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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS

INTRODUÇÃO AO ESTUDOS LITERÁRIOS I

LEANDRO NAOKI MATSUMOTO

N° USP: 11772889 Frequência: 90%

O FIM DO ANO: IRREMEDIÁVEL E ETERNO

Análise do poema “Passagem do Ano” de Carlos Drummond de Andrade

São Paulo

Agosto de 2020
Carlos Drummond de Andrade ao escrever os poemas de “A Rosa do Povo” encontrava-se
em meio à Segunda Guerra Mundial entre 1943 e 1945. Seus poemas em geral possuíam um
caráter pertinente ao da época, seja politicamente ou emotivamente, e a 8ª poesia em seu
livro chamada “Passagem do Ano” não é menos diferente. Incluída ainda no início do
conjunto de obras, o poema trata-se de um eu lírico que aparenta aconselhar e consolar um
interlocutor sobre um metafórico ano que acaba e começa-se um novo, evidenciado pelo uso
de verbos e pronomes na segunda pessoa do singular. Importante notar também que tal
poema encontra-se anterior a outro similarmente nomeado “Passagem da Noite” com uma
temática parecida sobre algo impactante que também uma hora acaba e seu fim traz alívio
ao ser humano.

Primeiramente, o poema tratado é substantivamente épico, segundo os padrões de Anatol


Rosenfeld, com o gênero lírico influenciando de certo modo sua construção. Como já dito,
o eu lírico direciona seu discurso a um interlocutor, uma plateia na qual imprime as suas
ideias e conhecimentos, equiparando-se até certa medida a um sábio que transmite
ensinamentos a alguém perplexo e com medo do fim do ano mencionado. Há um passagem
do tempo sutil durante a narrativa: a chegada da manhã do novo ano, existe uma clara
delimitação entre o antes e o depois do dado evento, separado por meio de uma estrofe com
somente um verso no qual o narrador anuncia fortemente: “Surge a manhã de um novo ano.”,
dividindo as quatro estrofes que o precedem da última, depois do clímax, quando a tão
temida e inevitável passagem do ano finalmente ocorre. Ademais, ele parece conhecer o
passado de seu interlocutor (“Seu pai morreu, seu avô também”) e acaba traçando o futuro,
o destino da personagem ao compará-la a seus antepassados.

Além disso, Anatol Rosenfeld escreve em “A Teoria dos Gêneros”: “Este [narrador]
geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres.”. Com
isso em mente, no poema percebe-se que o eu lírico encontra-se sereno, sem medo da
passagem do ano enquanto que descreve o medo do interlocutor, sua gula pela vida e outras
emoções. Ele apresenta-se objetivo perante o objeto discutido pois tem uma clareza sobre o
que fala, já conhece muito bem o fenômeno em questão, reconhece sua inevitabilidade e
também que há um depois dele.

No entanto, o poema traz consigo alguns traços líricos, como a pouca caracterização dos
integrantes desse, a grande forma conotativa que circunda ele e a sensação de eternidade que
o poema carrega. Não há uma clara descrição ou formato a quem é endereçado o conselho
dado, esta figura não possui fala nem tem algum traço físico mencionado, é apenas um
recipiente com o intuito de receber as informações passadas ao narrador; tudo que se sabe é
o seu amedrontamento acerca da passagem do ano. Também a pequena narrativa contada
constrói-se juntamente a uma alegoria ao fim do ciclo da vida de alguém e o início de outro,
figura que será discutida mais à frente. Por fim, o uso de verbos no presente do indicativo
indicam uma permeabilidade no tempo da história contada. Trechos como: “Fica sempre
uma franja de vida / onde se sentam dois homens.” e “A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-
reptícia.”, juntamente com a natureza cíclica do ano (e seu sentido figurado na obra) moldam
um sentimento perpétuo ao poema.

Agora, partindo para as partes técnicas, o poema segue uma forma bastante livre, com seis
estrofes: duas décimas, duas oitavas, uma quintilha e outra com apenas um verso. Ademais,
os versos não seguem um padrão em sua metrificação, variam de hexassílabos até um que
possui 25 sílabas poéticas. Além disso, o poema apresenta em sua grande maioria rimas
brancas, não dando muita ênfase à musicalidade e ritmo do poema, algo mais próximo ao
gênero épico. A partir disso, vamos a uma análise mais minuciosa de cada estrofe.

Os dois primeiros versos da primeira estrofe já revelam o tema do poema e também uma
mensagem de apaziguamento quando o eu lírico afirma que: “O último dia do ano / não é o
último dia do tempo.”, afinal, após o último dia do ano há outro ano que o segue. Assim, ele
assegura o interlocutor das incertezas que ele poderia ter por meio de um paralelismo entre
os dois versos. Ao fazer isso, o sujeito poético, apesar de dizer que um não é o outro, acaba
aproximando ambos pela estrutura sintática semelhante o qual cria discrepâncias entre o
conteúdo e a forma, causando um desconforto sobre o que realmente é dito. Em seguida, o
eu lírico tenta nos consolar, ao dizer que haverá outros dias, ainda sentirá amor, terá outras
celebrações e tenta ser positivo sobre algo melancólico nos olhos do interlocutor.

Algo para notar é o constante uso de gradações crescentes na construção da obra,


relacionando-se fortemente à ideia central da passagem do ano e seu fim, o ápice. A primeira
encontra-se logo em: “farás viagens e tantas celebrações / de aniversário, formatura,
promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,”. Aqui, como exemplo, há uma
enumeração das comemorações que serão vividas após o último dia do ano, culminando
finalmente na morte, maior do que a própria glória (segundo a estrutura do período),
acompanhada de sinfonia e coral. A morte é um momento no qual esse tempo dito acaba,
correspondendo à afirmação nos primeiros versos. No futuro haverá tantas celebrações que
não se ouvirá o clamor, o uivo de um suposto lobo na solidão, a lembrança de que outro fim
de ano está chegando, por mais lento que seja, pois o lobo está solitário, não existe um outro
para acompanhá-lo em seu uivo de aviso. A repetição sons fricativos (/v/ e /f/) salientam
ainda mais o argumento pois os barulhos e uivos presentes acontecem até nas palavras do
poema.

Na segunda estrofe encontra-se novamente um paralelismo com os primeiros versos da


primeira estrofe: “O último dia do tempo / não é o último dia de tudo”. Desse modo, o eu
lírico traz essa mesma ideia a uma esfera maior. Mesmo que em algum momento ocorra o
fim do tempo, a morte do indivíduo, não significa o fim de tudo dela. Ainda há coisas que
permanecem, uma franja de vida, porque sempre há duas contrapartes que coexistem nesse
“tudo”. Elas, apesar de próximas, não são completamente dependentes uma da outra, sendo
separadas literalmente pelo ritmo de seus versos, por exemplo, o verso: “u/ma/ mu/lher/ e/
seu/ pé,” possui o ritmo peón quarto e anapesto. Assim, mesmo que uma delas se esgote,
ainda há a outra para continuar seu legado, podendo até mesmo Deus estar sujeito a esse
efeito de contrapartes e franjas de vida.

Já a terceira estrofe serve como um aviso em contraste às duas primeiras, uma reprimenda
para lembrar de que por mais que o fim do tempo não seja o fim de tudo, ainda és pequeno,
esse gozo que aproveita não é eterno. O sujeito poético argumenta sobre a mortalidade do
interlocutor, trazendo o assunto próximo a ele ao comentar sobre seus antepassados e como
eles morreram, assim como o interlocutor irá a algum momento. Essa recordação: “Teu pai
morreu, teu avô também.” torna-se ainda mais forte e impactante pela sua brevidade e pela
presença de vários sons oclusivos (/t/ e /p/) os quais têm o intuito de martelar a ideia de que
ninguém é imortal e tal processo já está acontecendo. Por fim, o eu lírico ressalta a
inevitabilidade e a impossibilidade de impedir o fim, a chegada da manhã, o amanhã depois
do último dia do ano.

Por meio de anáforas, a quarta estrofe procura meios de distrair-se da chegada dessa manhã
profetizada pelo último verso da estrofe anterior. O uso dessa figura de linguagem reflete o
uso repetitivo e cansativo de recursos os quais não resolvem a preocupação com essa vinda.
Há aqui também outra gradação, esta acontece de um meio físico para esquecer o fim do ano
ao meio intelectual, utilizando a certo ponto a poesia como uma fuga dessa realidade
eminente.
Então, finalmente chega essa tão esperada, seja por bem ou por mal, manhã de um novo
ano, sem nenhum anúncio prévio dentro do poema, repentinamente. Ela vem sozinha, em
uma estrofe exclusiva a ela, é a única marcação de tempo precisa no poema. Esse verso
funciona como o cume do poema pois até agora o eu lírico vinha criando expectativas e uma
gradação ao longo do poema para esse momento, a obra como um todo foi construída em
volta do surgimento dessa manhã. A forma também foi formada visando a alegoria do fim,
pois a grande presença de peón quartos em seu ritmo esboçam exatamente uma série de
sílabas breves seguida de uma sílaba longa, sendo essa longa o fim, do ano, do tempo ou de
tudo. E enfim, há um depois do fim de ano.

A última estrofe caracteriza essa manhã de maneira positiva, isto é, até que a boca começa
a sujar a calçada. O novo ano é limpo, ordenado e funcional, o problema encontra-se no
indivíduo e em sua boca, uma metonímia à gula, quando decide lambuzar-se de vida. Essa
boca que até o momento estava aflita e com medo agora celebra a passagem do ano, não
ouve mais os uivos e os clamores dos lobos e aproveita a vida, nessa metáfora, alimentando-
se dela. Aqui vê-se mais outra gradação, a gula do indivíduo vai cada vez aumentando, até
que a vida escorra da boca e lambuze as mãos e o chão. Como último aviso, o eu lírico
descreve a vida como gorda; ela também é sua contraparte: mortal; e misteriosa.

Logo, a passagem do ano de um dos ciclos da vida que se encerra e a manhã do seguinte
representa o início de um novo em folha. O interlocutor tem medo dessa mudança e desse
fim, apesar de inevitável, por achar desesperadamente que o último dia do ano implica o seu
último dia de tudo. O papel do eu lírico é então de consolá-lo, apontando para o fato de que
está incorreto o pensamento do indivíduo com quem conversa: ainda haverá várias coisas
boas após o fim do ano, mas ainda é necessário ter simplicidade pois independente de tudo,
ainda é mortal. Entretanto, o interlocutor ignora esse último conselho e com o passar da
manhã do novo ano, entope-se com a vida, ostentando o mesmo aspecto que deveria ser
humilde. Esquecendo-se do momento de dificuldade que acabara de passar, ele assim torna-
se fadado a repeti-lo no fim do ano que acabou de começar, do ciclo no qual está e
inevitavelmente acabará uma hora.
Bibliografia
ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.

ROSENFELD, Anatol. A Teoria dos Gêneros. In: ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico.
São Paulo: Perspectiva, 2010.

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