. Não sabia se era uma pedra física ou moral que o havia
feito tropeçar e, no joelho ralado, encontrou um bom motivo para
se lamentar. — Que droga!
Escutou um ranger de porta que parecia fruto de sua imagina-
ção, tão baixo que havia sido, mas olhou pra trás e teve certeza
de que não era impressão: Maria havia saído pela porta e estava
vindo. Logo se levantou e se pôs a correr como dava, ofegava ner-
vosamente e, a cada vez que olhava pra trás, via a irmã cada vez
mais perto.
— Não quero falar com você! – Gritou o menino ao léu. — Sai!
A garota vinha correndo logo atrás dele sem muita dificuldade,
afinal, não estava abalada. Felipe foi chegando perto do orfanato.
— Vou contar pra todo mundo!
Maria começou a correr mais rápido, seu rosto ficou vermelho
e seus olhos apertados.
Chegando ambos em disparada no pátio, a comoção foi geral.
As religiosas os viram vindo em carreira e as crianças logo pensa-
ram que se tratava de uma competição. As meninas mais velhas
sabiam exatamente do que se tratava e ficaram se entreolhando,
ansiosíssimas. Com risinhos de canto de boca, olhavam-se inde-
centemente.
Os irmãos foram chegando como cavalos, os pés iam batendo
no chão e estavam tão pesados e cansados que todos ficaram ago-
niados para saber quem venceria. Felipe chegou logo na frente, mas
acabou tropeçando na consciência pesada e caiu no chão. Maria se
controlou para continuar de pé depois de parar repentinamente,
e continuou olhando o irmão que jazia no chão. A garota arfava

39
e o menino tentava, sofregamente, respirar – havia um nó em sua
garganta.
— Você é uma nojenta! – Ele se virou para ela e chutou-lhe a
barriga.
Uma religiosa interveio — Meu filho, além de ser sua colega, é
sua irmã e é uma mulher! – A mulher se abaixou e amparou o me-
nino para que ele se levantasse. Maria continuava olhando, agora
com a mão por sobre a barriga.
— Mas ela é. Ela é!
Maria continuava olhando para o irmão, depois levantou os
olhos e olhou à sua volta. Cada pessoa daquele orfanato estava no
pátio e estava olhando para ela. Voltou os olhos para o irmão. Ele
disse:
— Ela não é mais virgem!
Todos murmuraram um sonoro “ooooh!” longo e reprovador
que daria, talvez, para os coelhinhos lá do estábulo escutarem. Ma-
ria olhou para os lados, para o chão, para dentro de si mesma e de-
pois para Felipe. A religiosa que estava com ele ficou tão chocada
que botou um ovo. E seria difícil que percebessem que ela o havia
botado, porque estava com uma roupa longa e escura demais.
— Maria! – A religiosa disse. — Vá para a sala da diretora!
Felipe, você também!
A garota continuou onde estava, observando-se. Mexia no bo-
tão da camisa, no cabelo. Felipe não sabia se a irmã estava nervosa
ou não. Já se sentia arrependido do que havia dito, daqueles arre-
pendimentos que surgem enquanto as palavras são pronunciadas,
mas não conseguiria fazer a cena retroceder e engoli-las. A garota
disse:
— Senhora, não irei.

40
— Não seja malcriada! – Outra cuidadora surgiu do meio da
pequena multidão de pequenos e procurou assegurar que Maria
não iria a lugar algum: assegurou-se disso segurando no pulso da
moça. — Vamos!
— Eu disse que não!
O que se seguiu foi mais uma sequência que não seria esquecida
por nenhuma daquelas pessoas, mesmo que muito tempo se passas-
se. A menina tentou se livrar da mão da mulher, que se tornava ain-
da mais pesada. Ao tentar se sacudir, ela torceu o pulso e a mulher,
retorcida, desceu sua mão pesada no rosto de Maria. Felipe tentou
ajudar, mas, não teve oportunidade. A religiosa que o amparava
logo o levantou junto consigo e o levou para dentro.
Maria, que já estava com a bochecha marcada, teve a oportu-
nidade de ganhar outras marcas, posteriormente. Ela foi agarrada
por mais duas pessoas, que a levaram para um quarto separado.
Lá, examinaram-na a força, pra verificar que as acusações eram
verdadeiras, e lavaram-na com vinagre e sal, por dentro e por fora.
Felipe foi levado a uma sala e, depois de relatar o caso, foi pa-
rabenizado pela atitude. Depois de esfregá-la com vinagre e sal, as
religiosas rasparam a cabeça de Maria e a colocaram num quarto
isolado. Ela permaneceu deitada jejuando por alguns dias seguidos
até que teve vontade de comer alguma coisa. Durante todos os dias
e noites, rezava silenciosamente. Felipe era bem visto pela pequena
comunidade, rezava sempre também, para que o senhor ajudasse
sua irmã a encontrar o bom caminho que ele já percorria. Quando
pensava nela, a via numa posição desconfortável e sórdida, infe-
lizmente, era difícil transformar essa imagem num borrão difuso.
O que aconteceu depois não foi menos incrível. Um dia ensola-
rado um homem surgiu de dentro de um carro preto e conversou

41
diretamente com uma das mulheres que tomavam conta das pa-
peladas do orfanato. Ele era estranho, muito alto, e usava óculos
escuros. As crianças ficaram todas super ansiosas, porque sabiam
que qualquer pessoa que chegava de fora – que não fosse trazendo
os mantimentos – era um pai adotivo. Felipe olhou para o homem e
viu que ele o olhava. Ele era um rosto branco disforme no qual Fe-
lipe só enxergava os óculos escuros e um cabelo cobrindo a cabeça.
Não soube o que aconteceu, mas antes que se passassem duas ho-
ras ele fora orientado a entrar no carro. Quando entrou, viu a irmã
sentada no outro extremo do assento onde se sentou e não supor-
tou olhá-la. Maria o olhou daquele jeito dela de olhar, clamando
por piedade, por paz, por amor, tudo isso com muito ódio e mágoa.
O homem se despediu da religiosa e entrou no carro. Era um carro
grande, eu me esqueci de comentar que se tratava de um daqueles
carros nos quais há dois assentos atrás dos bancos da frente, onde
ficam o motorista e o carona. Atrás desses tipos de carro, há dois
bancos, um de frente para o outro e esse homem se sentou de frente
para os irmãos. Ali, no escuro do carro, era quase que mais difícil
ainda de enxergá-lo.
— O que houve com seu cabelo? – Perguntou o homem para
Maria.
— As religiosas o rasparam, agora ele está um pouco melhor.
Cresceu pelo menos um pouco.
— Entendo. – Disse ele, enquanto parecia ponderar. — Isso não
voltará a se repetir, não importando qual seja a sua conduta na sua
nova casa, que também é onde eu moro. Desejo que você possa
recuperar sua integridade.
Maria ficou quieta e sua cabeça foi meneando para o lado, qua-
se que imperceptivelmente. Levou a mão ao rosto, mais precisa-

42
mente aos olhos, e tentou esconder o fato de que se debulhava em
lágrimas. Felipe olhava para fora, tentando ver se tinha algo além
de trigo entre o orfanato e o resto do mundo.
— Você vai ter outras crianças para brincar, não se preocupe. –
Disse o homem. – Meu filho é muito sozinho, acho que vai gostar
muito que vocês estejam indo lá para casa. É claro que terão muito
trabalho também, terão que estudar, que fazer suas tarefas e man-
ter seus quartos organizados e limpos, mas terão seus momentos
de lazer.
E o silêncio dominou o ambiente depois que o homem se calou.
Ele precisou perguntar. — Vocês estão entendendo?
— Sim, desculpe. – Disseram Felipe e Maria se atropelando.
— Por que você nos adotou? – Perguntou Maria, calmamente.
Felipe olhou-a por um instante. Não queria perguntar, achava
um pouco intrometido, mas também queria saber. O homem res-
pondeu com calma:
— Talvez vocês não saibam disso ainda, mas tem muita sorte e
luz no caminho da vida. Demorou um pouco para que eu pudesse
encontrá-los, mas finalmente consegui saber para onde vocês ha-
viam sido levados depois de ficarem órfãos e vim adotá-los porque
vocês serão muito úteis para mim. Não é preciso que fiquem com
medo, não sou um louco e não pretendo fazer nada de mal, mas há
algo que só vocês podem fazer e preciso que façam por mim.
— Você está falando exatamente do quê? – Maria indagou,
confusa.
— Sou um estudioso da morte e dos fenômenos que cercam esse
assunto. Durante os anos em que venho pesquisando sobre isso,
descobri que é por volta da idade em que vocês se encontram ago-
ra, o período da puberdade, que mais se desenvolvem os dons que

43
se ganha quando nascemos. Descobri que há certas pessoas que
nascem com certas habilidades, o que eu chamo de “dom”, e que
essas pessoas podem me ajudar nas minhas pesquisas. Fiquei feliz
por finalmente tê-los encontrado, fiquei preocupado que pudesse
estar atrasado. Ainda bem que encontrei Maria, já com 13 anos.
Felipe está começando a ficar no ponto ideal para melhorarmos
suas habilidades.
Felipe sentiu um frio na barriga intenso e secura na boca. Ficou
confuso, instintivamente foi esticando o braço sobre o banco do
carro para alcançar a mão de Maria, mas, assim que seus dedos
tocaram os dela, sentiu que ela o repeliu. Ela disse:
— Eu acho interessante, na verdade quero ajudar em tudo que
for preciso.
— Eu sabia que você falaria isso, Maria. Na verdade, se não
estou errado, seu dom é muito especial e, por causa disso, eu pre-
parei um quarto diferenciado pra você. Mas não vou falar mais
sobre isso, deixarei que as novidades possam se assentar em seus
pensamentos: hoje foi um dia agitado. Teremos ainda que ir até o
aeroporto, pegar um avião, e cruzar o oceano para chegarmos ao
país onde moro. Temos cerca de 20 horas de trajeto pela frente,
vocês podem dormir se quiserem. – O homem terminou sua fala
com um sorriso suave nos lábios. Retirou de um compartimento
na porta do carro um livro e, encontrando o marcador de página,
recomeçou a leitura do ponto de onde havia parado anteriormente.
Felipe estava tenso naquele banco do carro. Não sabia o que
pensar, não sabia o que fazer e simplesmente não queria estar, no-
vamente, vivendo sob circunstâncias que lhe fugiam ao controle.
Olhou para fora e já não havia mais um trigal; pequenos pontos
luminosos surgiam aqui e ali. O céu ficava rosáceo, as nuvens

44
eram cor de cenoura. Felipe olhava e tentava sentir saudade, mas
não sentia.
No fosso, ele pensava que era um absurdo que conseguisse se
lembrar dessas idiotices. Ali, sua sanidade lhe dava sinais em sua
revolta. Quando voltou a si, lembrou-se de Tathiana.

45
46
Capítulo III

47
48
E, como tudo na vida parece passar muito rápido (exceto os
péssimos momentos: esses sim, passam como uma sopa grossa por
um gotejador entupido), os dias e semanas e meses que se seguiram
depois que Felipe e Maria chegaram no casarão se passaram muito
depressa. Digo um casarão porque é disso que se trata mesmo.
Uma casa grande, ampla, com cerca de seis quartos e pelo menos
uns quatro banheiros – mas aparentemente uma só cozinha. Digo
“aparentemente” porque alguns cômodos eram restritos e estavam
trancados. Não havia pessoas para trabalhar na casa e, pelo fato
de ela ser bem ampla, Felipe se desdobrava para dar manutenção
nela, mas essa tarefa era feita durante dois dias da semana apenas.
Quem fazia a comida era o filho do dono da casa, um jovem rapaz
de 11 anos de idade.
— Este é Pedro, meu filho. Ele gosta de cozinhar e vai ficar por
conta dessa função e de mais alguma que ele puder fazer. – Foi des-
sa forma que o homem apresentou Pedro para Maria e Felipe, logo
que eles chegaram.
Pedro era um jovem adolescente magro e de nariz pontudo.
Ele tinha os cabelos e os olhos da mesma cor. Seus cabelos esta-
vam sempre penteados, de maneira que se via uma linha retilínea
entre as madeixas exatamente divididas em duas partes: uma par-
te para a direita, e outra para a esquerda. Era um cabelo muito
bem arrumado.
Pedro sorriu com simpatia simplória e esperou que o pai ter-
minasse de falar tudo que havia para ser dito para que ele pudesse
falar algo.
— Maria, o seu quarto é separado dos dois meninos, você vai
ficar no final do corredor, lá em cima. Eu nem vou levá-la até lá,
fique à vontade. Tem roupas no guarda-roupa, tem um pente na

49
penteadeira, tem sapatos na sapateira e tem, eu espero, tudo que
você precise, mas, se tiver mais alguma coisa que faça falta, fale
com o Pedro. Felipe – disse o homem se voltando para o menino
–, você vai ficar com o Pedro, porque eu acho que vai fazer bem
pra você. Quando achar que está preparado, me fale e você pode ir
para qualquer outro quarto. Digo isso porque os quartos que não
estão sendo usados, assim como os cômodos que estão também
sem uso, são deixados fechados. Isso significa menos trabalho pra
vocês. Maria está dispensada das tarefas da casa, ela precisa de des-
canso e privacidade por algum tempo. Por falar nisso, Maria, aqui
está a chave do seu quarto, você pode trancá-lo quando quiser. –
Depois, o homem simplesmente se virou e foi embora para algum
lugar da casa que, por hora, era um mistério para Felipe.
Maria olhou para Pedro e perguntou, sem que seu tom de voz
expressasse qualquer ansiedade:
— Você faz as refeições em horários fixos?
— Sim. – Respondeu ele fatigado. — Assim eu não tenho que
chamar ninguém se a comida estiver pronta. Se ninguém vier, eu
simplesmente guardo tudo. Meu pai não come com a gente, ele
come em um lugar separado. Temos um almoço às 13 horas e jan-
tar às 19. Refeições fora desses horários podem ser feitas sempre, é
só ir até a cozinha, lá sempre tem comida.
— Eu entendi, obrigada. – E ela se encaminhou para a escada,
subiu os degraus e logo os meninos a tinham perdido de vista. Es-
tavam na sala, um de frente para o outro. Felipe olhou Pedro, e este
o olhou com certo cuidado, apesar de parecer que isso era um ato
monótono.
— Felipe, você se importa de ficar separado da sua irmã?
— Como assim separado?

50
— Vocês não vão ficar no mesmo quarto, é sobre isso que estou
falando. Eu acho que ficaria. Eu gostaria de ter um irmão ou uma irmã.
— Você diz isso porque não tem, se tivesse, acharia horrível. –
Felipe deu as costas para Pedro e começou a andar na sala. — Essa
casa é muito grande, como você consegue cuidar dela sozinho?
— Agora que você chegou tudo vai ficar menos difícil. – Dis-
se Pedro, com certo ar de felicidade. — Vamos dormir no mesmo
quarto, vai ser legal.
Felipe simplesmente concordou com a cabeça e continuou
olhando a sala, que tinha um teto muito alto. O piso polido era em
mármore, e havia tapetes vermelhos espalhados por ali e aqui. As
cortinas eram da mesma tonalidade dos tapetes e as paredes tam-
bém pareciam ter sido recobertas por material semelhante. Achou
que era muito pouco luminoso. Foi até uma das cortinas para abrir
quando Pedro disse:
— Não abra, vai parecer mais sujo se você fizer isso. Está sem
limpeza há mais de um ano.
Felipe olhou pra trás com uma expressão agônica. — Esta sala
não é limpa há mais de um ano?
— Essa casa não é limpa há pelo menos dois anos. – disse Pedro
com um ar grave. — Mas não se preocupe – ele sorriu infantilmen-
te, — vou te ajudar nesse começo até tudo entrar em ordem. – E
Pedro se aproximou de Felipe e tocou em seu braço. Felipe sentiu
um calafrio. — Não se preocupe, nós daremos um jeito.
Felipe olhou para aqueles olhos estranhamente calmos e preci-
sou se esforçar para não dizer nada do que gostaria de dizer. Gos-
taria de dizer “ei, tira as mãos de mim”. O toque lhe gerava um
incômodo e os dedos de Pedro eram finos e gelados; bem, a casa era
fria e ele já estava pensando em pegar um agasalho para se cobrir.

51
---
Exteriormente, Felipe se comportava com certa naturalidade
e calma. Ele respondia a Pedro de maneira ordeira e sempre que
alguma informação lhe era requisitada. Na maior parte das vezes,
se limitava a ouvir os intermináveis monólogos do anfitrião, que
eram, em sua opinião, chatos e sem muitas novidades.
— Felipe, eu já tive um ratinho. Era muito legal e ele... Ele fazia
uns barulhinhos, sabe de que tipo de barulhinho eu estou falando?
Um barulhinho que só os ratinhos fazem. Eles são pequenos e fa-
zem esses barulhinhos engraçadinhos... Sou obrigado a rir, é muito
legal. Que barulhinho incrível... Eu tenho saudade do ratinho, ele
tinha um narizinho pontudo e tinha uns olhinhos pretinhos e bri-
lhantes, e era fofo, ele era muito fofo... Ele era fofinho! Ele fazia
um barulhinho que era uma gracinha, ele era muito fofo... O pelo
dele era cinza, mas eu não conseguia distinguir se era cinza mesmo
ou se era preto-claro, não sei... E ele fazia um barulhinho, você me
entende? Era muito fofo.
Felipe continuava torcendo o pano e molhando-o de novo para
passar nos móveis. Tinha uma felicidade quase mundana ao ir até
a área de serviço, onde ficava uma máquina de lavar antiquada. Lá,
por alguns minutos, sentia o alívio do silêncio oportuno e sentia-se
mais perto de si mesmo. Isso gerava certo incômodo, mas não o
suficiente para que ele desejasse voltar a escutar a voz de Pedro.
Mas isso recomeçava, em uma hora ou outra.
O tempo ia passando, e minutos se transformavam em horas
e a poeira ia dando lugar à limpeza diante dos olhos de Felipe.
Quando estava bem distraído, já terminando a limpeza da moldura
de dois quadros que estavam no alto da parede oposta à porta de
entrada, perto da escada, escutou a voz de Pedro.

52
— Felipe, não demora, estamos quase terminando! – Gritava
Pedro do fundo da sala, perto da entrada da cozinha, enquanto
terminava de espanar as cortinas.
— Sabe, Pedro... – Vinha Felipe andando pelo corredor até
chegar à sala novamente. — Eu tenho que ser muito grato e sou,
porque você está me ajudando. Eu sei que não é a sua tarefa... E
eu agradeço muito. – Felipe já foi se inclinando para tirar o pó de
cima de uma lareira.
— Eu fico feliz em ter alguém para me escutar. Eu adoro falar
com você, você é muito inteligente e legal.
— Que bom – Felipe sorriu para Pedro. — O que vamos fazer
mais tarde? Quer dizer, o que você vai fazer mais tarde?
— Ah... Olha só! – E Pedro olhou para o relógio de pulso. Era
mesmo um objeto que parecia caro. Felipe, naquela pouca luz que
havia, viu o metal dourado se iluminar quando Pedro o retirou de-
baixo da manga comprida do agasalho. — Está quase na hora do
jantar e você nem me avisou.
— Desculpa, eu não tenho relógio – Disse Felipe, olhando para
Pedro.
— Felipe... – Pedro desceu da escada e foi até o rapaz — Você é
um ingrato, não sei o que eu fiz pra que você me fizesse isso.
— Tá, Pedro, mas eu não fiz nada. Quer dizer, eu nem tenho
relógio!
— Você fez isso de propósito para que eu brigue com meu pai,
eu sei. Olha, não vou deixar você usar dessas suas artimanhas pra
me tirar do caminho. Meu pai me ama e a mais ninguém, então
pode parar com isso. Pensei que você gostasse de mim. Seu idiota!
– E Pedro saiu para a cozinha sem que Felipe pudesse responder.
Felipe olhou ao seu redor, avaliou rapidamente que a sala e

53
as escadas estavam limpas, e simplesmente se sentou no sofá. Es-
tava perplexo com a reação de Pedro, pensava que se tratava de
um imbecil, e de repente ele estava totalmente aborrecido porque
havia perdido a hora. — Mas eu nem fiz nada – sussurrou Felipe,
confuso. Felipe olhou para cima, na direção do quarto da irmã, e
desejou poder conversar com ela. Sabia, porém, que ela deveria
estar muito feliz, tranquila e em paz... Bem diferente do que havia
estado até um dia atrás no orfanato. Ele tentou colocar os fatos em
perspectiva, mas não chegou a lugar algum: a morte de seus pais,
seguida de uma estada cansativa no orfanato, aborrecimento, uma
visão estarrecedora de sua irmã e posteriormente uma briga... Ago-
ra havia chegado num lugar estranho, com gente estranha. Felipe
passou a mão pelo rosto, numa tentativa de compreender melhor
os fatos, mas não entendeu nada. Segurou a cabeça com a mão e
olhou para o nada, onde nada havia. Suspirou.
A sala era fria, e ele estava com frio, mas não queria subir e
pegar nenhum casaco. Queria estar no mesmo lugar, queria que
o tempo parasse ou que acelerasse muito e que ele pudesse ver o
futuro. Sentiu uma mão pesar o seu ombro e teve receio de se virar
e olhar o que era. Não teve que se esforçar muito e nem demorou a
descobrir, era uma mão adulta e se tratava do dono da casa.
O homem sentou-se ao seu lado e começou a falar enquanto
Felipe o olhava pelo canto dos olhos.
— Felipe, eu sei que tudo parece muito confuso, mas tudo vai
melhorar.
— Tudo bem. – disse o rapaz, desviando o olhar.
— Eu acho que você está cansado, afinal, foi um longo dia.
Você e o Pedro trabalharam bastante aqui na sala e nas escadas,
eu estou vendo que vocês tiraram muita poeira de todos os cantos.

54
Felipe olhou para o homem. Mil coisas passavam pela sua ca-
beça, ele estava tão cansado e desanimado que nem sabia o que
fazer. Não respondeu nada, achou que qualquer coisa que pudesse
dizer iria ser muito óbvia.
— Você e Pedro seguem uma rotina específica de estudos. Du-
rante os dias de limpeza, que são dois, você não terá rotina. Du-
rante os outros, terá tarefas a cumprir. Alguns horários são fixos,
outros são maleáveis, mas, de uma forma geral, você precisará
cumprir com suas tarefas todos os dias. Há apenas um dia de folga
e nesse dia você poderá fazer o que quiser. Você entendeu?
— Sim – disse Felipe tentando ser assertivo, a despeito de seu
cansaço.
— Suas tarefas incluem a leitura de livros. Você deve resumi-los
e me entregar; há uma lista de livros para ler e eu sempre a renova-
rei. Você terá prazos para lê-los. Você também deve meditar, orar e
se concentrar. Entendeu?
— Sim. – Mal poderia esperar pra começar toda aquela diver-
são. Felipe olhou para o lado e viu, no canto do corredor que dava
para a cozinha, o rosto de Pedro. O homem se levantou e foi para
a cozinha, mas Felipe não sabia se tinha visto mesmo Pedro ou se
foi apenas uma impressão. A casa era escura e ele não estava muito
próximo da porta do corredor. Decidiu que não ia jantar e simples-
mente se levantou e subiu as escadas. Foi até o quarto e se deitou
na cama. Achou que iria chorar, mas logo se desanimou e lamentou
pela porcaria de situação. Não percebeu que dormiu.
E os dias se passaram. Felipe acordava sozinho e ia meditar,
depois orava. No início, suas orações privilegiavam-no inteiramen-
te, e ele pedia que o grande senhor simplesmente o abençoasse e o
fizesse voar dali o mais rápido possível. Depois de um mês de ora-

55
ção, Felipe acabou se enfastiando daquela ideia maluca e se voltou
para algo mais metódico e que fizesse o tempo passar. Ele acabou
criando uma série de frases que poderiam ser repetidas até que o
tempo das orações estivesse terminado. Essas frases precisavam ser
longas, e Felipe começou a se abstrair de sua realidade pra ampliar
os pedidos e, na verdade, acabou achando que não fazia sentido
pedir tanto. Mudou os planos. Depois de dois meses de orações
e meditações que precisavam ser feitas três vezes por dia durante
uma hora cara, ele tinha um método.
Felipe começava agradecendo porque respirava, depois agra-
decia pela roupa, pela comida, pela água, pelo ar, pela existência,
pela razão, pela bondade, pela saúde. Depois, pedia perdão por
ter acordado, por ter comido, por ter colocado a roupa, por ter
respirado, por ter razão, por ser bondoso, por ser mentiroso nesse
ponto, por ter saúde. Havia pessoas passando por tudo aquilo, pes-
soas que não respiravam, que não tinham razão, que estavam nuas,
e ele ali, bem... Retornando à rotina, logo depois de se arrepender
veementemente, ele passava para a parte dos pedidos. Pedia pelos
pobres que não tinham comida e pedia para que qualquer comida
que sobrasse na face da terra fosse para eles, depois pedia perdão
porque não queria que eles comessem restos, depois pedia perdão
porque queria que eles comessem, depois se arrependia por ser tão
tolo, depois pedia perdão, depois agradecia pela inteligência, de-
pois se sentia culpado novamente. Ao final, ele estava seguindo um
zunido interminável que o acalmava e o deixava nos eixos.
Três meses de orações, meditações e leituras. Ao final do perío-
do, ele não tinha pretensões para o dia livre. No dia que tinha para
fazer “o que quisesse”, preferia simplesmente deitar e ficar olhando
para o teto ou ir até o jardim da frente do casarão e observar o céu.

56
Eu não tinha dito, mas esse casarão era bem isolado. Apesar de o
jardim da frente ter uma área de cerca de 40 metros quadrados, a
rua em frente era deserta e não havia vizinhos. O silêncio domina-
va o ambiente enquanto Pedro não estava por perto, na verdade, é
bom eu ter tocado neste assunto: Felipe se sentia muito bem com a
tarefa de meditação porque era quando Pedro tinha que se abster
de falar. Eram as normas impostas pelo pai.
E Felipe foi aprendendo a lidar com Pedro. Era importante que
ele não mencionasse o pai, ou que olhasse para ele de alguma ma-
neira que Pedro se sentisse invadido. Quando Pedro o estava im-
portunando muito com sua conversa repetida, irritante e circular,
Felipe perguntava do pai dele e logo Pedro se irritava. Foi assim
que Felipe começou a aprender a manipular Pedro, tirando, é claro,
o fato de que uma pessoa como aquela era imprevisível.
— Mas ele é inofensivo – Disse Felipe para si mesmo, em meio
aos pensamentos monótonos que moravam nos quartos suntuosos
de seu cérebro.
Havia se acostumado com o ritmo suave dos dias, com manhãs
e tardes e noites recheados de meditação e oração. A leitura e a lim-
peza também permaneciam ao seu lado, e enquanto passava pano,
muitas vezes segurava o livro e o lia, percorrendo as páginas com o
menear das íris. Achava aqueles livros muito chatos, muito mesmo,
mas tinha de fazer um resumo semanal do que havia lido e também
havia um cronograma para as leituras. Logo foi se acostumando
a ler livros enfadonhos e longuíssimos e simplesmente nem ligava
mais, apenas lia. As meditações não o levavam a lugar algum, por-
que nem mesmo sabia onde gostaria de estar.
E durante esses três meses também não encontrou mais Maria.
Ela saía do quarto nos momentos em que ele estava no dele. Fortui-

57
tamente, ela sabia o momento em que poderia sair sem que o visse,
ou seria essa uma coincidência?
Um dia sentiu vontade de bater na porta do quarto da irmã e
chegou até mesmo a estar frente a frente com a porta. A luz entrava
pela janela no final do corredor, bem ao lado da porta, e o vitral
iluminava o ambiente. Era fim de tarde. Felipe olhou a porta intei-
ra, olhou a madeira, tocou com o dedo e sentiu uma dor no peito.
Uma dor visceral, um desejo de contato. Pousou a cabeça na porta
e fechou os olhos, ardendo de anseio de bater com as costas dos
dedos e simplesmente dizer algo significativo. Sentiu seus olhos se
encherem de água, sentiu sua respiração amornar e seus lábios se
esquentarem. Não havia nada para ser dito.
Deu meia-volta e seguiu de volta para o corredor, entrou no
quarto e já pensou em se voltar para as orações e meditações do
dia.
— Oi, Felipe! – Pedro estava em frente dele, na verdade Felipe
não percebeu que Pedro estava tão próximo assim. — E você me
disse que não se importava em dormir longe da sua irmã, por que
você não disse logo que queria dormir junto com ela?
— Eu não sei, na verdade eu não sei do que você está falando –
Disse Felipe, um pouco cansado.
— Eu disse que você estava mentindo. Felipe, pensei que nós
fossemos amigos, mas é muito difícil conviver com você. Você vive
se esgueirando e se escondendo, eu nunca sei o que você está pen-
sando. E eu falo tudo pra você. Por que você não gosta de mim?
— Pedro, eu só estou aqui parado na frente da porta, eu acho
que eu queria limpar, mas já está bem limpo. E, bom, eu gosto de
você. – Felipe não estava mentindo, embora achasse que estava. —
É verdade.

58
— Eu não acho que você demonstra isso. Você quer demonstrar
que gosta de mim? Que me ama? – Disse Pedro abrindo os olhos
arredondados.
Felipe se viu diante de uma decisão crucial em sua vida. Abriu-
-se em sua mente, uma sala escura onde ele se sentava num divã
vermelho para filosofar. Ali, diante de um espelho, perguntava-se:
“O que diabos devo responder? Por que, afinal, depois de meses
de infindáveis orações, ainda tenho que me encontrar diante de
um dilema tão agonizante? Eu sei, senhor, eu sei, que a resposta
está dentro de mim: Na verdade, o senhor me propõe essas ciladas
porque sabe que sou capaz de criar uma boa resposta, ou talvez a
resposta já esteja no meu coração, ou talvez não sou merecedor de
tal resposta. De qualquer forma, eis-me aqui e bendigo o senhor
porque estou.”
— Bem se vê que você gosta muito mesmo de mim, Felipe, na
sua demora pra responder uma pergunta tão simples. Eu te digo:
Fique curioso o quanto for, não quero te falar mais nada. Dane-se
você e sua amizade idiota, você é um imbecil. – E Pedro empurrou
o ombro de Felipe para trás, a força do rapaz era muita. Felipe saiu
do lugar e teve que se equilibrar para não cair no chão.
Felipe continuou olhando Pedro, sem nada dizer. Pedro se sen-
tia incomodado com a passividade do ex-amigo. — Você não vai
falar nada, então? É isso mesmo? Está bem, eu vou me lembrar
disso – E fez uma pausa, olhando para a parede. — Eu vou me
lembrar muito bem dessa sua cara de idiota-filho-da-puta-cretino.
Pedro esperou quase um minuto, mas Felipe continuava olhan-
do com cara de paisagem. — Você me odeia – Disse Pedro.
— Pedro, ... – e Felipe entrou de novo na sala com espelhos,
olhou-se e perguntou-se: “Por que devo responder? Por quê? Para

59
que perder meu tempo com uma pessoa como Pedro? Eu sei, por-
que esses desafios surgem na minha vida para que eu me torne
alguém melhor. Ao mesmo tempo, devo ter discernimento e saber
quando me calar e quando ouvir. Não posso me dedicar a todas
as picuinhas que Pedro inventa, não posso simplesmente discutir
todos os assuntos que ele deseja.” — Pedro, é...
E Pedro olhou bem para Felipe, esperando algo sair de sua boca.
— Tudo bem, estou pronto para demonstrar meu amor por
você. – Felipe gostaria de ter se sentido completamente calmo
quando disse isso, mas logo lhe veio uma sensação extrema de de-
sespero e angústia.
— Meninos, – disse o pai do outro lado do corredor, — quero
que vocês venham até aqui. Venham logo porque é muito impor-
tante.
Os meninos começaram a andar depressa e depois de uns 30
passos estavam juntos com o homem. Ele trouxe dois objetos con-
sigo, entregou um para Pedro e outro para Felipe.
— Começaremos com a nova fase do treinamento esta semana.
Essa fase deve durar pelo menos mais três meses. Parabenizo os
dois pela aplicação e dedicação que têm tido, agora vamos passar
para a próxima etapa.
Felipe olhou o objeto que lhe foi entregue: era uma espécie de
caixa feita de uma madeira leve e cortada em tiras estreitas. Essas
tiras estreitas eram amarradas e formavam uma espécie de cesta, e
os espaços entre as hastes eram cobertos por um papel muito fino e
translúcido. Felipe abriu uma portinha que havia na caixa, que era
pequena e cabia nas suas duas mãos, e lá dentro nada havia.
— Felipe, – o homem disse – essa caixa vai ser preenchida com
seu amor. Pratique a meditação e aprenda a amar o mundo e então

60
você vai preencher esse objeto de amor. Ele vai se iluminar.
Felipe olhou para o homem e, apesar de achar aquilo muito
fora do comum, já estava se acostumando, em partes, com esqui-
sitices.
Na verdade, Felipe começava a notar algo diferente dentro de
si nos últimos tempos em que estava meditando. O homem inter-
rompeu seus pensamentos e lhe disse, finalmente: — A partir de
hoje, você ficará trancado dentro de um quarto até que tenha feito
o processo de acender essa lanterna. Você não irá comer, não irá
beber nada e terá apenas a si mesmo com quem contar. Mas eu sei
que você vai conseguir; você tem o talento necessário para essa
tarefa e a preparação que era necessária você já fez.
O homem segurou o ombro de Felipe e o direcionou para den-
tro de um dos aposentos que sempre estava fechado. Não havia ja-
nela ou interruptores, e o homem disse: — Não tenha medo, nada
vai te acontecer. – E assim que Felipe entrou, a porta fechou e a
chave girou na fechadura.
Felipe se sentou no chão e segurou a caixa entre suas mãos,
sentindo com as pontas dos dedos as ranhuras delicadas da madei-
ra e a textura suave do papel fininho. Sua mente se esvaziara, mas
em poucos minutos retornou aos pensamentos que rondaram sua
fantasia enquanto estava falando com o homem.
Uma espécie de retrospectiva lhe irrompeu a reflexão, e havia
uma faca. Mas antes da faca, Felipe mal conseguia se lembrar. Ha-
via uma atrapalhação constante com sua memória, e ele desconfia-
va de que as coisas não estavam tão ordenadas assim. A começar
pelo começo, Felipe se lembrava de muito pouco do que havia lhe
acontecido antes de ir para os cuidados da instituição religiosa na
qual havia passado o tempo.

61
Havia uma sala grande na casa onde ele vivia, e ela era branca
e as cortinas leves balançavam na época do verão e da primave-
ra, quando os raios de sol faziam brilhar a porcelana e a prataria
exposta nos móveis e na cristaleira. Havia um piano branco, uma
mesa ampla e uma toalha rendada em cima dela. A mãe andava
pela sala e ela era delgada e ruiva e parecia dançar de maneira
irresistível. O pai era quase etéreo, e seu rosto era nada menos
nada mais que uma nuvem branca sem personalidade. A gravata
era roxa, preta, vermelha, listrada, mas seu rosto era o completo
nada. Ele era inodoro. A irmã...
A irmã não ocupava sua memória, mas em seu lugar – na verda-
de, em lugar de seu nome – havia uma angústia estranha que fazia
com que suas pernas se arrepiassem e com que sua respiração ficas-
se nervosa. A irmã era isolada, a irmã era indiferente, ela tinha seu
próprio mundo e ele não pertencia a ele. Sejamos sinceros, ela era
uma espécie de aviso de que há sim algo de muito melhor do que se
pode supor; ela é o que todos deveriam ser e sua educação, beleza,
singularidade e poesia eram completas. Talvez isso fosse impressão
de Felipe, talvez ele fosse um simples tolo que não enxergava a rea-
lidade de maneira clara, talvez ele fantasiasse sobre a sua própria
realidade, talvez ele estivesse completamente errado.
Felipe pensou nos olhos de Maria e lembrou-se de que era ali
que ele via sua própria e ridícula pequeneza, sua ridícula postura,
sua ridícula feiura... Ele via nos olhos dela o seu próprio reflexo,
os olhos de Maria lhe eram o espelho e onde ele não gostaria de
se enxergar, e cada vez que ela olhava para ele, ele se sentia in-
significante. Sentia-se egoísta. A cada vez em que se sentavam à
mesa para tomar o café da manhã, Felipe pegava a faca e ela o
olhava com olhos que lhe diziam: “Você não consegue nem esperar

62
que eu pegue a faca, você é um mal-educado”. Felipe se ressentia
profundamente com aquela sinceridade visível e sensível, mas não
conseguia evitar o contato com a crueza dos sentimentos que sim-
plesmente brotavam dos olhos daquele ser.
Jorrava de seus olhos a mais profunda verdade do ser que Feli-
pe o era. E por mais que não quisesse o ser, por mais que evitasse
as mais profundas sensações e atos banais e primitivos, seu enorme
egoísmo e desprezo surgiam diante de si mesmo como fantasmas
mudos que o inquiriam, e eles moravam dentro dos olhos de sua
irmã. Não foi surpreendente que toda aquela avalanche de emo-
ções inquietantes e adormecidas surgisse durante o período na casa
onde ficaram.
Felipe sentia-se cansado e sufocado e, com os olhos já acostu-
mados à escuridão, começou a perceber que havia muita poeira,
felizmente. Porém, não havia nada além disso.
Enquanto estava no buraco cheio de dejetos podres e azedos,
Felipe se lembrava do dia em que acendeu a lanterna. Sentado no
chão, as roupas encharcadas de terra e sangue podre, o homem
apoiava a cabeça sobre as mãos e apoiava os cotovelos nos joe-
lhos. Lembrou-se do quanto foi doloroso e de que teve que meditar
muito para que pudesse chegar a algum lugar. — Como pude fazer
aquilo? – Perguntou-se, em voz alta, completamente alheio a tudo.
O rapaz estava deitado no chão, sentia-se sujo de poeira. As
pontas dos dedos estavam já grossas de tão sujas e seu estôma-
go estava doendo. Ele sentia uma fome irrevogável, mas suspirava
fundo para que pudesse se concentrar em algo. Lamentou-se por
ter se lembrado de coisas as quais não precisava se lembrar num
momento como aquele, e então, no escuro, olhou para o nada.
Felipe sentia dor no corpo, o cansaço já havia tomado conta

63
dele. Havia perdido a noção do tempo, mas sentia sono e sabia
que deveria dormir. Logo depois, achou que não deveria dormir e
que, de qualquer forma, não conseguiria porque estava com muita
fome. Logo se sentiu triste por estar naquela situação e porque não
tinha saída a não ser fazer o que lhe havia sido pedido.
Acabou dormindo sem perceber e acordou no escuro muitas ho-
ras depois, quando a fome lhe bateu à porta da consciência. Estava
se sentindo sujo, e a fome, agressiva e cáustica, lhe castigava por
algum tempo até que se cansava e ia-se embora com paciência. Feli-
pe olhava para os cantos, olhava para cima e se encontrava consigo
mesmo ali sentado ou deitado, sozinho. Da boca nada brotava,
mas sabia que estava sonhando, porque nada de concreto parecia
acontecer fora da sua mente. Pensou numa faca caindo no chão, e
quando sentiu fome de novo, chorou. Havia uma dor intensa que
lhe afligia o peito e que era parte de sua angústia mais profunda.
Ele não queria admitir, e talvez não houvesse tido oportunidade de
vivenciar esse sentimento, mas sentia-se impotente diante do desti-
no trágico que havia recebido. Queria escapar, queria correr, queria
ser outra pessoa, queria ser absolutamente nada, mas estava preso
num quarto escuro e precisava acender uma lanterna de papel por-
que um homem havia mandado que ele fizesse isso.
Dormiu depois de resistir muito, e quando acordou se esforçou
muito para tentar acender a lanterna. Prendia a respiração, ficava
com dor de cabeça e até desmaiou. Acordou novamente com uma
secura na boca que o fazia ter desejo de beber cada gota de chuva
que viu cair nos últimos anos de sua vida. À exaustão, simples-
mente deixou-se cair no chão e esperou por algo acontecer. A fome
o visitou de maneira moderada, e foi a partir desse momento que
começou a sentir uma fraqueza imensa e um pouco de tremor.

64
Ao acordar, sentiu uma dor profunda no peito e uma tristeza
inconsciente. Estava tão fraco que se deixou estar deitado e abati-
do, enquanto as lágrimas iam formando-se no cantinho dos olhos
e, delicadamente, caíam pelo rosto.
Uma revolta lhe abateu: começou de maneira serena e discreta,
mas logo estava completamente fora de controle. Socou o chão,
rolou pela poeira e logo se levantou, correndo para acertar a porta
com os ombros. Caiu no chão de uma vez e ficou olhando o espaço
escuro. Estava seco por dentro, exausto e com o corpo dolorido.
— Eu odeio isso! – puxou os cabelos enquanto sentia as lágrimas
escorrendo pelos olhos. Prendeu a respiração e desmaiou depois de
algum tempo tentando.
Felipe acordou novamente com a cabeça doendo. Estava fraco
e foi difícil para que ele conseguisse se lembrar do que estava fa-
zendo ali nos primeiros segundos depois de abrir os olhos. Para sua
infelicidade, logo se lembrou de que estava dentro de um quarto
escuro esperando que conseguisse acender uma lanterna.
“O que significa isso? Por que estou aqui? Por que estou
aqui?” Pensou ele inquisitivamente algumas centenas de vezes até
chorar novamente. “Por quê?” E logo levou as mãos ao rosto e
chorou profusamente, compulsivamente. Perdeu o fôlego, sentiu
os lábios tremerem, o nariz molhado escorrendo muco, os olhos
ficarem inchados. “Essa tristeza nunca acaba... A cada minuto
que passa me sinto mais triste, me sinto mais sozinho... Me sinto
pior! Eu não sou nada... Sei que não posso pedir nada, mas eu
não quero mais sofrer. Não consigo mais sofrer...” As lágrimas
de Felipe permaneciam quentes e quase que instaladas nos cantos
dos olhos. “Será que vou sofrer mais do que isso? Será que sofre-
rei ainda mais? Não... Não...”, dizia ele baixo. “Não quero mais

65
viver assim, não quero mais viver, não quero mais chorar... Não
quero mais respirar.”
Naquele momento, Felipe pensava que a vida era só um enorme
sofrimento que nunca termina. Um pesadelo. Ele só queria mes-
mo, naquela hora, ter esse grande momento final, só queria morrer.
Gostaria de poder se matar, mas tinha medo do que iria acontecer,
quer dizer, ele se perguntava se havia algo ainda pior depois da
morte. Perguntava-se, intimamente, se encontraria um lugar pior
do que aquele se se matasse. Desejava ardentemente não sofrer
mais, estava muito cansado. Felipe se encolhia, seu estômago esta-
va pequeno e dolorido, duro igual uma pedra.
Ele sabia, sabia que não havia sofrido sempre assim e que nem
todos os dias eram tão ruins assim, sabia sim. Mas, mesmo assim,
preso naquele lugar, no escuro, não suportava mais, se sentia pre-
so. Não sabia o que fazer para se libertar, se sentia um escravo
odiado, se sentia um brinquedo! Como podia fugir do seu próprio
caminho? Até então ele não pôde decidir nada, e não sabia mais
o que fazer. Estava nessa situação horrível, obedecendo ordens,
fazendo tudo o que podia e, mesmo assim, continuava sofrendo
tanto. Perguntava-se com profunda tristeza o porquê de ter que
viver assim, o que havia feito pra merecer isso. Oh não... Era um
rato, era uma barata... Era nada! E chorava mais, a ponto de seus
lábios se amargarem.
Por que essa vida foi reservada para ele? O que ele havia feito?
Devia merecer cada minuto de dor e desespero, certamente, senão
nada disso se justificaria. Devia ser um ser desprezível mesmo,
um egoísta... Mas é muito fácil pensar que as coisas se explicam
dessa maneira. Mesmo assim, não conseguia compreender isso de
outra forma.

66
Felipe se levantou de onde estava e se encostou à parede. Sen-
tia-se sujo e faminto. Era um egoísta por tentar entender seus pro-
blemas e sua atual situação enquanto, na verdade, ao redor do
mundo inteiro muitas pessoas viviam em pior situação do que ele.
Estava sem comer há alguns dias, se sentia mal, se sentia destruído,
mas sabia que havia muitos meninos mais jovens que ele que não
tinham comida por muito mais tempo (talvez nunca tivessem co-
mida) e que, quando comiam, comiam qualquer coisa que existia...
Lixo, carne podre... Qualquer coisa.
Felipe chorou calidamente e sentiu um suspiro quente e profun-
do invadir lhe as narinas. Sabia quem eram esses outros que estão
por aí, que nada têm e que sofrem por estarem vivos e por resisti-
rem por mais um segundo, minuto, hora e dia. Felipe sabia quem
eles eram. Ele não precisava olhar em seus olhos, mas sentia que
eles estavam em toda parte e dentro dele. Não precisava os ver ou
tocar para senti-los. Sentia a mesma coisa que eles, esse sofrimento
intenso... E chorava... Mas também evitava pensar neles, porque
não conseguia viver com essa tristeza o tempo todo, era muito difí-
cil. Com frio, com fome, com saudade, com tristeza e mágoa, onde
estava a calma, a alegria?... Ele não sabia o motivo, mas faltavam
camas, faltavam paredes... Faltavam agasalhos, faltavam pessoas,
faltava comida, faltava tudo e isso é muito difícil de aguentar.
Felipe ficou em silêncio por alguns minutos, refletindo e olhan-
do para a lanterna apagada. Pensava com agonia e pressa, e suas
palavras iam atropelando seus lábios sem que ele nem percebesse.
Seus pensamentos iam se confundindo consigo mesmo, mas preci-
sava pensar, pois era ali que seu sonho se inflava. Era um menino e
não sabia como expressar seus sentimentos, mas só precisava pen-
sar e deixar fluir aquela imensidão de sensações.

67
Ele sabia quem essas pessoas eram... Os solitários, os excluídos,
os culpados, os exilados, os doentes, os fracos... Não sabia por
que tanto sofrimento, não entendia tanto mal e tanta gente aflita,
amarga, angustiada... E também não conseguia suportar tudo isso.
Mas...
Mas ele sabia que essas pessoas sofriam e pensava nelas. Sua
cabeça se cansava, seu corpo recusava, mas sabia que essas pessoas
existiam e sofriam porque ele também estava sofrendo. Menos ou
mais, ele sabia que todos nós estamos compartilhando a dor e a tris-
teza simplesmente por estarmos vivos. Então, por causa disso, ele
sabia que a... Uma coisa simples... A compaixão é... A compaixão
não existiria se a gente não precisasse dela. Ele sentia o sofrimento
dos outros. Só sabia dele e só sentia que precisava ajudar porque
também sentia a mesma coisa, quer dizer... Estava sofrendo. Para
todos, há o amor desinteressado e puro de quem compartilha da
mesma dor, há o sopro de esperança de quem está ao lado. Há... A
energizante faísca que brota do amor mais primordial que se tem
por quem sofre; há simplesmente o amor, e só o amor pode revelar
o caminho através do sofrimento eterno.
Acendeu a lanterna. A luz brotou de algum lugar, e logo os
papéis estavam amarelados e iluminados. Felipe a viu, jogada no
chão, e ele enxergou, com os olhos iluminados e dourados, as pon-
tas dos dedos e o chão sujo em volta do objeto. Ainda chorava, e
seu peito doía. Soluçava também.

68
69
70
Capítulo IV

71
72
Alguns dias se passaram e Felipe estava comendo melhor. No
começo, ele não conseguia comer direito, mas logo estava fazendo
uma dieta leve e se alimentando mais vezes durante o dia. O pai de
Pedro havia ficado bastante motivado com o sucesso dele e Felipe
estava mais calmo. Em geral, acordava e pensava em alguma coisa
abstrata e profusa, depois se levantava e pensava mais um pouco.
Estava serenamente absorto e alheio, e já não pensava em muitas
coisas como antes. Havia passado por uma experiência intensa e o
que resultava disso era um estado de ânimo e espírito bastante aé-
reos. Comia desinteressadamente, pensava em abstrações e quase
flutuava entre os espaços da casa. Quando Pedro falava com ele,
ouvia pacientemente e respondia com calma e doçura.
— Felipe, o que aconteceu com você no quarto? Você está tão
diferente... Você está estranho – disse Pedro enquanto tomava o
café da xícara de porcelana. Era uma porcelana linda, parte de um
jogo de chá muito delicado. Você pode imaginar a cor que quiser
para esse jogo de xícaras, eu prefiro rosa com dourado, mas pode
ser qualquer cor, desde que delicado – mas até preto pode ser mes-
mo delicado, não é? As cores são muito voláteis.
— Nada... Quer dizer, sim... Aconteceram coisas, eu fiquei lá
pensando e pensando... E não parei de pensar ainda – disse Felipe
olhando para Pedro. — Estou meio sem fome.
— Felipe, eu sei que você ficou sem comer, mas você preci-
sa colocar seu corpo para funcionar novamente. Quer dizer... Eu
sei, sabe... A gente acaba se acostumando a ficar sem comer, mas
você precisa fazer esse mecanismo todo aí de dentro funcionar – e
Pedro cutucou a barriga de Felipe com a ponta do indicador. —
Você entendeu? Come e coloca as coisas aí para funcionar – Pedro
riu de maneira divertida. — Hein, você não me perguntou por que

73
não dá a mínima pra mim ou para o que eu sinto, e eu sei disso...
Mas...
— Pedro, na verdade eu me preocupo e me importo com você.
Pode falar, fique à vontade.
— Tá... – disse Pedro desconfiado. — Bom, pra dizer a verdade
não foi tão difícil assim, eu consegui fazer tudo mais rápido que
você. Meu pai me deu uma corrente com uns grilhões pesados e me
disse para que eu mentalizasse apego nelas... Você entende?
— Não. Como assim?
— É como se fosse uma grande sensação de angústia, de ne-
cessidade de se apegar, de ter algo, de possuir... Ele queria que eu
fizesse isso e logo me disse que estava bom. As correntes estão meio
que luminosas. É interessante, eu nunca pensei que as experiências
do meu pai pudessem realmente dar resultado, mas eu sempre sou-
be que ele era mesmo muito inteligente. Nossa, meu pai é incrível!
Felipe ficou em silêncio, pois sabia que não podia concordar
com Pedro senão ele ficaria com ciúmes. Pensou em perguntar a
respeito disso tudo, quer dizer, qual era o objetivo do pai de Pedro,
mas na realidade se sentia tão “avulso” que simplesmente deixou
isso de lado e continuou se esforçando para comer a segunda mor-
dida no pão. — Sabe, Pedro, eu nunca disse isso, bem... Nesses
quatro meses que estou morando aqui... Você realmente cozinha
muito bem. Até seu pão é muito bom.
Pedro abriu um sorriso largo e branquinho. — Ah, isso é legal
de se ouvir! É, eu estudo muito. – ele disse sério. — Eu leio bastan-
te e tento me aprimorar todos os dias, culinária é uma questão de
técnica e de amor e eu sou muito, muito técnico e eu amo cozinhar,
eu amo mesmo! Come mais, não fica assim... Você vai ficar mais
magro do que já está. Come!

74
— Ai, eu não sei, não tenho muito ânimo para comer. Estou
aqui olhando pra isso tudo e se eu já não tinha vontade de comer,
tenho ainda menos agora...
O rosto iluminado de Pedro se transformou numa máscara pe-
sada de um momento para o outro.
— Eu acho que você é um falso, porque num momento fala que
minha comida está ótima e depois que não quer comer nada. Você
é um mentiroso... Como você pode ser tão idiota comigo?
— Pedro... – disse Felipe pacientemente, tocando na mão dele.
– Calma. Olhe, sua comida é sempre muito boa, mas sou eu que
não consigo mais comer direito. Eu não sei, depois que fiquei muito
tempo sem comer, não consigo mais... Não da mesma forma... Eu
não me sinto com fome, não me sinto com vontade de ficar comen-
do coisas e mastigando, não sinto que isso é interessante. Não tem
sentido.
— Você quer que eu cozinhe algo de especial pra você?
— Não, eu não quero.
Pedro levanta da mesa de supetão e grita: — Você está mentin-
do, não é possível! E você está me deixando irritado, seu jeito está
muito estranho! Não gosto que você me trate igual uma criança, eu
não sou criança e não sou uma pessoa nervosa pra que você fique
me pedindo calma.
— Tudo bem, você está certo – disse Felipe, calmamente. — Eu
vou tomar mais um pouco de café e depois arrumo a mesa.
— Legal. – Sorriu Pedro, com sinceridade. — Você está meio
doidinho, mas vai melhorar. Felipe, você tem que comer mais, tem
que se animar! – E Pedro deu um abraço em Felipe, que estava
sentado na cadeira. Foi um abraço meio desengonçado, mas pelo
menos ele conseguiu encostar-se no menino. — Certo?

75
— É. – Sorriu Felipe. — É isso mesmo.
E ambos ouviram a porta da sala se abrir. A sala era ao lado
da sala de jantar, e eles puderam escutar passos de não apenas o
pai de Pedro, mas de outras pessoas. Felipe olhou para Pedro e ele
disse: — Também não faço ideia de quem seja. Quem será? – E saiu
correndo para a sala.
Felipe permaneceu sentado olhando para o pão e pensando,
morosamente, se desejava comer mais um pedaço ou não. Não se
sentia com vontade, mas tinha que comer. Achava que era um exa-
gero comer se não estava com vontade e que isso não era bom.
Levantou-se e antes de se virar viu Pedro já voltando e puxando-lhe
o braço. — Vem, tem gente nova que veio morar com a gente. – Os
olhos dele estavam arregalados, mas mesmo na agitação seus cabe-
los pareciam não se mover, de tão impecavelmente arrumados que
sempre estavam.
Chegando à sala, Felipe se deparou com dois jovens junto com
o homem. Uma menina e um rapaz. O rapaz era impressionante-
mente bonito, e Felipe não conseguiu tirar os olhos dele. Pedro
disse baixo: — Eu também o achei muito bonito.
Mas Felipe logo viu a menina novamente, e ela era estranha.
— Que foi? – Ela disse, cruzando os braços.
Antes que Felipe pudesse responder alguma coisa, o pai de Pe-
dro deu uma risada e disse, colocando a mão no ombro da garota:
— Vejo que vocês já estão interagindo, e isso é muito bom! Vou
deixá-los à vontade, tenho muitas coisas para fazer no escritório.
Pedro, tenho certeza de que posso confiar em você para que mostre
para eles os quartos e os explique sobre a rotina da casa. – E antes
que Pedro pudesse respirar para tomar fôlego e aí dizer alguma
coisa, o homem já estava quase fora da sala.

76
— Claro. Oi, gente – Pedro se aproximou dos dois novos mo-
radores, trazendo Felipe pela mão. — É um prazer ter vocês aqui.
Eu sou o Pedro e este é o Felipe. Nós somos amigos. O Felipe tem
12 anos e eu tenho 13.
Felipe percebeu que já estava morando naquela casa há mais
de dois anos e que o tempo havia passado muito rápido. Enquanto
Pedro balbuciava algumas coisas, Felipe se viu rodeado de pensa-
mentos rápidos e fugidios, os quais ele tinha dificuldade de segurar:
estava muito surpreso. Dois anos inteiros e ele nem havia percebi-
do que estava amadurecendo e que tudo estava muito diferente.
Havia dois anos que não via Maria, havia dois anos que não esti-
vera fora da casa. Havia dois anos que estivera pela última vez no
orfanato. Já não se lembrava de muitas coisas e mantinha poucas
certezas. De qualquer forma, se sentiu um pouco aliviado por estar
simplesmente levando a vida da forma que podia.
— Ô...
Felipe notou que a menina estava bem na frente dele e que ela
falava e olhava dentro de seus olhos.
— Qual o seu problema? – disse ela.
— Eu estava distraído, me desculpa. – disse Felipe vagamente.
— Felipe, estes são Tathiana e Antônio. Eles não parecem ser
legais? Agora a gente tem com quem conversar quando ficar com
raiva um do outro, isso é o máximo! Teremos mais gente para ficar-
mos com raiva quando já estivermos com raiva de outros... Nossa,
eu sempre quis isso! – disse Pedro, abraçando Antônio por trás.
— Ei, não encosta em mim – disse Antônio. — Eu não gos-
to de ninguém me tocando, e muito menos alguém como você.
– Antônio era muito, muito interessante aos olhos de Felipe, que
o ficou observando enquanto ele dizia aquelas coisas. Sempre quis

77
ser assim, sempre quis dizer aquilo da maneira, da exata maneira
que Antônio havia dito. Ele era alto, magro, longilíneo, não sei
explicar direito... Ele tinha braços longos, pernas longas, o rosto
era fino e o nariz dele era incrivelmente bonito, embora a boca e os
olhos também fossem pontos importantes que poderiam interessar
a todos. Dava vontade de ficar vendo aquele rosto e aquele corpo.
Ele tinha o cabelo engraçado, era liso e com uma grande franja e,
além disso, ele já tinha um bigode. Aquilo incomodou um pouco
Felipe, que se sentiu muito mais novo do que já era. Pedro ficou
quieto após ser repelido, depois fez cara feia:
— Essa é a minha casa, você não pode falar assim comigo. – Ele
disse.
— Ótimo, vá reclamar com seu pai, não estou nem aí. E você
também, amiguinho do idiota aqui, está olhando o quê? Pois po-
dem desencostar, tirar os olhos e esquecer que eu existo. Enquanto
vocês forem esses inúteis, não quero nem que pensem em mim. E
podem deixar que eu me viro. – disse Antônio, dando as costas e se
encaminhando para as escadas.
Pedro ficou quieto olhando Antônio se distanciar. Felipe ficou
quieto, desejando ardentemente poder falar daquela forma com
qualquer pessoa que fosse, mesmo que a pessoa fosse ele mesmo
em frente ao espelho. Aquela boca se movia de maneira sensual e
perigosa e proferia palavras ameaçadoras que mais pareciam um
convite para que sua vontade pudesse ser ainda maior. Suspirou
profundamente e logo reparou que Tathiana estava olhando-o.
— Meu nome é Felipe – Felipe estendeu a mão para a moça.
— Eu já sei, é interessante... – Disse ela, tocando a mão do
menino e apertando-a com firmeza. — Todo Felipe é muito chato –
Ela sorriu maliciosamente.

78
Felipe tinha pouco ou nenhum contato social há alguns anos,
e o contato que teve com Tathiana e Antônio havia sido demais.
Quer dizer, eles eram totalmente diferentes dele, eles tinham algo
para falar, eles repeliam quando não gostavam de algo, eles sor-
riam com malícia, e dentro deles havia algo que Felipe nunca sou-
bera que pudesse existir dentro de outras pessoas. Sentiu vontade
de saber quem aquelas pessoas eram, queria ser como elas, sentia
algo como uma tarântula percorrendo seu corpo, sentia o arrepio
da inveja.
— Oi, tem alguém aí? Toc-toc – e Tathiana deu dois croques na
cabeça de Felipe.
Felipe ficou olhando pra ela, depois decidiu abrir a boca e falar.
Parecia um túmulo:
— Você quer tomar café com a gente? Estávamos ali comendo
na hora que você chegou.
— Eu estava comendo, o Felipe não come mais – disse Pedro.
— Sim, nós estávamos viajando há algumas horas, acho que
estou com fome. Quer dizer, claro que estou com fome! Ora, me
mostrem onde é que vocês comem.
— Tem uma mesa grande logo ali em frente, é nossa sala de
jantar. Lá atrás, depois daquela porta que você está vendo, é a
cozinha. Eu é que cozinho para todos, temos uns horários de refei-
ção – disse Pedro, trazendo Tathiana pela mão e a colocando numa
cadeira para tomar café perto deles.
— Legal, bem legal. E vocês dois fazem o que por aqui?
— Eu e Felipe estudamos, meditamos e... Estamos agora apren-
dendo a desenvolver nossos dons, superlegal, não é? – Disse Pedro,
quase incrédulo de tudo aquilo que estava dizendo.
— Wooooohh, legal – disse Tathiana, sem muito entusiasmo. —

79
Eu desenvolvi meu dom onde eu morava, e foi minha avó quem me
ajudou. Vocês já estão cuidando das coisas por aí? – Ela pegou um
pedaço do pão doce que Pedro havia assado e já estava na terceira
bocada.
— Como assim? – Disse Pedro.
Felipe ia escutando a conversa dos dois e tentava disfarçar seu
interesse em Tathiana. Ela era uma criatura diferente, mas muito
diferente mesmo do que ele tinha em mente do que uma garota de-
veria ser, principalmente em comparação com Maria. Com certeza,
era óbvio que já havia perdido a referência da aparência que a irmã
tinha, porque havia dois anos que ela estava dentro do quarto.
Talvez ela estivesse mais velha, mais alta, seu cabelo estivesse longo
novamente, tudo poderia ter acontecido e Felipe não tinha ideia
do que era e nem da dimensão que as mudanças tinham. Tathiana
era algo diferente, muito diferente mesmo. Ela era forte e tinha o
corpo rígido e constituído como uma mortalha. Não havia a pro-
tuberância dos seios, não havia muitas curvas aqui e ali, seu rosto
era simples e seus cabelos eram curtos.
— Esse menino não para de me olhar. Felipe, você está bem?
— Estou... – disse Felipe, sem graça. — Eu só estou pensan-
do muito, eu acabo olhando pra você, mas na verdade não estou
olhando, na verdade não estou te vendo, só estou pensando.
— Hmmm... – Disse Tathiana olhando para Pedro e arqueando
as sobrancelhas. — Entendi, claro – ela piscou para Pedro.
— Mas é verdade – Felipe se sentiu um pouco ofendido.
— E você não come não?
— Eu fiquei uns dias sem comer, agora não estou com tanta
vontade.
— Mas essa comida está tão gostosa, olha só pra esse pão! É

80
uma indecência de tão bom que é! E você aí se fazendo de impor-
tante, credo.
— Foi a mesma coisa que eu disse pra ele – disse Pedro enquan-
to olhava para Felipe.
Felipe simplesmente empurrou tudo pra frente e deitou sua ca-
beça sobre os braços cruzados. Sua cabeça estava girando e gi-
rando, seu corpo parecia deslocado e indo em direção ao teto,
flutuando. Ouviu vozes longínquas, pássaros cantando no jardim,
ouviu seu próprio coração bater. Acabou por se perder nos pró-
prios pensamentos, voando longe, encontrando-se com grandes ti-
gres selvagens que vivem nas florestas escuras e úmidas, segregados
e segredados, caminham por dentre as pedras e riachos que correm
soltos por lá. Lá, onde os pássaros são mais selvagens, mais ricos e
coloridos do que em parte alguma, porque fazem parte dos sonhos
de todos os que secam por dentro sentindo sede de libertação. Esses
pássaros são livres, voam com suas caldas flamejantes e que cinti-
lam aos poucos raios de luz que ousam penetrar nos entremeios das
sólidas e eternas camadas de folhagens das copas das árvores. As
árvores são altas e mais antigas que o próprio homem, e seu cheiro
doce e peculiar faz com que suas células ancestrais recordem da sua
vida primordial e selvagem correndo na mata.
Felipe finalmente levantou a cabeça e olhou para os lados. Pe-
dro já havia saído, e Tathiana continuava sentada observando a
geleia dentro de um pote abobadado.
— Felipe, – ela havia notado que ele levantara a cabeça — você
já pensou em se expressar mais? Quer dizer, você não fala nada,
está aí ocupando um espaço...
Ele a ouvia falar, mas não tinha vontade de responder. Não sa-
bia o que responder e sabia que, se ficasse pensando durante muito

81
tempo, haveria de ser chamado a atenção novamente com alguma
frase impertinente do tipo “o que você está olhando?”. — Eu não
sei – disse de forma reduzida e lenta.
— Minha avó me disse que todos os que têm esses tipos de dons
que nós temos acabam enlouquecendo. E eu acho que já comecei a
ficar doida. Sobre mim, é apenas uma suposição, mas sobre você é
uma certeza.
— É mesmo? – disse Felipe de maneira desinteressada. Tinha
uma vontade de dizer que todos deveriam se lixar, que ele gostaria
de ficar deitado, trancado e selado dentro de uma estufa, que de-
sejaria parar de pensar em tudo o que existe na face da Terra e se
perder no nada. Queria ser nada.
— Definitivamente você não está bem. Quer sair um pouco,
ficar no jardim?
— Eu não sei – Felipe suspirou.
— Eu sei que eu sou um pouco impertinente, é verdade... Não
liga para as coisas que eu falo às vezes, ou para como eu te trato,
sei lá... – Tathiana sorriu para Felipe.
Felipe continuou a observá-la silenciosamente, parecia que iria
dormir a qualquer momento tamanho era o seu tédio. Subitamen-
te, percebeu que, se morresse, nada haveria de mudar e ninguém se
importaria muito – ou talvez nada. Achou que estar vivo era parte
do grande projeto da vida para espezinhá-lo mais um pouco. Sentiu
uma dor no peito e voltou seus olhos para Tathiana novamente.
— Vamos sentar lá fora. – Acabou concordando, achou que seria
mal-educado ou rude se não concordasse. Embora estivesse sem
vontade de conversar, de enxergar ou de respirar, continuava a ras-
tejar por todas as linhas das palavras escritas sobre sua existência.
Levantaram-se, um após o outro, um com mais vontade do que

82
o outro, e foram caminhando até a porta de entrada que dava aces-
so à parte da frente da casa, um jardim cuidado por Felipe. A gra-
ma era baixa, havia alguns arbustos decorativos e algumas árvores
de portes médios e pequenos, algumas mais perto da casa e outras
mais perto das grades.
— Vamos sentar ali embaixo daquela árvore – disse Tathiana.
— Tudo bem – disse Felipe, acompanhando a moça. Logo, ela
se sentou e ele se sentou um pouco distante.
— Chega mais perto, você parece que é doido – disse ela, pu-
xando-o pelo braço. — Eu preciso conversar algo com você... Quer
dizer, como você veio parar aqui?... O que você sabe sobre esse
lugar? – E logo Tathiana estava falando quase aos sussurros.
— Pra dizer a verdade eu estou um pouco confuso. Tem algum
tempo que eu estou aqui, eu vim junto com minha irmã, Maria.
— E onde ela está? Fazendo alguma tarefa?
— Ela fica dentro de um quarto, sozinha e trancada lá.
— Que horror! Como assim? Aquele homem é louco?
— Não... – Felipe suspirou. – Eu não falei direito, ela é quem
se tranca no quarto, acho que faz dois anos que eu estou aqui e
durante todo esse período eu não a vi mais. Antes disso estáva-
mos num orfanato, e antes ainda morávamos com nossos pais. Eles
morreram e nós ficamos sozinhos. Quer dizer, eu acho que eles fo-
ram mortos, eu não me lembro bem. E aí nós fomos enviados para
o orfanato, ficamos lá por algum tempo, e depois viemos para cá.
— Mas como assim você não vê a sua irmã, como assim, Fe-
lipe? – Tathiana se recostou na árvore que estava logo atrás dela.
— Você não sente falta dela?
— Eu não sei, eu acho que não.
— Você é um paspalho... Quer dizer, olha só pra você, está há

83
dois anos aqui e nem está vendo sua irmã, que é da sua família... E
nem está preocupado com seu futuro!
Felipe olhou para o rosto de Tathiana de uma maneira comple-
tamente confusa. Estava um pouco boquiaberto.
— Me responda, – disse Tathiana – o que você acha que está
fazendo aqui?
— Eu não sei, eu acho que não me importo. Quer dizer, e daí?
– Felipe deu de ombros.
— Não é possível... – Tathiana não conseguia manter a boca
fechada, estava perplexa. — Você ainda não tem um plano de fuga?
— Como? – Felipe olhava para os lados, completamente
confuso.
— Estou vendo que, pelo menos, você é a pessoa com quem
eu posso conversar sobre isso, dos males o menor. Escuta bem,
escuta... – Ela sussurrava agora – Nós estamos sendo utilizados em
experiências científicas, você entende?
— Você só pode estar brincando – disse Felipe, rindo, pela pri-
meira vez, em cerca de cinco anos.
— Seu burro, presta atenção e fala baixo: Você acha que está
fazendo o que durante esses dois anos que passou aqui? Você acha
que esse homem que te “adotou”, – ela fez as aspas com os dedos
de ambas as mãos – esse homem, quem ele é? Qual o nome dele?
— Eu não sei! Eu deveria saber disso tudo?!
— E você não acha um pouco estranho que você não saiba de
nada? Na verdade, seu tapado, não é nada estranho, você vive no
mundo da lua! Você nem sabe o que está fazendo aqui, está sendo
levado por uma correnteza!
— Tá, e daí? E daí? – Felipe se levantou de supetão. — Quem
você pensa que é para entrar aqui, agora – hoje, e me dizer que eu

84
não sei de nada, que sou um idiota...? Eu não me importo, estou
bem. Afinal, eu não te conheço... – Felipe olhou para Tathiana e
ela o observava atentamente. Subitamente, ele se assustou com a
própria postura e com o tom de voz e amainou. Se lembrou de que
todas as pessoas são simples peças num tabuleiro gigante e que
estão em busca de algo. São inocentes, são cegas, são solitárias.
Elas se machucam porque não sabem o que fazem, elas se ferem
na expectativa de estarem se comunicando, finalmente. Sentou-se
na grama e observou os veios do caule da árvore em que Tathiana
estava encostada. Todas as pessoas formavam um fluxo constante e
belo que, embora caótico e sem sentido, rumava como uma corren-
teza fluindo diretamente para o nada. Antes de tocarem o sinistro
mistério do encontro com o desconhecido, caminhavam de mãos
dadas na escuridão da ingenuidade ignorante.
— Me desculpe, eu não queria ser tão grosseiro.
Tathiana olhou Felipe de forma diferente pela primeira vez, no-
tando nele algo que não havia notado anteriormente.
— Eu não me importo. Na verdade, sou acostumada a ser tra-
tada de maneira muito mais violenta, você não me afeta.
Felipe sentiu misericórdia e piedade por Tathiana, pela sua pe-
queneza, inocência e estupidez. “Coitada”, pensou, “alheia a todas
as singelezas e despreocupações que nos separam dos que as an-
seiam afligidos.”
— Ei, vocês dois!
Felipe olhou para a porta da casa e viu Pedro acenando e an-
dando rapidamente ao encontro dele e de Tathiana.
— Muda de assunto, Tathiana.
Pedro chegou perto e Tathiana disse:
— Estávamos esperando você chegar, você não saía nunca

85
daquela cozinha! É uma pessoa muito caprichosa!
— É verdade! – Sorriu Pedro – Estou feliz que temos agora em
casa uma pessoa que sabe reconhecer meu valor, escutou isso, Fe-
lipe? Ela sabe que sou uma pessoa que merece elogios. Obrigado,
Tathiana.
— Então, seu pai já começou a colocar vocês em ação? – Ela
perguntou.
— Não, ainda não. Ele nos deixou fazendo treinamentos se-
paradamente e eu acho que estava esperando por vocês pra que a
gente pudesse “entrar em ação”! – E Pedro fez uma cara divertida
quando disse isso.
Felipe observava os dois conversarem. Ele certamente estava
alheio a tudo que poderia ser dito naquela conversa, ele não con-
seguia simplesmente prestar atenção. Na realidade, era vergonhoso
e idiota, mas ele não se importava. Gostava de não entender nada,
de estar excluído. Afinal, o mundo é uma exclusão constante, onde
todos estão separados, sentindo saudade, onde todos falam sem
serem ouvidos, quando ouvem, ouvem apenas a si mesmos, com-
pletamente alheios ao que outrem tem para dizer.
— Felipe, você é que tem uma lanterna, então? – Disse Tathiana.
— É.
— Mas como assim? Pra que ela serve?
— Eu ainda não sei, eu só sei que não estou conseguindo ficar
concentrado com muita facilidade. Se eu precisar manter o mesmo
nível de concentração... – Se precisasse manter o mesmo nível de
concentração e de empatia que precisou para acender a lanterna
aquele dia, dois meses antes, no quarto escuro, então teria pro-
blemas. Um momento de iluminação poderia ser alcançado com
pensamentos puros e delicados que emanam da mais completa

86
aceitação de todas as pessoas e sua pletora de miríades compor-
tamentais. Agora, sentado no jardim alheio ao cosmo, alheio às
formigas, alheio àqueles dois sujeitos que balbuciavam palavras
molhadas, alheio à sua respiração e ao pulsar de seu coração, ele
nada pensava. Achava que estava enlouquecendo.
— Meu pai disse que vai nos reunir em breve e que, a partir de
então, vai traçar planos de trabalho em equipes e que vamos fazer
varreduras com as indicações de Maria.
— Que interessante, a Maria é irmã do Felipe, certo?
— Ela é. É muito reservada, encontrei poucas vezes com ela.
Muito inteligente e doce.
Felipe sentiu uma agulhada bem dentro de seu estômago; a li-
nha grossa e desestruturada ia grudando órgão por órgão como
se fosse um varal cheio de sangue dentro de uma urna lacrada.
Tathiana olhou pra Felipe e ele se preocupou, quase que a suar,
em não demonstrar seu espanto repentino. Não havia encontrado
a irmã durante aqueles dois anos e agora estava claro que não era
uma questão de sorte ou azar, mas uma premeditação quase repul-
siva. Como ela saberia em que aposentos ele estava para que não o
encontrasse? Como poderia ter tal preocupação? Qual a extensão
real de sua raiva e mágoa por ele? Tentou lembrar-se de Maria,
mas, dolorosamente, foi aviltado pela certeza de que mais nada
sabia, nem mesmo da sensação de estar perto dela. Só conseguia
relembrar seus olhos olhando-o com desprezo e uma urgência qua-
se que vital por vê-lo salivar sangue e morrer. Sentiu-se enjoado de
súbito, notou que empalideceu e que havia gelo em todas as suas
extremidades corporais. Sentiu-se envergonhado, humilhado.
Tathiana colocou a mão sobre a de Felipe e disse: — Pedro, o
que você acha de a gente fazer, sei lá, um bolo de chocolate hoje?

87
Não seria legal? – E ela torceu a cara, o nariz, e ficou com um rosto
convidativo e divertido.
— É uma boa ideia. Eu adoro chocolate. Você gosta? Você gos-
ta daqueles bombons superpequenos que existem por aí? De que
tipo de chocolate você gosta? Você gosta de meio amargo ou mais
doce? Ao leite?
— Eu gosto de quase qualquer tipo de chocolate.
— Eu acho que prefiro os mais caros, eu odeio os mais baratos,
odeio... Eles são feitos de sebo!
— Também acho. – Disse Tathiana rindo e olhando para Felipe,
que estava com o rosto lívido e estático. Ela se levantou e seguiu
andando, passando por Pedro. – Vamos lá preparar isso, eu posso
te ajudar.
— Só eu mexo na cozinha, Tathiana – disse Pedro de maneira
resoluta.
— Eu te faço companhia então. Vamos.
E ambos seguiram andando de volta para a casa. Felipe, por
sua vez, estava fora de seu centro, fora de todas as estações. Caiu
deitado na grama e logo começou a sentir uma formiga passando
pela pele de seu rosto, mas não se importou. Sabia que todas as
casinhas das formigas, suas comunicações cheias de intenções e sua
vida progressiva, intensa e interessada tinham, em algum momen-
to, mais sentido do que a sua própria. Olhou para cima e viu as
nuvens incandescentes viajarem pelo céu tórrido. Lá no alto, no
espaço, nada daquilo importava, nada daquilo duraria. Em face da
eternidade do cosmo, a vida de Felipe nada tinha de individual ou
de impressionante, ele era menos do que uma poeira insignificante,
menos do que qualquer meteorito que vaga pelo espaço. E todos
aqueles planos, aquelas intrigas, aqueles olhares e aquelas conver-

88
sas, elas não eram nada mais do que um nada. Todos os anos que
viveria não passariam de milésimos de segundo diante da eternida-
de cristalizada e sagrada do universo.

89
90
Capítulo V

91
92
Tudo era branco e queimava os olhos, causava desconforto.
Não havia paredes, não havia encontros, não havia nada senão
um espaço amplo, branco e ilimitado. Felipe olhou para suas mãos
e elas eram finas e incorpóreas, seus dedos se perdiam como fu-
maça que se desvanece. Olhou para frente e viu Maria deitada no
chão. Ela movia seus braços e pernas com suavidade e languidez,
sua cabeça pendia para trás, era invisível. Suas pernas se abriram,
Felipe olhou, ela estava nua. O som do tambor ressoou e, de re-
pente, eram vários tambores. Estava na selvageria da mata cauda-
losa e asfixiante, quente, úmida: a mata o chamava com ardor e
ansiedade. Os tambores rebatiam, os tambores soavam rápidos,
o seu coração deslizava garganta acima, pedindo ar, mais ar. Ela
abriu as pernas.
A mata era escura, dela saíram todo o sortilégio de vermes e
pruridos movediços que brotavam de ovos de moscas. A selvageria,
a indecência e o calor da mata expurgavam toda a vida. A vida era
incessante e crua.
Felipe começou a apertar as mãos com toda a força que podia
e sentiu que a força que fazia não lhe era difícil de liberar, por-
que eram movimentos involuntários e deliciosos. Os dedos quase
se quebravam em cãibras, seus punhos ardiam, os músculos dos
braços ricocheteavam e retesavam, queimavam seus neurônios. Ele
sentia suor pingando de sua testa, de seu corpo, líquido jorrava de
seu ser. Notou que torcia o pescoço de Maria, ela o observava.
Ele arregalou os olhos e ela fechou os dela, esgotada. Felipe sol-
tou as mãos do pescoço e elas estavam trêmulas de tanta força. Os
tambores pararam de repente e ele se sentiu completamente gélido.
Abriu os olhos e estava no fosso.
Estava jogado na enorme poça suja, às vezes não sentia o cheiro

93
podre que vinha até mesmo de dentro dele. Olhou para cima, não
enxergou nada, tudo estava escuro e silencioso. Havia dormido de
repente e não se sentia aliviado apesar de ter conseguido descansar
um pouco. Riu quando pensou em “descanso” e começou a afun-
dar a mão no meio da lama, sentindo os pequenos pedacinhos de
ossos e fios de cabelos emaranhando em seus dedos.
Ainda não tinha um plano, mas o que era pior é que procurava
se lembrar do seu passado e das circunstâncias que levariam aquele
dia a finalmente chegar, o dia em que estaria jogado num buraco
imundo e lúgubre. Lembrou-se do dia em que viu a irmã novamen-
te depois de mais de dois anos.
— Felipe, Pedro, Tathiana e Antônio, bom dia. Vejo que acor-
daram na hora que pedi e que estão aqui também conforme o meu
pedido, para que possamos fazer nossa reunião sobre a parte dois
do nosso projeto.
Felipe e Pedro estavam sentados num sofá de dois lugares da
sala, Tathiana estava meio deitada e meio sentada numa namora-
deira, Antônio estava de pé perto da janela. A sala era um pouco
ampla e decorada, principalmente pelo tapete, que cobria a maior
parte do piso. O pai de Pedro estava perto da escada.
— Nosso objetivo é simples, porém muito dinâmico. Daqui
a dois dias iniciaremos nossas atividades ajudando espíritos que
ainda não conseguiram se libertar do passado a encontrarem o
caminho para transcenderem e descansarem em paz. Vocês farão
grupos, às vezes estarão todos juntos, mas, no geral, estarão acom-
panhados de Felipe, nosso coletor. Não há treinamento para essa
parte do nosso projeto, as coisas deverão acontecer de maneira
muito usual, e vocês acabarão entendendo o que fazer com a ajuda
uns dos outros.

94
Felipe olhou para os lados e viu que todos prestavam muita
atenção. Antônio tirou um cigarro de uma caixa e o colocou entre
os lábios deliciosos; seu próximo passo foi acender e fumar seu
vício.
— Quem vai interceder por todos nós é Maria. Ela tem o dom
precioso da comunicação e é ela quem sabe onde estão todas as
almas que precisam do nosso apoio. Alguns podem não conhecê-
-la, hoje pedi que ela saísse do quarto e que viesse à nossa solene
reunião.
O homem olhou para cima, virando a cabeça para trás, e disse:
— Ela está vindo, tenham o prazer de conhecê-la.
E, lá do alto da escada, veio descendo uma figura que ia se
expandindo pela sala inteira, pelo teto, pelo ar, até deixar todos
anestesiados e prontos para morrerem sufocados, exasperadamente
inspirados pela sinuosidade de uma mulher que parecia etérea e
diabolicamente angelical. Vestido e cabelos vermelhos despejavam-
se dos pés à cabeça de uma jovem esguia e farta, abastecida, porém,
apenas no quadrante superior do tórax. Aquelas duas protube-
râncias se inflamavam como chamas que se debruçavam ante aos
olhos fugidios dos expectadores. Apoiando-se e guiando-se pelo
corrimão, ela desceu até o piso térreo sem que ninguém fizesse ba-
rulho, nem as respirações puderam ser ouvidas – ou talvez tudo
houvesse perdido o sentido e todos os sons fossem calados depois
da aparição de uma deusa escarlate.
— Maria, além do seu irmão Felipe e de Pedro, que você já
conhece, Tathiana está ali, sentada na namoradeira e Antônio está
mais distante, perto da janela.
— Muito prazer. – Ela estendeu a mão, Tathiana se levantou e
rapidamente foi até ela. Antônio veio em seguida e, antes de beijar

95
o rosto de Maria, jogou uma lufada de fumaça no ar. Felipe notou
que ele deve ter dito algo enquanto beijava o rosto dela, mas Maria
simplesmente tocou-lhe no ombro e logo ele estava quase petrifica-
do diante dela.
— Sente-se aqui, Maria. – E o homem guiou a moça até uma
cadeira perto de onde Tathiana estava sentada. Tathiana e Antônio
se sentaram um perto do outro.
Felipe continuava a olhar a irmã como se nada mais houvesse,
nem mesmo ele. Sua carne, ossos, cabelos, saliva, pulmões e pés fo-
ram completamente esquecidos no mar do mistério que havia nos
olhos da mulher vermelha. O pai de Pedro dizia qualquer coisa que
não passava de fuligem de chaminé engasgada no inverno frio. Ele
era uma chaminé longa e preta que esburrava grandes quantidades
de ar e sujeira. Felipe olhava fixamente Maria, piscava quando os
olhos ficavam secos e ardiam. De repente ouviu uma pessoa o cha-
mando muito longe, muito baixo, “Felipe”, e tentou ignorar. Res-
pirou fundo e voltou seus olhos para Maria, para o olhar que ela
lançava para o além, para um oceano imaginário que havia através
da parede encamurçada, que era, naquela hora do dia, invisível e
penetrável pelo olhar cálido da rubra. “Felipe”...
— Felipe! – ele escutou Antônio gritando alto.
Assustou-se e olhou para Antônio com imediatismo; assustado,
ele não conseguiu perceber que tinha uma expressão confusa. O
pai de Pedro falou em seguida:
— Felipe, estava falando sobre você, mas você não estava pres-
tando atenção e é importante que você preste atenção.
Felipe fez que sim, olhou para o rosto do homem e, enquanto
seus lábios se moviam como que comendo biscoitos macios e fa-
relentos, ele ia flutuando pela janela, através de um par de braços

96
que iam fazendo-o deslizar por cima deles. Do outro lado, flutuan-
do, estava Maria. De repente, Felipe sentiu uma espécie de chico-
teamento e sua cabeça simplesmente foi empurrada para trás, tão
forte foi o choque que recebeu. A visão maravilhosa e onírica se
dispersou instantaneamente e ele não conseguiu recuperar a con-
centração para continuar a pensar no que estava pensando. Ouviu
o homem falando:
— ... E é isso, basicamente. Tudo começa em breve, espero que
estejam entusiasmados tanto quanto eu. Conto com a competência
que eu sei que vocês têm para completar essas tarefas e quando não
puderem mais usar seus dons porque estarão muito velhos para
isso, vocês estarão livres e com um dinheiro numa poupança que
estou deixando para cada um de vocês.
— Quando estaremos velhos o suficiente? – Perguntou Antônio.
— Quando saírem da puberdade, para você falta menos que
para os outros. Vocês vão saber que não conseguem fazer as mes-
mas coisas que faziam antes com seus dons, vocês serão diferentes
e isso abandonará vocês pra sempre – disse o pai de Pedro.
Antônio olhou através da janela e Felipe imaginou que ele es-
tava pensativo, obscuro, quase terminando de tragar os últimos
momentos do seu chamariz aceso.
Maria se levantou e foi até a escada, onde o homem lhe deu
o braço e eles subiram juntos. Felipe ficou observando até que a
perdeu de vista.
— Felipe, está animado pra finalmente sair dessa casa? – disse
Tathiana, esbarrando no ombro do garoto.
— Não sei, não pensei sobre isso – disse Felipe.
— Eu sei é que você está completamente diferente do que você
era. Eu sei que você era sonso, mas está ridiculamente sonso agora.

97
– Disse Pedro. – Responde olhando pra gente pelo menos, seu son-
so! Olha só... Com esses olhos caídos, nossa, Felipe, seu ânimo é...
Animador.
— O que aconteceu com ele? – perguntou Tathiana.
— Ele passou por uma experiência de concentração para poder
usar seu dom e depois disso ficou desse jeito – Pedro pegou o braço
de Felipe e o soltou no ar, fazendo com que o membro batesse com
força quando voltou à posição descansada.
— Minha avó, que me treinou, me disse que quanto mais a
gente usa esses dons, mais a gente fica doido.
— Eu não acho Tathiana, eu treino meus dons há anos e não
estou nem um pouco doido – disse Pedro.
— É... Pode ser que você seja mais resistente do que o Felipe e
do que eu. Eu não sei sobre mim, acho que estou diferente de quan-
do comecei a usar minha espada.
— Eu não sabia que você tinha uma espada! Que legal! Mostra!
– Disse Pedro.
— Eu não posso fazer isso sem concentração, mas é como se
fosse uma lâmina de luz quase que invisível. Minha avó me ensi-
nou a usar esse dom, que está na nossa linhagem há gerações. Ela
aprendeu com a mãe dela, que aprendeu com a minha tataravó, e
daí por diante. Mas estou convencida a não seguir com isso.
— Por quê? – perguntou Pedro, se sentando do lado de Tathia-
na na namoradeira.
— Porque eu não gosto muito disso, e olhe onde eu vim parar.
— O que tem essa casa, qual o problema dela?
— Bom, pra dizer a verdade... – disse Tathiana, procurando os
olhos de Felipe, completamente absortos. — Eu acho que essa casa
é incrível, só lamento o fato de ter ficado órfã e de, depois disso, ter

98
perdido minha avó também. Quer dizer, estou só.
— Não precisa se preocupar, Tathi! – disse Pedro, apertando
Tathiana num abraço vigoroso. — Eu estou aqui, e Felipe, e An-
tônio... E meu pai e até a Maria está aqui, estamos todos aqui
juntos. – Pedro olhou para a janela para ver se Antônio ainda es-
tava lá, mas ele já havia desaparecido. Felipe estava sentado numa
poltrona macia observando a janela. Pedro sussurrou no ouvido
de Tathiana: — Tathi... Eu também sou meio órfão. Minha mãe
morreu quando eu nasci, e eu acho que foi triste, mas também acho
que é legal. Tenho meu pai só pra mim agora. Mamãe morreu, e
ficou dentro de mim também, e agora eu cuido do meu pai por ela
e por mim também. Eu faço tudo que posso para que ele não sinta
falta dela e que também não queira mais outra mulher. Eu não
quero outra mãe, eu não quero nenhuma mãe... Só eu e meu pai é
o suficiente.
Tathiana olhou para Pedro, depois olhou de volta para Felipe.
Felipe sabia que os olhares de Tathiana estavam sobre ele e que,
por meio deles, ela lhe pedia alguma coisa, algum amparo, algum
socorro. Sabia que podia ignorar um pouco e que depois poderia
inventar alguma desculpa, estava cansado demais para suportar
Pedro. Apesar da verdade dos fatos de que eles moravam na mesma
casa, partilhavam momentos juntos, era correto respeitar e amar
o próximo, e ele dependia disso para se manter fiel aos princípios
éticos que lhe sustentavam. A verdade é que às vezes ele estava
cansado demais para ser o que ele desejava desesperadamente ser.
O amor maior deveria ser piedoso e compreensivo, deveria su-
portar todas as afrontas e deveria ser maior do que tudo.
Pedro abraçou Felipe por trás do encosto da poltrona e o envol-
veu com os braços.

99
— Seu chato, ridículo... Onde você está?
— Aqui... – disse Felipe.
— Pra onde você foi? Eu gostava mais de você antes.
— Desculpe, eu sinto muito. Eu não queria magoar você. – Fe-
lipe tocou nas mãos de Pedro e lhes apertou com suavidade e afei-
ção. Sentia, em seu seio, uma repulsa quase que doentia e imediata,
que fazia seu estômago revolver. Suportou essas sensações, que jul-
gou infantis e imaturas, para trilhar o caminho do amadurecimen-
to forte, consciente, ético, amoroso e fruidor da vida. — Pedro, me
desculpe por tudo que você possa estar sentindo de ruim, acho que
sou um idiota, mas eu estou tentando melhorar.
— Ele está doido mesmo, Tathiana – disse Pedro, olhando para
ela, do outro lado da sala. — Ele não faz nada, depois pede descul-
pas porque não fez, depois pede desculpas porque pensou em pedir
desculpas e acaba igual essa múmia do jeito que está aqui. Estou
cansado, vou procurar meu pai.
Pedro saiu da sala, deixando Tathiana e Felipe se olhando.

---

Alguns dias se passaram até que eles foram acordados de ma-


nhã por Pedro e foram orientados durante um café da manhã.
— Maria nos deixou uma mensagem de que devemos ir até um
endereço específico, que está aqui neste papel. O meu pai disse que
um motorista nos levará e nos trará de volta quando nós terminar-
mos o trabalho. Temos que ir agora, logo depois que tomarmos o
café, e meu pai disse que só voltaremos quando terminarmos.
Felipe mal tinha mastigado o segundo pedaço de pão que con-
seguira colocar na boca. Sentiu os olhares de Tathiana sobre ele e,
misericordiosamente, olhou para ela, pois sabia que se não olhasse

100
estaria sendo ruim. Era um dia importante e ele deveria estar com
o amor maior dentro de si para que pudesse acender a lanterna que
os espíritos iriam seguir.
Logo todos já tinham acabado de comer e Pedro os chamou
para irem até o carro. Estava estacionado do lado de fora do por-
tão e foi a primeira vez, em dois anos, que Felipe saiu daquela casa.
Os vidros eram todos escuros e eles não viram o motorista, mesmo
quando estavam dentro do carro. Sentaram-se espalhados pelos as-
sentos, já que havia bancos um de frente para o outro, e ficaram
esperando chegar ao local. Felipe podia perceber a ansiedade ou
descaso de seus colegas; dentro dele, havia uma dúvida, se ele iria
conseguir realizar sua tarefa ou não.
Felipe também não conseguiu ver o que havia lá fora, o vidro
era muito escuro. Ao fim achou que era melhor. Havia, com o tem-
po e a solidão constante, se tornado um pouco mais antissocial
do que já era. Já não gostava da ideia de encontrar-se com muitas
pessoas. Estar ali com Tathiana, Pedro e Antônio já era o suficiente.
Chegaram ao local e souberam disso porque o carro parou.
Olharam-se e logo Pedro decidiu abrir a porta do carro. Estavam
numa viela estreita e suja de uma cidade metropolitana. Antônio
saiu do carro logo depois de Pedro e disse:
— O motorista fechou o acesso da rua principal.
Felipe não compreendeu o que aquilo significava, mas pressen-
tiu que Tathiana o estava olhando. Mais do que isso, sentiu quando
ela puxou de leve seu dedo mínimo.
Pedro seguiu em frente e, depois de tocar na maçaneta de uma
porta de uma das casas da viela, abriu-a. Antônio observava os
arredores com calma. Depois de algum tempo, tirou um cigarro do
pacote que trazia no bolso da camisa e acendeu-o.

101
Lá estava escuro, tão escuro quanto o quarto em que Felipe
ficou por dias. Pedro tirou uma lanterna de pilhas do bolso de trás
da calça e a acendeu, iluminando o local. Havia tanta poeira que
isso era tudo que a lanterna iluminava, a princípio, quando tocava
o véu do emaranhado de espaço escuro.
— Não tem um interruptor aqui? – Perguntou Tathiana.
— Esse lugar deve estar abandonado – disse Pedro. — Ou então
eles devem ter cortado o fornecimento de energia.
Felipe sentiu, pela primeira vez em sua vida, uma energia tão in-
tensa que simplesmente foi arrebatado para a parede. Encostou-se
dura e rapidamente, sua roupa preta foi infestada de poeira quase
imediatamente. Seus cabelos tocaram a parede – Eu me esqueci de
contar isso, mas eles tinham os cabelos cortados por Pedro, que,
por sinal, os cortava muito bem.
— Felipe? – disse Tathiana — Tudo bem? – ela tentou enxergá-
-lo, mas só havia luz à frente deles. Antônio entrou na casa depois
que os outros três já estavam lá dentro.
Assim que chegou, Antônio jogou fumaça do cigarro, e Felipe
pôde, através daquela fina cortina, enxergar formas turvas de três
silhuetas em tamanhos diferentes. Ele sabia que aquelas silhuetas
eram das pessoas que eles vieram ajudar, estava apreensivo e ner-
voso. Segurava a lanterna de papel com a mão direita, e naquele
momento a luz era muito fraca.
Sentiu dentro dele todo o vazio e desespero que aquelas silhue-
tas estavam sentindo. Sentiu um buraco abrir dentro de sua bar-
riga, seus ossos congelarem, seus olhos doerem e arderem. Ele os
fechou, mas sua memória continuava injetando-lhe doses daquela
visão sombria e incômoda. Ele sentiu a dor de uma pequena famí-
lia, mãe e dois filhos, que, num rigoroso inverno, foram queima-

102
dos vivos durante um incêndio que se alastrou rapidamente depois
que a lamparina a óleo tombou durante uma noite. Todos estavam
dormindo profundamente, a fumaça acabou os envenenando.
Tanto o ar quente queimou seus pulmões quanto a fumaça tóxica
os intoxicou em pouco tempo. Felipe sentiu seu fôlego sumir subi-
tamente e teve ânsia por respirar ar puro. Era muito escuro, havia
fumaça por todo lado. Brotava da boca de Antônio uma densa
capa de gás quase líquido que serpenteava o corpo e a garganta
de Felipe. Sentiu a respiração desesperada durante o sono agitado
daqueles três corpos inocentes enquanto o fogo se alastrava pelas
cortinas puídas. As cortinas caíram sobre os corpos, mas eles já
não conseguiam mais respirar; estavam sufocados como se soterra-
dos por milhares de quilos de terra quente. As duas crianças, com
menos de 10 anos cada, caíram no chão depois de se levantarem
por breves momentos, e a mãe tentou arrastá-los para fora enquan-
to tossia, tentando respirar. Pisou em brasa quente no chão, a cama
já pegava fogo. Centelhas cintilavam pelo ar, e ali, diante de Felipe,
o choro quente e abafado de crianças que não conseguiam respirar
e que estavam desesperadas soou. Sentiu um calor insuportável,
começou a suar. Sua roupa, pesada e cheia de peças separadas, co-
meçou a colar em sua pele. Tathiana viu a mão da mãe agarrando
a de Felipe, e ela cortou-a com sua espada – um vulto cintilante
que mutilou a sombra indesejada. Pedro jogou correntes por cima
dos vultos das crianças, iluminados pelo sopro de Antônio. Felipe
estava pregado na parede.
— Peça pra eles se acalmarem – disse Antônio. — Eles precisam
de ajuda.
Felipe olhou Antônio e sentiu uma vergonha angustiante, que-
ria mais do que tudo impressionar a todos, mas não conseguia

103
desencostar da parede. Algo como uma força pungente o pres-
sionava de maneira animalesca contra os limites daquele barraco
escuro. Sentiu a respiração ofegante e resfolegante daquelas três
aparições, sentiu o falhar de suas narinas, e a falta de fôlego segui-
da de respirações curtas que sussurravam silvos enervantes.
Ele sentiu uma tristeza profunda e avassaladora tomar conta de
seu ser. Sentia toda a culpa da mãe e a impossibilidade que ela tinha
de se perdoar depois de todos aqueles anos trancados naquele case-
bre. O coração da mãe batia tão rápido quanto o dele, e ele come-
çou a sentir uma dor profunda dentro do peito. Lágrimas desceram
de seus olhos enquanto lamentava a terrível desgraça daquela pe-
quena e pobre família, que sofreu em vida e que continuava presa à
maldade da culpa. Lamentou e sofreu, suspirou com dificuldade e
sentiu um grito calado que brotou de dentro das vísceras.
— Não foi culpa sua, não se lamente mais. O sofrimento do
remorso por um simples descuido não pode consumir vocês des-
se jeito... Eu sinto muito! Veja, você estava cansada demais para
acordar a tempo de salvar seus filhos, entenda... Todos nós temos
nossos limites, eu sei que é difícil, mas você precisa entender que
não havia nada que você pudesse fazer. Eu sei que você sente vergo-
nha, mas eu te entendo e você não precisa se sentir assim. Ninguém
é perfeito. Todos nós temos nossas trajetórias; sua vida foi essa, e
agora você precisa se libertar e seguir adiante para conseguir des-
cansar finalmente. Crianças, vocês não precisam sofrer mais, não
ficarão longe da sua mãe. Precisam sair deste lugar, precisam sair
da fumaça e do incêndio. Vamos embora, venham.
A lanterna de Felipe iluminou todo o aposento, revelando cada
detalhe bolorento e desgastado pelo tempo como se não houves-
se paredes e fosse um dia claro e ensolarado. Tathiana, Pedro e

104
Antônio viram com perplexidade três pessoas se levantando de
camas – camas que já não estavam mais ali – e, calmamente, indo
até a lanterna de Felipe. Assim que se aproximavam o bastante,
eles eram absorvidos pela luz intensa da lanterna. Logo que foram
recolhidos, o ambiente voltou a obscurecer, mas Felipe já se sentia
melhor.
Antônio tirou o cigarro da boca e o amassou com o pé, depois
de jogá-lo no chão. – Esse lugar já estava cheio de fumaça, estava
insuportável.
— Caramba, o Felipe é muito bom nisso! Legal, Felipe! – Pedro
correu para abraçá-lo. — Agora a gente volta pra casa e eu vou fa-
zer uma mega coisa gostosa pra gente comer, o que vocês querem?
— Eu adoraria comer qualquer coisa com uma cerveja, o dia
está muito quente... Mas eu duvido que alguém vá dar uma cerveja
pra gente – disse Antônio.
— Eu só quero descansar. E você, Felipe? – Perguntou Tathiana.
— Eu não sei, estou sentindo muita dor de cabeça – disse Feli-
pe, também um pouco enjoado. — Sinto como se eu estivesse com
eles no incêndio, me sinto imundo... Estou completamente suado.
— Finalmente você começou a desembuchar e falar alguma coi-
sa – disse Pedro. — Estava preocupado já...
— É... – disse Felipe absorto e certo de que não havia se comu-
nicado com ninguém além daquela família. — E agora, Pedro?
— Agora nós vamos voltar para o carro e voltar pra casa. Lá,
como meu pai já havia explicado na reunião que, aparentemente,
você não estava prestando atenção, você vai entregar a lanterna
pra ele e ele vai cuidar da família.
— Tá, tudo bem. Vamos voltar, então.
— E a cerveja? – Perguntou Antônio.

105
— Vou falar com meu pai assim que entregarmos a lanterna,
acho que ele pode comprar pra gente, sim, claro... Vocês já toma-
ram isso?
— Não, eu nunca tomei nada disso – disse Felipe.
— Minha avó me explicou que nós não podemos tomar coisas
tóxicas nem comer nada industrializado.
— Ótimo – disse Antônio. — Mais uma batalha pela frente... –
e suspirou fundo, incomodado.
Os quatro voltaram para o carro sem ver ninguém passando
pela viela ou na rua principal, ao longe. Logo que estavam ins-
talados, o carro saiu de ré. Felipe segurava a lanterna sobre seu
colo. Havia três flocos de luz pairando dentro do objeto iluminado,
seu rosto se aquecia com a energia que emanava da iluminação.
Seu coração estava tranquilo novamente, mas, de alguma maneira,
conseguia pressentir que as coisas não estavam tão calmas quanto
pareciam e que havia, diante dele, um futuro nebuloso.
De dentro do fosso, Felipe lamentava por todos os anos que
passou na casa, por todos os anos que viveu e por estar respirando.
Seus pensamentos melancólicos afundavam-no dentro do abismo
de sua iluminação.

106
107
108
Capítulo VI

109
110
O dia começa, Felipe muda mais uma vez e acha que nem me-
lhorou e nem piorou, mas que supera e já consegue pensar no-
vamente no passado. Ele sabia que não deveria ter simplesmente
se esquecido de tudo, que superaria pouco a pouco. Agora segue
refletindo e pensando em como a vida permitirá que ele seja.
Ele sabe que deveria tentar ser sempre, como imaginou que po-
deria, mas também acha que não é assim tão simples, afinal, se fos-
se, conseguiria. E entre altos e baixos, a vida vai lhe dizendo quem
ele realmente é. Passa pela sua cabeça que ele inteiriçamente seja
apenas uma frustração. Talvez, pensa, tenha que viver ainda por
mais tempo procurando o que quer. Não o que é, mas o que faz.
— Diziam que eu era egoísta, acho que eu penso demais nos ou-
tros – disse ele, solitariamente. Na verdade, já não sabia se falava
em voz alta ou se falava dentro de sua própria cabeça.
Meu coração me diz que não tenho paradeiro, sou inalcançá-
vel, nunca deixarei que ninguém faça parte da minha vida, por-
que... São tantas palavras vazias e sentimentos desperdiçados.
Conversando comigo mesmo eu me pergunto se eu não deveria
morar num lugar simples e viver como os antigos. Vejo-me muito
confuso e me pergunto o que eu espero do futuro. Eu sei que tenho
expectativas horríveis porque não quero acreditar nas pessoas e eu
sei que estou certo, sou muito racional.
Sou estável sendo racional, mas também não tenho esperanças,
não quero nada, não tenho ambições. Se agir inconsequentemente
sou feliz, mas depois pago o preço por isso. Definitivamente mar-
carei uma consulta com o psicólogo amanhã, ouço vozes dentro
de mim e às vezes tenho vontade de entrar num mar branco e me
esquecer de absolutamente de tudo. Durmo mal, minhas costas
doem. O que eu quero? Quem sou eu? Quero ser meus pais? Não

111
quero? Ser melhor não significa nada e essas pequenezas de julga-
mento alheio não me convencem. Quero ajudar as pessoas.
Estou esperando a resposta de várias coisas. Está chovendo
muito e tornou-se impossível fazer a maior parte das coisas que eu
ia fazer. Essa chuva... Quero pintar um quadro, mas não sou capaz
de acabá-lo. Quero conversar, mas não sou capaz de dizer nada.
Ainda bem que estou indo no psicólogo porque acho que não
estou nada bem mesmo... Estou tão desanimado... Pensei que eu
quisesse tanto viajar, mas de repente não sinto vontade alguma e,
além disso, não sinto vontade de fazer mais nada. Não consigo ver
sentido em nada.
Fiquei em casa assistindo televisão durante o dia inteiro, tam-
bém revisei o que eu tinha escrito. Tive um ótimo sonho, mas tenho
que parar de pensar que tem alguém vendo algo no sonho.
Foi mais um daqueles dias chatos.
Esse dia foi totalmente péssimo... Eu fiquei me sentindo mal de-
pois de ter ido ao psicólogo, tive que ficar enrolando. Foi a última
consulta do teste, depois disso, vou para a lista de espera.
Esses dias têm sido confusos e nebulosos, a ajuda do psicólogo
veio na hora certa, sem dúvida... Sinto-me fora do normal, tão sem
referencial. Eu não entendo os rumos da minha vida, não sei se me
sinto confortável ou se me preocupo. Não sei como ser.
Às vezes eu sei quem eu sou, mas sei do que preciso. Às vezes eu
acho que estou insatisfeito, talvez eu não me conheça ou não tenha
me projetado apropriadamente. Sou um fugitivo. Estou fugindo da
dor, mas estou indo de encontro a ela, paradoxalmente.
Eu queria desistir da existência, zerar, optar por uma consciência
mais branda, complacente, menos racional... Meus conflitos me fazem
pensar num colapso. Queria fugir de dentro da minha consciência.

112
As dificuldades do mundo estão em mim, eu as vejo através
dos meus olhos. As dificuldades do mundo são vistas porque estão
dentro dos meus olhos, eu vejo o mundo através de mim. Eu sou o
mundo e eu me lamento por mim mesmo.
Ser consciente, ser, existir, sentir, respirar, flanar, terrível e in-
terminavelmente no navio da pele, feito de ossos, no cais do porto
úmido e barulhento de qualquer cidade costeira. Eu sou uma ilha,
inalcançável, eu sou um barco, eu sou a multidão.
Será que eu sou assim? Por que vivo esses conflitos? Por que
nunca estou satisfeito e me sentindo em paz?
Sossego.
Sossego.
Enquanto escuto música, renovo as esperanças de reflexão, e
isso significa muito pra mim. Eu retornei às confidências num ato
de continuidade, afinal, são processos completos. Muitas pessoas,
ou todas e você, se estiver lendo, devem pensar que sou um pregui-
çoso que não mantenho rotina. Mas pra mim isso nunca existiu.
Rotina é algo que não existe no meu universo. Eu enxergo tudo
como imediato, e transformador, e transformação. Então tudo con-
verge tão longe que é impossível de enxergar. Como ter uma rotina
se tudo pode mudar? Sou obcecado pela mudança e seus benefícios
e malefícios.
Se quando eu era adolescente eu não queria que soubessem
quem eu era, agora não sei quem eu sou. Mas isso é o que eu que-
ro, a não decepção.
Ter feito terapia ano passado me ajudou a me ouvir sem jul-
gamentos, afinal, o mesmo critério deve valer para mim e para os
outros. Livrei-me de alguns problemas, ao passo que outros sim-
plesmente se enraizaram e se fixaram. O maior dos mistérios: a

113
minha solidão. Mas eu me sinto bem estando só e não preciso ter
alguém para me sentir bem. Sou uma construção racional. Algo
dentro de mim está sempre fora de controle, mas todo o resto tem
um porquê.
Eu sei.
Eu sei que quero ficar só para me preservar. Porque sou extre-
mamente passional e destrutivo.
Preciso preservar o meu dinheiro também, afinal, não sou mais
uma criança.
Já são 24 de janeiro, estou há mais de um ano sem escrever. É
assim que o movimento da vida acontece. Nunca pretendi escre-
ver sobre mim e, na verdade, tenho dificuldades para fazer isso. O
computador é mesmo muito útil – e pensar que eu já escrevi muito
à máquina.
Meus pensamentos e sentimentos fluem. Já foi mais difícil en-
tender, mas sou muito intenso com sentimentos. Eu tenho dificul-
dade em lidar com a falta e com o sofrimento. Quando eu disse
que a parte boa da morte é que não há mais dor, bem, é verdade,
eu acho. Tenho que tomar cuidado com meus isolamentos. Além
disso, não posso desprezar a importância das pessoas, mas é difícil,
entendendo que não devo nem posso depender ou esperar algo dos
outros.
Minha mão está doendo, minha mente não para. Sinto-me em
paz. Não posso dizer que superei, mas me sinto mais confortável
com a ideia. Nem acredito...
Preciso escrever algo. Quero ser eu mesmo.
Hoje acabei de chegar de viagem, fui muito feliz. Acho que tudo
que eu queria era ficar comigo mesmo. Estou me sentindo feliz, este
ano vai ser bom. Estava estressado e doente, precisava de férias.

114
Não sei quantas coisas fiz ao mesmo tempo.
Sinto-me deprimido.
Volto meus olhos para Felipe e ele está ali dentro do fos-
so se lembrando de vários passados diferentes. Ele é bem mais
interessante e completo do que eu, porque eu o observo através de
uma lente e consigo vê-lo por inteiro. É um idiota, um ser quieto e
com dose considerável de arrogância. Acho que me pareço com ele,
mas também percebo que ele não está criando nada, a não ser suas
próprias memórias. Na verdade, estou de fora e sou eu quem crio
as memórias que Felipe acha que está cultivando durante sua vida
medíocre e pequena.
Também criei outras pessoas para que Felipe interaja e consi-
ga aprender, afinal, só se evolui na vida quando a vivemos, e não
posso deixar que ele fique de fora desse jogo. Não se aprende sem
convivência e sem o outro. Gosto muito de Tathiana, de Pedro e de
Antônio. Vamos, idiota, levante-se e tente subir por essas paredes
desse fosso novamente! Você me deprime!
E eu vejo Felipe se levantando como se carregasse o mundo nas
costas, pregando os dedos molengos e brancos nas paredes argilo-
sas e tentando se erguer, mas ele é muito fraco! Ele não se exercita,
é um intelectual, assim como eu. É uma vergonha deplorável, mas
eu compreendo que não poderia criar um ser tão diverso de mim.
Ele deve ter problemas parecidos com os meus. Não sou capaz de
criar um herói, mesmo desejando ardentemente que Felipe me sur-
preenda e que consiga me fazer aprender e me superar. Quero que
ele me supere, quero que me mostre que sou nada.
Mas ele sucumbe novamente às lembranças enquanto o ho-
rizonte da eternidade que se expande diante de seus sentidos
fica negro.

115
Ele se lembrou daquela família a quem ajudou, a primeira de
muitas, e do dia em que viu Tathiana entrando em seu quarto, de-
savisadamente.
— Felipe, temos que ser rápidos, o Pedro não me viu entrar
aqui, mas você sabe como ele é. – Ela estava colada à porta, a res-
piração estava rápida.
Felipe estava sentado na cama lendo um livro, estava encostado
no travesseiro. Achou que fosse uma confissão desesperada de al-
guém sofrendo por algum mal do passado, pensou que era melhor
ser bondoso e escutar.
— Eu não sei nem por que estou aqui, você está sempre com
essa cara de piedade. Escuta, é você quem precisa que eu sinta
pena, e não eu, se liga! – Tathiana foi até Felipe e se sentou ao seu
lado. – Escuta, precisamos fazer um plano, precisamos fugir daqui.
— Pra onde?
— Pra qualquer lugar, sei lá... Não sei onde estamos, não sei
nem o que aconteceu com o lugar de onde eu vim, mas precisamos
ir embora daqui.
— Por quê? – Felipe continuou a folhear o livro.
— Para de mexer nesse livro, seu idiota. Preste atenção.
— Estamos fazendo coisas boas, não sei por que você está tão
preocupada, calma... Temos comida, temos onde dormir, tudo po-
deria ser bem pior.
— Já é bem pior, não podemos sair daqui, estamos presos e te-
mos que obedecer ao pai de Pedro. E eu nem sei o nome dele!
— Deve ser porque isso não é importante. O que são os nomes,
não é mesmo? Simplesmente subjetividades, quando na realidade,
significativamente, somos todos um só.
Tathiana olhou para Felipe com certo ar de dó.

116
— Eu também acho que sou uno com você, Tathiana, e que isso
é passageiro.
— Eu acho que fizeram uma lavagem cerebral em você, não é
possível. Acorda! – E Tathiana lhe deu uma bofetada no rosto.
Felipe não conseguiu prever o tapa, mas também não conseguiu
sentir mais nada além da ardência no rosto. Estava todo aquecido
pela adrenalina agora, e essa sensação era gostosa. Tathiana esta-
va tão triste e Felipe percebeu que ela estava quase chorando. Por
pena, achou melhor ouvi-la, e decidiu de antemão que não iria dar
muita atenção. Na realidade seria uma maldade não lhe dar aten-
ção alguma ou fingir que estaria fazendo-o. Felipe decidiu ouvi-la
com comprometimento e fazer o melhor possível para que ela se
sentisse bem, mas também faria o possível para que ela entendesse
a pequeneza de sua unidade e de suas ações, e que era melhor sim-
plesmente seguir o fluxo.
— Felipe, você não está percebendo, mas estamos reféns de
uma pessoa louca. O pai de Pedro e o próprio Pedro têm proble-
mas e eles estão nos usando. Eles fazem isso porque têm dinheiro,
e dinheiro é poder, mas precisamos nos libertar e fugir antes que
seja tarde demais.
— Eles disseram que vão nos libertar quando não pudermos
mais ajudar na causa deles.
— E você acredita neles? Você os conhece?
— Tem dois anos que moro aqui, acho que eu conheço Pedro.
— Felipe, é inacreditável! Você está completamente sob contro-
le desse homem! Você nem pensa mais, nem sente nada!
— O que você quer fazer?
— Precisamos fugir.
— Por que você me escolheu pra esse plano? Por que não

117
chamou o Antônio? Ele é bem mais inteligente do que eu.
— O Antônio é estranho. Eu confio mais em você, apesar de
tudo...
— Tathiana, nós conversamos duas ou três vezes, não sei por
que você acha que sou confiável.
— Pelo menos você é uma pessoa alheia e eu acho que você não
está mancomunado. Vamos fazer o seguinte... Não da próxima vez
que sairmos, porque ainda vai ser muito cedo. Quando nós sairmos
para um lugar amplo, quer dizer, quando nós tivermos que visitar
um lugar mais amplo, muito grande, e no qual a gente possa se se-
parar do Pedro, a gente vai tentar fugir. A gente vai tentar procurar
uma saída alternativa, que não seja a que a gente entrou, e a gente
vai correr e vai se esconder onde der. E depois a gente dá um jeito.
— Tá, tudo bem. Quando vai ser isso?
— Eu vou te dar um sinal, ainda não sei o que, mas você vai
saber quando for a hora certa.
— Tá – disse Felipe devagar e pensativo. Ele sentiu um pouco
de medo e um pouco de ansiedade só de pensar nessa possibilidade
e no que poderia acontecer caso eles fossem pegos.
— Vocês estão fazendo o que escondidos aqui? – A frase foi
sendo proferida enquanto a porta ia sendo aberta. Era Pedro, en-
trando rapidamente.
— Quando é o seu aniversário mesmo, Pedro? – Perguntou Ta-
thiana.
— Eu não sei... Você já sabe a data? Você já viu a data em
algum lugar? – Perguntou Pedro. Felipe ouviu em sua mente um
número, “13”.
— Dia 13 – disse Felipe.
— Tsc, estávamos aqui tentando preparar uma festa surpresa e

118
você nunca consegue ficar de fora, hein, Pedro? Difícil te surpreen-
der, você é muito esperto! – Disse Tathiana rindo.
— Sou mesmo – disse Pedro. – Felipe, papai pediu pra que a
gente descesse depois e fosse ajudá-lo a fazer um trabalho lá no
porão. Todo mundo vai ajudar. Escutou, Tathi? Todo mundo.
— Todo mundo menos a espertona da Maria, né? – Disse ela.
— A Maria é diferente, é isso. Ah, quer saber? Eu e os meninos
podemos fazer isso sozinhos, não precisa ajudar, se você não quiser.
— Tudo bem... Eu vou. – Disse ela, reticente.
Pedro saiu logo depois e Felipe continuou no quarto, olhando
para o teto. Em seus pensamentos, o mundo fluía e girava, e girava,
e tudo tentava se encaixar. Quando pensava em Tathiana, sentia
um impulso franco que vinha de dentro de seu ser; não compreen-
dia nada. E esse impulso... Era um impulso diferente, sentia-se
vivo, pela primeira vez, depois de ter acendido a lanterna. Sentia-se
com fome, com sede, com calor, com frio... E com impulso. Algo de
diferente havia nele, vontade de se comunicar, de viver, de expres-
sar-se, de estar vivo.
— Temos que sair, Maria enviou uma mensagem e precisamos
ir até um lugar – era Pedro de novo, porta adentro.
E logo os quatro estavam dispostos nos bancos da limusine e já
nem tentavam olhar através dos vidros muito escuros das janelas.
Felipe tinha medo de não conseguir se concentrar, havia algo den-
tro dele que era singular, e que estava lá há muito pouco tempo,
era uma surpresa. Olhava com receio para os outros, não queria
ser notado. O carro estacionou e Felipe esperou os outros saírem
e, por um segundo, conseguiu ficar só dentro do carro – e logo
foi para fora. Naquele segundo, ele conseguiu se reconhecer nova-
mente e entender o que estava pensando, ou pelo menos começar

119
a entender tudo aquilo que se passava em sua mente. Pensava em
Tathiana.
Fora do carro, os quatro estavam em pé diante de um prédio de
escritórios altíssimo. Estava, assim como a outra casa, interditado.
Entraram por uma porta que dava acesso às escadas e saída de in-
cêndio e começaram a subir.
— Temos que ir até o terceiro andar – disse Pedro.
Quando chegaram ao andar certo, Antônio abriu a porta cor-
ta-fogo de saída de incêndio e eles se depararam com um ambien-
te completamente escuro. Pedro acendeu uma lanterna e iluminou
adiante, mas a luz se perdia na penumbra.
— Parece que está tudo certo mesmo – disse ele.
— Precisa da piada infame “acho que se esqueceram de pagar a
conta?” – disse Antônio, entediado.
— Não – disse Tathiana. — Só lembrar disso já é bem chato.
Felipe não entendia nada, além disso, seus pensamentos flutua-
vam para longe. Pensou em Tathiana até que chegaram à porta, e
depois disso tudo o que estava em sua cabeça foi triturado, ela se
esvaziou. Felipe mal conseguia respirar, não havia janelas ou pon-
tos de luz, era tudo um breu.
— Antônio... – Disse Tathiana.
— Não precisa pedir, já vou... – Disse ele, acendendo o cigarro
com calma. Após a primeira lufada de fumaça no ar, Felipe foi
surpreendido pela imagem de uma mulher, que estava quase o bei-
jando. Ele se afastou rapidamente e Pedro jogou as correntes por
cima daquele nevoeiro espectral. Felipe sentiu-se triste, como se seu
coração tivesse partido.
Antônio, Pedro e Tathiana observavam o trabalho de Felipe,
que segurou sua lanterna bem diante do peito e fechou os olhos.

120
Sua boca pequena murmurava cálidas palavras doces que mantri-
ficavam o ar. Antônio tinha seus olhos fixos em Felipe, Tathiana
observava à sua volta e Pedro parecia hipnotizado.
— Vem cá, me abraça – disse Felipe.
E aquela mulher em forma de nuvem envolveu Felipe lenta-
mente; logo, seus longos cabelos negros iam ficando cada vez mais
nítidos em meio à obscura névoa. Ela tinha os lábios vermelhos
que, naquela turva imagem, pareciam ser formados por uma rosa.
Felipe disse baixo:
— Não tema. O amor maior, que é o que eu sinto por você e por
todos nós, te perdoa. Não importa que você tenha tirado sua pró-
pria vida, você é única. Não chore mais, não sinta pena de si. Hoje
você está sendo consolada e não precisa mais viver na escuridão.
Sei que a paixão pode cegar as pessoas e que você ficou doente de
ciúmes e de inveja, mas isso tudo acabou. Não precisa mais viver
aqui, você virá conosco para a luz, para onde todo o seu sofrimen-
to e angústia cessarão. O amor pelo próximo e o desejo de que você
se liberte vão te consolar, você terá paz. Eu amo você.
E a lanterna iluminou todo o ambiente, cada poeira e cada es-
paço de cada parede e de cada centímetro do chão encheram-se
de luz. A mulher foi absorvida pela lanterna, Felipe se sentiu feliz.
Rapidamente, o ambiente ficou escuro de novo. Eles saíram de lá
em silêncio e voltaram para o carro da mesma forma como tinham
chegado ao terceiro andar. Logo, se jogaram nas poltronas e fecha-
ram a porta atrás de si, prontos para voltarem para a casa.
Felipe, por sua vez, começou a pensar no que sentiu quando
aquela mulher se aproximou dele. Ele não sabia o porquê, mas
tinha vontade de conversar com Tathiana e de se aproximar dela.
Mudou de lugar e se sentou ao lado da moça no carro; ela riu:

121
— Tá com medo de o motorista bater ou coisa assim?
— Não...
Logo que chegaram à casa, cada qual foi cuidar de sua vida.
Antônio correu para subir as escadas, Pedro foi para a cozinha
preparar o jantar, Tathiana subiu para o quarto e Felipe fez o mes-
mo, indo diretamente para o dele. Ao chegar lá, fechou a porta e
se encostou ali, subitamente ansioso. Não tinha muita certeza, mas
tinha algo em Tathiana que lhe provocava algo estranho. Sentiu
uma coisa diferente em seu corpo, começou a passar a mão pelo
peito, desceu pela barriga, umbigo e quando sua mão desceu um
pouco mais, teve a certeza de que algo diferente lhe havia aconte-
cido. Teve um impulso imediato de meter a mão por dentro das
calças quando, inesperadamente, algo o fez olhar para um quadro
que havia na parede.
Felipe sentiu um calafrio; olhou para os lados, tudo estava pa-
rado e em silêncio como sempre esteve; tudo era igual e estático –
mas havia algo de novo. Felipe olhou para o quadro, não se moveu.
“Não se mova”, ele escutou em sua mente.
Ele escutou uma respiração. Prendeu os lábios um no outro,
por dentro da boca, aflitivo, parou de respirar. Havia outra respi-
ração, que não era sua. Felipe deu um pulo por sobre a cama de
Pedro e tirou o quadro da parede de uma vez só. Atrás dele, havia
dois buracos e neles, dois olhos.
Felipe olhou-os bem e logo eles foram cobertos com uma es-
pécie de tábua que havia do outro lado; a parede ficou isolada
novamente. Ele se sentou na cama e continuou olhando os buracos,
tapados agora com alguma coisa escura; o quadro continuava em
suas mãos. Pedro abriu a porta e entrou.
— Você sabia que tinha alguém olhando pra gente o tempo todo?

122
— Sim, é o meu pai que faz isso, ele gosta de me vigiar.
— Como assim? Mas ele estava me vigiando!
— Te vigiando? E por que ele faria isso? O que você tem com o
meu pai que eu não estou sabendo, o quê? – Disse Pedro inquisiti-
vamente, tirando o quadro das mãos de Felipe.
— Nada, não tenho nada, mal o vejo. Não quero ninguém me
vigiando.
— Pois ninguém vai te vigiar, meu pai só quer saber o que eu
faço e não interessa o que você faz. Não seja paranoico, ele só que-
ria saber se a gente tinha chegado em casa e se eu iria vir pra cá.
Felipe olhou bem para Pedro e respirou fundo. Havia ali, diante
dele, uma força viva, biológica, mamífera, humana e quase adulta,
mas completamente parasitária. Olhou bem para Pedro e viu que
ele o olhava também, mas duvidava que existisse alguma coisa pas-
sando na cabeça vazia do ser olhado. Que desperdício de matéria,
pensou ele, que absurdo fisioquímico.
— O que você está olhando? – perguntou Pedro. — Está me
achando um idiota, é isso?
— Não. – E Felipe lamentou profundamente por todos os seus
pensamentos ruins e pérfidos. Era um nada, era nada melhor do
que Pedro; era tão lixo quanto aquele que acabara de julgar, era
pior do que ele por ter feito tais julgamentos. Oh, que arrependi-
mento sublime e horrível! Felipe se deitou na cama entristecido e
sorriu.
— Pedro, eu gosto de você, estou bem. Você pode colocar o
quadro de volta na parede por favor? Toma.
— Tá. – Pedro pegou o quadro e o colocou de volta no mesmo
lugar. Precisou ajeitar um pouco antes que tivesse certeza de que
estava certo como havia estado antes. Olhou para Felipe e disse: —

123
Na próxima vez que eu duvidar de que você gosta de mim, então
eu nunca mais falarei com você.
— Eu gosto de você.
— Não, eu estou falando sério. Você acha que eu sou um burro,
um imbecil, mas eu percebo tudo o que se passa, eu percebo nos
seus olhos o que você sente. Se mais alguma vez eu perceber que
você está me ridicularizando, nunca mais vou falar com você.
— Mas eu gosto, estou sendo sincero. Às vezes eu sou meio...
Eu não sei, eu... Eu só quero o melhor pra todos, eu só quero o bem
de todos. Eu sei muito bem que não somos melhores que os outros,
que somos todos iguais e que por isso precisamos nos respeitar, e
que eu devo amar o próximo e por isso eu amo todo mundo, todos.
Eu sei que é isso o que devemos praticar todos os dias e que é pra
isso que eu estou aqui. Isso é o melhor que temos a fazer e o melhor
que temos a dar. O amor é a resposta para tudo, não importa o que
se pergunte. Amar o próximo é a única coisa que podemos fazer.
— Eu acho que você está ficando doido, e o pior é que está
acreditando no que está dizendo.
— Mas é claro que eu acredito! Eu sei disso, simplesmente é ver-
dade que precisamos nos amar mais para que possamos viver melhor.
— Isso é impossível, é impossível amar a todos.
— Não é, e eu sei. Eu sei que o que é mais importante é o amor
maior que possamos sentir, livre e desinteressado, doado, para
cada pessoa e para nós mesmos. – A lanterna de Felipe brilhou,
encostada no canto do quarto.
— Entendo – disse Pedro, friamente. — Vou voltar para a co-
zinha e servir o jantar. Você já me entendeu e não precisamos mais
ter essa conversa de novo, porque da próxima vez você nem vai
mais conversar comigo.

124
E Pedro saiu deixando Felipe ali, deitado na cama, confuso.
Ficou ali olhando para a parede, para o quadro, com a mão em
cima da barriga. De impulso, pegou o travesseiro e o atirou na pa-
rede com violência, derrubando o quadro. Seus olhos observavam
o buraco como se ele fosse uma vertigem, como se aqueles pontos
pretos fossem um sonho distante, como se estivesse vivendo uma
ilusão. Lá de dentro, um som calmo e enervante brotava, era uma
respiração profunda e calma que escorria pela parede como cálidas
gotas de tecido humano. Felipe não sabia mais se ele ouvia a si mes-
mo ou se realmente havia mais alguém dividindo aquele momento.
No meio da lama ele se sentiu imundo e lembrou-se desse episó-
dio caótico. Não que tenham sido poucos os momentos estranhos
durante sua caminhada – sendo um deles aquele momento intermi-
nável que se arrastava. Mas, naquele dia no quarto, ele se entregou
ao sublime delírio do momento, ignorando todas as vergonhas e
dúvidas. Ao lembrar-se daquela ocasião sentiu-se liberto e contente
por ter feito algo que ia além dos seus limites. E mesmo que aquele
homem nunca mais se lembrasse daquele momento, ele, ali, naque-
le fosso, sabia que a primeira vez que compartilhou seu corpo com
alguém havia sido através de um buraco.

125
126
Capítulo VII

127
128
Mais um dia se ia, mais um mês, mais um ano. O tempo cor-
ria, às vezes muito lentamente, às vezes impossível de se perceber.
A cada tique do relógio, a cada piscar de olhos, a cada sussurro,
a cada lágrima, a cada bocejo – mais um dia havia se passado.
Cheio de expectativas outro haveria de passar também; cheio de
lamentações, mais um. Espreguiçava-se o ano e de repente já es-
tava cruzando a linha de chegada, resfolegando aflito. Não quero
mais fazer isso, sinto-me renovado para os planos do ano que se
anuncia logo após a colina do adeus. À mesa, sentados, os cinco
companheiros pareciam distanciar-se em suas semelhanças. Feli-
pe estava um pouco mais forte, um pouco maior, mais alto, mais
presunçoso e incoerente. Planejava se declarar à Tathiana quando
houvesse oportunidade, da mesma forma que ela estava planejan-
do uma fuga quando houvesse oportunidade.
Na verdade quero falar um pouco dessa tal de oportunidade
que as pessoas esperam para fazer as coisas que desejam. Coitada
da oportunidade, acho que é uma oportunista, porque... Juro, só
aparece quando lhe é oportuno. Sinceramente, já passei muito tem-
po esperando várias oportunidades interessantes para terminar de
escrever este livro e não acontece, mas, quando não tenho oportu-
nidade (digo, quando estou, não sei, esperando o maldito ônibus,
ou conversando com alguém, ou sei lá – sem oportunidade –) eu
penso: quero ter oportunidade. Se eu tivesse oportunidade de meter
a mão na cara de um idiota que conheço, mas não há... Ah... O
universo não cria as possibilidades que preciso! Precisaria criá-las,
criar esses tais momentos oportunamente frugais nos quais eu terei
mais chances, mais vontade, mais capacidade e oportunidade de
agir quando nunca o fiz.
Mas voltando, esquizofrenicamente, para a cena do café da

129
manhã, clássico, embalado com suco de laranja e todo o blá-blá-
-blá que você quiser se permitir imaginar – prefiro o pão com
manteiga clássico empurrado com café, mas vá lá que você tem
mais coisas aí na cachola... Ali sentados, os cinco comiam silen-
ciosamente. Felipe não fazia ideia do que os outros estavam pen-
sando, mas ele sabia de si. Naquele mesmo dia planejava falar
com Tathiana no momento em que eles saíssem da mesa. Quer
dizer, planejava declarar-se e dizer o que sentia por ela. Sentia
algo muito forte.
Os sentimentos que tinha por todas as outras pessoas envol-
viam compaixão e superioridade incomuns. Havia nele a capaci-
dade heroica (sim, embora eu houvesse me enganado sobre isso
inicialmente) de pensar mais em si do que nos outros, e por isso é
que ele conseguia amar todos, porque era melhor do que eles.
Dentro de sua cabeça, Felipe sentia precisa e profundamente
uma pena incomensurável dos seus companheiros de mundo, que,
inocentemente, vagavam como errantes por um deserto de opor-
tunidades infindáveis. Felipe, diferentemente deles, havia evoluído
para um ser meditativo e contemplativo que encontrava nos pensa-
mentos sinceros votos de que tudo fosse perfeito para todos, e sua
compreensão de todas as coisas ao seu redor era forçada quando
ele se deparava com o diferente. Mesmo assim, o que a princí-
pio pudesse ser nojo ou desprezo, convertia-se em pena, porque
ele pensava, rapidamente, na incapacidade alheia de corresponder
às suas altas expectativas. Pensando dessa forma, ele ultrapassa-
va aqueles sentimentos mundanos e comuns da maioria – raiva,
desprezo – e prosseguia, como alma evoluída, para outro ponto
cardinal completamente diferente, a compaixão espiritualizada e
livre de qualquer mágoa.

130
— Coitado – Pensava ele, profusamente.
Mas Tathiana era uma coisa nova e diferenciada. Ela era feia,
verdade. Não havia em Tathiana, agora aos 15 anos, uma beleza
coberta por uma corola de luz, não. Tathiana era fisicamente muito
parecida com Felipe, porque não havia protuberâncias na moça.
Aqui e ali lhe faltavam formas curvilíneas tão desejadas por todos
os homens e mulheres por aí, e seus cabelos eram tão retilíneos
quanto seu corpo. Seus olhos eram secos e seu rosto era impassível.
Aqui e ali havia pequenos defeitos, mas, no geral, era a sua capaci-
dade de não se incomodar com aquilo que a fazia tão interessante
aos olhos de Felipe.
Ela estava acima de tudo o que era mundano na cultura do ser
humano social, que, em qualquer época, venera atrativos físicos
que destacam as pessoas umas das outras. Ela não se importava
com seu corpo, ela tinha dentro de si um brilho especial que a fazia
interessante e a isso se devia a sua sinceridade rasgada e irresistível.
Ela era a única pessoa que Felipe havia conhecido capaz de dizer
o que quer que pensasse, porque ela, diferentemente dele, não se
preocupava tanto assim com o que poderiam pensar. Ela não se
preocupava com o bem-estar alheio, ela não se importava com o
sofrimento, ela não se incomodava com a leve e tênue linha da
falsidade e da hipocrisia. Tathiana era visceral por dentro e por
fora. Felipe sofria quando ela lhe navalhava com cada frase seca e
direta, mas não havia problema: isso o fazia se sentir cada vez mais
atraído por ela.
— Acho que sou masoquista – pensava ele, secretamente. Logo
depois, ardentemente, desejava descobrir aquele corpo nu, reto,
inóspito, cru, seco e duro.
Queria dormir e acordar no seu colo, ao seu lado. Queria

131
morrer, e esquecer-se de tudo, e se perder no abismo de Deus.
Queria respirar e esquecer-se da vida, fechar os olhos e chorar
toda a sua essência.
Odiava estar apaixonado, porque se não era paixão, era ódio
– e não achava que fosse ódio mesmo. Era uma mania. Mas, ao
mesmo tempo, achava que podia sentir algo do tipo, mesmo tendo
tenros 13 anos. Podia não ser muito, mas possivelmente era o que
era suficiente para se perder por aí.
Levantou-se da mesa e disse:
— Pedro, você pode ficar à vontade. Vou levar tudo agora mes-
mo para a cozinha e vou lavar, estou com vontade de despachar
logo tudo isso.
— Legal – disse Pedro. — Vou aproveitar para fazer qualquer
coisa... – e o rapazinho saiu. Felipe foi para a cozinha vendo de
rabo de olho Tathiana saindo da copa.
Foi levando tudo e pensando no que ia falar e em como ia falar.
“Tathiana, eu não sei por que, mas eu gosto de você”, ia ele se repe-
tindo mentalmente enquanto levava cada xícara, pires e apetrechos
de louças que eu nem sei o nome. Chegando à cozinha, foi pegando
a esponja e pensando “Tathiana, você é linda”. Sabia que ela iria
ser grosseira, mas, se conseguisse, poderia quebrar todo o gelo e
fazê-la entender seus sentimentos. “Tathiana, eu quero você”. Ele
ria consigo mesmo. “Eu quero seu corpo”. E apertava a esponja
por entre os dedos, fazendo a espuma brotar daqui e dali, descendo
suave e sedutoramente. A cabeça estava nas nuvens.
Logo acabou e se encostou na pia úmida para refletir. Pernas
cruzadas, olhar ao longe; em sua mente havia o rosto ressabiado
da moça, que o olhava com curiosidade e descrença. “Farei você
acreditar em mim e no amor”.

132
Ele jogou o pano de prato longe e saiu caminhando à procura
de Tathiana. Cruzou a copa, saiu na sala ampla e cheia de cortinas
pesadas e vermelhas. Ela não estava sentada ali. Foi na direção das
escadas e subiu. Chegou ao quarto onde a moça dormia e, ao abrir
a porta, quando apenas desejava encontrá-la sentada na cama ou
qualquer coisa do tipo, percebeu pelo canto dos olhos algo se mo-
vendo. Ao observar tanto com a boca quanto com a porta abertas,
percebeu dois corpos se movendo. Abriu mais os olhos, incrédula e
lentamente, para que pudesse ver melhor e distinguiu dois corpos.
Negava-se a compreender de quem eram aqueles corpos, mas
foi impossível que não pudesse identificar depois de algum tempo
observando-os fixamente. Estavam tão distraídos em sua atividade
que não notaram que Felipe os olhava como se fossem dois seres
alienígenas. Seus olhos estavam arregalados de incredulidade e cer-
to pavor. Diante dele, no quarto, totalmente despreocupados, dois
corpos trocavam carícias no chão. Eles estavam em silêncio conti-
do e deleitavam-se nus, um com o outro. Felipe não percebeu que
sua boca estava escancarada. Eram dois corpos, um completamen-
te retilíneo e esguio e outro, forte e agressivo, de um rapaz sedutor.
Tentou fechar a porta tomando cuidado para não fazer baru-
lho. Deu a volta no corredor e seguiu para o quarto. Sentou-se na
cama e olhou o quadro na parede. O dia estava quente, mas, de
dentro dele, emergia uma espécie de frio que brotava de sua barriga
e percorria seu corpo até chegar ao rosto. Mal conseguia respirar.
Seu corpo cedeu e ele caiu sobre a cama, deitado, olhando para o
teto. Seus olhos pareciam feitos de cristal, havia uma camada de lá-
grimas que escorriam pouco a pouco, fazendo sua boca ficar seca.
Precisava, desesperadamente, sentir um amor imenso pelos dois,
precisava, sufocantemente, amar.

133
— Meu Deus... – disse ele. Respirava ofegantemente, daqui a
pouco sua cabeça começaria a doer e seu nariz e sua boca ficariam
aquecidos e avermelhados.
Esfregou as mãos sobre o rosto, sobre os olhos, levou-as aos ca-
belos e os segurou com força. Precisava amar mais, amar... Precisa-
va superar, sentir compaixão, pena... Coitados, coitados! Entregues
ao prazer, despudorados, malditos! Malditos! Coitados, entregues
às suas vontades, paixões e vicissitudes, coitados, coitadinhos, coi-
tada, ela foi coitada. Felipe revirou-se na cama e cobriu-se com o
cobertor, começou a suar. Coitados, malditos, tenho...
Felipe espremia os olhos com força, levava a mão à cabeça, à
testa, tentava não gritar. Seu corpo tremia e ele se retorcia, seu es-
tômago doía. A porta se abriu, era Tathiana.
— Felipe, o que foi? – disse ela, dando a volta na cama e postan-
do-se de pé diante dele, que sofria como se algo fosse explodir de
dentro de seu corpo. Ele continuava quieto, olhos espremidos, ofe-
gava e tentava respirar, mas era como se seu corpo tivesse entrado
em pane e ele estivesse superaquecido, em fase de autocombustão.
— Felipe! – ela se sentou ao seu lado na cama e colocou a mão
em cima de seu ombro. O primeiro impulso do rapaz foi dar-lhe
uma tapa, mas Felipe sabia que era preciso se distanciar dali e dela.
Sentir pena dela era o melhor, afinal, era uma coitada.
— Você é uma coitada – ele disse.
— O quê? – disse Tathiana, confusa. — Do que você está fa-
lando?
Felipe respirava fundo tentando se controlar do surto nervoso
pelo qual passava, mas tudo era mais forte do que ele e sentia que
seu corpo estava sendo comprimido pela própria pressão atmosfé-
rica. Tathiana o sacodiu:

134
— Felipe, calma! Você está assim porque me viu com Antônio?
É isso?
— Vocês dois são dois coitados – disse Felipe numa fala vaci-
lante e trêmula. Finalmente, abriu os olhos vermelhos e olhou para
a parede, depois para Tathiana.
— Eu não achei que você fosse ver a gente... Desculpa! Eu não
sei bem o que falar.
— Você não acha nada, você é... Egoísta.
— Está dizendo isso só porque me viu com Antônio? – Tathiana
estava um pouco irritada.
— Não, estou dizendo isso... Porque... Porque a verdade é que
você não se importa com o que os outros pensam ou sentem, você
sempre fala o que quer.
— Engraçado, pensei que você gostasse disso.
— Não, acho que eu estava sendo um idiota quando pensei
isso, porque você acabou de usar isso contra mim.
— Como assim?
— É... Você fez o que quis e eu não gostei – Felipe voltou a res-
pirar normalmente. Permanecia na mesma posição, olhando para a
parede, as lágrimas caíam de seus olhos.
— E por que não? Qual o problema de eu ficar com Antônio?
Você gosta de mim, é isso?
— Não, não gosto – disse Felipe, olhando para Tathiana. —
Acho que gostei de você... Mas, você é igual minha irmã, você se
entrega a qualquer um.
— Interessante, eu não sabia que só deveria ficar com você, que
só você é a pessoa certa. Não fui avisada disso.
— Você disse que não confiava em mais ninguém desta casa. Eu
pensei que você confiasse em mim!

135
— E eu confio, eu acho que isso ainda não mudou apesar de
você ter entrado no meu quarto sem bater e sem que eu permitisse.
— Você disse que não confiava no Antônio! – Disse Felipe, num
tom de voz mais alto. Sua indignação pululava pela sua espinha
dorsal e era expelida pela boca.
— E eu não confio, e daí?
— Eu não entendo!
— Felipe, o que eu sinto pelo Antônio não tem nada a ver com
confiança. Na verdade eu acho o Antônio asqueroso e arrogante,
mas é isso o que me atrai nele.
— Você é doida!
— Não, eu sou humana, e eu sou isso aqui, veja! – E Tathiana
pegou na mão de Felipe e passou sobre seus braços, ela era forte e
conseguiu segurá-lo mesmo que ele estivesse tentando fazer o pos-
sível para se soltar.
— Você é uma idiota...
Tathiana olhou Felipe e foi de encontro a ele, para abraçá-lo,
mas Felipe a empurrou para longe dele.
Os dois continuaram na cama, ele deitado e ela sentada ao seu
lado. Tathiana suspirou fundo e disse: — Eu confio em você, é a
única pessoa próxima de mim aqui nessa casa. Eu não sabia que
você gostava de mim, mas eu não sei se sinto o mesmo por você,
não quero te magoar... Você entende?
Felipe olhou bem nos olhos dela e viu que o que ela estava
falando era a verdade. Sentiu tristeza e agonia, como se sua pele
estivesse derretendo e seus olhos estivessem a ponto de explodir.
Estava soluçando de tanto chorar e se achava infantil também, um
idiota. – Eu preciso te perdoar, mas estou muito triste... Eu sei que
você não fez nada de mal pra mim, mas... É como se fosse me ma-

136
tar, estou com um nó no peito, sinto dor! Estou com vergonha!
— Felipe... – Ela o tocou no braço. — Eu preciso que você me
escute, e isso é muito sério... Só temos a nós dois aqui dentro, eu
preciso que você continue meu amigo. Mas eu acho também que
você não deve me perdoar, no fundo você sempre faz o que acha
que é melhor, mas nunca o que você deseja. Você está triste, você
se decepcionou comigo. Eu prefiro que você não converse mais co-
migo enquanto não quiser e que você não me perdoe se assim você
desejar.
— Mas eu preciso... Eu preciso te perdoar, é isso que é o certo.
O perdão e o amor pelo próximo, e... Eu sei que você precisa disso.
É o melhor, veja... – Felipe dizia chorando. — Eu vou te perdoar
agora mesmo, eu vou... – E Felipe se lembrava de todas as vezes em
que pensou em se declarar à Tathiana e de ela e Antônio se desa-
brochando no chão e sentia seu coração doer.
— Não precisa fazer isso, você está sofrendo, eu estou vendo,
pare.
— Tathiana, eu preciso fazer isso, nem que eu sofra. Mais im-
portante do que meus sentimentos são o amor maior e toda a paz
que eu posso transmitir – Felipe falava com uma vozinha chorosa
e triste.
— Felipe, não se convença dessas coisas malucas que você diz,
porque só você mesmo acredita nisso. Não faça isso, você precisa
enfrentar o seu sofrimento, ele faz parte da dor do mundo, as pes-
soas sentem isso! Você é como qualquer um.
— A lanterna é prova da iluminação do mundo através do amor
ao próximo. Eu não posso me desviar do caminho da verdade.
— Você não vê um palmo à sua frente mesmo com essa lanterna
acesa. Felipe, você precisa se libertar dessas coisas que te encheram

137
a cabeça aqui nesta casa. É impossível viver assim do jeito que você
quer. Não há maneiras de viver com essas expectativas, de viver
dessa forma. Você é muito maleável, até demais! Você acredita no
amor maior, mas não é maduro suficiente para saber o que é isso.
Onde está você? Onde estão as suas vontades? O que você quer de
verdade?
— Eu sou o que sou... Até agora cheguei aqui e acredito nessas
coisas, e é o que posso fazer para estar aqui. Eu não sei se sou ma-
duro o suficiente para entender tudo o que existe no mundo, mas
hoje eu só sei que tudo o que o mundo precisa é de compreensão e
amor que o liberte de tudo. É por isso que eu só posso me permitir
sentir amor, e preciso perseverar nisso com firmeza e intensidade,
porque se eu não fizer isso, serei apenas mais uma das pessoas que
sabe o que é certo, mas, ignorando-o, faz errado.
— Você entende que tudo o que você está dizendo é a sua ex-
pectativa projetada pra si mesmo? Talvez você não consiga realizar
isso quando for necessário. Você pensa que age assim, planeja fazer
isso, mas pode ser que não aconteça. – Tathiana parou o que estava
falando e olhou para o lado. — Eu não quero que você sofra mais
do que o necessário, mas temo pelo dia em que você descobrir que
não é possível amar e perdoar tudo e oferecer refúgio e libertação
para qualquer crime, ato ou pensamento.
— Tathiana, – disse ele, numa postura mais centrada e, ao mes-
mo tempo, pedante — eu estou protegido, seja pela minha própria
ignorância ou pelo meu desejo de fazer o que é certo – e o bem. Eu
sei é que se você não chegou ainda nesse nível de piedade e comi-
seração, então é porque você ainda não o atingiu. Eu sinto pena
de você e também de mim mesmo, porque até agora não tinha
percebido que essa sua sinceridade abundante também é fruto de

138
falta de empatia com o mundo, como se você pudesse magoar e
ferir os outros e não se importasse com ninguém. Esses olhos tris-
tes e ressentidos que desejam comprar algo que não há dentro de
mim, a culpa. Culpa é um sentimento que não possuo, porque sei,
com franqueza e plenitude, que eu sou pleno em amor e que não
há arrependimentos para aquele que só ama. Esses olhos seus são
os mesmos olhos com os quais minha irmã me olha, e você não vai
me fazer me sentir culpado.
— Felipe, lá está você de novo falando da sua irmã e do jeito
que ela te olha... Eu não sei por que você faz isso e por que eu fico
te dando ouvidos, ela é cega... E não sei como você pode ver algo
nos olhos dela.
— Isso é o que as pessoas querem dizer para me fazer me sentir
culpado. Não me venha você também querer me fazer acreditar
que ela é cega mesmo, ela nunca foi cega – mas Felipe não tinha
certeza disso.
— Eu não vou discutir isso com você agora, você está muito
nervoso e a nossa conversa já está muito estressante. Eu vou tomar
um copo de água e vou deitar um pouco, a gente se fala outra hora
– e Tathiana saiu.
A porta se fechou, Felipe continuou olhando para a parede.
Sua mente estava confusa, sua respiração mais calma e seus olhos
cheios d’água. No estômago, a comida o fazia sentir vontade de vo-
mitar. Na cabeça, pensamentos desnorteadores iam e vinham como
numa grande avenida onde o fluxo de carros é intenso. Movia os
olhos pelas órbitas e não conseguia enxergar nada que lhe pudesse
dizer algo, estava sem respostas. A cabeça doía. Até algumas horas
atrás tudo estava bem, em cerca de meia hora seu mundo caiu e ele
já não sabia mais para onde prosseguir. Olhou pela janela e viu o

139
céu claro lá fora. Olhou para o quadro e não ouviu nada. — Ela é
cega – disse Felipe, quase que inaudível. — Não pode ser.
— Não... – Continuava ele murmurando.
Felipe sentou-se na cama e olhou para a parede. Apoiou os
cotovelos nos joelhos e a testa nas mãos. Seus cabelos caíram pela
testa, havia parado de chorar. Abriu a gaveta do criado mudo e
pegou um espelho. Olhou-se através do espelho: a pele, os olhos,
os cílios nas pálpebras, as sobrancelhas, o nariz, os lábios, como os
olhos se moviam.
Sentado na lama apodrecida, Felipe não precisava de espelhos
para saber como era, porque ele sabia que podia inventar tudo o
que queria, inclusive a si mesmo. Respirou fundo e sentiu a secura
da garganta; uma azia ácida e nojenta brotava-lhe garganta abaixo
e acima, sentia uma sede repugnante – beberia qualquer líquido no-
jento por pior que fosse. Essa capacidade de inventar seu próprio
mundo, suas próprias leis, verdades e lembranças era algo que Feli-
pe havia cultivado e ao qual ele havia se habituado de tal maneira
que nunca havia sido questionado. O dia em que Tathiana o fez
admitir que Maria era cega causou-lhe uma ruptura interessante,
da qual ele não se esqueceu. Ele teve certeza de que qualquer coi-
sa que precisasse inventar, no futuro, não deveria envolver outras
pessoas. Mas, terrivelmente, teve que saber que aqueles olhos que
o afugentavam eram dele mesmo, como duas órbitas pairando no
espaço. Havia dentro dele um sentimento absurdo, amargo, pro-
fundo e intenso que lhe enojava e que o revirava por inteiro, uma
culpa absurda. Dentro do fosso, Felipe sentia a culpa lhe corroer
os dedos dos pés até pedaços do crânio de trás dos olhos. Cada
neurônio, cada molécula, cada via láctea que explodia dentro dele
morria de culpa e pesar.

140
Felipe estava imundo, mas nada daquela sujeira se comparava
ao que estava dentro de seu coração. E cada vez que falava do
amor, ele sabia que estava tentando jogar mais uma pá de cal, de
terra, e que deveria ficar calado dentro dele aquele sussurro som-
brio que lhe vinha ao pé do ouvido para dizer: — Você não presta.
E Felipe deslizava no esgoto humano e se sentia cada vez mais
parte daquilo. Se Tathiana soubesse o quão podre ele era por den-
tro, e quantos julgamentos nefastos ele fazia, e cada vez em que
desejou que alguém morresse... Mas tudo era maquiado e coberto
de desprezo e pena, já que se precisa ser superior para sentir com-
paixão e amor pelo próximo, e isso é que era muito melhor do que
a culpa. A superioridade da benevolência, comiseração, compaixão
e doação eram o suficiente para que ele afastasse todo o mau pen-
samento que lhe vinha.
Quando não podia suportar, sentia pena e estava tudo resolvi-
do quase que por milagre. A pena levava à compaixão e à doação
de amor como um ato de sordidez. Jamais fora uma pessoa cândi-
da. Mas sabia que havia dentro de si o conhecimento das manias
e defeitos obscuros e a sabedoria de suas limitações. Sem falsas
verdades ou ironias picardias, Felipe já era mais consciente de seus
equívocos e erros e sabia que era praticamente impossível que ele
fosse menos autocrítico ou autocentrado, de maneira que sempre,
em seu primeiro impulso, tratava de agradar aos outros e pensava
sempre em como poderia fazer o melhor – mesmo que isso fosse
contra a sua própria vontade. Na verdade, sua vontade era, quase
sempre, a de desaparecer e se trancar num lugar escuro.
Ele sabia que, no fundo no fundo, mesmo sem a melhor das
intenções e sendo apenas uma fachada rústica e malfeita, suas ati-
tudes contribuíam de alguma maneira. E isso acontecia pela crença

141
de quem era tocado por aquelas falsidades que ele falava ou fazia.
Nunca soube se estava satisfeito com aquilo, mas não tinha muito
mais para oferecer e se resignava a tentar entender aonde deveria ir
e o motivo de estar naquele buraco tinha tudo a ver com isso.
Vou tentar terminar de contar isso tudo da forma, bem, mais
ou menos da maneira como tudo aconteceu. Mas é preciso ficar
claro que eu não estou falando de uma coisa que aconteceu de
verdade, e eu digo isso porque você deve ter se esquecido de novo.
Não estou dizendo que você não precisa gostar da história que eu
estou contando ou que ela não tenha nenhum valor, e na verdade
eu mesmo me questiono sobre o valor prático de cada letra que
aparece neste pedaço de papel – e que foi, segundos ou milênios
antes, pensada por mim (pedantismos à parte). Eu não sabia muito
bem o que aconteceria na história, mas agora que ela se adianta,
eu vou sabendo e, enquanto estou fazendo alguma coisa da minha
vida, eu sinto que os ventos me trazem, pedaço a pedaço, o que o
futuro reserva.
Digo que Felipe não conseguiu mais sair daquele quarto. É,
ele ficou ali olhando para o espelho e, depois, sei lá quanto tempo
depois, ele sentiu que precisava fazer algo do lado de fora e a porta
estava trancada. Ele sacudiu a maçaneta, bateu com o ombro na
porta (mas ele era um fraquinho, apesar de ter crescido um pou-
quinho não chegava a ser um Antônio da vida), ele fez de tudo,
mas não conseguiu abrir. Gritou, chutou, chorou, mas a porta não
abriu. Olhou para o quadro e lá estava uma respiração ofegante do
outro lado. — Me tira daqui! – gritou dentro do buraco.
Nada aconteceu de diferente, ele acabou cochilado e adorme-
ceu meio sentado e meio deitado na cama, suado e exausto. Teve
sonhos com os dias em que ficou preso dentro de um quarto escuro

142
tendo apenas a lanterna como sua companhia. Acordou chorando,
tentando abrir a porta de novo e ficou feliz ao saber que o inter-
ruptor de luz ainda funcionava. Dormiu de novo e acordou com
Tathiana aos pés da cama.

143
144
Capítulo VIII

145
146
Felipe olhou Tathiana ali, parada diante da cama. Ela estava
olhando em seus olhos, parecia séria e estranha. Felipe sorriu como
se tudo fosse uma brincadeira, estava feliz que Tathiana estivesse lá
para conversar com ele, mas ela não sorriu. Ele ficou apreensivo.
— Tathiana?
Mas ela não lhe respondeu e apenas observou profundamente
da mesma forma como já estava fazendo. A porta foi destrancada
pelo lado de fora e Pedro, impecável como sempre, entrou:
— Tsc, tsc... Felipe, Felipe... Sempre aprontando, né? O que
você fez pro meu pai te prender aqui no quarto?
— Nada... – disse Felipe, olhando para Pedro na porta. Tathia-
na ainda estava ali, parada, do outro lado da cama.
— Ele disse que eu podia deixar você sair de novo. E temos uma
tarefa, preciso da sua ajuda. O que você está olhando?
Felipe não conseguia parar de olhar Tathiana, porque se sentia
intrigado pela postura quase fria, mas ao mesmo tempo hipnótica,
da amiga. — Tathiana...
— Ela não está em casa, não sei onde está, acho que se escondeu.
Felipe arregalou os olhos, depois olhou de volta para Tathiana,
ali parada, e percebeu que havia algo de errado naquela visão – e
que Pedro não podia vê-la assim como ele a via. Levantou-se vaga-
rosamente e ajeitou o agasalho, ainda olhava para a moça.
Depois de levantado, passou pela porta, olhando para Pedro.
— Vamos sair de novo? Temos mais alguém para recolher? –
Perguntou Felipe depois de fechar a porta. Pelo canto do olho, ain-
da via Tathiana parada aos pés da cama.
— Não, na verdade meu pai disse que depois de todo esse tem-
po de trabalho já temos o bastante.
— É mesmo? – disse Felipe com estranheza.

147
O tempo havia passado... Mais de um ano havia se passado
desde que Felipe aprendeu a acender a lanterna e eles começaram
a procurar por todos os espíritos desgarrados que havia aqui e ali
espalhados pelo país. Tinham muita sorte em conseguir coletar to-
das as informações necessárias para saber exatamente aonde ir e o
que fazer, e a sensibilidade de Felipe para acolher todos aqueles que
precisavam de amparo em seus momentos finais era o que fazia o
plano do pai de Pedro funcionar. O plano começava com Maria.
Maria, posteriormente Felipe soube, tinha uma capacidade de
telepatia que a permitia encontrar, através de seus pensamentos e
sentimentos, onde aqueles espíritos estavam. Logo depois, ela pas-
sava essas informações e o pai de Pedro enviava-os para os lugares
para a coleta. Chegando lá, Antônio fazia com que os espíritos
se tornassem visíveis novamente e, caso eles estivessem violentos,
era preciso que Tathiana os cortasse ou que Pedro os enchesse de
correntes para que eles não conseguissem se mover. Espíritos não
são capazes de atacar ninguém, mas caso algum deles quisesse tirar
energias de Felipe, que era extremamente sensível, ele não conse-
guiria evitar e, por isso, Pedro e Tathiana eram tão eficazes. Por
último, Felipe conseguia se conectar emocionalmente com o espí-
rito – sempre em sofrimento, arrependimento, medo e angústia, e
então o ajudava, mostrando-lhe sua compreensão e amor para que
o acolhimento fosse feito. Acolhido o espírito, Felipe entregava a
lanterna para o pai de Pedro.
E tudo havia acontecido tão funcionalmente, tão maquinal-
mente, como um ótimo relógio no pulso de alguém que não traba-
lha numa mina empoeirada e insalubre, que o tempo havia passado
e Felipe não havia percebido que muita coisa já havia acontecido.
Perdera o cálculo de quantos espíritos ele podia haver resgatado.

148
— É mesmo... – disse Pedro reticentemente. Havia algo em seu
olhar que fazia Felipe ficar acordado. Havia algo em Felipe que
havia mudado muito nos últimos meses também.
— E o que vamos fazer, aonde vamos então?
— Vamos lá ao lugar onde meu pai está guardando todo o es-
toque. Eu sei que você nunca foi lá, não se preocupe... Nós vamos
fazer algo que meu pai pediu, ele está lá embaixo.
— Embaixo de onde?
— É no porão, seu tonto – Pedro riu. — Vamos.
E eles desceram por outra escada que havia depois de uma por-
ta por onde Felipe nunca havia entrado e que ficava no final do
corredor depois da outra escada que descia para a sala. No final
do corredor, Pedro tirou uma chave do bolso e destrancou a porta.
Abriu-a e depois disse:
— Antônio já está lá embaixo trabalhando, nós é que estamos
chegando atrasados. Quer dizer, eu já comecei também, você é que
estava lá no seu quarto de castigo. O que você fez pra ficar de cas-
tigo?
— Pra dizer a verdade eu não sei bem – disse Felipe, descen-
do as escadas e tentando imaginar que lugar era aquele. Era uma
espécie de caverna subterrânea, as paredes eram feitas de terra e
alguma camada de cimento para fortalecimento. Descendo, ficava
ainda mais frio e ele estava se encolhendo dentro de um agasalho
de lã – que não era suficiente.
— Não precisa ficar com frio, daqui a pouco você vai esquentar
– disse Pedro. — E você é um mentiroso, como sempre.
— Não estou mentindo... Ah, quer saber? Qual o seu proble-
ma?! – Felipe perdeu a paciência.
Pedro o olhou e Felipe viu que havia algo de diferente nele

149
também. Pedro ficou quieto e não respondeu nada; Felipe, por
outro lado, se sentiu estranho. Uma parte dele sentia que não de-
veria ter sido tão direto e que deveria ter agido como sempre agiu
com Pedro: com paciência e mais doses e litros de resignação. Por
outro lado, outra parte dele dizia que não havia nenhum mililitro
de paciência que pudesse ser nem pingado em sua língua – e que,
se houvesse, ele seria tão ralo que evaporaria antes mesmo que
chegasse a qualquer papilazinha gustativa. Mas tudo aquilo era
novo. Chegando ao solo, Felipe viu um espaço iluminado por al-
gumas lâmpadas fluorescentes no teto, que era um pouco baixo,
por sinal. Uma câmara feita de vidro que brilhava intensamente,
como se fosse uma lâmpada gigante, e dois ou três metros depois
estava Antônio cavando um buraco no qual ele mesmo já estava
até os joelhos dentro.
— Já vou poder parar? – Perguntou ele quando viu Pedro che-
gando com Felipe.
— Não – disse Pedro. — Felipe, sua pá está ali dentro, vou ficar
vendo vocês cavando.
— Como assim? – perguntou Antônio. — Que palhaçada é
essa?
— Pode continuar, e você... — Pedro empurrou Felipe para o
buraco. — Vai cavando logo.
Felipe olhou para Pedro e pensou em fazer alguma coisa; Antô-
nio colocou o pé no chão para sair do buraco quando Pedro tirou
um revólver do bolso da calça e o engatilhou. — Andem logo que
eu não estou com vontade de ficar aqui mais do que o suficiente.
Antônio olhou para Felipe e acendeu um cigarro, estava visivel-
mente tenso. Felipe desejou poder voltar no tempo e ter sido mais
paciente com Pedro, mas, ao mesmo tempo, achou que não fosse

150
mais importar e que tudo já havia sido decidido bem antes daquela
malcriação.
Ao pegar a pá do chão e se erguer, foi vendo os pés e as pernas
e depois todo o corpo de Tathiana ali perto dele, ela estava impas-
sível. Felipe olhou para Antônio e ficou pensando no que fazer.
Ao mesmo tempo, de rabo de olho, viu que Pedro se encaminhava
para uma cadeira a fim de se sentar e vigiar os dois trabalhando.
Felipe coçou a orelha e sentiu uma aflição gigante. O cabo da pá
era grosseiro e áspero.
— Anda logo, Felipe! – E Pedro atirou no chão, bem perto dele.
Felipe empurrou a pá, quase que no susto, dentro do chão. Ti-
rou a terra e foi colocando para o lado, acima do nível de onde
estava. Tathiana estava de pé, perto do seu ombro, parada. Felipe
olhava para Antônio na esperança de que ele pudesse olhar em seus
olhos e de que pudesse se comunicar com ele, mas ele não o fazia:
continuava puxando terra e suando enquanto fumava mais aquele
cigarro que havia colocado na boca. De repente, Antônio gritou:
— O que foi?! Diabo!
— Calem-se, vocês devem trabalhar em silêncio! – disse Pedro
lá da cadeira.
Antônio olhou para Pedro e depois para Felipe. Felipe notou
que, em seu olhar, havia algo de angústia e de incerteza que faziam
com que Antônio se tornasse, naquele momento, muito parecido
com ele – algo que jamais ele havia sido. Aquilo o aliviou. Infeliz-
mente, foram segundos de alívio porque Felipe percebeu que, se
Antônio estava nervoso como ele, então a situação era crítica.
E Felipe cavou e cavou como se não houvesse nada em que se
pensar; para ser sincero, Felipe pensava em fugir desesperadamen-
te. Em nenhuma das vezes que Tathiana mencionou a fuga ele foi

151
atencioso ou pelo menos escutou com clareza, e naquele instante,
tudo que queria era voltar no tempo e poder ter conversado sobre
aquilo com ela e ter acertado alguma coisa. Onde estaria Tathiana?
Queria poder voltar no tempo e se lamentava tanto e com tanta dor
que sentiu vontade de chorar, e chorou. Ia tirando terra, descendo
pelo buraco e chorando. Quando já estavam completamente den-
tro do buraco, Antônio gritou:
— Já dá pra enterrar uma pessoa aqui, o que você quer mais?
— Continuem, é pra ser um fosso bem profundo. – Disse Pedro.
E eles continuaram lá, e isso foi despertando em Felipe toda a
memória de que precisava. Lembrou-se muito bem, muitos anos
depois, de que caiu naquele mesmo fosso e que isso havia sido tra-
gicômico. Riu-se:
— Cavei minha própria cova!
Lá dentro do fosso, iluminavam-se em sua mente reminiscên-
cias daquele dia. Cavando com Antônio, descendo, cansado e
aflito, terra adentro. Jogavam-lhes comida, água, e eles dormiam
imundos no fosso. Duas semanas se passaram – semanas de dor,
dejetos, desjejuns e desgostos, até que alguém disse: “Está pronto!”
E parecia ser tarde demais para que os dois tentassem fazer
qualquer coisa. O buraco era tão fundo que Antônio e Felipe
viam a luz da lâmpada muito distante de lá de dentro. Pedro es-
tava à beira do fosso apontando o revólver para os dois: um mo-
mento era Felipe, outro era Antônio. Lembrou-se que Antônio
lhe disse algumas coisas, mas naquele momento nada era claro
ou importante.
E Felipe não viu quando tudo aconteceu, mas escutou em sua
mente uma voz suave e límpida que lhe dizia para se acalmar: era
a voz de Maria. Maria dizia dentro de sua mente muitas coisas das

152
quais ele mal se lembrava depois de todos aqueles anos. Apesar
de querer se agarrar ao passado e se lembrar de cada palavra dita,
isso era impossível. Felipe se lembrava de que ele e Antônio olha-
vam para cima, tentando entender o que estava acontecendo, mas
que não havia muito que ser feito. Felipe lembrava-se de que tinha
explicado para Antônio que Maria havia descido do quarto e que
iria salvá-los.
E, enquanto esperavam pela profecia se cumprir, eles ouviram
barulhos de tiro e de gritos. Alguém correu, algo se quebrou, e
Felipe e Antônio viram um enorme clarão invadindo o teto do lu-
gar; espíritos emergiam e se espalhavam por todos os cantos. Um
homem gritava, Maria gritava.
Felipe se lembrou de que tudo ficou quieto e que, uma hora,
ele e Antônio decidiram que tinham que sair de lá. A princípio isso
era uma charada, mas, ali no fosso, ele também se surpreendeu ao
lembrar-se do que fizeram para subir.
Lembrou-se de que pensaram em usar as pás que já estavam lá,
exaustas assim como eles também estavam, e fizeram sulcos nas pa-
redes e foram subindo por eles. Os sulcos não eram muito grandes
e deu muito trabalho pra fazê-los: Felipe e Antônio acabavam cain-
do e tendo que voltar a tentar e a progredir na subida, até que eles
finalmente conseguiram sair de lá. Quando chegaram ao porão,
não havia nada mais. A grande lâmpada havia se quebrado. Pedro
não estava ali, nem o pai dele e muito menos Maria.
Felipe lembrou-se disso e se levantou do lodo – logo estava ta-
teando as paredes para encontrar os antigos sulcos que haviam fica-
do ali. Quando os encontrou, chorou de alívio e, com esforço, foi
subindo por eles. Sabia que eles não estavam em perfeitas condições,
mas também sabia que era possível e assim o fez. Pensou com triste-

153
za que, se uma das vítimas do fosso soubesse desses sulcos, poderia
ter se livrado da morte. Assim que conseguiu chegar ao chão sólido,
acima do nível do fosso, ou seja, no porão – no mesmo porão, no
mesmo casarão, no mesmo lugar que havia estado quando cresceu,
e de onde aquelas lembranças haviam sido evocadas – ele se sentiu
exausto e se deitou bem à margem do buraco.
Tateou o chão sentindo sua firmeza e estava feliz. O cheiro não
era tão ruim quanto lá embaixo, embora ainda estivesse dentro
de suas células. Estava escuro, mas seus olhos estavam um pouco
acostumados com isso e ele conseguiu enxergar que tudo ainda es-
tava como antes. Ali, deitado, ficou esperando e pensando no que
iria fazer quando encontrasse quem ele foi procurar: Pedro.
Sentia suas mãos doendo, as unhas cheias de terra, mas esta-
va feliz e aliviado. Foi assim que havia se sentido aquele dia com
Antônio, dando-lhe a mão para sair do fosso e caindo com ele no
chão. Riam com tristeza e olhavam um para o outro com exaustão.
Olhou ao redor, assim como ele o fez quando saiu do fosso pela
primeira vez, e não viu ninguém. Ao saírem do porão, descobri-
riam que toda a organização havia encerrado as atividades e que o
homem havia desaparecido, assim como Pedro e Maria. Estavam
sozinhos e acabaram indo embora, cada um para um lado. Felipe
retornou para a instituição religiosa para ter abrigo e condições de
terminar sua educação formal e acabou se tornando um religioso.
Nunca mais soube de Antônio, embora às vezes pensasse nele com
intensidade. Tathiana nunca mais foi vista. Embora Felipe tivesse
certeza de que estivesse morta, ele nunca mais viu seu espírito.
Diante do negrume do fosso, Felipe nada tinha a não ser seu
passado e suas perspectivas. Suspirava com calma e com veemên-
cia, sentindo a situação palpitando nas pontas de seus dedos. Seu

154
momento de confronto chegaria a qualquer momento e seria quan-
do Pedro entrasse pela porta que dava acesso ao porão.
Lembrou-se também dos últimos dias antes de ir para o casarão
procurar Pedro, das circunstâncias que o tinham levado até ali e
as conclusões que tinha tirado. Nos anos em que ficou isolado do
mundo, Felipe ampliou sua necessidade de fuga. Com a maturida-
de, veio-lhe, cada vez mais pungentemente, a certeza de que não
pertencia à turba, não era parte da “gente”, não era como os ou-
tros. Sabia que havia dentro dele uma pobreza infinita. Ele queria
se elevar do pensamento comum, queria viver conforme os princí-
pios da pacífica presunção de que há uma superioridade a que o
ser humano pode chegar. Para ele, já sem qualquer ingenuidade, o
desejo de um mundo melhor dependia do sentimento de pena e de
compaixão que ele naturalmente sentia e que se expandia sem difi-
culdade. Ao mesmo tempo, essa condescendência pulsava a partir
de sua sensação de superioridade: ele se sentia melhor que o outro
porque tinha algo a oferecer que o outro não tinha. Penitenciava-se
profundamente por se sentir superior, mas só podia sentir pena se
fosse melhor, e só podia fazê-lo porque estava mentalmente evoluí-
do o bastante para se diferenciar daqueles que ainda não haviam
alcançado a iluminação. Sabia que não podia dar algo que não
tivesse, mas, de alguma forma, construiu em si a hipocrisia neces-
sária para doar mentiras, porque sabia que o mundo precisava de
doação de compreensão, fé, amor e compaixão, mesmo que falsas.
A porta se abriu, uma luz se acendeu. Pedro estava de pé à
porta e, ao olhar para Felipe, espantou-se ao ponto de murmurar
um som oco. Pedro estava mais alto, mais magro, o cabelo impe-
cável de que Felipe se lembrava era praticamente a mesma coisa,
permanecia imutável. Felipe, porém, lembrou-se de que aquele era

155
Pedro por causa dos olhos, que eram da mesma cor que os cabelos,
e pela voz:
— Felipe, que saudade de você! – ele disse sorrindo um sorriso
estranho. Foi se aproximando de Felipe andando lentamente.
— Eu também acho que sinto saudade de você, Pedro – disse
ele. — Por que você me deixou aqui dentro do buraco, então? – Fe-
lipe foi se levantando devagar. Se sentia fraco e um pouco trêmulo,
uma dor no estômago o incomodava, e ele não sabia se era nervo-
sismo ou se estava doente.
— Eu fiquei com medo de você me deixar novamente – disse
ele se aproximando um pouco do buraco e verificando, tentando
entender como Felipe saiu. — Faz muitos anos que não nos vemos,
que não conversamos... Você me deixou aqui, pra onde foi?
— Eu e Antônio conseguimos sair do buraco e seguimos nossos
caminhos. Não sei onde Antônio foi, mas eu voltei para os estudos
religiosos e me formei... Eu vim aqui porque eu estava acompa-
nhando o caso de um assassino desconhecido que estava matando
pessoas durante mais de uma década.
— Você fala muito mais do que antes, estou até impressiona-
do...
— Sim, acho que consigo organizar meus pensamentos melhor
agora que cresci.
— Você cresceu muito. O que acha de mim? – E Pedro sorriu
de forma insegura.
— Você cresceu e eu nem te reconheci quando te vi entrando
pela porta.
— Por que você sabia que era eu quem estava aqui? Eu fiz o
possível para trazer todos os corpos pra cá sem ser notado... E... Eu
pensei muito bem em tudo! – Pedro ia dizendo tudo aquilo de for-

156
ma empolgada, quase não se aguentando parado. Ele gesticulava
as mãos freneticamente, muito excitado e com olhos arregalados.
— Eu nunca tive certeza até cair no fosso, eu não sabia. Eu nem
sabia que você estaria aqui, só pensei em voltar ao casarão e ver
se eu descobria algo. Acabei descobrindo tudo. – Disse Felipe de
forma contida.
— E o que você vai fazer agora? – Disse Pedro com um pouco
de ansiedade, com os olhos arregalados e vidrados.
— Eu não sei – e Felipe pensou no que iria dizer, sabia que
aquela era uma conversa decisiva. Pedro parecia drogado, pare-
cia fora do normal. Mesmo desejando ficar em silêncio e deixar a
situação acontecer da forma que tivesse que acontecer, sem o seu
envolvimento, ele se esforçou para dizer algumas palavras mais,
ponderando se deveria mesmo ou não dizê-las. – Eu não sei o que
fazer, nunca soube. Queria saber quem estava por trás das mortes,
mas eu nunca pensei direito no que faria quando descobrisse. Vim
pra cá e acabei preso. – Felipe falava e notava um cansaço profun-
do, precisava descansar. A conversa com Pedro estava deixando-o
um pouco angustiado, mas não desejava demonstrar nada disso.
Quem sabe fosse o momento do juízo final, mesmo que fosse hor-
rível ele era, afinal, inevitável. Seu estômago ficou frio de repente e
ele sentiu um enjoo. O estômago estava se revirando.
— Eu nunca quis te matar, mesmo quando você tinha termina-
do de cavar o fosso... Mas não deu certo... Não deu... Deu tudo
errado, pra falar a verdade.
— É, a Maria interviu. – Disse Felipe com seriedade, embora
cheio de insegurança. Aquele dia foi o último em que ouviu a voz
da irmã.
— Sim... – disse Pedro, suspirando. — Mas tudo bem, eu acabei

157
entendendo que era preciso que aquilo acontecesse pra que eu pudes-
se seguir o caminho do meu pai.
— Hmm... – disse Felipe, esperando que Pedro continuasse a
falar. E foi isso mesmo que aconteceu. Depois de um tempo em
silêncio, esperando, Felipe continuou a ouvir Pedro.
— Meu pai quis encerrar a operação depois que eu matei a
Maria, porque não havia outra forma com que pudéssemos saber
onde estavam os espíritos perdidos. Aí eu tive a ideia de matar aqui
mesmo, assim eu não precisaria procurá-los nunca mais!
Felipe ouvia o que Pedro falava como se tudo fosse uma alu-
cinação. Ele sabia que não era, mas estava fraco, se sentia aéreo e
lento, muito debilitado. Deixou as palavras saírem pela sua boca
sem pensar muito no que dizia. Sentia-se mal.
— E onde está seu pai? – Disse meio que debilmente.
— Ele está dormindo no quarto lá de cima, o quarto dele era
vizinho do seu... Eu deixo ele quieto lá. Continuo conduzindo as
experiências dele, em breve eu conseguirei ter energia suficiente
para ligar a máquina que ele criou.
Felipe olhou para os lados e viu a lâmpada que havia sido que-
brada há mais de uma década. Ela continuava a mesma, quebrada,
no mesmo lugar onde havia estado durante essa última década. —
Essa máquina? – A máquina estava completamente empoeirada e
fora de uso.
— Sim! – disse Pedro.
Felipe percebeu que Pedro, mais do que quando o conheceu
quando criança, estava fora de si. Ou talvez ele sempre fosse louco,
mas Felipe ignorou isso completamente quando eles viveram jun-
tos. O jeito alucinado com que Pedro falava, o fato de que nada
naquele ambiente parecia funcionar há anos, tudo isso era bastante

158
perturbador. Finalmente, conseguiu tirar algumas palavras de den-
tro do peito.
— O que você quer de mim, Pedro?
— Você não quer saber da máquina? Em breve ela vai funcionar!
— Não, eu quero saber o que você quer de mim. Não me inte-
ressam os experimentos de seu pai ou seus, não quero me envolver
mais nisso. – Felipe estava sem conseguir se aguentar em pé, mas
preferiu esperar o desfecho da conversa para decidir o que fazer
com o corpo.
— Você não quer saber por que você estava na casa?
— Não, eu não quero.
— Você capturava os espíritos! E você fazia isso porque tinha
um coração puro que atraía os que estavam sedentos por paz e
compaixão. – Pedro falava de forma muito excitada, com os olhos
arregalados, vitrificados. – Você aprendeu a perdoar, aprendeu a
amar incondicionalmente, e por isso você conseguia acender aque-
la lanterna. Você tem o dom do perdão.
Felipe sentiu agonia e dor ao escutar aquilo de Pedro. Queria
que fosse verdade, que fosse real, que fosse altruísta, mas se pôde
fazer isso foi porque fora obrigado – para sobreviver – e hoje tudo
o que sabia fazer era para sua própria elevação. Nada era espon-
tâneo ou livre de interesses. Tinha certa repulsa de si mesmo, mas
não sabia mais viver de outra forma que não fosse através da ex-
pectativa de atender à demanda do que era o certo e o bom, para
seu próprio proveito. Na roda viva do vício, ele amava e perdoava
as pessoas para se elevar e se elevava porque amava e perdoava. Fi-
nalmente, após deliberar por alguns momentos, quase que sentindo
a ansiedade de Pedro o invadindo pelo olhar, perdeu a paciência de
tanto cansaço e explodiu.

159
— Pedro, eu não quero saber... Eu não me importo, eu não
estou mais vivendo aqui, não tenho mais 10, 12, 13 ou 14 anos...
Não estou com uma arma apontada para a cabeça, tenho comigo
apenas um livro de orações e sou isto que você está vendo. Não
quero saber dos planos mirabolantes que vocês tinham.
— Meu pai queria construir, com a máquina, um mundo espi-
ritual paralelo entre o céu e o inferno, algo que ele pudesse ter só
pra ele. Se é que Deus tem poder e o Diabo também, ele tinha uma
teoria... De que o poder é por causa das almas, e ele também queria
ter um mundo só dele, queria ter muito poder! Ele queria construir
uma espécie de castelo, você entende? Não é incrível? Ele era um
gênio! – E os olhos pareciam ainda mais arregalados. Felipe olha-
va-o com certa incredulidade. Finalmente respondeu:
— E isso não vai acontecer porque essa máquina está quebra-
da... Ela se quebrou no dia em que você atirou no vidro, no dia em
que Maria iria nos resgatar aqui do buraco. Pensei que pudesse me
livrar das armadilhas que você e seu pai criavam, mas o desejo que
vocês dois tinham de controlar sempre foi maior. Vocês controla-
ram minha mente de uma maneira tão sórdida que hoje vivo num
beco confuso... E o que você quer de mim? Só quero ir embora
daqui, estou passando mal, não estou me aguentando em pé.
— Nossa, Felipe... – Pedro se aproximou dele. — Não precisa-
va falar assim, você está me magoando.
— Pudera eu voltar no tempo e te magoar todas as vezes que
eu pude e não fiz por educação. Não posso retribuir toda a dor que
você me causou.
— Eu sei... – Pedro sorriu como canto da boca, sadicamente. —
É, eu sei... Eu sei que você não pode fazer isso, mas... Eu quero que
você me perdoe por tudo.

160
— Eu sabia que você queria algo de mim.
— O que eu quero é que você me desculpe, me entenda, me con-
forte... Sabendo que não vou parar de fazer o que estou fazendo,
que não vou parar de matar.
— Pedro. – Felipe colocou a mão no rosto de Pedro, que agora
já estava bem perto dele. Estava quase cedendo ao cansaço e à dor
de estômago e se ajoelhando, mas seguia firme. — Por que isso?
— Porque eu quero entender de onde vem isso que você sente,
essa bondade e esse perdão que você pode me dar. Você sempre foi
tão bom, eu quero isso, me entenda, me apoie, me perdoe! Quero
ver esse milagre do perdão que só você sabe operar. – Disse Pedro
quase que gritando.
— Isso é uma mentira, Pedro... – Disse Felipe absolutamente
calmo. – Não posso te dar nada do que você está me pedindo por-
que eu não tenho... O que eu tenho é uma ilusão, o perdão é um
sentimento que talvez você possa receber e sentir sem que seja de
fato produzido por mim, sem que isso seja sincero. Como posso te
perdoar com o coração puro e sincero se eu estou fazendo isso para
te mostrar que sou melhor que todos, inclusive melhor do que eu
acho que eu sou? Acendo a chama da compaixão porque eu não
vou me deixar abater diante do mundo, porque sou mais forte e
porque sou melhor. E sou melhor que você.
— Eu não estou entendendo, Felipe... – Disse Pedro, confuso,
enquanto olhava inquisitivamente para dentro dos olhos de Felipe,
procurando explicações.
— O sentimento que eu tenho por você é tão pequeno e se
perde com muita facilidade diante da imensidão que é meu pró-
prio ego. Sou capaz de perdoar qualquer dor que você me causar.
Minha piedade e minha compaixão por você se resumem ao fato

161
de que eu te vejo como uma lagarta, uma formiga, um verme: você
é um coitado. Mesmo que me mate, mesmo que me estraçalhe,
estarei satisfeito em minha superioridade e compaixão por você.
Está perdoado em sua insignificância, em seu desespero, em sua
loucura, em sua incapacidade de ser qualquer outra coisa – Felipe
riu. — Está perdoado de tudo o que fez ou fará. Faça o que quiser,
ou o que fizer, estarei sempre nas sombras, pronto para mostrar
o que você nunca será e onde seu pensamento jamais chegará: a
superioridade da consciência, a verdade absoluta do ser, a capaci-
dade máxima de abstração e de ilusão. A construção da maior das
relatividades, de onde me situo: estou acima de todos, porque os
situo como vermes insignificantes, ridículos e mesquinhos. Perdoo,
enfim, por toda a ignorância do que são e da impossibilidade de se-
rem qualquer outra coisa. Eu te perdoo, vá em paz ser o ser abjeto
que você é capaz de ser.
Pedro olhou boquiaberto para Felipe. Tirou uma pistola do bol-
so de trás e atirou no peito de seu colega de infância. Felipe olhou
para Pedro com prazer nos olhos, prazer nos lábios. Fechou os
olhos realizando-se ardentemente no maior ato que pôde realizar
na vida inteira. Regozijava-se por dentro, sentindo-se iluminado,
completo e sublime. Era o momento de sua glória e realização pes-
soal. Pedro mal conseguia raciocinar. Com tristeza, simplesmente
sussurrou ao léu, enquanto sentia-se desmoronar:
— Você me enganou.

162
163
164
Diagramado em InDesign

Fontes utilizadas
Sabon
High Tower Text

É permitida a reprodução parcial desta obra, desde que citada a


fonte e que não seja para qualquer fim comercial.

165

Você também pode gostar