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E o tratado sobre a

paz da alma

| Edições Louva-a-Deus |
Dom Lorenzo Scúpoli

O Combate Espiritual
E o tratado sobre a paz da alma

“Para o combate é preciso um destemido chefe que dirija a batalha e


fortaleça o ânimo dos soldados, que lutam com maior ardor, quando
guiados por um general invencível”.

Este livro, então, é dedicado a você, caro leitor, que foi chamado a fazer
parte deste grande exército, e inserir-se nesta luta.

Você, soldado de Cristo, que encontra-se em meio a uma grande batalha e


precisa reconhecer a voz do general e de todos os tipos de armas possíveis a
serem utilizadas neste combate. Que estas páginas possam servir em seu
adestramento, tornando-o mais vencedor em Cristo Jesus Nosso Senhor.

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Patrick Veloso Sabino

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S44c
Scúpoli, Lorenzo, 1530-1640
O combate espiritual / Lourenço Scúpoli.
- - Rio de Janeiro: Edições Louva a Deus, 1996
152p.
Tradução de The Espiritual Combat
1. Bem e mal. 2.Guerra espiritual. I.Titulo.
ISBN: 85-337-130-6

96-0189
CDY 233.7
CDU 234.9
Índice
Apresentação
Preparando-se para a Batalha
As quatro armas do adestramento individual

Primeira arma
Desconfiança de nós mesmos
Da confiança em Deus, a mais eficiente de todas as armas
Ainda o cuidado no uso das armas da desconfiança de si mesmo e da
confiança em Deus
Efeitos da queda dos que confundiram a sua presunção com a desconfiança
em si mesmos
Do adestramento no manejo das armas da desconfiança de nós mesmos e da
confiança em Deus

Terceira arma
Do exercício da inteligência e da vontade
Aperfeiçoamento do exercício da inteligência: o discernimento
De outra precaução que a inteligência deve tomar para ter discernimento
claro
Do exercício da vontade. Aqui o combatente se adestra dentro do combate.
Finalidade deste livro
Do exercício da vontade. Algumas considerações sobre o capítulo anterior

Do combate
I - A luta das vontades diversas que existem no homem
II - Do modo de combater contra os apetites dos sentidos. Atos que a
vontade deve fazer para adquirir os hábitos da virtude
III - Momento de perigo: o que devemos fazer quando a vontade superior
parece vencida e completamente sufocada pelos inimigos

Do modo de combater
I - Alguns conselhos a respeito do modo de combater e, especialmente,
contra o que, e com que
II - O soldado se deve apresentar ao campo de luta logo nas primeiras horas
do dia
III - Da ordem que se deve guardar no combate às nossas paixões viciosas
IV - Como resistir à pressão das paixões ou dos impulsos
V - Contra o vício da carne
VI - A negligência

Fortalecimento espiritual
I - A razão da existência dos sentidos
II - Como regrarmos os nossos sentidos, fazendo uso das coisas do mundo
III - O terceiro exercício1
Dos males da loquacidade e do modo de pôr freio à língua

Como fugir das inquietações do coração

Do que devemos fazer quando somos feridos


Das manhas do demônio
I - Contra os virtuosos e contra os pecadores
II - Contra os pecadores
III - Contra os que se querem livrar do pecado e não conseguem
IV - Na estrada da perfeição
V - Quando tem em mira que deixemos o caminho das virtudes
VI - Quando a virtude adquirida pode ser ocasião de ruína

Das virtudes
I - Como vencer as paixões viciosas e adquirir novas virtudes
II - Descrição no uso das virtudes e busca de uma só de cada vez
III - Dos meios de progredir numa virtude e de fortalecê-la
IV - Na escalada das virtudes, parar é o mesmo que voltar atrás

1
Texto adaptado à atenção dos leitores leigos e mais jovens. Para maior fluidez do texto, preponderância
da sonoridade sobre a rigidez gráfica, no uso alternado da 2º e 3º pessoa, no final do capítulo.
V - Não se deve fugir das ocasiões de adquirir as virtudes. Agarre a
oportunidade. O tempo é: agora.
VI - Do amor às ocasiões de exercitar a virtude
VII - Como ocasiões diversas nos servirão para exercitarmos uma mesma
virtude
VIII - Como cada virtude tem seu tempo, e dos sinais pelos quais
conheceremos nossa virtude

Da paciência

Da tentação de indiscrição

Do Juízo Temerário

Da oração2
I - A Quarta arma
II - Da oração mental
III - Do modo de orar por meio da meditação
IV - De outra maneira de orar meditando
V - Da oração por meio da meditação sobre a Virgem Maria
VI - Como devemos recorrer com fé e confiança à Virgem Maria
VII - Do modo de meditar e orar, pensando nos Anjos e Santos
VIII - Sobre o modo de excitar nossos afetos, meditando sobre a paixão de
Cristo

2
Confirma-se, nesta série de nove capítulos sobre a Oração o que foi dito na Introdução deste livro sobre
o vigor dos conceitos do autor, que dispensam modernização. O pensamento mais recente da Igreja sobre
esta matéria encontra-se explanado nas Seções I e II da PARTE IV do Catecismo da Igreja Católica,
recentemente publicado, de onde extraímos as seguintes referências: nº 2559: “A humildade é o
fundamento da oração”. nº 2565: “É o coração que reza”. nº 2643: “A Eucaristia contém e exprime todas
as formas de oração”. nº 2716: “As palavras na oração não são discursos, mas gravetos que alimentam o
fogo do amor”. nº 2725: O combate espiritual da vida nova do cristão é inseparável do combate da
oração”.

Outras referências para consulta: nº 2560; Sto. Agostinho — “Deus tem sede de que nós tenhamos sede
dele”.

2610/11 — Oração de fé; 2629: oração de súplica; 2634: oração de intercessão; 2639: oração de louvor;
2709: oração mental; 2705: meditação; 2742: Orai sem cessar”; 2746/51: A oração da hora de Jesus.
IX - Dos proveitos que tiraremos da meditação e imitação de Jesus
crucificado

Do Santíssimo Sacramento da Eucaristia

Da comunhão sacramental

Do amor que devemos excitar em nós antes de recebermos a


sagrada Comunhão

Da Comunhão Espiritual

Da Ação de Graças

Do oferecimento

Da devoção sensível e da aridez

Do exame de consciência

Do combate até a morte


I - sobre a necessidade que temos de combater até a morte
II - Da preparação para uma boa morte
III - Da tentação contra a fé, uma das quatro armas com que na hora da
morte o inimigo nos assalta
IV - Do desespero
V - Da vanglória
VI - Das ilusões enganadoras e das falsas aparições - O combate final
Apresentação
Lourenço Scúpoli foi um dos maiores diretores de consciência do século
XVI e sua obra alinha-se entre os grandes clássicos da orientação das almas,
de que é rica a cristandade católica.

Em suas traduções inglesa e portuguesa, o COMBATE ESPIRITUAL


foi-se modernizando em linguagem e estilo3 mas não na espiritualidade e
na expressão dos seus conceitos, pois estas guardam o seu frescor e pureza
originais, que dispensam qualquer modernização. As ideias de Lourenço
Scúpoli representam, hoje, o que há de mais moderno na abordagem do
tema da guerra espiritual, que se vem travando nos nossos dias, em todas as
partes do mundo, na forma de milhares de “guerrilhas”.

Para que não haja dúvida sobre o tratamento que é dado ao tema forte, de
luta de combate, que o título indica, a Apresentação, nas duas edições,
inclui a transcrição de conhecidos trechos bíblicos, além das palavras do
próprio autor, que aborda o tema em diversas ocasiões com total clareza e
objetividade.

Abre, a edição inglesa, com a seguinte transcrição de Mateus 11,12: “Desde


os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e
violentos se apoderam dele”. Sobre estas palavras, refere-se a Bíblia de
Jerusalém, em nota de rodapé, à “tirania dos poderes demoníacos, ou dos

3
A modernização da linguagem, no nosso idioma, inclui o uso coloquial deliberado dos pronomes
possessivos, de forma a facilitar a compreensão do texto, evitando que o leitor, quando chamado de você,
se confunda com uma terceira pessoa. Por este motivo, em entendimento com os nossos revisores, a
Editora autorizou o emprego preferencial da terceira pessoa, mas com exclusividade. Quando necessário à
maior clareza, fluidez ou expressividade do texto, serão também utilizados os pronomes possessivos teu o
tua. O leitor notará, todavia, que a modernização da linguagem não se estende aos conceitos, onde é
guardada fidelidade à terminologia do autor, evitando-se ao máximo o uso de palavras oriundas do léxico
das ciências que, como a psicologia e a sociologia, são posteriores à época em que viveu o Padre
Lourenço Scúpoli. Foram mantidas as palavras do texto original, evitando substituições, mas
acrescentando-se outras, quando necessário para a compreensão do texto pelo leitor. For mantida, por
exemplo, a palavra vício no texto, mas, em algumas frases foram empregadas no seu lugar, as palavras
defeito o deficiência, que lhe dão o sentido atual. Da mesma forma as paixões, que devem ser entendidas
como inclinações ou atrações da vontade, por vezes, oriundas dos sentidos, ou seja, sensuais. Quando
inevitável o uso de palavras de uso recente, como por exemplo, mídia, dos veículos de comunicação
social, foram estas comentadas em NOTAS no final do capítulo.
seus partidários terrestres, que pretendem conservar o domínio deste mundo
e criar obstáculos ao progresso do Reino de Deus”.

E o Padre Scúpoli abre o capítulo primeiro do seu livro com 2 Timóteo


2,3-4 “Assume a tua parte de sofrimento como um bom soldado de Cristo
Jesus. Ninguém, engajando-se no exército, se deixa envolver pelas questões
da vida civil, se quer dar satisfação àquele que o arregimentou”.

Outras comprovações de que o COMBATE ESPIRITUAL é um livro


dirigido a soldados envolvidos em constante batalha e não uma simples
coletânea de conselhos às almas pias, são encontradas ainda nessa parte
introdutória das duas edições.

O livro é oferecido pelo seu autor “Ao Supremo Capitão e Gloriosíssimo


Triunfador Jesus Cristo, Filho de Maria”, com as seguintes palavras:

“Para o combate é preciso um destemido chefe, que dirija a batalha e


fortaleça o ânimo dos soldados, que lutam com maior ardor quando guiados
por um general invencível”.

E, para completar, a edição inglesa coloca, em seguida ao título e antes do


prefácio, numa página exclusiva, a conhecida ARMADURA DE DEUS, da
epístola aos Efésios que é a seguir transcrita, para que fiquemos, desde já,
sintonizados com o estilo deste livro de combate espiritual, onde somos
todos soldados, chamados à luta pelo nosso Comandante Supremo:

A Armadura de Deus

Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia
mau e sair firmes de todos os combates.

Portanto, ponde-vos de pé e cingi os vossos rins com a verdade e


revesti-vos da couraça da justiça e calçai os vossos pés com a preparação
do evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da Fé, com o qual
podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno. E tomai o capacete
da Salvação a espada do espírito, que é a Palavra de Deus.

“Estamos numa operação de guerra”, diz o Padre Harold Cohen S.J., em


pronunciamento feito na Conferência Carismática, de Nova Orleans, em
1991, recomendando-nos que ouçamos a São Paulo em Efésios, 6,10-12:

“Finalmente, sejam fortes no Senhor e na força do seu poder. Revistam a


armadura de Deus para que possam ser capazes de enfrentar as ciladas do
demônio. Pois não estamos lutando contra homens de carne e sangue, mas
contra os principados, contra as potestades, contra os governantes deste
mundo de trevas, contra as hostes de espíritos malignos espalhados pelos
ares”.

O soldado se deve apresentar ao campo de luta logo nas primeiras horas


do dia.

“Quando você se levantar”, diz, o Padre Lourenço Scúpoli, “a primeira


coisa que os seus olhos devem ver é você mesmo, na arena da luta, com
esta lei: ou o combate ou a morte eterna.

Do teu lado direito estará o teu vitorioso general, Jesus Cristo, com muitos
batalhões de anjos e santos e, particularmente, São Miguel Arcanjo. Do
lado esquerdo, o Demônio com os seus asseclas, prontos para te vencer,
excitando as tuas paixões, instigando-te a ceder, para te darem a morte”.

É que a batalha, de todos e de cada um, só acaba com a morte, e por esta
razão, não podemos deixar de entrar na luta. Quem não combate será logo
aprisionado ou morto. E prisão, nas mãos do Príncipe da Morte, é morte
certa.

Daqui trouxemos para a frente, como um bom exemplo do estilo de


Lourenço Scúpoli, e para concluirmos esta Introdução:
“Além disso, os nossos inimigos nos têm um ódio sem tréguas. Por isso não
podemos esperar um instante de paz, pois mesmo aos que se fazem seus
amigos, eles cruelmente os trucidam”.

Termina, porém, a citação com uma palavra de estímulo para todos nós:

“Não se assuste com a sua força e o seu número, pois nesta batalha só é
vencido quem quer. Toda a força dos inimigos pode ser neutralizada pelo
nosso Comandante, por cuja honra combatemos. Ele não permitirá que a
luta supere as tuas forças, virá em teu auxílio te dará a vitória se combateres
virilmente confiando no seu poder e na sua bondade”.
Preparando-se para a Batalha
As quatro armas do adestramento individual

Você irá precisar de quatro armas seguríssimas e muito necessárias para


vencer nesta batalha espiritual, que é a de uma contínua e duríssima luta
contra você mesmo.

São as seguintes: a desconfiança de si mesmo, a confiança em Deus, o


exercício e a oração.

Com a ajuda divina, algo diremos, sucintamente, sobre estes assuntos, nos
capítulos subsequentes.

Antes, porém, falemos um pouco mais sobre o teu adestramento,


procurando abrir os teus olhos para alguns enganos que podem levar à
perdição.

O engano mais frequente é o da virtude. Muitos, sem pensar, julgam que


ela consiste na austeridade de vida, no castigo da carne, nas longas vigílias,
nos jejuns, e em outras penitências e fadigas corporais.

Outras pessoas, mulheres, especialmente, pensam ter chegado à grande


perfeição quando rezam muito, ouvem muitas missas e longos ofícios,
frequentam as igrejas e a Sagrada Comunhão.

Outros, ainda, e entre eles, certamente, muitos religiosos de convento,


chegaram à conclusão de que a perfeição consiste na frequência ao coro, no
silencio, na solidão e na disciplina.

A verdade, porém, é muito outra.


Tais ações são, às vezes, meios de se adquirir o espírito e, às vezes, frutos
do espírito. Não se pode, porém dizer que somente nestas coisas consista a
perfeição cristã e o verdadeiro espírito.

Estas pessoas seguem com grande abnegação, e com sua cruz às costas, o
Filho de Deus, frequentam os santos sacramentos, para glória de sua divina
Majestade, para mais se unirem com Deus e para adquirirem novas forças
contra o inimigo.

Se, porém, põem todo o fundamento de sua virtude nas ações exteriores,
estas ações, não por serem defeituosas, pois são santíssimas, mas pelo
defeito de quem as usa, serão às vezes, mais do que os próprios pecados, a
causa de sua ruína. Pois estas almas que apenas prestam atenção às suas
ações, largam o coração às suas inclinações naturais e ao demônio oculto.
Este, reparando que já está aquela alma transviada, fora do caminho, deixa
que ela continue deleitando-se naquele comportamento enganoso, e até
mesmo a estimula, embalando-a com o pensamento das delícias do paraíso.
A alma logo se persuade de estar no coro dos anjos e de possuir Deus
dentro de si.

Estes estão em grave perigo de cair, porque têm o olhar interno obscurecido.
É com esse olhar que contemplam a si mesmos e suas obras externas boas,
atribuindo-se muitos graus de perfeição. E com soberba, julgam os outros.

A não ser um auxílio extraordinário de Deus, nada os converterá.

É evidente que mais facilmente se converte e se entrega ao bem o pecador


declarado e manifesto do que o pecador oculto que, enganado e
enganadoramente, se apresenta coberto com o manto das virtudes
aparentes.

A vida espiritual não consiste nestas coisas.

A virtude outra coisa não é senão o conhecimento da infinita bondade e


grandeza de Deus, e da nossa inclinação para o erro e para o mal. A virtude
está no ódio de nós mesmos e de nossas faltas, tanto quanto no nosso amor
a Deus e na nossa confiança em Deus. A virtude está não só na sujeição,
mas por seu amor, no amor de todas as criaturas.

O ponto mais alto da virtude consiste no desapropriamento da nossa própria


vontade, entregando-lhe o comando de nossa vida e das nossas ações, em
acatamento total as suas divinas disposições.

Por fim: querer e fazer tudo isto para glória de Deus, para seu agrado, e
porque ele quer e merece ser amado e servido.

Esta é a lei do amor, impressa pela mão de Deus nos corações de seus
servos queridos e fiéis.

Esta é a negação de nós mesmos, que ele, como Pai e Criador amantíssimo,
nos pede, para o nosso bem. Este é o jugo suave de que falava Jesus, a
obediência a que o nosso divino Redentor e Mestre nos chama, com sua
voz e seu exemplo.

Este é o combate preliminar de adestramento para a grande batalha. Se você


aspira a uma vida em perfeita união com Deus, deverá começar pelo
combate generoso contra as suas próprias vontades, grandes e pequenas.

Com grande prontidão de ânimo desde o primeiro instante, é necessário que


você se aparelhe para este combate, onde só é coroado o soldado valoroso.

Este combate é difícil, mais que nenhum outro, pois combatemos contra
nós mesmos. Por maior, porém, que seja a batalha, mais gloriosa e mais
cara aos olhos de Deus, será a vitória.

Conhecendo, assim, um pouco melhor, o campo em que se travará esta


primeira luta, vejamos, agora, as armas de que dispomos, nos capítulos que
se seguem.
Primeira arma
Desconfiança de nós mesmos

Você viu no capítulo anterior que se você cuidar de sufocar os seus apetites
desordenados, os seus desejos e suas vontades, mesmo que muito pequenos,
estará fazendo maior serviço a Deus do que se você se flagelar até o sangue,
se jejuar, mortificando- se mais do que o faziam os antigos eremitas, ou, até
mesmo, se você conseguir converter milhares de almas, porém guardando
vivos e intactos alguns daqueles apetites e desejos não sufocados.

É claro que o Senhor aprecia e regozija-se mais com a conversão das almas
do que com a mortificação de uma pequenina vontade. Apesar disto, você
não deve querer nem levantar a mão para fazer qualquer outra coisa sendo
aquilo que o Senhor estritamente quer que você faça. Ele mais se compraz
que você se canse em vencer as suas paixões e as suas vontades
desordenadas do que em lhe servir praticando algum trabalho, por grande e
necessário que seja, guardando dentro da tua alma e viva dentro de ti,
alguma paixão, voluntária e conscientemente.

É por isso que se faz tão necessária a desconfiança de si mesmo, neste


combate, pois sem ela você não conseguirá a desejada vitória, e não
chegará sequer a vencer uma das suas pequeninas paixões.

Guarde bem isto na mente: nós presumimos muito de nossas próprias forças,
porque somos inclinados pela nossa natureza corrompida, a uma falsa
avaliação de nós mesmos. Nada somos, porém sempre queremos achar que
somos muita coisa.

Toda a virtude nos vem de Deus, que é a fonte de todo o bem. Com ele,
podemos ser tudo. Por nós mesmos, nenhuma coisa: nem sequer um bom
pensamento podemos ter.
Esta presunção que nos leva a nos avaliarmos acima das nossas próprias
forças é um defeito muito difícil de ser reconhecido e admitido por quem se
encontra em erro, e desagrada muito a Deus, que nos ama e quer em nós o
conhecimento de que toda a graça e todos os nossos dons provém dele.

Da confiança em Deus, a mais eficiente de todas as armas

Como já dissemos, a desconfiança de nós mesmos é muito necessária neste


combate.

Entretanto, ela, somente, não basta. Porque, se, além disto, não pusermos
toda a nossa confiança em Deus, esperando dele, e somente dele, os
auxílios necessários e a vitória, cedo nos poremos em fuga e seremos
vencidos por nossos inimigos.

De nós, devemos desconfiar muito, porque nada somos e, se lutamos


somente com nossas forças, andaremos de queda em queda. Ajudados,
porém, pelo Senhor, alcançaremos, certamente, todas as grandes vitórias.

Para conseguir, entretanto, sua ajuda, devemos armar o nosso coração de


uma viva confiança nele.

De quatro modos conseguiremos esta confiança com Deus.

Primeiro: pela oração, pedindo-a ao Senhor.

Segundo: contemplando e considerando, com os olhos da fé, como o


Senhor é onipotente e quão excelsa, superior e completa é a sua infinita
sabedoria.

Para ele nada é difícil ou impossível. Ele é a bondade sem medida, e está
sempre disposto a nos dar, a cada hora e a cada momento, tudo aquilo que
nossa vida espiritual necessita para a nossa vitória final.
Basta que a ele recorramos com confiança, pois é grande o seu desejo de
que lhe peçamos tudo, como filhos que somos.

Deus vem batendo, continuamente no coração do homem com desejos de aí


entrar, e aí selar e derramar aí os seus dons.

Quem, então, poderá imaginar que, para o coração que o convida,


insistentemente, a entrar, ele se venha a fazer de surdo?

O terceiro modo de se adquirir esta santa confiança em Deus está contido


num único pensamento sobre o qual devemos meditar: conta-nos o
Evangelho muitos e muitos exemplos que demonstram que ninguém que
realmente confiou em Deus jamais deixou de ser atendido.

O quarto modo servirá ao mesmo tempo a um duplo efeito: o de


conseguirmos alcançar a desejada confiança em Deus e, ao mesmo tempo, a
desconfiança de nós mesmos.

Você deverá agir da seguinte forma: quando você desejar realizar alguma
coisa, ou iniciar alguma batalha, ou então você sentir que precisa obter uma
vitória sobre si mesmo, medite um pouco, antes de começar, sobre a sua
fraqueza. Quando você tiver uma noção clara da sua situação, sentindo a
sua falta de poder, comece a pensar sobre o poder, a sabedoria e a bondade
divina.

Confie, então, somente nele, e decida-se a agir e combater lucidamente e


generosamente. Com estas armas e mais o reforço imprescindível da oração,
você combaterá e trabalhará confiante na vitória. E a vitória virá,
certamente, e só não virá se você tiver se equivocado na obtenção da
confiança em Deus, conjugadamente com a desconfiança em si mesmo.

O equívoco pode ocorrer, ainda que pareça que não, pois a presunção que
temos de nós mesmos é tão sutil e enganadora que é muito difícil separá-la
da desconfiança que parecemos ter de nós mesmos e da confiança que
julgamos depositar em Deus.
Aprenda, portanto, a fugir dessa presunção, e a viver em uma completa e
permanente desconfiança de si mesmo e, em contrapartida, crescente
confiança em Deus. Basta, para isso, que você tenha sempre em mente a
avaliação da sua fraqueza humana perante a grandeza e a onipotência de
Deus, e que ambas estas considerações antecedam sempre os teus atos.

Ainda o cuidado no uso das armas da desconfiança de si


mesmo e da confiança em Deus

O soldado presunçoso facilmente se engana, julgando ter-se habituado a


desconfiar de si mesmo e a confiar em Deus.

Você notará o seu engano quando sofrer a primeira queda.

Observe, com atenção, o sentimento que nascer na sua alma após a queda:
se você sentir uma inquietação, como que uma tristeza e um
desapontamento que leva ao desânimo e pode chegar à desesperança, é
sinal certo de que você estava confiando na sua pessoa, e não em Deus.

Porque quem desconfia de si mesmo quase que totalmente e confia em


Deus inteiramente, não se espanta nem se entristece com a queda. Sabe que
o que ocorreu foi devido à sua fraqueza e pouca confiança em Deus. Mais
desconfiado de si, mais e mais confie, humildemente, em Deus.

Sabe que foi ele mesmo que abriu ocasiões para a sua queda, com os seus
defeitos e desregramentos, e não se assusta, nem se inquieta. Sente um
arrependimento sincero, mas calmo e pacifico, por ter contrariado o seu
Comandante, e continua sua rota, perseguindo os inimigos, com energia e
resolução, até feridos de morte.

Eu gostaria de que estas cautelas fossem tomadas principalmente pelas


pessoas dadas à vida espiritual que, por serem mais profundas, se creem
menos desprotegidas. Quando caem em algum defeito, recusam-se a aceitar
a sua deficiência, e não podem nem querem se acalmar da ansiedade e
inquietude que nascem do amor próprio. O remédio único que cura é a
reconciliação com o seu Comandante para confessar a sua falta e obter o
perdão que nunca lhe será negado.

Efeitos da queda dos que confundiram a sua presunção com a


desconfiança em si mesmos

Ao constatar, pela queda, a existência de suas faltas ou falhas, o combatente


é envolvido por um sentimento de tristeza que ele, ainda em erro, confunde
com arrependimento, que é, este sim, o verdadeiro desejo de correção.
Supõe que a sua inquietação seja devida à virtude, quando, na realidade, é
oriunda de uma oculta soberba e presunção, e é efeito da ilusória confiança
que tinha em si mesmo e em suas próprias forças. Vendo, pela queda, que
era falho, fica espantado, como se tivesse ocorrido alguma coisa impossível,
e se inquieta contemplando os destroços das colunas em que se sustentava a
sua confiança.

Ao humilde isto não acontece, porque nada presume de si próprio e confia


somente em Deus. E assim, se incorre em alguma culpa, embora sinta
grande arrependimento, não se inquieta, porque sabe, com a luz da verdade,
que o ocorrido lhe sucedeu devido à sua própria fraqueza.

Do adestramento no manejo das armas da desconfiança de


nós mesmos e da confiança em Deus

Destas duas virtudes nascem quase toda a força de que necessitamos para
vencermos os nossos inimigos. Mas não é fácil o manejo destas duas armas
que só conseguimos receber e utilizar com o auxílio divino.

Nada dispensa este divino auxílio. Nem todos os dons naturais ou


adquiridos, nem todas as graças recebidas, nem o conhecimento de toda a
Escritura, nem uma longa existência dedicada inteiramente ao serviço de
Deus.
Se o seu coração não for ajudado com um especial auxílio, se a mão do
Senhor não iniciar a obra, você jamais conseguirá cumprir a vontade divina,
mesmo que você pratique as ações boas que deve praticar, que você vença
as tentações que deve vencer, que fuja dos perigos de que deve fugir, e que
carregue as cruzes que a vontade de Deus lhe deu para carregar.

Eis a razão pela qual nós temos que agarrar com crescente firmeza e
determinação a arma que nos é dada da desconfiança de nós mesmos.
Durante toda a nossa vida, portanto, todos os dias, a todas as horas e, até
mesmo, em todos os minutos devemos estar atentos e firmes na resolução
de jamais, de modo nenhum e em nenhuma hipótese, confiarmos em nós
mesmos.

Quanto à segunda arma, a da confiança em Deus, basta que você se lembre


de que nada é mais fácil para Deus do que vencer os inimigos, sejam eles
poucos ou muitos, velhos e cheios de malícia ou novos e fracos.

A confiança em Deus é o que nos sustenta no combate.

Uma alma pode estar cheia de pecados.

Ter todos os defeitos do mundo, e praticar os maiores erros que se possa


imaginar.

Pode ter tentado, por todos os meios e todas as formas deixar o pecado e ter
fracassado.

Ter procurado levar vida correta e não ter conseguido nem um pontozinho
de bem.

E ter, pelo contrário caído violentamente no mal.

É exatamente este soldado que, apesar de tudo, não pode se deixar perder a
confiança em Deus, nem deixar as armas e os exercícios de adestramento
espiritual.
É exatamente este o soldado que importa que combata.

Que combata generosamente, que combata sempre mais.

Pois é preciso que se tenha em mente que nesta batalha espiritual nunca
perde quem ainda combate e ainda confia em Deus.

E o auxílio divino nunca falta, mesmo que os combatentes sejam, por vezes,
feridos.

Combater, isto é tudo. Combater com confiança no auxílio divino.

O remédio que cura os ferimentos é eficaz para aqueles que procuram a


Deus.

E, quando menos esperam, seus inimigos estarão mortos.


Terceira arma
Do exercício da inteligência e da vontade

Nesta batalha espiritual, não basta a confiança em Deus e a desconfiança de


nós mesmos. Somente com estas duas armas você não vencerá. Muito pelo
contrário: você terá muitas quedas.

Aí é que entra o exercício. É preciso exercitar a inteligência e a vontade.

Neste capítulo e nos subsequentes, vamos examinar esta forma de


adestramento do combatente pelo exercício, com a finalidade de alcançar
uma posição de combate que seja mais vantajosa, estrategicamente: a
obtenção de maior capacidade de discernir.

O exercício da vontade é precedido pelo exercício da inteligência, que deve


ser resguardada contra os fatores negativos que a obscurecem: de um lado,
a ignorância e do outro, a informação mundana, excessiva e desregrada, dos
meios de comunicação.4

A ignorância deixa a mente em trevas e impede que ela conheça a verdade,


que é o objeto próprio da inteligência.

Com o exercício, devemos tornar a mente clara e lúcida, para que possa ver
e discernir bem. O discernimento cresce na proporção em que é exercitado
e, por este motivo, a sua aquisição pelo combatente é um fator decisivo
para a obtenção da vitória final individual e coletiva.

De dois modos poderemos alcançar este resultado: o primeiro, e o mais


importante, é a oração, que vem a ser a nossa quarta arma e, sem dúvida, a

4
O papel da informação aqui é adaptado aos meios mais modernos de comunicação do pensamento,
englobados na palavra mídia. O problema da curiosidade que o autor considera distração da mente, é
examinado, extensamente, no nono capítulo.
mais poderosa de todas, como será demonstrado mais adiante, nos capítulos
44 a 50.

O segundo modo de você alcançar o discernimento é através de um


contínuo, leal e profundo exame de si mesmo.

Este exame não é nada fácil, pois requer critérios de julgamento


completamente distanciados dos critérios mundanos.

Para ver se somos bons ou maus, não será levada em conta a aparência boa
ou má dos nossos atos, nem o juízo dos nossos sentidos, mas sim o juízo do
Espírito Santo. É aquilo que a “cultura” mundana consagrou, deve ser
repelido como sendo muito pouco aos olhos do Espírito Santo, por este,
sendo eterno, é totalmente imune aos modismos da mídia, e suas variações,
que são tão superficiais como caprichosas.

Aquilo que o mundo cego e corrompido ama, deseja e procura de todos os


modos será considerado claramente, por nós, pelo que são, isto é: nada.

Entenderemos, assim, que as honras e os prazeres da terra não são mais do


que vaidades e aflições do espírito.

E que as injúrias e as infâmias de que o mundo nos queira cobrir são a


verdadeira glória. Que a verdadeira alegria, à semelhança de Deus, está na
magnanimidade do perdão dado aos inimigos, na caridade aos irmãos e na
superação dos dificuldades que entravam à nossa marcha.

Os juízos preciosos que o Espírito Santo nos ensina conduzem ao


discernimento mais rapidamente do que todos os cursos de estudos.

Ele nos mostra que mais vale desprezar o mundo que possuí-lo todo inteiro.

Que mais vale o humilde conhecimento de nós mesmos do que todas as


ciências.
E que a vitória maior que iremos alcançar será a de derrotar o assalto dos
nossos próprios desejos e apetites. Por pequenos que sejam, vencê-los
merece maior louvor do que a conquista de cidades e fortalezas, a vitória,
com armas na mão, contra exércitos poderosos, fazer milagres e, até mesmo,
ressuscitar os mortos.

Aperfeiçoamento do exercício da inteligência: o discernimento

A introspecção, que é, mentalmente, uma inspeção que fazemos do nosso


interior, é uma das maneiras de alcançar o discernimento, a menos que este
nos seja dado como graça, pois é um dom.

Não custa nada que peçamos a Deus o dom do discernimento, através da


oração. Muitos combatentes o têm conseguido, desta forma.

Mas, para alcançá-lo, temos que disciplinar a mente, limpando-a dos seus
obscurecimentos.

Um desses obstáculos ao bom discernimento, tanto nas coisas referentes a


nós mesmos como em outros assuntos, faz-se presente, quando, logo à
primeira vista, somos tomados de simpatia ou de antipatia pela coisa com
que lidamos. A inteligência fica, então, obscurecida e incapacitada de
elaborar um conceito objetivo e isento sobre o objeto em questão.

O combatente deve estar treinado para manter a mente e a vontade sempre


livres e superiores a qualquer afeto desordenado.

Só essa liberdade interior, que é produto de constante exercício, te permitirá


contemplar com a inteligência qualquer objeto que lhe seja proposto, antes
de que as tuas inclinações te movam a desejar a coisa só porque ela te causa
prazer, ou a rejeitá-la, por ser contrária às tuas predileções.

Assim, livre do obscurecimento das paixões, a inteligência esclarecida


poderá conhecer a verdade, reconhecer o mal que se esconde sob um falso
prazer, e ver o bem coberto, às vezes, com uma aparência do mal.
Tenha guardado, portanto, este indicador do discernimento: se você logo de
início, num impulso, se vê inclinado a amar ou detestar alguma coisa, a
mente não pode discernir bem. O afeto, positivo ou negativo, ofusca a
lucidez da inteligência, que não avaliará o objeto pelo que de fato ele é.

A sua opinião errônea voltando da inteligência à vontade tá reforçar ainda


mais aquele primeiro impulso do coração, aumentando o seu amor ou o seu
ódio, contra qualquer regra do bom senso ou da razão. Se você persistir na
prática desse “julgamento por impulso”, adeus discernimento... Mais e mais
ir-se-á obscurecendo o julgamento por via de raciocínio, e logo teremos,
talvez, um bom artista ou um bom diletante, mas nunca um bom
combatente.

É de grande importância para você este conhecimento. Pois, em caso


contrário, estas duas potências, que são a inteligência e a vontade, tão
nobres e excelentes, virão, infelizmente, a caminhar nas trevas e no erro, e
sempre em mais fortes trevas e sempre em maiores erros. O ciclo fatal do
erro, descrito acima, partindo de uma opinião impulsiva, vai-se alargando e
se reforçando, para grande prazer do inimigo, que adora lutar contra
adversários enganados.

Guarda-te pois, filha (e filho...) com toda a tua vigilância, de qualquer afeto
desordenado, seja por que causa for. Após examinar bem o objeto, tenha o
trabalho mental de apurar cuidadosamente aquilo que a coisa é, com toda a
luz da tua inteligência e com o auxílio da graça, e da oração, para que
venha em tua ajuda o grande professor que é o Espírito Santo.

Na luta contra o erro, o que deve estar sempre sujeito à observação são as
boas obras que você tenha feito. Pois nestas, justamente por serem boas e
agradáveis a Deus, há mais perigo de engano e de tentação.

Ali, a sua mente se encontra desavisada, e o discernimento, por uma


aparente falta de necessidade de atuar, ausente, a qualquer falha, qualquer
distração, o que é bom pode virar mau, e o que é virtuoso, causa de queda.
E já é sabido que muitos periclitaram e foram ladeira abaixo no momento
mesmo em que praticavam os exercícios mais louváveis pela sua correção e
santidade.

De outra precaução que a inteligência deve tomar para ter


discernimento claro

Outra coisa de que a inteligência deve precaver-se é a curiosidade.5

Impulso investigador que é a origem de toda a atividade científica, mãe das


invenções e de toda a inovação, a curiosidade estimula as mentes
adestradas, mas também leva à perdição as mentes desprotegidas.

O ponto de entrada da perdição é o discernimento, quando este é


desorientado pela quantidade excessiva de informação e de conhecimentos
que é posta na mente sem qualquer filtragem ou antídoto neutralizador.6

A perdição, como a serpente, vem rastejando pelo chão, mas sobe pelas
árvores e pelas nossas pernas. E nem sempre é uma serpente grande. Pode
multiplicar-se em centenas de cobrinhas à procura de qualquer brecha para
entrar.

Não menospreze o adversário, confiando no teu discernimento. Ele é capaz


de julgar com igual eficiência todas as noções e conceitos que cheguem à
tua mente, mas, se aumentar o ritmo veloz da entrada de mais e mais
informações que crescem em volume e rapidez a cada novo dia da nossa
existência, chegará um momento em que você não terá mais tempo e
capacidade para discernir com a eficiência e a limpidez necessárias.
Chegará um momento em que as serpentezinhas começam a penetrar. Em

5
OBS. - Este capítulo foi reescrito com a inserção de terminologia atualizada e conceitos igualmente
adaptados à nossa época.
6
O tratamento mais atualizado do tema da curiosidade implicaria numa longa investigação sobre o efeito
dos meios de comunicação de massa, inclusive sobre o fenômeno do publicidade, onde a curiosidade é
utilizada como instrumento de captação da atenção para a venda de produtos. Ainda que tenha variado, no
tempo, o diagnóstico, são perfeitamente atuais os remédios indicados pelo autor, tendo sido guardada
fidelidade ao texto original tocante aos seus conselhos e recomendações.
pouco tempo a fortaleza da sua inteligência estará toda minada pelo inimigo.
E aí será o momento em que as portas e janelas começarão a ser abertas de
dentro para fora para dar entrada à enxurrada dos pensamentos viciosos,
doentios e dissolventes, elaborados na cozinha do demônio com aquele
cuidado que só ele tem.

Porque, se enchermos a nossa inteligência de pensamentos vãos e nocivos


torná-la-emos incapaz de apreender o que é necessário para a sua
fortificação e adestramento. Ai será o princípio da queda.

Não procure saber todos os dias e a cada instante, das notícias e das
novidades do mundo, que te são servidas de forma planejada, como
produtos de consumo, para atrair e orientar o teu interesse para os mais
baratos, que são os mais rendosos.

Nesse jogo, cada um está na sua, e ninguém está ligando para a morte da
tua alma.

* Não comas, como o glutão, cada vez maior quantidade de massaroca


informativa ou de lazer, de sabor artificial, que te metem pela boca adentro,
mas sim como o gourmet que seleciona cada alimento que digere,
conhecendo os diversos matizes de sabor, as qualidades nutritivas de cada
um, e até mesmo a sua origem orgânica, na terra onde foram cultivados.

E, no que concerne ao mundo espiritual, reduza a sua curiosidade ao


mínimo essencial, o querigma, que é o núcleo central de tudo: Jesus, Filho
de Deus, o Cristo Crucificado, nos salvou na Cruz e, ressuscitado, é o nosso
Rei e Comandante, na construção do novo reino, a Civilização do Amor.

Todas as demais cogitações que nos afastem da batalha em que estamos


engajados só servem para desviar a nossa atenção da luta. Quando a
serpente maligna vê que a vontade dos que caminham na vida espiritual é
forte e inabalável, tenta abater a inteligência, a fim de tornar-se senhor da
inteligência e da vontade. Infunde, às vezes, à alma, sentimentos elevados
de interesse curioso pelas coisas sagradas, procurando atrair as pessoas
mais cultas e inteligentes, que mais facilmente se envaidecem. E tudo para
que, entretidos no gozo e na consideração daqueles pensamentos em que
erradamente julgam contemplar a Deus, se esqueçam de purificar a alma e
de cuidar do conhecimento próprio e da sua preparação para a luta.

Assim, colhidos nos laços da vaidade, tornam-se ídolos da sua própria


inteligência.

Por isso, atenção para o alerta: qualquer outra novidade ou pergunta, ainda
que disfarçada de investigação intelectual das coisas de Deus, é laço do
demônio para te prender e trucidar, utilizando a tua ingênua vaidade e tola
soberba.

Todas as ideias dissolventes, que se aproveitam de um falso intelectualismo


e de uma cultura “modernizante” artificial, utilizam-se da descomunicação
do egoísmo soberbo, que conduz à idolatria do próprio juízo, para
destruírem o discernimento, e cativar as almas ingênuas. Fátuas, creem elas
que prescindem do conselho e dos ensinamentos dos outros, pois já estão
acostumadas a recorrer ao seu ídolo: ao próprio juízo.

Rindo, o demônio deixa que se conduzam sozinhas, do inferno, pois já


colocaram, cada uma, no seu pescoço, a sua própria coleira.

Não precisam ser levadas. Vão por si sós, enganadas pelas suas próprias
ilusões. Cristais, pirâmides do Egito, pedrinhas mágicas, superstições,
números, astros, respiração, tudo serve para entrar no grande desfile das
almas sonâmbulas, embriagadas pela sua própria sabedoria, que vão
descendo, suavemente, a ladeira, que as leva, para baixo, para baixo, lá pra
baixo...

É, certamente, uma coisa grave e muito difícil de ser remediada, pois a


soberba da inteligência é muito mais perigosa do que a da vontade. Porque
a soberba da vontade opera sob os olhos atentos da inteligência, e esta
sempre poderá remediar o mal facilmente, obedecendo a quem tem
autoridade. Mas quem tem afirme opinião de que seu parecer é melhor do
que o dos outros, por quem e como poderá ser curado?

Se a inteligência, que é o olho da alma, a quem cabe curar a chaga da


soberba está enferma e cheia da mesma soberba, quem a curará? E se a luz
tornar-se treva, o que fará você, quando sentir que os preceitos falham?

O conselho é, pois: opõe-te à tão perigosa soberba, antes que ela tome
posse de ti, inteiramente. Estanque a inundação dos conceitos malignos,
cortando o fluxo da comunicação excessiva e perniciosa. E não confies no
aparente “brilhantismo” da tua inteligência; escuta o parecer dos outros,
principalmente daqueles que te querem bem.

E, como São Paulo, mais do que pela tua vã sabedoria, enamora-te pela
loucura do amor de Deus, que te fará mais sábio que Salomão.

Do exercício da vontade. Aqui o combatente se adestra dentro


do combate. Finalidade deste livro

Outro exercício que você precisa praticar e que também diz respeito à
inteligência é o de fazer com que a vontade não se torne escrava dos seus
desejos.

A vontade está sempre procurando escravizar-se a coisas terrenas,


mundanas, às coisas carnais, por isso que tem de ser permanentemente
observada, como se fosse o nosso campo de batalha na luta principal do
nosso adestramento, que é a luta contra nós mesmos.

Na procura do comportamento certo, encontramos um grande empecilho


em nossa própria natureza. Ela está de tal modo inclinada a si mesma que,
em todas as coisas, mais ainda nas coisas boas e espirituais, procura a
própria comodidade e deleite, com que se vai entretendo e alimentando,
sem suspeitar de que lhe possa ser de algum dano este alimento.
É por isso que, quando nos são apresentadas estas coisas que amamos, logo
as desejamos, não movidos por nenhum pensamento elevado, mas
tão-somente devido à alegria e contentamento que sentimos ao querê-las!

Quanto melhor nos parecer a coisa desejada, maior será o nosso engano.

Neste apego irracional às coisas reside a nossa indisciplina de combatentes,


pois assim, não quer o nosso Comandante. Ele nos deseja o máximo bem, e
sabe que a submissão a coisas escravizantes nos prejudica, porque nos
atrasa o passo e nos desvia do rumo certo.

Para nos guardarmos contra este laço que nos impede de caminhar para a
perfeição devemos adotar o seguinte estratagema: quando lhe aparecer
alguma coisa que você sabe que é agradável a Deus, antes de colocar sobre
ela o seu desejo, levante o seu pensamento a Deus, procurando saber se é
da divina vontade que você queira aquela coisa.

Em outras palavras: habilidosamente, envolva Deus no assunto.


Distinguindo a sua vontade da divina, você daí por diante, se sentirá mais
seguro quanto ao acerto do desejo que teve. Você não errará nunca!

O sistema também funciona no sentido inverso: se você quer fugir de uma


coisa que lhe parece ser desagradável a Deus, não a rejeite logo de cara.
Volte os olhos da sua inteligência para a divina vontade, que certamente
deseja que você rejeite o mal. Mas a vontade divina está mais concentrada
em você do que no problema, pois Deus quer que você afaste o mal para
contentá-lo.

Entenda bem: Deus é um amador insaciável, e a natureza está a todos os


momentos dando oportunidades para você domá-la, agradando a Deus. A
maioria das pessoas, porém, não sabe tirar proveito desta situação que é
extremamente vantajosa. E a natureza, em vez de ser domada, vive, ao
contrário, estragando o nosso relacionamento com Deus.
A inteligência consiste em saber vencer as fraudes dessa sutil inimiga, que
nos engana com ilusões. Estas são muito variadas, mas, basicamente
consistem num único jogo: a natureza se procura sempre a si mesma, mas
sempre o faz ocultamente, pois consegue esconder essa sua tendência
irreversível, fazendo que a gente pense que está agindo com o fim de
agradar a Deus, quando a verdade é muito outra.

Fugir deste engano é a meta de todo este Combate Espiritual. É a razão de


ser de todo o nosso adestramento e nossa luta, porque o remédio próprio e
intrínseco é todo um esforço de purificação e de limpeza, na forma e da
maneira preconizada por São Paulo Apóstolo; despojar-se do homem velho
e vestir-se do homem novo.

Estamos falando da meta do Combate Espiritual, ou do amor de Deus? Do


exercício da vontade como arma de luta, ou de um aperfeiçoamento que é
buscado pela criatura para agradar ao seu Criador?

De qualquer forma que seja, o inimigo existe, e, portanto, o combate


espiritual é uma imposição da nossa própria sobrevivência, pois a batalha
que travamos é contra o Príncipe da Morte, o assassino-mor.

Já conhecemos, a esta altura, alguns dos laços de que ele se utiliza para nos
caçar, e um deles é fazer a gente confundir a nossa vontade imperfeita e no
mais das vezes, errônea, como se fosse a vontade de Deus, e a nossa
opinião, quase sempre egoística e falha, como se fosse a palavra de Deus.

Procurar conhecer a vontade de Deus é, portanto, uma forma de impedir


que a confundamos com a nossa.

Mas não é só isso. Teremos que vencer também a tendência de indisciplina


que consiste em fugir à execução da vontade divina. O nosso natural amor
próprio, que está mais inclinado a si mesmo do que a Deus, nos fez, às
vezes, inadvertidamente, mudar o objeto das nossas ações e lhes dar outras
finalidades.
Quem trabalha movido por Deus e para agradar somente a ele, não preferirá
nunca uma coisa à outra, pois a desejará unicamente, se o Senhor quiser
que ele a tenha, e do modo e no tempo em que Deus o quiser. E, tendo-a ou
não, estará contente e em paz, de uma ou de outra forma.

Aconteça o que acontecer, essa pessoa obteve o que tinha em mente, e


conseguiu o seu fim, que outro não era senão contentar a Deus.

Vê-se, assim, cada vez mais nitidamente, que a busca da vontade divina é a
solução mais inteligente, além de ser a mais conveniente.

Procure dirigir as tuas ações a este fim perfeito.

Se, examinando as disposições da sua alma, você vai verificar que os seus
objetivos são egoísticos, não se preocupe, pois a vontade de Deus, naquele
caso em particular, pode ser a de que você atinja aqueles objetivos.

Ninguém pode avaliar perfeitamente quanta força e virtude se adquire, se


tiver sempre este motivo em suas ações. Porque uma coisa qualquer, por
baixa e pequena que seja, mas feita com o fim de agradar e glorificar
somente a Deus, vale infinitamente mais do que muitos outros atos
excelentes, feitos sem este motivo.

No começo, não será fácil para você adquirir o hábito de agir em tudo com
o fim de agradar somente a Deus. Você será auxiliado, porém, pelas tropas
em que se alinhou, pois passou a ser um amigo muito íntimo do
Comandante-em-Chefe. E, à medida em que for praticando muitos atos de
desejo divino, vai ficando cada vez mais fácil e mais agradável servir ao
Criador, amando-o sobre todas as coisas.

E compreenderá que tanto estamos falando aqui, da meta do Combate


Espiritual como do amor de Deus. Do exercício da vontade como arma de
luta e do uso da vontade, finalmente dominada e adestrada, para uma coisa
só: agradar ao nosso Pai que nos ama apaixonadamente, sem nenhum
interesse, senão o de nos dar o seu amor.
Do exercício da vontade. Algumas considerações sobre o
capítulo anterior

Procurar em tudo o que fazemos o agrado de Deus é como vimos, um ato


de amor e de sabedoria, além de vir a ser uma solução de grande
conveniência, pois o nosso Criador adora cuidar de nós.

Com base nestes pensamentos, a vontade deve ser induzida a procurar


contentar a Deus, valendo aqui que recordemos o quanto estamos unidos a
ele, a fim de que a nossa vontade se incline cada vez mais na sua direção.

Comecemos pelo princípio de tudo, que é o ato da Criação.

Antes de que pudéssemos honrá-lo e louvá-lo, ele já nos amava, pois nos
havia tirado do nada. Num ato de criação que, como ato de amor é
inigualável, deu-nos existência, modelando-nos iguais a si mesmo, e
deixando em cada criatura uma partícula da sua divindade, da sua
harmoniosa beleza, da sua perfeição em todos os sentidos, da sua bondade e
generosidade, da sua fortaleza, da sua sabedoria, da sua justiça e, sobretudo,
do seu amor.

Para redimir-nos de nossas tremendas falhas que se traduziam em


gravíssimos pecados e crimes, mandou à terra não um anjo, mas o seu Filho
Unigênito. O preço do resgate de nossas almas não foi pago em ouro, prata
ou diamantes, mas em sangue, arrancado em meio a terríveis dores e
sofrimentos.

Morreu por nós, em lenta e penosa agonia, única retribuição que lhe deram
os homens em troca de uma vida inteira dedicada a ensinar-nos como viver
neste mundo.

E agora continua, a toda hora, e em todos os minutos, a guardar-nos e


resguardar-nos contra os nossos inimigos, internos e externos. Pela ação do
Espírito Santo, continua ensinando-nos a viver e a combater contra o
Príncipe da Morte, que quer laçar-nos com suas armadilhas para
prender-nos e nos estraçalhar, como leão sanguinário e faminto de sangue
que é, e que nos circunda, pronto para o bote.

Sendo o nosso Comandante, nesta batalha da Vida contra a Morte, Jesus


Cristo combate junto conosco, ensinando-nos, adestrando-nos, dando-nos
força espiritual e alimentando-nos, no altar, com seu corpo e sangue.

Tudo isto não é o sinal inconfundível do seu infinito amor?

Ninguém até hoje conseguiu entender como e por que uma tão grande
Majestade nos tem em tão alta conta, a nós, vermezinhos miseráveis, tão
cheios de falhas. Só por isto, deveríamos ter-lhe gratidão eterna,
independentemente de tudo aquilo que fez por nós e continua fazendo, em
todos os minutos da nossa existência.

Que deveremos fazer para agradar ao Supremo Rei do Universo, por seu
amor vigilante e por tudo o que fez e continua fazendo por nós?

Tenha em mente que o nosso Criador, por tudo isto, merece infinitamente
ser honrado e servido por todos nós e, particularmente, por você, que é seu
filho querido, para quem estão abertas todas as portas do céu.
Do Combate
I - A luta das vontades diversas que existem no homem

Poderíamos dizer que existem em nós duas vontades, a da razão e a dos


sentidos, a vontade racional, superior e a sensual, ou inferior, também
chamada de apetite, carne, sentidos e paixões. A sensualidade não é
somente sexual, pois há sensualidades sublimes na atração pelos perfumes
excitantes, pelas comidas e doces raros, pelo contato com as sedas e os
veludos e, para os argentários, pela vista dos montões de ouro, prata,
diamantes e pedras preciosas.

Para proteger-nos do descontrole dos apetites sensuais existe a razão, e


quando, somente com os sentidos, desejamos alguma coisa, não dizemos
que a estamos querendo enquanto a vontade superior não se inclinar a
querê-la.

Toda a nossa batalha espiritual se concentra neste combate: a vontade


racional, colocada no meio entre a vontade divina e a dos sentidos, é
solicitada por ambas e tentada a se sujeitar a uma delas.

Você terá que se decidir, se quer ser, realmente, um soldado combatente no


campo de operações de guerra contra as forças do Príncipe do Mal. A
decisão é exclusivamente sua, pois a sua liberdade de decidir é total.

Se quiser entregar-se à vontade dos sentidos, não será um combatente, e se


quiser orientar-se pela vontade racional, terá que passar por muitas fadigas
e desconfortos, mortificando-se para vencer os impulsos da vontade dos
sentidos, das chamadas paixões, dos apetites da carne, especialmente nos
instantes iniciais do combate. Os golpes que a sua vontade superior sofrerá
da vontade divina e da sensual que estão sempre guerreando para
conquistá-la, são fortes e contundentes, e causam sofrimento.
Isto não acontece com aqueles que já estão habituados à virtude ou ao vício,
e pensam em continuar na mesma vida. Os virtuosos, com toda a facilidade
se curvam à vontade divina, e os viciosos com maior docilidade ainda
atendem à voz dos sentidos.7

Mas é muito difícil aceitar fazer violência a si mesmo e suportar o


sofrimento que sofrem todos aqueles que abandonam os grandes e os
pequenos amores terrenos.

Poucos são aqueles que chegam às mais altas esferas do seu


aperfeiçoamento, porque depois de terem, com grande fadiga, vencido os
grandes vícios, não mais se querem fazer violência. E não aguentam mais
sofrer os sacrifícios e os esforços por que se passa, tendo ainda que resistir
às infinitas vontadezinhas próprias, muito pequenas, mas que ainda
preponderam em nós, e, às vezes, reconquistam o domínio do nosso
coração.

A vontade dos sentidos é enganadora como a natureza. Parece-se com a


divina, para nos iludir.

Alguns, por exemplo julgam-se pessoas corretas, porque não invejam os


bens dos outros, mas afeiçoam-se demasiado aos próprios bens, a ponto de
praticarem verdadeira idolatria.

Outros, observam os jejuns obrigatórios, mas não mortificam à gula e


comem mais do que o necessário, procurando alimentos delicados. Vivem
na continência, mas não fogem de hábitos que lhes dão prazer e que
acarretam grandes obstáculos à sua vida espiritual.

É natural que tenhamos convivência social com muitas pessoas, algumas


delas virtuosas, e outras que apresentam perigo de queda. São estas últimas
as que menos se teme, enquanto que das outras muitas pessoas fogem por
considerá-las “caretas”.

7
A palavra vício é aqui empregada no sentido de “o que é o oposto virtude”, assim como a palavra
vicioso para designar o oposto de virtuoso.
Como resultado, pode ocorrer que pratiquemos atos bons e corretos, porém
com frieza e pouca motivação, enquanto que tudo o que é feito é
acompanhado de interesses e imperfeições ocultas, e de uma certa estima
de nós mesmos, com o desejo de sermos apreciados pelo mundo.

Os que assim fazem, não sabem que estão correndo o risco de cair nos erros
antigos, pois sem saber, estão-se afastando da proteção divina, como
soldados distraídos que não cuidam de suas armas.

Como consequência, o cultivo das verdadeiras virtudes vai sendo posto de


lado pela diminuição do amor a elas, que é uma forma do amor a Deus, o
qual, dessa forma, também se enfraquece.

Esquecemo-nos da nossa gratidão ao Senhor por ter-nos livrado da tirania


do demônio. E nos tornamos, assim, ingratos. Os engodos da natureza
enganadora dão à pessoa uma falsa sensação de segurança, como que uma
cegueira mental, pois você vê o perigo em que se encontra e, mesmo assim,
persuade-se de que está seguro.

Outro engano, muito perigoso, e bem pouco advertido, é o que ocorre com
aqueles que mais se amam a si mesmos, um amor que já é enganador, pois
não é verdadeiro. Escolhem eles as coisas que mais condizem com o
próprio gosto e deixam de lado outras que desagradam às suas inclinações
naturais e aos seus apetites sensuais, quando precisavam que, justamente
contra estes apetites se voltasse todo o esforço da batalha.

Melhor do que as facilidades, são os obstáculos penosos que nos ensinam a


lutar e a vencer. Por isto eu te exorto, filha dileta, e a todos os irmãos
combatentes, que procurem adestrar-se, aceitando as penas e os sacrifícios,
pois só com elas e com eles podemos vencer, e nisto está tudo.

E tanto mais facilmente e tanto mais perto estará a vitória quanto com mais
vontade você aceitar as dificuldades que a virtude apresenta aos
principiantes.
Porque se você amar a dificuldade e o combate que leva à vitória e à
virtude, cedo conquistará ambas as coisas.

II - Do modo de combater contra os apetites dos sentidos. Atos


que a vontade deve fazer para adquirir os hábitos da virtude

a) Dos três combates

Você já viu que a sua vontade racional, colocada no meio entre a vontade
divina e a dos sentidos, é solicitada por ambas e tentada a se sujeitar a uma
delas.

Cada qual deve vencer. Mas é preciso que vença a vontade divina, e por
este motivo você tem que se exercitar permanentemente.

Primeiro combate: Você é assaltado e combatido pelos apetites dos


sentidos. Resiste valentemente. A sua vontade superior não é atingida, e o
assalto é reprimido.

Segundo combate: Vencido o primeiro combate, quando os apetites


tiverem desaparecido, você deve excitá-los de novo, para reprimi-los
melhor e com mais força. Convida-os, depois, para um terceiro combate.

Terceiro combate: Você aí já irá esforçar-se para vencer as suas


inclinações. Nesta batalha não devem entrar os apetites sexuais, porque
estes exigem uma estratégia especial, que examinaremos mais adiante.
Você deve atrair aqueles instintos e atrações mais desordenados, que atuam
dentro de você, para que você mesmo consiga desprezá-los. No princípio,
eles te põem impaciente, porque sua tendência é a de crescer e conseguir
que a vontade superior consinta com os teus desejos.

Esta será a mais dura das batalhas, tendo por objetivo obter o
consentimento da tua vontade forte. Mas esta vencerá no final, se por tua
perseverança na luta, a batalha prosseguir até o fim, só terminando quando
o inimigo se der por vencido.

Preste, porém, muita atenção no inimigo, pois ele é cheio de malícia.


Quando ele vê que nos opomos, com força de vencedores, às nossas
paixões, ele logo deixa de excitá-las, com dois objetivos:

1º - o demônio sabe que se as paixões em vias de serem vencidas forem por


ele estimuladas, nós podemos adquirir o hábito da virtude, contrária à
paixão derrotada. Ele então age ao contrário, reduzindo o nosso apetite para
que pensemos que o mérito da vitória é totalmente nosso.

2º - em seguida, ele passa a atuar em outras áreas, onde se desenvolve


muito bem, a área da vaidade, do orgulho e da soberba, fazendo que
pensemos que nós, como soldados valentes, fomos capazes de vencer
rapidamente os nossos inimigos.

É por este motivo que é preciso empenhar um segundo combate depois que
você tenha resistido ao primeiro assalto. Os pensamentos que lhe causaram
aquela impaciência frustrada devem ser chamados de novo à memória,
como fazem aqueles lutadores confiantes, que desafiam os seus inimigos
para o corpo a corpo. Excitando em você mesmo aqueles pensamentos que
lhe causaram impaciência, de modo a que você se sinta movido na sua parte
sensitiva, você reprimirá com força de vontade e esforço ainda maior do
que antes, os apetites chamados a combate.

Mas não basta esta segunda vitória. Lembre-se que o demônio é uma fera
insaciável, que não está aí para lutar batalhas com você. Ele está a fim de
estraçalhar você, como fazem leões e os tigres.8

Tratando-se, portanto, de uma batalha de vida ou morte, a tua vitória bonita


não valerá nada se não destruir as paixões inimigas e os apetites espúrios. E
a destruição definitiva só será absolutamente certa e segura quando você

8
Sobre o Demônio, em perfeita consonância com o pensamento atual da Igreja, atual da Igreja, expresso
no Catecismo recentemente publicado (1993), veja a próxima nota deste capítulo.
sentir repugnância por aquelas coisas que lhe atraiam. Repugnância por
aqueles movimentos dos sentidos, que é acrescida de desprezo e,
finalmente, ódio e abominação. Aí, sim, só então, que o demônio estará
vencido, e irá rondar outras vítimas para matar e comer, mas longe de você.

Não basta combatermos os nossos inimigos por ser nossa obrigação, ou


porque com isso agradamos a Deus. É preciso que os combatamos com
todo o ódio que possamos ter no nosso coração. Se não for assim, corremos
sério perigo de sermos vencidos na próxima batalha.

É por isto que é preciso um segundo e um terceiro combate, para que você
afaste de si, de uma vez por todas, esses apetites e paixões desordenados e
comece a construir sobre o terreno conquistado, aperfeiçoando a sua alma e
embelezando-a com os hábitos da virtude.

b) Dos atos interiores

Para começar, será necessário que você pratique atos interiores contrários
às suas paixões desenfreadas de outrora. Um bom hábito para ser adquirido
nessa fase de consolidação da vitória é o da paciência. Para consegui-lo,
você procederá da seguinte maneira: digamos que uma pessoa lhe provoque
impaciência, por mostrar pouco apreço por você. Não basta que você
combata a impaciência até vencê-la na forma aqui sugerida. Você terá que
fazer um esforço maior e mais difícil: o de aceitar e até mesmo receber bem
o desprezo recebido. Não deve, em hipótese alguma, pretender modificar a
opinião da pessoa que o despreza, pois isto seria fazer exatamente o que o
diabo quer. Para dobrá-lo e botá-lo pra correr, tem que ficar comprovada a
derrota dele, pois a verdadeira intenção dele não é a de fazer que você seja
desprezado, e sim que você sofra com o desprezo alheio. Quanto menos
você sofrer, mais derrotado será o diabo e se você não sofrer absolutamente
nada, a derrota dele será completa.

A razão pela qual tais atos contrários são necessários para que nos
aperfeiçoemos nas virtudes, é que os outros atos, por muitos e fortes que
sejam, não são suficientes para extirpar as raízes dos nossos erros. Por isso,
se não fizermos esforço quando somos desprezados, conforme o exemplo,
no sentido de até chegar a gostar do desprezo, não poderemos nos livrar
nunca daquela impaciência com que reagimos, devido à inclinação que têm
as pessoas para amar a sua reputação e o conceito dos outros sobre si.

Se a raiz viciosa ficar viva, vai germinando e enfraquecendo a virtude, que


pode chegar a ser totalmente sufocada. Se isto não acontecer, haverá
sempre o perigo de você cair em qualquer ocasião que se apresente.

Sem esses atos contrários, portanto, jamais poderemos adquirir o


verdadeiro hábito das virtudes.

c) Da frequência dos atos conducentes à virtude

Os atos que a vontade deve fazer para adquirir os hábitos da virtude,


deverão ser tão frequentes e numerosos que possam destruir o hábito
vicioso. O vício, (no sentido de coisa errada e não de coisa compulsiva),
pode chegar a tomar conta de um coração, o que ocorre, sempre, através de
uma sucessão de atos. Deverá, portanto, ser combatido, para que seja
extirpado e, em seu lugar, tenhamos hábitos virtuosos. O combate exigirá,
também, uma sucessão de atos corretivos.

Digo ainda mais. Para adquirir um hábito virtuoso, são necessários atos
bons em número superior aos atos ruins formadores do hábito vicioso.

Por que razão? Porque os hábitos maus são ajudados por nossa natureza,
que é facilmente corruptível.

A luta deve ser frequente e contínua, mesmo que, em alguma ocasião lhe
pareça árida, e você sinta que os atos virtuosos são praticados com uma
certa frieza, como se estivessem sendo praticados contra a vontade. Se
assim te parecer, não te incomodes. Siga em frente, praticando os atos
porque, por fracos que fossem — e não são — seriam eles que te tornariam
seguro na batalha e te levariam à estrada da vitória.
Outra coisa: cuide de combater não somente os desejos grandes, mas
também os pequeninos apetites de qualquer paixão, porque estes abrem o
caminho para os grandes, gerando-se, então os hábitos viciosos.

Do pouco cuidado que tiveram em arrancar dos seus corações as plantas


daninhas destas vontadezinhas, aconteceu a muitos que depois de terem
vencido os apetites maiores de uma paixão, foram assaltados e vencidos,
quando menos esperavam, pelos mesmos inimigos que antes haviam
derrotado.

d) Conclusão

Filha e filho:

Falo com grande clareza: se você quer, mesmo vencer este combate
espiritual, conseguirá reformar e vencer a si mesmo, tomando a peito estes
exercícios e conceitos de que lhe venho falando neste livrinho.
Asseguro-lhe que em pouco tempo, você avançará no caminho da virtude,
deixando de ser vítima dos apetites estimulados pelo demônio, para vir a
ser um ente espiritual repleto do espírito divino, pois o Espírito já habita no
teu interior.

Mas se você preferir agir de outra maneira, e enveredar por outros


caminhos, ninguém irá tolher a sua liberdade, que é um bem a ser
preservado, mas você nunca irá adquirir a virtude e o espírito verdadeiro
que está buscando.

Pois, como já falei no primeiro capítulo, a virtude não consiste nem nasce
das coisas agradáveis à nossa natureza, mas daquelas que consistem no
sacrifício dos prazeres ilusórios que a nossa natureza comanda.

Então, renovado o homem, se assemelhará ao seu Crucificado e Criador.

Ninguém duvida de que assim, como os atos viciosos podem chegar a


dominar em nós devido a muitos e frequentes atos da vontade superior que
cede aos apetites dos sentidos, assim também podemos chegar aos hábitos
das virtudes, se praticarmos muitos o frequentes atos conducentes aqueles
hábitos, conformes, sempre, à divina vontade.

Pois assim como nossa vontade jamais será viciosa e terrena, a não ser
quando ceder, também não estará ela unida a Deus e não será virtuosa a não
ser quando, com atos internos, atendermos à voz da graça e praticarmos os
atos externos que forem necessários.

III - Momento de perigo: o que devemos fazer quando a


vontade superior parece vencida e completamente sufocada
pelos inimigos

Às vezes ocorre, no meio da batalha um sentimento de desânimo e de


impotência diante do inimigo. Parece que nada podemos contra a vontade
inferior e os apetites que continuam dominando, porque não sentimos em
nós mesmos uma vontade eficaz contra eles.

É bom você saber o seguinte, quando pensar na sua fraqueza: nesta batalha
os resultados operam de uma forma diferente. Se você não desistir do
combate, será vitorioso. O que conta é você resistir, é não ceder, porque o
inimigo está pouco ligando para a batalha: o que ele quer é você. É ver
você derrotado, caído, ou parado, cansado de lutar.

Entenda que a nossa vontade superior, da mesma forma como prescinde da


vontade inferior para produzir os seus atos, assim também, enquanto ela
não quiser, jamais poderá se ver obrigada a dar-se por vencida, por mais
asperamente que seja combatida. Nós subestimamos a força da nossa
vontade superior. Deus dotou-a dessa força como parte e complemento da
nossa total liberdade de decidir, que é nosso maior dom e privilégio sobre
todas as demais criaturas.

Esta força e liberdade são tamanhas que se todos os sentidos, juntamente


com todos os demônios do mundo, se armassem contra elas, combatendo-as
com toda a violência, mesmo assim a vontade, com liberdade completa,
poderia querer ou não querer tudo aquilo que quer ou não quer, por quanto
tempo e do modo que quiser e com o intuito que lhe aprouver.

E se estes inimigos te assaltarem alguma vez com uma violência tamanha,


que tua vontade não tenha força para produzir algum ato contrário, não
desanimes, não atires as armas por terra, mas serve-te, neste caso, da língua
e defende-te dizendo: “NÃO CONSINTO. NÃO QUERO!”

Esta luta é uma luta de disposição e de perseverança. Luta-se com o que se


tem na mão, nem que seja somente a determinação de lutar. Atacado pelo
inimigo, se você não puder feri-lo com a ponta da espada, fira-o com o coto
da arma. Ajude a fraqueza da vontade com a força da inteligência,
concentrando a atenção nos pontos principais a serem considerados.
Fazendo esse exame, você estimula a vontade e lhe dá tempo para criar
ânimo para enfrentar o inimigo.

Por exemplo:

Você se sente, no meio de um trabalho qualquer, assaltado por uma onda de


impaciência, que a sua vontade não pode ou não quer refrear. Veja como
você pode, nessa circunstância, fortalecer a sua vontade, meditando sobre
os seguintes pontos:

Primeiro:

Quem sabe, você merece o mal por que está passando. Se for assim, medite
sobre a conveniência de que você suporte pacientemente a ferida que você
mesmo fez em si, com a sua própria mão.

Segundo:

Se os seus aborrecimentos não são consequência de nenhuma falta sua, faça


um exame do seu passado próximo, para ver se não houve uma ou mais
quedas anteriores, pelas quais a sua consciência tenha que responder. No
final das contas, talvez, no lugar da sua simples impaciência, o que deveria
estar havendo é remorso.

Terceiro:

Lembre-se que a sua capacidade de medir a intensidade dos créditos pelos


atos juntos, e débitos por falhas é precária, e que somos mais propensos,
por natureza, a crer que temos muitos créditos e poucos débitos.

Quarto:

Não existe nenhum outro caminho para a salvação a não ser o da cruz. E
ainda que houvesse um outro caminho, pela lei do amor que prende você a
Deus, você não iria desejar receber um tratamento mais privilegiado do que
o nosso modelo, que é Jesus Cristo, e o de todos os Santos que sofreram por
você.

Quinto:

Se você meditar sobre a vontade de Deus, verá que, pelo amor que tem a
você, ele gosta de vê-lo lutando como um valente soldado, mesmo que seja
em meio à mortificação. Ele quer que o seu fiel e generoso guerreiro
corresponda ao seu amor.

Em qualquer circunstância, tenha sempre por certo que tanto maior será a
alegria do Senhor quanto maiores forem as tuas tarefas, e que estas serão
brilhantemente executadas. Quaisquer que sejam as dificuldades e
obstáculos, ele te ajudará a transpor, pois mesmo nas coisas mais
desordenadas em si mesmas, o Senhor cumpre a sua divina vontade, pois
tem seus planos perfeitíssimos em tudo o que acontece, por desregrado que
seja.
Do modo de combater
I - Alguns conselhos a respeito do modo de combater e,
especialmente, contra o que, e com que

Você viu que é preciso combater a si mesmo para vencer o próprio ego e
ganhar a coroa de louros da virtude. Para alcançar com maior pressa e
facilidade a vitória contra os inimigo você deverá, porém, combater com
ânimo todos os dias, particularmente o amor próprio. Neste combate, você
terá como aliados os desgostos e os desprezos que o mundo te possa dar,
conforme já foi explicado nos capítulos anteriores.9

Assim como também já foi dito que as vitórias nesta luta são difíceis, raras,
imperfeitos e, em muitas ocasiões, passageiras.

Você já sabe, também, que o combate deve ser empenhado com grande
fortaleza, e que esta não lhe será negada, se for pedida a Deus.

Por outro lado, a força do inimigo é enorme, e feroz o seu ódio, que cresce
ainda mais quando se prolonga a resistência. Mas você sabe que a vontade
de Deus e o amor que ele nos dedica superam tudo, pois são infinitamente
maiores do que tudo o que está no mundo. E muito mais poderosos são
ainda, com o reforço dos anjos do céu e das orações dos santos, que
combatem do nosso lado.

Pensando assim, entendemos facilmente por que motivos tantos e tantos


jovens venceram o poder e a sabedoria do mundo, os assaltos da carne e
toda a raiva do inferno.

Não é capaz de causar preocupação, portanto, se algumas vezes a batalha


parecer mais árdua e mais difícil, e que não terá mais fim, pois você já deve

9
Empregamos deliberadamente o termo freudiano ego, desconhecido do autor, por mais adequar-se ao
contexto. Feita a ressalva, por ser um emprego excepcional à regra de fidelidade à terminologia aqui
adotada.
saber que todo o poder e a força dos nossos inimigos podem ser contidos
nas mãos do nosso divino Comandante. Nós combatemos por sua honra e,
se foi ele mesmo que nos chamou à batalha e nos ama desmedidamente,
não permitirá que a luta seja forte demais para as tuas forças. Ele combaterá
pessoalmente, por ti, a teu lado e te fará vitorioso.

E tanto maior será a tua recompensa quanto mais tempo durar o combate,
mesmo que dure toda a tua vida.

À você, o que compete fazer é combater generosamente. E se você for


ferido, não largue as armas nem fuja, pois todos os recursos são aqui
apresentados, indicando o que fazer nas piores circunstâncias.

Finalmente, para que você combata com valor, é preciso ter sempre em
mente que esta luta é fatal, e que não nos podemos furtar a ela, pois é a
sobrevivência da nossa alma que está em jogo. E que quem não combate, já
está, desde logo, entregue ao Príncipe da Morte e seu bando de chacais, de
quem será pasto e alimento. Cedo será ferido e morto.

Inimigos de tal espécie e tão cheios de ódio e gana assassino, de quem não
se pode jamais esperar paz e trégua, têm que ser guerreados com energia e
sem cessar, até a vitória final, que já nos está assegurada.

II - O soldado se deve apresentar ao campo de luta logo nas


primeiras horas do dia

Quando você se levantar, a primeira coisa que os seus olhos devem ver é
você mesmo, na arena da luta, com esta lei: ou o combate ou a morte
eterna.

Na arena, estarão na sua frente, as suas inclinações más, contra as quais


você já combateu, em outras ocasiões. Elas estarão armadas para te ferirem
e te darem a morte. Do teu lado direito estará o teu vitorioso general
comandante, Jesus Cristo, com muitos batalhões de anjos e santos e,
particularmente, São Miguel Arcanjo. Do lado esquerdo, o Demônio, com
os seus asseclas, prontos para te vencer, excitando as tuas paixões,
instigando-te a ceder, para te darem a morte.

Você, então, imaginará que uma voz, como que a do seu anjo da guarda,
esteja falando a você desta forma:

“Hoje deves combater contra estes e outros inimigos teus. Que o teu
coração não tema. Não desanimes. Não cedas por temor ou por respeito,
porque o Senhor nosso e teu General está aqui, junto de ti, com todos estes
gloriosos batalhões. Todos combaterão contra os teus inimigos, e não
permitirão que te assaltos com demasiada ferocidade. Resiste, pois, mesmo
que tenhas que praticar violências a ti mesmo e suportar as penas que
padecerás, ao empunhar esta batalha. Grita, no íntimo do teu coração, e
invoca o teu Senhor, implora o auxílio da sua Mãe Santíssima e de todos os
santos e assim, sem dúvida, vencerás.

Se te sentes fraco ou despreparado, ou se teus inimigos são fortes e são


muitos, lembra-te que maiores ainda são os socorros de quem te criou e te
salvou, e não te esqueças de que o teu Deus é muito mais forte, e que a
vontade de teu Senhor, de te salvar é maior do que a do Demônio, de te
perder.

Combate, então, e não te desanime o que vais sofrer. A fadiga, a violência


contra as tuas inclinações más, a pena que sentirás devido aos maus hábitos
adquiridos, tornam mais bela a vitória e te fazem possuidor do grande
tesouro com que se compra o: reino dos céus e se une a alma eternamente
com o Senhor”.

Você começará o combate com as armas da desconfiança de si mesmo, da


confiança em Deus, do exercício e da oração, examinadas neste livrinho,
em diversos de seus capítulos.

Como foi aqui também dito, você chamará à batalha os seus inimigos e as
inclinações más que tanto mal fazem a você, e estará pronto para vencer
estes vícios com os atos das virtudes que lhes são contrárias. Agradará,
assim, ao Senhor que contempla a batalha, com toda a Igreja Triunfante.

Relembro, também, a você, que não se deve furtarão combate, repetindo,


para que se fixe bem na sua mente, que a necessidade de combater é
imprescindível, porque quem foge é vencido.

Também é preciso que você não se esqueça de que mesmo tendo uma vida
pacífica, afastada dos combates de que trata este livro, e entregue à vida
mundana e às delícias da carne, estaria a sua vida cheia de contrariedades e,
muitas vezes, você ficaria com o coração numa angústia de morte.

Finalmente, pense na loucura que seria se você procurasse as delícias do


mundo ao custo da sua alma e da sua personalidade, deixando de ser quem
você é, vivendo cheio de angústias, de medos, de sustos e de pesadelos,
culminando tudo isso com a morte eterna, só para fugir duma vida virtuosa,
unida, no final, eternamente, ao nosso Deus, num prazer tão bom e tão
gostoso que não se pode descrever.

III - Da ordem que se deve guardar no combate às nossas


paixões viciosas

É importante saber a ordem que se deve guardar no combate, para que não
façamos como muitos, que combatem ao acaso, sofrendo grande dano.

Você deve olhar dentro do seu coração e fazer um minucioso exame dos
pensamentos que se agitam dentro da sua alma, das paixões más que a
oprimem.

Feito este levantamento do campo de batalha, tome as suas armas e entre,


correndo, no combate contra as forças do Príncipe do Mal, começando pelo
ataque frontal contra aqueles pensamentos, vontades, inclinações e paixões
que conseguiu identificar quando fez a análise prévia da situação.
Se acontecer que, ao entrar no campo de batalha, você seja assaltado por
outros inimigos imprevistos, não há dúvida de que você deverá combater,
prioritariamente, contra aquilo que mais de perto lhe faz guerra naquele
momento. Cessado, entretanto, o combate, volte logo ao empreendimento
principal.

IV - Como resistir à pressão das paixões ou dos impulsos

Em primeiro lugar, você tem que estar com o ânimo preparado para receber
o choque do impacto das injúrias inesperadas, ou qualquer outra coisa que
te contrarie, que te pegue de surpresa.

A maneira de alcançar este grau de preparação é adquirindo o hábito de


prever e de receber muitas vezes estas contrariedades, até chegar ao ponto
de desejá-las e esperá-las. Se você estiver com o ânimo preparado, a
expectativa do embate passa a ser como uma luta desportiva que aperfeiçoa
o adestramento, a forma física e o controle emocional.

O modo de prever é o seguinte: você terá em conta as suas paixões às


diversas contrariedades, e depois os lugares em que estas poderão ocorrer,
em função das pessoas que compõem o sou círculo de relacionamento.

Assim preparado para absorver o choque de qualquer coisas que


sobrevenha, você poderá utilizar o seu estado de sobreaviso para se
defender de alguma outra coisa adversa, mais inesperada e não prevista.
Além de já ter um “sistema de defesa”, em estado de alerta, estará também
mais fortalecido pelo próprio trabalho de preparação previamente
desenvolvido.

Iniciando-se o combate, logo ao receber os primeiros golpes mortificantes


ou, se não tanto, qualquer coisa penosa, eleve logo a mente a Deus, já
estando ciente de que nada tem a temer, porque ele é seu Pai amoroso e de
total bondade, que só pode desejar o melhor para você. Se é ele que
mandou aquela adversidade, você só terá que ganhar. Suporta-a com
paciência e com amor ao nosso Criador.
Se, a princípio, enquanto prevalecer em você a paixão, você sentir que não
pode elevar a mente a Deus, vença todas as resistências e dirija-se ao Pai,
como se não tivesse nenhum obstáculo. Ele receberá a sua mensagem, não
tenha dúvida.

Outra defesa preventiva contra as paixões malignas está no afastamento das


ocasiões donde procedem.

Por exemplo: se você constatar que o afeto que tem por alguma coisa está
influindo demasiadamente no seu ânimo a ponto de alterá-lo, quando a
coisa mortifica, o modo de livrar-se dessas situações é procurar livrar-se do
afeto.

Mas, se a alteração procede, não da coisa, mas da pessoa, cujas ações, por
pequenas e insignificantes que sejam, enraivecem, o remédio será outro:
cuide de inclinar a sua vontade superior a amar aquela pessoa. Ela é uma
criatura tanto quanto você, criada pela mesma mão divina, resgatada pelo
mesmo divino sangue. Deus está ensejando a você uma ocasião rara e
preciosa de assemelhar-se a ele, prodigalizando, como o faz o Senhor, um
amor bendito e benigno para com todos.

V - Contra o vício da carne

Contra este instinto, facilmente desviável, e, por isso mesmo, potente


gerador de problemas e sofrimentos quando nos leva por caminhos
errôneos, é preciso combater de modo diverso daquele que empregamos ao
combater as outras paixões.

Cumpre dividir, assim, a luta:


a) antes da tentação;
b) durante a tentação;
c) depois da tentação.
9) Antes da tentação, a batalha será contra as causas que costumam
produzir estas tentações.

Primeiro: nesta fase, você não deve afrontar a tentação, e, portanto, o


combate se limitará a táticas de retirada, fugindo decididamente de
qualquer ocasião ou pessoa que possa causar perigo. Se for inevitável a
presença ou o trato com a pessoa, que seja o mais curto possível, guardando
uma postura recatada e uma expressão séria. As palavras devem ser
proferidas formalmente, e antes sejam ásperas que adocicadas.

Se você vem lidando com a pessoa há longos anos sem sentir os estímulos
da carne, não se fie nisso. O instinto faz, às vezes, em uma hora, o que não
fez em muitos anos. Como bom caçador que é, o diabo sabe esconder muito
bem as suas armadilhas no meio da mata ou em campo aberto. E o jogo do
sexo é um dos seus prediletos, pelos males que pode causar.

A degeneração das relações também agrada muito a ele. A convivência


permanente e contínua de duas pessoas puras ou que sejam parentes é
sempre perigosa: por grande que seja a virtude da pessoa com quem
tratamos, pouco a pouco se vai imiscuindo naquele trato imprudente um
venenoso deleite dos sentidos, que cresce insensivelmente. O amor sensível
penetra, então, para ofuscar a razão, e depois sempre mais e mais, até que
as coisas perigosas sejam minimizadas e tratadas como se nada fossem: os
olhares amorosos, as palavras ousadas de um para o outro, os gestos
provocantes, a postura das mãos, os sorrisos convidativos. Tudo vira hábito,
e... abre-se a porteira que solta os cavalos galopantes das tentações.

Insisto: O remédio contra a mais fraca e inócua das tentações é a fuga.


Porque você, note bem, como a palha molhada de virtude, encharcada de
água de boa vontade e boas intenções preferirá, agora, morrer mil vezes a
ofender a Deus. Mas, que adianta isto, se o fogo, com seu calor, vai
evaporando a água da boa vontade e, quando menos se pensar, queimará a
palha? E o homem, sucumbido à tentação, não guardará respeito nem a
parentes nem a amigos, não temerá a Deus, não olhará a honra, nem a vida,
nem as penas todas do inferno.
Foge, foge, antes de começar a queda, que te conduzirá à destruição e à
morte.

Segundo: cuidado com o ócio, que é o ponto de partida para muitos maus
atos. Esteja sempre vigilante, ocupando o tempo com trabalhos que
garantam a sua segurança, em vez de perdê-la. O ócio, nas terras de clima
quente, é pejado de sensualidade, e excita os castos.

Terceiro: para os religiosos, é importante cumprir com prontidão as ordens


dos seus superiores, não lhes opondo resistência, ainda que pareçam
injustas, humilhantes ou descabidas.

Quarto: não faça juízos temerários de ninguém, principalmente a respeito


de castidade. O demônio adora juízos temerários, porque são pequenas
usurpações do direito de julgar, que pertence a Deus. Quando ferem
reputações, ele se refocila de alegria, porque, além de fazerem o mal às
pessoas atingidas, causam desunião e desordem.

Se vês alguém cair, compadece-te dele e não o desprezes. Pelo contrário,


pense-nos perigos de queda que te cercam, humilha-te na consciência do pó
que és, e procura sempre conhecer-te um pouco mais, para estares sempre
mais prevenido, hoje, um pouco mais do que ontem e, amanhã, um pouco
mais do que hoje. Reza a Deus e, mais do que tudo, foge de tudo onde vejas
sombra de perigo.

Deus costuma corrigir aqueles que estão sempre dispostos a julgar os seus
semelhantes e a desprezar os pecadores, permitindo que caiam no mesmo
defeito, a fim de que se corrijam, à sua própria custa e adquiram horror à
soberba. E, se depois disto tudo, você não mudar os seus pensamentos,
muito será de desconfiar do estado da sua alma.

Quinto e último: você facilmente cairá, se cometer o erro de entregar-se a


uma complacência consigo mesmo, persuadindo-se de que pelo fato de se
sentir em altas esferas espirituais, atingiu ao ponto de superar todas as suas
fraquezas e todos os seus inimigos. Pensará que está imune às tentações e
que os inimigos já não farão guerra. Por maior que seja o seu ódio e horror
a eles e quanto o mais desprezá-los, mais vulnerável você estará, e mais
afastado do caminho certo, que é justamente, o inverso.

b) Durante a tentação, examine a sua origem, distinguindo entre os motivos


extrínsecos e intrínsecos.

Entendo por extrínsecos a curiosidade dos olhos e dos ouvidos, o exagerado


cuidado na maneira de vestir, e as práticas e conversas que levam à
perdição pela via da sensualidade.10

Neste caso, o remédio é a retidão, o recato e o cuidado em não querer nada


que seja conducente ao desregramento da sensualidade, em não ver nada
que excite a esse desregramento e em não consentir que os sentidos se
viciem, abrindo a porta à licença total. Também a fuga, logo que
pressentido o perigo, é a melhor das defesas.11

Os motivos intrínsecos procedem de estímulos orgânicos ou psicológicos,


ou seja, da vivacidade do nosso corpo ou de pensamentos que temos, ou por
causa de nossos maus hábitos ou por sugestão do demônio.12
10
O tema da curiosidade é examinado no Nono Capítulo, que foi reescrito com a ressalva relativa à
inserção de terminologia atualizada, valendo também para a sua complementação com alguns conceitos
adaptados à nossa época. É ali analisado o impacto dos meios de comunicação de massa sobre a formação
do discernimento, efeito que se aplica, também ao tema deste capítulo.

A curiosidade dos olhos e dos ouvidos é satisfeita, tendenciosamente, pelos meios de comunicação, que
utilizam a sensualidade e a perversão dos sentidos como o seu melhor e mais eficaz instrumento de
marketing num círculo vicioso de tentação e remuneração.

11
Quanto à retidão e ao recato, o pensamento do autor está perfeitamente sintonizado com o da ciência
médica e antropológica mais recentes. O Criador não faz nada sem razão: a pureza e a retidão no uso dos
sentidos é condição essencial para a virtude e para a perfeição espiritual, para a saúde física individual e
coletiva e para o equilíbrio emocional do homem e dos grupos sociais.
12
O Catecismo da Igreja Católica oferece sobre esta matéria os seguintes ensinamentos:

nº 2338 - “A pessoa casta mantém a integridade das forças vitais e de amor depositadas nela. Esta
integridade garante a unidade da pessoa e se opõe a todo comportamento que venha a feri-la; não tolera
nem a vida dupla nem a linguagem dupla”.

nº 2339 - “A castidade comporta uma aprendizagem do domínio de si, que é uma pedagogia da liberdade
humana. A alternativa é clara: Ou o homem comanda suas paixões e obtém a paz, ou se deixa subjugar
Para o corpo, a disciplina é a mortificação, mais ou menos eficaz, na
proporção da sua intensidade e dos meios utilizados: jejuns, penitências,
vigílias, etc.

Quanto aos pensamentos, venham donde vier, os remédios são os seguintes:


ocupação, oração e meditação.

A ocupação é o melhor remédio contra o ócio e seus efeitos nefastos. Ela


será tanto mais eficaz quanto corresponda à normalidade do nosso
comportamento rotineiro.

A oração, de que são apresentados exemplos no final deste capítulo, deve


ser um pedido direto de ajuda dirigido ao Jesus crucificado.

Quanto à meditação a ser desenvolvida durante a tentação, é matéria que


merece maior exame e análise por ser sobremaneira enganadora.

A sutileza do diabo conduz a tua mente a concentrar-se na condenação de


uma coisa que é má, com o objetivo de te fazer pensar demasiadamente e
repetidas vezes na causa da tentação. Isto tem um propósito malicioso.
Enquanto você medita, condenando a vileza dessa atração sensual,
recordando os desgostos que lhe causa, as tristezas que se seguem à
constatação da força dos instintos insaciáveis e os perigos que eles

por elas e se torna infeliz” (Cf. Eclo 1,22). A dignidade do homem exige que ele possa agir de acordo com
uma opção consciente e livre, isto é, movido e levado por convicção pessoal e não por força de um
impulso cego ou debaixo de mera coação externa”.

nº 2341 - “A virtude da castidade deve ser comandada pela virtude cardeal da temperança, que tem em
vista impregnar de razão as paixões e os apetites da sensibilidade humana”.

nº 2342 - “O domínio de si mesmo é um trabalho a longo prazo. Nunca deve ser considerado
definitivamente adquirido. Supõe um esforço a ser retomado em todas as idades da vida”.

nº 2349 - Da castidade segundo os estados de vida.

nº 2350 - Da castidade dos noivos.

nºs 2351/2356 - As ofensas à castidade.

nºs 2357/2359 - Castidade e homossexualidade.


acarretam à sua saúde e à sua honra, você corre o perigo de deleitar-se com
a recordação da coisa maligna e de consentir no deleite.

Por este motivo, a meditação não é o remédio. Novamente, aqui, a solução


é fugir. Fugir de quaisquer pensamentos, recordações ou meditações sobre
a tua perdição, pois são pensamentos instigados pelo demônio.

Se meditação houver, você a fará, tendo como tema e núcleo central a vida
e a paixão de Cristo Crucificado, ressaltando a pureza e a castidade da sua
vida e a sua resistência a todas as tentações.

Mesmo durante esta forma de meditação, podem voltar à sua mente,


contrariando a sua vontade, os mesmos pensamentos que dantes lhe
tentaram. Isto acontece com muitas pessoas. Se acontecer com você, não se
preocupe e não interrompa a sua meditação, fixando-a, mais atentamente,
ainda, na pessoa de Jesus Cristo, e ignorando aqueles pensamentos, como
se não existissem, pois até em imaginá-los, há perigo.

Diga, em prece: “Livra-me, Criador e Redentor meu, dos meus inimigos”, e


ele te livrará.

Uma outra malícia, que é como uma ramificação da anterior, consiste em


encher você de dúvidas sobre se consentiu ou não na tentação, com duplo
objetivo: causar inquietação com a sua própria fraqueza, e fazer retornar à
mente aqueles pensamentos, para que você caia em algum deleite.

Nestas horas, é grande a ajuda da confissão e do conselho espiritual. Abra a


sua alma e obtenha a graça da reconciliação. A virtude da humildade atua,
nestas horas, pois é o castigo da soberba, capa diabólica que é feita
precisamente para encobrir os demais vícios.

c) Passada a tentação, o que restará a você fazer, por mais seguro (ou
segura) que você pense estar, é afastar da mente aqueles objetos que
ocasionavam a tentação. Até aí, o demônio estará presente, iludindo,
enganando, fazendo que, até mesmo por desejo de virtude, você seja
inclinado a voltar a pensar sobre o seu desvio. É por isto que o combate tem
de ser permanente.

Porque uma das grandes fraudes da nossa natureza viciosa e um dos laços
do nosso sagaz adversário é transformar-se em anjo de luz, para nos cobrir
de trevas.

VI - A negligência

Soldado negligente, cai nas mãos do inimigo, se não perecer antes. Para que
você não se torne escravo (ou escrava) deste pecado, deverá afastar-se de
três tentações que são as que abrem caminho para este tipo de perdição: a
curiosidade, o apego demasiado aos bens e prazeres terrenos e as ocupações
inconvenientes, ou malignas.13

A melhor forma de combate à negligência é a prática da disciplina: cumprir


ordens com presteza e animação, mantendo-se em constante movimento.
Ser pontual e diligente, evitando que os sentidos se habituem à ociosidade,
porque se isto: ocorrer, você cederá mais facilmente do que no princípio,
pois já estará preso ao prazer provado.

E, dessa forma, você se irá habituando a chegar mais tarde: no trabalho,


encontrando justificativa para ir para casa mais cedo, considerando
merecidas as horas de descanso e de lazer.

Pouco a pouco, ir-se-á formando o hábito da negligência, que se tornará


totalmente forte e tremendamente eficaz na destruição de todas as suas
virtudes, enquanto você continuar iludido e desavisado, pensando que o seu
problema é pequenino e: de fácil solução. Só quando ocorrer uma falta
13
Aplica-se, aqui, à palavra curiosidade o mesmo sentido em que é o tema analisado no NONO
CAPÍTULO e na Nota nº 8 disposta no CAPÍTULO 19. A curiosidade não era, na época em que foi
escrito este livro, em 1589, estimulada e até, mesmo, orientada pelos meios de comunicação de massa,
como ocorre nos dias atuais. Atraído, inicialmente, pela curiosidade, com o uso das técnicas publicitárias,
é o público submetido à excitação dos apetites sensuais, e desviado para um continuado lazer. Estas horas
demasiadas sem ocupação produzem a negligência à que se refere o autor, no início deste capítulo. Da
mesma forma é assim estimulado o apego aos prazeres terrenos e aos hábitos malignos, num ataque
conjunto às virtudes da alma, que pode ser classificado como demoníaco, no sentido do combate espiritual
de que trata este livro.
grave, de consequências danosas, como, por exemplo, a perda de um
emprego ou a execução por dívidas, você se dará conta dos estragos, que a
negligência causou na sua alma.

No início, o nosso remorso é pequeno, e totalmente inócuo: um sentimento


de repugnância por nós mesmos, que se traduzirá, no campo da vontade, em
meros propósitos e promessas de sermos mais solícitos e diligentes na
próxima vez.

Veja você, portanto, que a negligência tem o vasto alcance de atingir toda a
nossa alma. Seu veneno infeccionará a vontade, fazendo-nos perder o gosto
pelo trabalho e alcançará a inteligência, obcecando-a de modo tal que não
conseguirá distinguir a inutilidade dos nossos vãos propósitos de resistir à
tentação.

No combate à negligência, não basta fazermos o que devemos fazer, a


qualquer momento. O fator tempo tem aí uma importante implicação. É
preciso esperar a hora de realizar as coisas, o seu tempo próprio, para que o
dever seja cumprido com toda a diligência, com a máxima perfeição
possível.

Sim, porque pode vir a ser uma finíssima forma de negligência fazer o
trabalho antes do tempo. E, pior ainda, fazê-lo apressadamente e sem
cuidado, com os olhos fitos no descanso que poderemos desfrutar depois. O
fato de ter sido efetuado no seu tempo certo acresce o valor do trabalho.
Aos soldados novos, mais vulneráveis ao pecado da negligência, estes erros
acarretam grande mal à alma, porque não é considerado, em favor do
executante, o valor que tem uma obra boa, feita no seu tempo. Por isso,
você deve enfrentar com ânimo resoluto a fadiga e os dificuldades que o
vício da negligência apresenta sempre dos menos preparados, confiando na
ajuda do seu Comandante, que está sempre presente, a seu lado.

Não se esqueça de pedir, constantemente, a Deus, pois isto lhe dá muita


alegria. Uma só elevação da mente a ele, e uma só genuflexão em sua honra,
vale mais que todos os tesouros do mundo. E sempre que no reforço de
nossa alma, fazemos qualquer violência a nós mesmos e às nossas paixões
viciosas, na luta do combate, brigadas de anjos vêm em nosso auxílio,
trazendo do reino dos céus uma coroa de gloriosa vitória.

Os diligentes vão, assim, acumulando graças para que suas almas subam,
cada vez mais, para perto de Deus. São oportunidades que vamos perdendo,
à medida que, afundados na preguiça, nada fazemos para conseguir vitórias
sobre nós mesmos.

Pode acontecer que você, no início da batalha, sinta que não tem energia
para reagir vigorosamente contra a fadiga. Nessas ocasiões, o que você
deve fazer é lutar com as forças que tenha, e esconder dos outros as suas
dificuldades, para que pareçam menores do que dizem delas os negligentes.

Não se inquiete diante dos casos e das situações mais difíceis. Às vezes,
você terá que praticar muitos e muitos atos para conquistar uma virtude,
desgastando-se com esforços grandes seguidos. Estando cansado, os
inimigos parecerão a você mais fortes do que são, na realidade. Também
nesses casos, você deverá minimizar as dificuldades. Siga adiante na luta
como se não fosse importância aos obstáculos, imaginando que é por pouco
tempo que você estará sofrendo a fadiga do combate. E pense que está
lutando contra um só inimigo, como se não restassem outros vencidos.

Deste modo, a sua negligência começará a se enfraquecer, e a sua alma se


irá dispondo a adquirir a virtude contrária.

E tenha sempre, em tudo, uma total confiança no auxílio que Deus te dará,
muito mais forte do que o poder dos inimigos.

Esta fórmula, que consiste em reduzir a imagem do tamanho obra a realizar


e do desafio a vencer, e seguir para a luta apoiado no auxílio de Deus,
aplica-se a outras situações.

Veja o esforço a ser despendido nas orações mais longas. Se, de início, elas
te tomem uma hora e isto te pareça pesado à tua negligência, comece a
rezar considerando que a duração da oração passará de 1/8 (um oitavo de
hora, ou seja 7 minutos e meio). Você que passou facilmente do primeiro
oitavo ao segundo, sentir, e depois do segundo ao terceiro, e assim por
diante.

Mas, se no segundo ou nalgum outro oitavo de hora você notará que a


dificuldade e o cansaço estão fortes demais, deixe para depois a oração.
Não se esqueça, porém, de retomar o exercício, mais e, quando estiver
descansado, e prestes a cair no ócio.

Este recurso, que é divino, pela via do Espírito Santo, também se aplica aos
trabalhos manuais e ao estudo dos alunos que têm de se preparar para
provas escritas ou orais, ou em todos os casos, em que: você tiver que fazer
muitas coisas que pareçam trabalhosas demais.

Mesmo que a tua negligência te aflija, ampliando o tamanho trabalho na


hora em que deves iniciá-lo, comece a luta corajosamente, dividindo o
labor em tarefas parciais, a serem realizadas por etapas, e empreenda uma
das tarefas, como se fosse a única. Você logo verá que chegou ao final do
trabalho ou do estudo, enfim, da obra que tinha pela frente, com muito mais
facilidade e muito mais rapidamente do que lhe parecera no início — e com
menos fadiga.

Esta é a sensação de vitória que sentem os vencedores, que sabem onde está
a verdadeira batalha e o verdadeiro desafio: em nós mesmos.

Faça como eles, pois se você deixar a negligência tomar conta, viverá
sempre assustado pela fadiga que irá sentir sempre que tiver que exercitar a
virtude, e apavorado pelas crescentes dificuldades e sacrifícios que advirão
dos trabalhos futuros. Viverás sempre ansioso, temendo os futuros assaltos
do inimigo e receando a todo momento que alguém te venha impor alguma
coisa desagradável. Será infeliz.

O vício é um inimigo dissimulado, porque se confunde com os males


menores e não violentos. Cuidado com ele! Pouco a pouco, com seu veneno
escondido, ataca as primeiras e pequeninas raízes que fariam crescer os
hábitos das virtudes. E, pior ainda, fere também os hábitos já adquiridos.
Como o cupim, vai roendo insensivelmente e consumindo os centros vitais
da vida espiritual.

É um dos instrumentos queridos do demônio, pela sua dissimulação,


covardia e eficácia. Com ele, o assassino arma o seu laço contra todos os
homens, especialmente contra os mais piedosos.

Vigia, portanto, reza, e pratica o bem, mas sempre de olhos bem abertos, e
procurando manter-se em constante atividade, a fim de que os teus
intervalos de descanso sejam verdadeiros, e nos momentos de entrega à
suave sensação de torpor sensual que caracteriza a molície, e a preguiça
corporal e espiritual.

Use, portanto, saudavelmente, todos os teus minutos e segundos, de acordo


com a vontade divina e como se fossem os últimos tua vida.

Concluo aconselhando a você, filho e filha amados, que procure alcançar


aquele ponto de aperfeiçoamento da virtude da diligência, em que seja
considerado como perdido o dia em que, mesmo tendo trabalhado muito e
intensamente, você não tenha conseguido todas as vitórias que desejava na
luta contra as más inclinações, esmagando a vontade própria, mal orientada.
Ou que não tenha agradecido suficientemente ao Senhor pelos benefícios
que lhe concedeu pessoalmente, além da dádiva da salvação, que nos deu a
todos nós pelo sacrifício da sua sagrada Paixão.
Fortalecimento espiritual
I - A razão da existência dos sentidos

Conhecidas as armas de que você dispõe para empreender o combate, o


campo de batalha e os inimigos que terá de enfrentar, as modalidades de
combate e o modo de combater, é tempo de que você receba um reforço de
munição espiritual, para aumentar a sua capacidade de luta.

Este fortalecimento necessário vem, naturalmente, da meditação sobre nós


mesmos e sobre o valor que nos atribui o nosso Comandante, pois nós
compartilhamos com ele esse valor; criados que fomos, à sua imagem.

É preciso que entendamos bem o que significa para nós termos sido criados
à própria imagem de Deus, a fim de que nos conheçamos melhor, de corpo
e alma.

Comecemos pelos nossos sentidos exteriores que, como já visto, requerem


contínuo cuidado e atenção. Para regrarmos os nossos sentidos, muito
exercício se faz necessário. A nossa natureza corrompida combate,
geralmente, sob o comando das forças inimigas, que a capturam numa ou
noutra parte, quando não no todo. São generais inimigos encarregados das
diversas frentes de batalha, os apetites, que são impulsos livres, oriundos
dos nossos sentidos, facilmente corrompíveis, e fáceis na traição. A
natureza, que procura somente prazeres e contentamentos, é presa fácil dos
apetites. Não podendo buscar o prazer por si mesma, a natureza serve-se
dos sentidos, como se fossem soldados seus e seus instrumentos naturais.
Alcançam estes, os objetos, e estampam suas imagens em nossa alma,
imagens que são, sempre muito agradáveis e deleitosas. O prazer logo se
segue e, sendo comum à imaginação e à parte carnal, o prazer se espalha
por todos os sentimentos que sejam capazes de gozar deste deleite, a alma e
o corpo passam a contagiar-se mutuamente, de maneira crescente, e, no
final, tudo se corrompe.
É por isso que estas noções de fortalecimento espiritual são importantes
para que você possa combater melhor e com mais: eficiência, ou seja,
combater para vencer.

Você tem que impedir que os seus sentidos andem por onde queiram, e só
sejam utilizados quando você é movido, exclusivamente, pelo desejo de
deleitar-se no prazer.

Vigie atentamente os seus sentidos. Use-os unicamente para bons


propósitos, algum motivo vantajoso ou uma real necessidade, nunca por
mero prazer. Se eles atuarem desordenadamente, sem rumo certo, isto
poderá, por vezes, passar despercebido; se transgredirem os parâmetros
fixados pela razão, confira imediatamente o que estiver acontecendo, e
assuma o controle. Os sentidos devem ser regulados de tal forma que, em
vez de se prenderem aos objetos em busca do falso prazer, passem a
acostumar-se a obter daqueles mesmos objetos grandes ajudas para o
aperfeiçoamento da alma. A alma, então, estará capacitada a elevar-se do
estágio do conhecimento das coisas terrenas para a contemplação da
bondade divina.

Caberá a você impedir, com suas próprias forças, o enfraquecimento da sua


vontade. Para conseguir bons resultados neste esforço, procure orientar as
suas ações para uma finalidade nobre e que dê bons frutos, abrindo as asas
das tuas faculdades para os voos que te levarão sempre para níveis
espirituais cada vez mais altos.

Esta é a análise da situação. Vamos, agora, ao o que fazer e ao como fazer.

A maneira de escapar do cerco dos sentidos consiste em distinguir da capa


de aparência externa que reveste as coisas, a sua essência de origem divina,
que existe desde a criação, desde que passou a ser.

Como conseguir fazer essa distinção?


Assim: quando algum objeto agradável aos sentidos se apresenta, não se
deixe absorver pelos seus elementos materiais. Pense, primeiro, para que o
objeto seja apreciado racionalmente pela inteligência. Se houver nele
alguma coisa que agrade aos sentidos, lembre-se de que esta qualidade não
provém da coisa em si, mas de Deus. Com o uso da sua inteligência, separe
da coisa o espírito de Deus, que ali habita. Você logo se dará conta do que
aquele objeto não possui, de si mesmo, nada daquilo que nele se vê, pois
nele tudo é obra de Deus, que lhe dá o ser, à beleza, a bondade e todo o
bem que ali existe.

Satanás não ousa entrar neste círculo, onde o Senhor é exaltado,


soberanamente, como o único princípio de tantas e variados perfeições.
Estas perfeições, Deus as possui todas, em si mesmo, em grau muito mais
perfeito, pois tudo o que existe na criação são similares imperfeitos das
divinas perfeições.

Assim, quando você estiver admirando as coisas mais nobres, os olhos do


espírito verão nelas a presença do Criador que lhes deu ser, Tua inteligência
permitirá que reduzas a nada a criatura diante do Sumo Criador que ali se
encontra. E teu coração dirá palavras de amor como estas: “Ó essência
divina que sustentas as nossas, amor, quanto me alegro por seres o
princípio infinito de todo o criado!”

Do mesmo modo, contemplando as árvores, as flores e semelhantes, você


verá nelas o espírito invisível que não conseguimos ver com o sentido da
visão, mas que sabemos que é o vivificador de: todas as coisas. Você
poderá, então, dizer: “Eis a verdadeira vida, de: quem, em quem e por quem
existem e crescem todas as coisas!”

E, quando tu vires os animais, grandes e pequenos, mansos e ferozes,


elevarás a mente a Deus, que lhes dá o movimento e os sentidos, e dirás: “Ó
movimentador primeiro de todas as coisas, que tudo moves e sois Imóvel!
Quanto me alegro da tua estabilidade é firmeza!”
Se a beleza das criaturas te encanta, distingue logo aquilo que: vês daquilo
que não vês, e considera como toda aquela exterioridade bela foi causada
pelo Espírito Invisível: “Eis os rios que emanam da fonte incriada, eis as
gotas do infinito mar de bondade. Como me alegro íntimo do meu coração,
pensando na eterna e imensa beleza, que é origem e causa de toda a
beleza!”

Reparando na bondade, sabedoria, justiça e noutras virtudes, do teu


próximo, faz a mesma distinção e diz a teu Deus: “Ó riquíssimo tesouro de
virtude, quanta felicidade me dá a lembrança de que por ti e de ti
unicamente derivam todos os bens, e tudo, comparado, com tuas divinas
perfeições, nada é!”

E quando moveres as mãos para fazeres algo, recorda-te que Deus é a causa
primeira daquela operação e tu nada mais, és que seu instrumento vivo.
Comendo e bebendo, considera que é Deus que dá gosto às coisas. Se te
agrada o odor de ah: algum perfume, não se atenha meramente ao prazer do
olfato, mas volte o seu pensamento ao Senhor que é a causa daquele: aroma
agradável, como se você dissesse: “Faz, Senhor, com que, assim como me
alegra saber que procede de ti esta suavidade, assim também a minha alma,
desprendida de qualquer prazer terreno, se eleve e tenha um odor que te
seja agradável”.

E quando você ouve alguma dessas maravilhosas harmonias de sons e de


cantos, a tua alma elevar-se-á até Deus, nesta pequena oração, com que
fechamos o capítulo:

“Quanto me alegro, Senhor e Deus meu, por tuas infinitas perfeições que
dentro de ti, já são harmonias celestiais e que, juntamente com os anjos
formam um maravilhoso concerto em todas as criaturas”.

II - Como regrarmos os nossos sentidos, fazendo uso das


coisas do mundo
Já mostrei a você como podemos elevar a mente das coisas sensíveis para
Aquele que as criou, exercício que tem por finalidade neutralizar o efeito da
atuação dos sentidos desregrados.

Vamos, agora, repetir o mesmo exercício de elevação espiritual, passando


das mesmas coisas à meditação sobre o Criador sobre o seu Filho, o Verbo
que se fez carne e viveu entre nós, o Espírito Santo, o Paráclito, sempre
ativo na nossa proteção e ensinamento, e a Igreja Triunfante dos Santos e
dos Anjos, tendo à frente a Pessoa Imaculada de Nossa Senhora e, aqui na
terra, militante e peregrina, prosseguindo a missão que lhe deu o seu
fundador e cabeça do seu Corpo Místico, pelos Apóstolos e os sucessores
destes, e os fiéis leigos, que somos nós.

Para o nosso exercício, que será como um jogo de inteligência e de


imaginação, qualquer coisa da vasta natureza pode servir de ponto de
partida, pois o nosso pensamento nos conduzirá sempre ao ponto de
chegada, que será a nossa meta espiritual.

No capítulo anterior o nosso exercício limitou-se a um único objeto: o Deus


Criador, causa primeira de tudo, que deu às coisas o ser, à beleza e o bem,
que constitui a sua substância essencial.

Do Criador, nossa meditação dirige-se, naturalmente, ao Pai, contemplando


a grandeza e a imensidade da bondade divina, atributo do seu amor infinito
por toda a Criação. E logo nos vem à mente a prova deste amor, na pessoa
do Filho, que veio à terra, rebaixando-se para viver no meio de nós,
encarnando-se para fazer-se homem em tudo igual a nós, menos no pecado.

E Deus Pai permitiu que as suas criaturas corrompidas pelo pecado


hostilizassem aquele que tinha vindo ao mundo para nos salvar a todos, e o
crucificassem. Para a salvação do homem, confiou esta missão a Jesus
Cristo, que a cumpriu, valorosamente, até à vitória final, no alto da cruz.

O sacrifício da Paixão será a meta do nosso exercício espiritual deste


capítulo. Os exemplos que serão apresentados a seguir poderão ser
completados e acrescidos por você, utilizando a inteligência, a memória, a
imaginação e a inspiração.

Façamos, pois, o nosso exercício, partindo das imagens de coisas terrenas,


para demonstrar que elas podem ser utilizadas para nos conduzir à
meditação sobre o amor de Deus, fortalecendo a nossa fé e o nosso amor
pelo Cristo Crucificado.

Comecemos pelos objetos mais simples, que cumpriram um papel sinistro


naquelas horas de suplício de um homem inocente, tratado como o pior dos
criminosos: as cordas com que o amarraram para ser supliciado, os chicotes
que lhe cortaram a carne, o arbusto do espinheiro e os ramos com que
fizeram a coroa de espinhos que lhe sangrou a fronte, o manto de púrpura
utilizado para o escárnio dos guardas, os insultos destes, no meio dos
espancamentos, o cuspe da injúria feita no seu próprio rosto, depois
esbofeteado, os gritos da multidão pedindo sua morte.

Depois, a subida do Gólgota, carregando a cruz, os ferimentos nos ombros,


as quedas, as zombarias dos inimigos, os pregos, as batidas do martelo ao
ser pregado na cruz, o letreiro infamante, a tremenda dor física e moral, a
tristeza de ver a sua mãe e seus amigos queridos, a partilha das vestes, a
disputa da túnica em jogo de sorte, o cumprimento das profecias, o sangue
correndo das chagas, a esponja de vinagre, a entrega de sua mãe ao
discípulo amado e a sua própria entrega, final, ao Pai.

Morto, a lançada no seu corpo, a água e o sangue vertidos, a treva, as


rochas fendidas, o terremoto, lançando à superfície os mortos enterrados,
alguns deles ressuscitados, o véu do templo rompido de alto a baixo.

Os atos mais corriqueiros da nossa vida cotidiana trazem à memória aquele


sacrifício do nosso Salvador. As cordas são usadas para amarrar as pessoas
que vão ser supliciadas ou mortas, como ele o foi. Mesmo imóveis, os
chicotes falam eloquentemente da violência feita aos corpos humanos. A
vista de um arbusto de espinheiro nos conduz àquela hora terrível de
sofrimento físico e moral da coroação, no meio da pancadaria, das cuspidas
e dos esbofeteamentos.

Toda vez que um inocente é insultado e escarnecido, repete-se pela


milésima, pela milionésima vez, o pecado da multidão enlouquecida,
sedenta de sangue.

A cruz... Nenhum artefato de madeira, rudimentar, duas traves cruzadas,


pode dizer tanto: recordação do suplício, é a síntese de tudo o que
aconteceu naquele dia, marco do início de uma nova civilização. Para nós,
símbolo do amor do nosso Pai, que não nos deixou perecer no meio do
nosso pecado, e mandou seu filho resgatar-nos pessoalmente,
ensinando-nos a suportar a dor e o sofrimento até à morte, pela causa da
salvação. Símbolo da nossa Igreja.

As batidas do martelo, batidas do coração de Jesus no horto, ao se


aproximar a hora da Paixão. Batidas do nosso coração, sintonizado com o
dele. Batidas das horas, nos relógios, dos sinos, ritmando a obra da
construção do nosso reino...

E quando você estiver sofrendo dor física ou moral, pense na pequenez do


seu sofrimento comparado com as angústias indescritíveis que afligiram a
alma e o corpo daquele homem.

Medite sobre esta lista dos sofrimentos de uma só pessoa, recebidos quase
que todos de uma vez, porém separados, na sequência do tempo, para
aumentar a dor.

Pense no diálogo do sofrimento dos olhares de mãe e filho; na partilha das


vestes, cumprindo as profecias; na esponja com vinagre na vara de hissopo:
e, finalmente, pense no sangue vertido, que fecundou a terra e as almas, no
sangue e água de que aquele corpo virou fonte.

Para concluir o exercício, como bom aluno, medite você sozinho sobre o
final da lista. Depois da morte, a treva, as rochas fendidas, o terremoto, o
véu do templo, e veja como as coisas terrenas estão impregnadas da
presença divina.

Foi isto que eu quis mostrar a você, filho meu, e a você, filha minha, neste
capítulo, para o seu fortalecimento espiritual.

III - O terceiro exercício14

Conforme foi dito no capítulo precedente, o nosso exercício de


fortalecimento espiritual tem como meta alcançar a meditação sobre as
ideias mais elevadas, utilizando como ponto de partida imagens das coisas
mais simples.

No início daquele capítulo apresentamos as metas espirituais do nosso


exercício que já se havia iniciado no capítulo 21, tendo como objeto a ideia
do Deus Criador, causa primeira de tudo. Em sequência, dedicamos todo o
capítulo 22 ao sacrifício da Paixão.

E agora, concluindo o exercício, vamos passar das coisas sensíveis às


coisas eternas, utilizando outros modos de meditar, para que tenhamos
muitos e diversos alimentos, já que os gostos das almas são tão diferentes
entre si.

Além disto, serão úteis não somente às pessoas simples, mas ainda aos de
inteligência elevada e mais avançados na vida do espírito, os quais nem
sempre estão dispostos a especulações mais altas e mais complexas do que
as deste nosso simples jogo de ideias.

Adapta-se, o nosso exercício, igualmente, às mentes jovens, que anseiam


entrar desde logo em combate, e aos mais sisudos, que se comprazem nos
desafios do jogo intelectual.

14
Texto adaptado à atenção dos leitores leigos e mais jovens. Para maior fluidez do texto, preponderância
da sonoridade sobre a rigidez gráfica, no uso alternado da 2º e 3º pessoa, no final do capítulo.
Comecemos, pois, tomando como ponto de partida as imagens seguintes:
sol, céu, pássaros voando, mãe, cruz, construção, uma pessoa lendo,
gorjeios dos pássaros, beleza das criaturas, passos de alguém caminhando,
um objeto que hoje te alegra, água escorrendo, criança descalça.

O exercício pode ser feito oralmente ou por escrito, por você sozinho, ou
em companhia de outra pessoa, ou em grupo. Não há vencedor ou
vencedores, porque todos chegarão às metas espirituais no final do
exercício.

Veja você agora um dos caminhos por onde a meditação pode conduzir.
São inúmeros os caminhos, uns mais longos, outros mais curtos, uns mais
objetivos, outros mais elaborados. Faça o seu próprio roteiro.

Voltando tua vista para o sol, lembra-te de que tua alma é ainda mais lúcida
e brilhante, se está na graça do Senhor. Medita na beleza fulgurante de uma
alma pura iluminada pelos raios de sol do Espírito Santo. E veja que
milagre admirável é este que se repete todos os dias: o sol envia seus raios
através de milhões de quilômetros e os raios nos tocam, fisicamente, como
se fossem as pontas dos dedos de uma pessoa viva.

Assim é o Espírito Santo, em sua ação diuturna por nós, para nós, sempre
cuidando de nós, curando-nos o corpo, que ele alcança fisicamente, como o
sol, e aquecendo com o seu calor a nossa alma, onde penetra para nos
ensinar, estimular e alertar, como a luz do sol que vai vasculhar aqueles
cantinhos obscuros onde os defeitos gostam de se esconder.

Elevando ao céu os olhos do seu corpo, penetre com os de sua alma no


celeste reino, fixando ali o pensamento, como se você já tivesse chegado no
seu futuro lar.

No céu, está a Igreja Triunfante, com a multidão dos Anjos, e todos os


Santos, tendo à frente, como pessoa de primeira grandeza, a Virgem Santa,
mãe de Jesus, Nossa Senhora.
Também ao céu nos conduzem as coisas da beleza celestial que existem na
terra, tudo o que a Arte verdadeira produz, e as que a natureza nos oferece
de presente, como a alvorada, como o gorjeio dos pássaros, aos quais se
juntam os nossos cantos de louvor ao nosso Criador, no cenário das nuvens
coloridas e do horizonte infinito.

Alegra-nos a beleza dos criaturas, mas temos por dever o de investigar se


essa beleza tem origem na harmonia que une todas as coisas eternas para
elevar-nos ao céu, ou, ao contrário, ali se esconde a serpente infernal,
pronta para trazer-nos a perdição. Pense, então, como ficará, depois de
morto, o objeto que hoje nos alegra, como os restos da comida depois da
festa, e logo você perceberá como é precária a aparência das coisas
perecíveis.

Pássaros voando, tendo como fundo o azul do céu, são rumos


desconhecidos, como os das luzes que riscam o céu noturno, que nos
mostram a rapidez da nossa passagem pela terra. Passos de alguém
caminhando, nos fazem lembrar de Jesus em sua contínua peregrinação
pelos montes e pelas planícies, levando ao povo as palavras do Pai.
Também caminha, na terra, a Igreja peregrina, cumprindo a mesma missão
dada aos Apóstolos, até o dia em que se irá unir à Igreja Triunfante.
Estamos todos caminhando em direção à nossa meta final, que é o Novo
Reino, o reino do Amor.

A construção do Novo Reino, obra conjunta de toda a Igreja que reúne


ordenados e leigos, meta espiritual deste nosso exercício, que alcançamos
pela meditação, exercício que pode partir das imagens mais simples da
nossa vida cotidiana: a casa que se edifica, os tijolos que a compõem, os
operários trabalhando, as paredes se erguendo, o teto e a festa da cumeeira,
comemorando o final da obra.

Concluímos aqui o exercício que estamos fazendo nestes três capítulos de


fortalecimento espiritual. Espero que você tenha aprendido a defender-se
das investidas dos sentidos pelo uso racional da mente dirigida à meditação
objetiva.
E encerramos esta série de três capítulos com uma meditação final. Esta é a
de que, na realidade, o nosso exercício não se acaba nunca. Não lhe
apresentei estes modos de regrar os sentidos para que você ficasse
envolvido em exercícios. Foi só uma forma de adestrar você, pois o que eu
quero é que a sua mente esteja voltada para as metas espirituais, e não para
os meios que nos conduzem a elas. O que Deus quer de nós é que
vençamos o combate, eliminando os nossos inimigos pela prática dos atos
correspondentes às virtudes que lhes são contrárias.

Você tem, agora, na mente, o esquema do jogo intelectual que lhe irá
conduzir para as coisas do alto. Água escorrendo, tempo que se esvai;
criança descalça, nossa simplicidade; opressão, dor, melancolia, aceitação
da vontade divina; Deus que nos ama; pensamento bom, agradecimento a
ele; vacilação, ajuda do Espírito Santo; elogios, cuidado com a vanglória,
está na hora de tomar a pílula da humildade...

Quando você lê, veja debaixo daquelas palavras o Senhor e receba-as como
se estivessem saindo da sua própria boca.

A firme convicção de que todos os bons pensamentos vêm de Deus levarão


você a agradecer ao Pai da luz, sempre que a sua mente for iluminada.

E assim, você irá automatizando conscientemente os seus reflexos mentais


até prescindir de exercícios que lhe protejam contra os reflexos dos sentidos,
quase sempre enganosos.

Para concluir, meu filho, ou minha filha, vou lhe dar algumas das mais
gratas reflexões que alegram a nossa alma religiosa, por se referirem às
pessoas mais queridas, que tanto nos amam.

Quando te cair sob os olhos uma imagem da Virgem, volta teu coração
àquela rainha do paraíso, louvando-a pela docilidade com que sempre
obedeceu à vontade de seu Deus. Agradeça-lhe, ainda, o ter dado à luz,
alimentado e nutrido com seu leito o Redentor do mundo, e os favores e
auxílios que ela não cessa de te dispensar neste combate espiritual.

As imagens dos santos, que façam você recordar-se dos heróis que lutam
valorosamente e de todos aqueles que abriram para você a estrada por onde
caminha. Lembre-se que você será, como eles, coroado de perpétua glória.

Vendo uma igreja, grande ou pequena, seja uma capela ou uma catedral,
pense que tua alma é o templo de Deus que deves conservar, sempre puro e
limpo.

Na hora do Angelus, quando se escuta a Ave-Maria, alegre-se com ela


pelas grandezas a que foi elevada sem nada perder da sua singular e
profundíssima humildade, adore junto com ela e o anjo Gabriel que
anunciou, o divino Menino concedido, agradecendo a Deus por nos tê-lo
enviado para nos salvar, num ímpeto de amor, do seu amor por nós, que é
eterno.

Dos males da loquacidade e do modo de pôr freio à língua

À loquacidade é a mãe da desafeição, ou seja, do afastamento de amigos,


por perda de afeto, é a arma da ignorância e da insensatez, a porta da crítica
descaridosa, o veículo das mentiras e o esfriamento da devoção.

A língua do homem precisa muito de regra e de freio, porque não há quem


não esteja grandemente inclinado a falar e discorrer sobre as coisas que
mais agradam aos sentidos, quando não a falar pelo mero prazer de ouvir-se
e ver-se falando, sem maior preocupação com o conteúdo do discurso, É
este o psitacismo, palavra que provém de um pássaro que fala, o papagaio.

É devido a uma certa forma de soberba que, na maioria dos casos, somos
levados a falar muito. Este mesmo orgulho nos leva a persuadirmos a nós
mesmos de que sabemos muito, a nos comprazermos com as nossas
opiniões e a procurarmos que os outros as aceitem, para que tenhamos
autoridade sobre eles, como se todos precisassem aprender de nós.
Infelizmente, não podemos, aqui, com poucas palavras, falar do mal que
provém das muitas palavras.

Mas o fato é que as muitas palavras dão força às paixões viciosas e estas,
por sua vez, incitam, depois, à língua a que continue na sua loquacidade
indiscreta.

O comportamento aconselhável é este: com os que não te ouvem de boa


vontade, não sejas longo, para não molestá-los. Com os que gostam de te
ouvir, sejas breve, para valorizar ainda mais o apreço deles pelo teu
discurso, além de evitares incorrer na imodéstia, que é coisa que não agrada
a ninguém.

Por isto mesmo, fuja de falar com ardor e voz alta, porque ambas as coisas
são odiosas, pois são indício de presunção e vaidade.

À não ser por uma necessidade especial, não fale da sua pessoa, dos seus
atos e dos seus amigos ou parentes. Se parecer a você que outros falam de
si mesmos em demasia, esforce-se para não fazer mau juízo deles, mas não
os imite, pois suas palavras são uma acusação do seu modo de ser e podem
conduzi-los a situações em que se sintam humilhados.

Uma boa proteção para que não falemos mal das outras pessoas é pensar o
menos possível sobre elas e sobre as coisas que lhes pertencem ou que eles
façam. Se tiver que falar, que fales sempre bem deles.

Mas o melhor, mesmo, é ouvir, em vez de falar. Prestar ouvidos, quando


outro fala, guardando tuas palavras bem guardadas no fundo do teu
coração.

De boa vontade, fale somente sobre Deus e seu amor por nós. Mas, mesmo
assim, tenha sempre receio de poder, eventualmente, cometer algum erro.
Mal cheguem aos seus ouvidos as vozes de outras pessoas, eleve o seu
pensamento até o céu, onde habita o nosso Deus, e pense na grandeza das
coisas eternas comparada à pequenez da nossa condição humana.

Antes de falar sobre as coisas que entram em teu coração, pense, primeiro.
Porque, mais tarde, você desejará que não tivesse falado. Muitas coisas que
hoje achamos ser bom que se diga, melhor seria que as tivéssemos deixado
sepultadas no silêncio. Você poderá vir a admitir este fato, quando pensar
sobre o assunto, mais tarde, depois de passada a ocasião do primeiro
raciocínio.

O silêncio, meu filho, é uma grande fortaleza na batalha espiritual e


garantia de vitória. E, em qualquer combate, o falastrão é um perdedor
nato.

No nosso combate, o silêncio é o amigo daquele que desconfia de si mesmo


e confia em Deus. É um auxílio maravilhoso no exercício das virtudes, e só
com o silêncio podemos fazer oração contínua.

É preciso que você faça exercício diário da virtude do silêncio. Quanto


mais necessário que seja que você se eduque a si mesmo nesta virtude, mais
urgente é que inicie a sua disciplina, aqui e agora. Para que você se
acostume a calar-se, tenha sempre em mente os danos e perigos da
loquacidade e os grandes benefícios do silêncio. Faça crescer em você o
amor por esta virtude e para adquirir-lhe o hábito, cale-se mesmo naquelas
ocasiões em que não ficaria mal falar. Se isto não prejudicar nem a você
nem aos outros, cale-se, e faça disto uma norma de vida.

E tanto quanto mais você ame o silêncio, odeie a tagarelice, esta filha da
futilidade e irmã da maledicência e da intriga, causadoras de tantas
lágrimas e desavenças.

Para isso, ser-te-á útil fugir das conversações vazias. Você perderá, sim, um
pouco da companhia dos homens, mas terá a dos anjos, dos santos, e do
próprio Deus, que, no silêncio, dizem tudo.
Finalmente, recorde-se da tarefa que tem em suas mãos, para executar. E ao
ver quanto ainda resta por fazer, você não terá vontade para conversar em
demasia...

Como fugir das inquietações do coração

Se perdemos a paz do coração, tudo devemos fazer para recuperá-la, É


importante que você saiba que, por disposição do nosso Pai e Criador,
nenhum acontecimento deste mundo é razão de que percamos ou turbemos
a paz do coração.

Existem, naturalmente, outras formas de tristeza e de inquietação. Mas é


uma dor pacífica, como, por exemplo, a que acompanha o arrependimento
pelas nossas faltas. Do mesmo modo nos compadecemos, com piedoso
afeto de solidária caridade, de outro qualquer pecador. Ao menos
interiormente, podemos: lamentar as suas culpas, como lamentamos as
nossas, mas sem machucar a nossa alma.

O que para os maus é castigo, para os bons pode vir a ser ocasião de
aperfeiçoamento da virtude. Assim devemos receber os grandes males, os
acontecimentos graves, como as enfermidades, os ferimentos ou o
falecimento de nossos companheiros, ou pestes, guerras, incêndios e males
semelhantes, que são incêndios à nossa natureza e, por isso, não aceitos
pela nossa inteligência. Mas devemos pensar, com sabedoria, que tudo
aquilo que venha a contribuir para a nossa salvação, por via da graça, deve
ser bem-vindo e até mesmo, desejado. Sabendo que Deus está conosco,
atravessaremos todas as atribulações com paz no coração e suportaremos,
com a alma tranquila, todas as amarguras e contrariedades desta vida.

Pai extremoso, a Deus desagrada toda inquietação nossa, porque esta vem,
quase sempre, acompanhada de alguma imperfeição, e procede de alguma
raiz de amor próprio.
O cuidado que você deve tomar é o seguinte: mal você perceba que alguma
coisa começa a inquietar, não se demore a tomar armas para a defesa. O
primeiro pensamento deve ser o de que aqueles males e muitos outros
semelhantes, embora tenham aparência de mal, não são verdadeiramente
males, e deles se pode tirar valiosas lições e seguro aperfeiçoamento. O
segundo pensamento é o de que se Deus lhe envia estas coisas ou se
permite que você as sofra, é com uma finalidade, que, sem dúvida é boa
para você, pois os seus propósitos são, sempre. Justíssimos e santíssimos,
de acordo com o bem essencial, que constitui a sua natureza divina.

Se você conseguir manter o ânimo tranquilo e em paz, mesmo nos


acontecimentos desagradáveis, poderá fazer muito bem.

De outro modo, tudo o que você fizer será sempre pouco, ou nada frutuoso.
Além disso, quem tem o coração inquieto está exposto a diversos golpes
dos inimigos, e não poderá, naquele estado, ver bem qual é o verdadeiro
caminho da virtude.

A nossa paz interior desagrada sobremaneira ao nosso inimigo maior, que


lhe tem ódio, por saber que nela habita o espírito de Deus. Procura, ele,
então, desfazer aquilo que tanto o molesta, insinuando, com inspirações
amigas, novos desejos de aparência virtuosa, que irão provocar futuras
quedas, para, com isso, atingir a tranquilidade da nossa alma, e empurrá-la
para o abismo.

Mas, o embuste pode ser reconhecido, não somente pelos sinais que já
aprendemos a distinguir, como pela inquietação que traz ao nosso coração,
que é indício da malícia de Satanás.

Para você fugir do perigo, a defesa está no exame minucioso de cada novo
desejo, começando pela sentinela da atenção, que deve estar sempre alerta
nas portas da nossa cidadela. Quando vier o desejo, não lhe abras a entrada
do coração sem primeiro levá-lo a Deus, antes de que se tenha formado
qualquer vontade. Peça a Deus, com insistência, que te ilumine e te faça ver
se o novo desejo vem dele ou do adversário.
Mesmo provado que o desejo vem de Deus, mortifique um pouco a tua
vivacidade antes de atender-lhe. Essa mortificação agradará a Deus, que
está sempre desejando que você afaste de si os desejos maus, e só siga os
bons, depois de haver reprimido os movimentos naturais. Este é o caminho
que lhe dará a paz e a calma, num coração que terá fortaleza de rocha.

Mas é preciso conservar o coração em completo sossego, protegendo-o


contra certos remorsos interiores que, em algumas das vezes, procedem do
demônio, e se disfarçam com acusações de pretensas faltas para que
pareçam vir de Deus.

Não podemos deixar que prosperem essas empulhações do diabo, pois não
se pode dar a menor guarida a quem nos quer matar. Temos que distinguir e
eliminar todas as suas tentativas.

Pelos frutos, sabemos de onde vêm as acusações. Se elas nos humilham,


nos estimulam a fazer as obras certas e não afetam a nossa confiança em
Deus, podemos reconhecê-las como oriundas do bem.

Se, ao contrário, nos confundem, diminuem a nossa confiança e nos tornam


fracos, preguiçosos e sem diligência para a prática do bem, você pode ficar
certo de que o remorso é arte do Diabo, enganadora, para nos perder.
Simplesmente não dê ouvidos e siga em frente.

Ficamos debilitados e vulneráveis quando submetidos a acontecimentos


adversos. É necessário que cada um se defenda, e o primeiro passo que
você tem que dar é examinar bem o caso para saber se os acontecimentos
atingem à alma ou ao amor próprio. Se forem contrários ao teu amor
próprio e à tua vontade autônoma que são tropas inimigas, você não deve
considerar que os acontecimentos sejam adversos, e sim, pelo contrário,
considerá-los favores e graças do Altíssimo Deus. Devem, portanto, ser
recebidos com coração alegre. Se são contrários ao espírito, nem por isso se
deve perder a calma do coração. Este assunto será examinado mais
extensivamente no capítulo seguinte.
Uma outra garantia contra as inquietações do coração estará assegurada a
você, se mantiver sempre elevada a mente para as coisas de Deus,
recebendo da divina Providência, de olhos fechados, tudo aquilo que ela lhe
enviar, pois serão tesouros cujo valor só com o correr do tempo você
conseguirá avaliar.

Do que devemos fazer quando somos feridos

Deus, que te ama, lastima as tuas quedas, mas exulta de alegria quando te
vê levantar-te valentemente, depois da queda, e empunhar a arma para
voltar a combater.

Por isto, não desanimes nem te inquietes quando fores ferido por teres
caído devido à fraqueza diante de alguma tentação. O que o Senhor gosta
de ouvir é: “Meu Deus, me perdoe, mas eu agi segundo o que sou; mas eu
vou mudar, porque se continuar assim não se poderá esperar de mim outra
coisa senão quedas”.

Tendo-se arrependido, não perca a paz. Examine, sim, atenciosamente as


falhas que originaram a queda, e despreze as paixões viciosas que a
causaram. Dirija-se a Deus, novamente, agradecendo a sua bondade e o seu
amparo, sem os quais você teria pecado muitas outras vezes, e,
admirando-o, ame-o um pouco mais, por sua clemência, pois, tendo sido ele
o ofendido, estendeu a mão para evitar que você caísse novamente.

A partir daí, não se ponha a pensar se Deus te perdoou ou não, pois isto,
sob a capa de diversos pretextos bons, nada é senão soberba, inquietação da
inteligência, perda de tempo e engano do demônio.

Abandonemo-nos livremente nas mãos de Deus e continuemos na luta da


vida, como se não tivéssemos caído.

Lembre-se do que foi dito no princípio deste capítulo sobre a queda. Para
Deus, o que importa é o levantar-se depois. Mesmo que tornemos a cair
uma, duas ou muitas vezes por dia, façamos sempre do mesmo modo,
confiando em Deus e nos dirigindo a ele em oração. Arrependimento,
esforço crescente para termos maior cautela, e ódio ao pecado.

Este exercício desagrada muito ao demônio, porque ele sabe que não leva
nada de quem assim se comporta, e odeia ver que estamos dando grande
alegria a Deus. E fica rosnando, todo confundido, ao se ver vencido por
quem ele, antes, vencera.

É preciso que tenhamos muita atenção, nestes momentos, para as reações


do Porco. Ele vai procurar de diversas maneiras fraudulentas, obter que
mudemos o nosso comportamento. Se ficarmos pouco vigilantes ou
negligentes, ele consegue, pois não podemos alcançar com nossa
imaginação todos os embustes e falsidades de que ele pode fazer uso. Uma
delas é a nossa intranquilidade de coração.

Por causa disto, a tua reação deverá ser sempre vigorosa. Quanto maiores
as dificuldades encontradas, mais duras as mortificações que temos que
fazer a nós mesmos. E, mesmo que você tenha caído uma única vez, repita
muitas vezes o exercício de negar alguma coisa a si mesmo, para recuperar
a paz, a tranquilidade de coração e a autoconfiança. Em posse destas armas,
volte-se para o Senhor, pois a inquietação que você sentiu, lembrando-se do
pecado praticado, não é causada pela ofensa a Deus, mas pelo dano sofrido.

Tudo isto aumenta muito a nossa aproximação com Deus, e frustra os


planos do demônio, ferindo-o muito, pois o que ele não quer é que você
recupere a paz.

São golpes fortíssimos dados contra o demônio a tua serena e continua


tranquilidade, obtida graças à confiança crescente que devemos ter na
bondade de Deus por crermos com uma fé inabalável na sua misericórdia.
Devemos saber que Deus está sempre pronto a nos perdoar porque ele
deseja, mesmo, fazê-lo, por mais grave que seja a nossa culpa. Ele chama o
pecador por diversas maneiras e, utilizando variados caminhos, para
alcançá-lo.
Nessa união com nosso Pai querido, o demônio se enfraquece muito em sua
malignidade, em sua capacidade de fazer mal. E desaparecerá de vez da
nossa vida, quando a nossa união com o Senhor for ainda mais completa,
pela graça santificante.

Com estas considerações, você conseguirá manter em paz a sua mente


quando voltar a pensar em sua queda.

Depois, na confissão, a que devemos recorrer frequentemente, você poderá


acusar todas as quedas que teve. Com uma contrição, arrependa-se das
ofensas feitas a Deus, e exponha com sinceridade as tuas faltas, com firme
propósito de não mais ofendê-lo.

Tua paz interior estará assim assegurada, para resistires às novas investidas
do nosso inimigo.
Das manhas do demônio
I - Contra os virtuosos e contra os pecadores

O demônio tem por meta a nossa perdição, e não combate contra todos de
uma só maneira.

Vamos aqui examinar os seus processos e estratagemas, mas, antes


devemos saber um pouco sobre o estado em que se encontra o homem.

- Alguns vivem na servidão do pecado, sem nenhuma ideia de se


libertarem.

- Outros querem libertar-se, mas não se animam a começar a luta.

- Outros pensam estar caminhando na estrada da virtude, mas dela se


afastam.

- Outros, enfim, depois de adquirirem a virtude, caem em grande perdição.

Vamos discorrer sobre todos estes, separadamente, nos capítulos


subsequentes.

II - Contra os pecadores

Quando o demônio consegue reter algum homem na servidão do pecado, só


cuida de uma coisa: prendê-lo cada vez mais, obcecando-o com a vida que
leva, de maneira a mantê-lo afastado de qualquer pensamento que pudesse
levá-lo ao conhecimento e percepção de sua infelicíssima vida.

Não somente procura o diabo impedir que ele tenha pensamentos e


inspirações que o induzam a trocar ideias com outros, como prepara
circunstâncias e ocasiões para fazer com que caia ainda mais no seu pecado,
ou em outros maiores.
E assim, tornando-se mais forte e cega a sua cegueira, o pecador vem a se
precipitar e habituar sempre mais no pecado. É então que cai numa cegueira
ainda maior e num maior pecado ainda, e assim vai vivendo neste círculo
vicioso até a morte, se Deus não o socorre com uma graça especial.

É este o quadro da situação, e só Deus poderá mudá-lo vindo em seu


auxílio, se você encontrar-se nesta contingência.

O Senhor te tirará das trevas para a luz se pedires, gritando do íntimo do teu
coração: “Ajuda-me, Senhor, vem depressa socorrer-me! Não me deixes
nestas trevas do pecado!” Este pedido deve ser repetido, insistentemente.

E lembre-se que você, sendo batizado, tem toda a Igreja em seu auxílio.
Procure o padre da sua paróquia, pedindo-lhe a ajuda e o conselho de que
você necessitará para livrar-se do inimigo. E, antes mesmo de falar com ele,
se você não puder fazê-lo imediatamente, dirija-se a Jesus com toda a sua
alma e com o rosto curvado até ao chão e peça misericórdia. Implore
também a intercessão de Nossa Senhora para que esteja ao seu lado, pois
seu bondoso coração maternal dará a você não só o auxílio como o alívio
de que também estará necessitando.

Mas, faça isto com a máxima urgência, pois da tua pronta ação dependerá a
vitória, como verás no capítulo seguinte.

III - Contra os que se querem livrar do pecado e não


conseguem

Deus virá sempre em auxílio dos que reconhecem a sua vida má e querem
sair dela.

Mas, às vezes, os nossos propósitos não surtem efeito. É preciso saber por
que, a fim de mudarmos essa situação.
O demônio tem em seu laboratório infernal fórmulas e esquemas especiais
para lidar com os que querem escapar de suas garras. Uma das mais usadas
é o “depois... depois”. “Cras... cras”... como grita o corvo.

Os que querem fugir do assassino são por ele enganados e vencidos com
esta simples artimanha: estimular a sua negligência, fazendo com que
queiram primeiro resolver e despachar este ou aquele negócio, para só
depois cuidar, com maior sossego, da sua alma. Ou, então, aos mais tolos, o
simples adiamento: deixar para amanhã o que podes fazer hoje, ou, melhor:
agora.

Este é o laço simplíssimo, elementar, que prende, até hoje, muita gente que
se julga esperta, e que já conduziu milhões para o inferno. Tudo devido ao
nosso descuido e negligência, que não deixa ver que, em negócio como este,
você está jogando a salvação da sua alma e a honra de Deus.

É preciso abrir os olhos, e, vendo claramente a situação, agarrar-se logo a


estas palavras poderosas: agora, agora mesmo!

Amanhã, por que? Hoje, hoje! Por que razão somente “cras”?

Pense bem: seria por acaso alguma vitória sobre si mesmo deixar-se cair no
precipício para depois tentar sair dele?

São enganos, névoas de ilusão, com que joga o demônio, que, como
covarde que é, gosta de divertir-se com os fracos a caminho do inferno,
como faz o gato, brincando com os ratinhos aturdidos que tentam fugir
correndo, para serem agarrados mais adiante, até à morte nos dentes do
felino.

Para você escapar deste engano do “depois” e do outro do círculo vicioso


de que trata o capítulo anterior, ou seja, em última palavra, para vencer o
inimigo e, com isto, salvar-se, o remédio é simples: contrapor-se a ele.
Fazer o que ele não quer, e isto é: obedecer a Deus.
Repito: o remédio é a obediência imediata aos pensamentos e inspirações
divinas. Atenção: digo obediência, e não propósito, porque este, muitas
vezes, falha e porque frequentemente muitos são enganados nos seus
propósitos.

Com meras intenções, você não se contrapõe ao demônio, poderoso e


astucioso inimigo que está a fim de devorar você, e, certamente o fará, se
você não sair, resolutamente, do seu domínio.

Por exemplo, como já muitas vezes dissemos, se os nossos propósitos não


têm por fundamento a desconfiança de nós mesmos e a confiança em Deus,
simplesmente não se concretizam, mas a nossa soberba não nos deixa ver
isto, e daí procede o nosso engano e cegueira.

No círculo vicioso do pecado, este circula com a cegueira, girando numa


dança infernal, estimulada pelo demônio que faz: crescerem o pecado e a
cegueira até a treva total, pois é na treva que ele gosta de fuçar e devorar as
almas dos perdidos.

Já vimos nos capítulos iniciais deste livro o poder da arma da desconfiança


em nós mesmos como um antídoto contra a soberba, esta grande aliada do
diabo. Ela está presente na maioria dos defeitos e das falhas de caráter que
nos conduzem ao pecado.

Deus, em sua bondade, permite, às vezes, que caiamos para nos corrigirmos
sozinhos. Por isso, a desconfiança em nós mesmos deve vir sempre
acompanhada de uma forte confiança em Deus.

Portanto, se você quer que os seus propósitos sejam eficazes é preciso,


sobretudo, ter coragem. E você será corajoso (ou corajosa) quando tiver
eliminado aquela nefasta confiança em si mesmo e, com humildade confiar
somente em Deus.

Por causa da confiança em Deus, aceitamos com prazer é alegria, a


obediência, pois sabemos que dela provém a salvação. E a obediência ágil e
célere, ultrapassa e vence os nossos propósitos que tantas vezes se
esvaziam antes de se concretizarem.

Uma outra razão pela qual são falhos os nossos propósitos é a seguinte:
quando nos movemos para levar adiante algum propósito, olhamos para a
beleza e o valor da virtude e esta, então, atrai a nossa vontade, por débil e
fraca que seja. Chegando, porém a dificuldade, que sempre surge no
caminho da a vontade, por ser fraca e falha, desfalece e volta atrás.

É exatamente por isto que estamos aqui, estudando maneiras de fortalecer o


vontade. E já constatamos que, nos momentos de crise, a obediência a Deus
é um inessencial. E também que os obstáculos e dificuldades enfrentamos
são poderosos instrumentos de aperfeiçoamento espiritual.

Esforce-se, portanto, por amar o exercício da conquista da virtude, amando,


igualmente as dificuldades que a conquista da virtude traz consigo. Às
vezes com pouco, às vezes com muito, vamos nutrindo a nossa vontade, ora
pela luta e pelo esforço, ora pela abstinência, para alcançarmos virtudes.

E lembra-te, filha (ou filho), de que tanto mais depressa escaparás do


perigo e mais gloriosamente vencerás a ti mesma e a teus inimigos, quanto
mais generosamente abraçares as dificuldades.

Para concluir, examinemos outros motivos pelos quais os propósitos não se


concretizam, sendo, por isso, mais recomendável a simples e direta
obediência a Deus. É que, às vezes nossos propósitos não têm em mira a
virtude e a vontade na, mas o interesse próprio. É o que acontece, quando
os propósitos não têm em mira a virtude e a vontade divina, mas o interesse
próprio. É o que acontece, quando os propósitos se fazem no tempo das
delícias do espírito, ou então, nos momentos enquanto nos afligem muito as
tribulações. Nessas ocasiões dramáticas, de crise, o único alívio que parece
existir é o propósito de querer oferecer tudo a Deus e aos exercícios da
virtude.
Ora, assim, não funciona. No tempo das delícias espirituais é preciso que
sejamos cautelosos e humildes, principalmente no tocante a promessas e
votos. Se estes não têm em objetos virtuosos e sadios, os votos e promessas
serão ineficazes.

E na hora dos sofrimentos e tribulações, os seus propósitos úteis e corretos


serão no sentido de que você tolere com paciência a cruz, pois esta é a
vontade divina para a sua salvação. Nestes momentos o soldado enfrenta o
peso maior do combate, pois sabe que a vitória virá precisamente da sua
resistência.

Seja um único o teu pedido, em perfeito acordo com o teu desejo: que Deus
te socorra, dando-te a fortaleza necessária para se suportes toda a
adversidade, sem manchar a honra e sem deixar que desfaleça a virtude.

IV - Na estrada da perfeição

Aqui o demônio atua com o máximo da sua malícia, pois sabe que está
lidando com pessoas virtuosas, que não são incautas nem despreocupadas
com os pecadores caídos. Pessoas que, de uma forma e de outra, trabalham
a sua alma e o seu espírito. Pessoas que trilhavam os caminhos que
conduzem à perfeição e que se encontram protegidas pelas legiões de anjos
e pelos santos.

A primeira carga do Príncipe das Trevas neste combate que é contra Deus,
tendo a nós como campo de batalha, é fazer com que concentremos a nossa
atenção nos desejos e propósitos referentes a outras virtudes.

Ele consegue o que pretendia, que era desviarmo-nos das nossas próprias
mazelas, estando continuamente feridos e sem viciar das nossas chagas.

Na busca da perfeição, temos como inabaláveis os nossos propósitos e


caímos, sem querer, nas atitudes da soberba.
O primeiro sinal visível é que não suportamos a mínima coisa a menor
palavra contrária. Você consumirá o seu tempo em longas meditações em
que poderá fazer o propósito de seguir o exemplo daqueles que alcançaram
o paraíso, expondo-se às maiores dores e sofrimentos por amor de Deus. Se
não for devidamente alertado, poderá pensar que já alcançou o mesmo grau
de virtude dos seus modelos.

Para evitar esse engano, limite o seu combate somente contra os inimigos
que fazem guerra direta a você, de perto, pois este é que é, realmente, o
caminho da virtude. Concentre os propósitos unicamente neste combate.

Mas não te aconselho a que empenhes batalha contra inimigos que nem
mesmo sabes se te combatem, a não ser quando existem fortes indícios de
que eles virão em breve te atacar. Se assim for, será lícito que você faça não
só os seus propósitos, como todos os preparativos para a luta.

Mesmo que você se tenha exercitado nos virtudes por algum tempo e de
maneira justa e correta, não julgue que estará garantido quanto ao
cumprimento de todos os seus propósitos. Assuma uma atitude humilde
quanto a este ponto e esteja sempre cauteloso em relação à sua própria
pessoa. Confie no Senhor e recorra a ele frequentemente, pedindo-lhe que
lhe dê forças e o guarde dos perigos, particularmente o da presunção e o da
confiança em si mesmo.

E assim, embora você não vença alguns defeitozinhos que o Senhor permite
que você mantenha como proteção contra a soberba, já poderá pensar em
novos propósitos, voltados para o alcance de níveis mais altos de perfeição.

V - Quando tem em mira que deixemos o caminho das


virtudes

Como no capítulo anterior, o demônio tem que exercitar todas as suas


manhas, quando vê que estamos no rumo certo do verdadeiro caminho das
virtudes, pois sabe que está lidando com pessoas preparadas, que são
combatentes no exército que lhe é hostil, e só com a fraude e a falsidade
conseguirá vencê-las. É um autêntico desafio para o rei da mentira.

Esmera-se, ele, em confeccionar aparências de desejos bons, que vai


colocando em nós com o objetivo de obter que caiamos no vício durante o
próprio exercício das virtudes.

Não hesita em utilizar-se, até mesmo, da doença e das diferentes


enfermidades. Quando alguém, por exemplo, está doente e vai suportando
com paciência, a enfermidade, o diabo sabe que, continuando assim, o
doente adquirirá o hábito da paciência. Apresenta-lhe, então, muitos boas
obras, que o enfermo poderia fazer em outra ocasião. Procura também
persuadir o doente de que se estivesse são melhor serviria a Deus, pois seria
mais útil aos outros e a si mesmo.

Vai, assim, como um intrigante faz, ferindo a alma da vítima à medida que
crescem os desejos nela plantados e, por fim, a alma se desassossega por
ver que não pode realizar os seus projetos, como desejava.

E quanto maiores se tornam estes desejos, mais cresce a inquietação. Aí, o


inimigo, muito devagar vai transformando o “desassossego em impaciência,
e o doente se revolta contra a enfermidade, não por ser enfermidade, mas
porque impede que ele realize aquelas obras boas que, ansiosamente,
desejava pôr em prática, para fazer um bem maior.

Depois de servir-se, assim, da alma do enfermo, que não se dá conta de


estar sendo pasto do diabo, este bicho mau tira da mente do infeliz a
finalidade inicial que ele tinha em mente, que era o serviço divino através
de boas obras, e deixa-o abandonado no desejo exclusivo de simplesmente
livrar-se da doença.

E como isto não se realiza, torna-se o homem inquieto, impaciente e


revoltado. E assim, sem notar, passa da virtude em que se exercitava, ao
vício contrário.
O modo de você se defender desta manha do demônio é estar atento para,
quando esteja padecendo, não se entregar a qualquer desejo bom, antes de
certificar-se de que não tenha sido plantado, maliciosamente, pelo diabo. O
esquema demoníaco é levar você à inquietação por não poder realizar o seu
desejo bom.

Com grande humildade, paciência e resignação você deve chegar, sozinho,


à conclusão de que não realizaria, como havia pensado, os seus melhores
desejos, devido à instabilidade em que se encontra. Ou então, num juízo
ainda melhor, considera que Deus, com seus ocultos desígnios, ou devido
às condições desfavoráveis em que você se encontra, não quer que você
siga aquele caminho. Ele pode, até mesmo, querer que você consiga, antes,
novos méritos pela via do serviço, da abstinência, e, até mesmo, do
sofrimento, sob a sua doce e poderosa mão e seu direto cuidado.

Por este motivo é sempre conveniente que quando estejamos submetidos à


contingência de circunstâncias penosas nos entreguemos de corpo e alma
ao comando divino, pedindo, mesmo, que o Espírito Santo atue diretamente
em nós.

Não te deves impacientar no sofrimento, provenha ele donde quer que seja.
As almas bem orientadas dificilmente se afastam de Deus. Por isso mesmo
o diabo as cerca como animal faminto, lambendo os beiços, e não poupa
nenhuma de suas manhas e de seus laços e ardis para agarrá-las. As horas
de sofrimento são por ele utilizadas para penetrar nas nossas defesas
abaladas. Entregar a Deus estes momentos é como colocar um selo de
proteção contra o demônio em todas as nossas portas e janelas.

Para não te impacientares, use, à vontade, de todos os meios lícitos que


costumam empregar os servos de Deus. Mas, veja bem: não te utilizes deles
com o intuito de livrar-se do sofrimento, pois não sabemos se Deus aprova
que nos livremos deste modo. Se você agir de outra maneira poderá cair em
muitos males, porque ficará desguarnecido de proteção contra as insídias do
demônio e se impacientará facilmente, sempre que os acontecimentos não
decorrerem ao sabor dos seus desejos.
Ou então, num nível mais espiritual, a tua paciência não será perfeita, não
terá de muito mérito, nem será tão cara a Deus.

Mesmo estando na estrada da virtude, convém que sejas advertido mais


uma vez de um oculto engano do nosso amor próprio: o de cobrir e
defender os nossos defeitos.

Ainda dentro do mesmo exemplo do enfermo: se ele for pouco paciente na


doença, o seu amor próprio poderá esconder a impaciência sob o véu de
algum zelo por causa boa, dizendo que a sua ansiedade não é verdadeira
impaciência devido à doença, mas um mero desgosto, razoável naquelas
circunstâncias.

Do mesmo modo, o ambicioso que se acabrunha porque não obteve uma


dignidade, não atribui a sua pena à própria soberba e vanglória, mas a
outras causas.

Muitos outros exemplos poderiam ser aqui trazidos dentro do mesmo tema
da soberba, da vanglória e do amor próprio que são tão comuns à condição
humana, como o é a aversão que sentimos às coisas que são contrárias à
nossa vontade.

Mas aqueles que, como você, já se encontram em plena estrada da virtude,


não precisam aprender estas coisas que já são do seu conhecimento.
Precisam, sim, e muito, ser alertados para os perigos que se escondem nas
pequeninas distrações e negligências que podem enfraquecer as nossas
defesas contra males que nascem dentro de nós mesmos.

Nunca é demais repetir que a proteção maior está na sempre necessária


obediência à vontade de Deus, e na paciência que nos dá condição de
suportarmos qualquer trabalho, provação e pena que são instrumentos do
nosso aperfeiçoamento.
VI - Quando a virtude adquirida pode ser ocasião de ruína

Meu filho, ou minha filha:

Você já me ouviu diversas vezes, amassando a alma do ente humano,


dizendo-lhe, como no Eclesiastes, que ele nada é, para que fique alertado
contra a soberba.

Disse, e repito agora, pois não há nada mais triste de se ver do que a ruína
de uma virtude penosamente construída.

Tenho dito: cuida de ter um verdadeiro e profundo conhecimento de ti


mesmo, persuadindo-te de que nada és, nada sabes, nada podes e nada
possuis, a não ser misérias e defeitos, nem outra coisa mereces que a
condenação eterna.

A astuta e maligna serpente posta-se nos desvãos da estrada da virtude e da


perfeição que te conduzirá ao céu, para caçar as almas que já se encontram
num grau avançado de aperfeiçoamento, pois esta é a caça que mais prazer
lhe dá.

Ela vem tentar você com seus enganos, mesmo naquelas virtudes que você
já adquiriu, onde se sente mais seguro.

Esforça-se para que elas mesmas sejam o motivo da tua queda,


aproveitando a fraqueza, muito humana, que é a de comprazer-se a pessoa
das suas virtudes. Ela quer que você se glorie com seus méritos e consigo
mesmo, para que venha a cair no vício da soberba e da vanglória. Ao
conseguir isso, ela terá a porta aberta para a conquista do resto.

Firme-se, portanto, na posição de humildade e submissão a Deus, que é a


sua mais forte defesa. Não te deixes mover em nada por algum pensamento,
ou coisa que te suceda. Pois não tenha dúvida de que, pessoas como você,
quando atacados pelos inimigos do bem, estão sujeitas a todos os ardis,
laços, ilusões, mentiras, fraudes e enganos produzidos nos porões do
inferno pelas mãos inescrupulosas do maligno. Se você atender ao mais
bondoso dos seus apelos, aquele de aparência mais pacífica e segura, estará
ferido ou morto.

Diante de tão grande perigo, é preciso que você se exercite no


fortalecimento da sua alma, buscando um crescente conhecimento da
humildade da sua condição, da seguinte forma: sempre que você pensar em
si mesmo e sobre o que já fez ou produziu, considere somente aquilo que
seja estritamente seu, e não o que provém de Deus e de sua graça. Faça,
depois, um levantamento do que restou de você mesmo.

Pense, por exemplo, no tempo que existiu desde a Criação até o dia do seu
nascimento. Você verá como foi um puro nada em todo este abismo da
eternidade, e que você nada fez, nem havia nada que pudesse fazer para
obter a sua existência.

E no tempo em que, devido unicamente à Bondade divina, você existe, que


outra coisa descobre na sua pessoa sendo um puro nada, se for deixado a
Deus o que é de Deus e se você prescindir da Providência com que, a cada
segundo, ele lhe está conservando?

Pois não há dúvida alguma de que se Deus, por um instante sequer, se


esquecesse de ti, imediatamente recairias no nada de onde te tirou sua mão
onipotente.

É, portanto, muito claro que, por aquilo que você é por si mesmo, não há
razão para ter-se em alta conta, nem para esperar que os outros lhe
considerem valioso.

Mesmo em relação às suas boas ações e agrado a Deus, você teria condição
de fazer qualquer coisa boa e meritória por si mesmo se a sua pessoa
natural não fosse auxiliada por Deus?

De outro lado, considere suas faltas passadas e, além disso, os grandes


pecados que você teria cometido se Deus, com sua mão piedosa, não
tivesse auxiliado. Com o correr dos dias e dos anos, com a repetição
constante de atos maus, você teria adquirido muitos hábitos de pecado, pois
um vício chama outro vício, as suas iniquidades teriam alcançado um
número infinito, e você hoje, seria um outro pequeno Lúcifer.

Contas feitas, você chegará à conclusão de que se não quer roubar da


bondade de Deus, mas ficar sempre com o Senhor, você deve ter-se em
muito pouca conta.

É óbvio que ao considerar estas coisas, o juízo que você fizer de si mesmo
deve ser justo, pois de outra forma o levará ao engano, o que vale dizer,
diretamente aos braços do Demônio.

Com o conhecimento justo de si mesmo, você fica superiormente situado


em relação a quem quer que seja que, por cegueira, se julga ser algo. Tudo
perderá, no entanto, e ficará pior do que ele se, por algum instante, você
quiser que os homens lhe tenham em Doa conta, e se você desejar que lhe
tratem como sabe que não merece.

Creio que você terá compreendido agora, por que motivo bato tanto nesta
tecla, para que você se faça agradável a Deus e que os seus inimigos sejam
afastados de vez, através do reconhecimento da tua vileza, pequenez,
malícia e insignificância.

Tendo compreendido a minha boa intenção e desejo da sua salvação, você


aceitará que eu lhe diga que é preciso que você despreze a si mesmo, que
reconheça que merece todo o mal, que queira até mesmo ser desprezado
pelos outros em vez de exaltado, que deteste as honrarias e as falsas
medalhas de humana confecção, que ame os ataques e os insultos da crítica
negativista, e que procure fazer, quando surgir a ocasião, todas aquelas
coisas que os outros detestam fazer.

Mas... cuidado, porque é uma certa presunção e não bem conhecida soberba
considerar como sem valor, ainda que sob bons pretextos, as opiniões dos
outros. É uma fácil tentação da serpente das ilusões considerarmos que o
juízo dos outros nada vale, por ter sido ocasionado por nossa própria
iniciativa, visando o nosso rebaixamento, num exercício espiritual
semelhante àqueles que são sugeridos neste livrinho, para fortalecimento da
alma.

Se Deus fez que os outros vejam méritos em você, não abandone a


reputação justa e verdadeira que você tem de si mesmo. Mas redobre a sua
cautela em relação à vaidade, o amor próprio, e o orgulho, que são
caminhos certos que conduzem à soberba. Peça, então, ajuda a Deus,
dizendo-lhe com o coração: “Não aconteça, Senhor, de eu vir a roubar tua
honra e tuas graças. Como é que este vê méritos em mim e me tem por bom
se somente são bons Deus e suas obras?”

Fazendo assim, e dando ao Senhor o que é dele, você afastará de si os seus


inimigos e adquirirá disposições de alma para receber maiores dons e
favores de Deus.

E quando a lembrança das obras boas te puser em perigo de vaidade,


olha-as, não como coisas tuas, mas de Deus. Deixe que o teu coração fale
direto às tuas obras, como se dissesse: “não sei como esta realização
apareceu na minha mente, e ali começou a se fazer, pois, eu não sou a sua
origem. Foi Deus e sua graça, pela mão do Espírito Santo, que a criou,
nutriu e conservou. Somente a ele reconheçam como pai e somente a ele
agradeçamos e louvemos”.

Depois de haver realizado alguma coisa boa, você vai sentir uma crescente
vontade de aperfeiçoá-la, ou de fazer uma outra ainda melhor. Este é um
dom que Deus dá de presente a todos os realizadores. Nossos olhos nos
dizem que somos capazes de fazer mais e melhor, pois todas as obras que
fizemos jamais corresponderam aos dons e às graças que nos permitiram
realizá-las e executá-las e que nos foram concedidas para que fizéssemos a
obra de Deus. Nossos olhos também nos dizem que o nosso trabalho foi
imperfeito, por estar muito longe da pureza de intenções, do fervor, da fé e
da diligência de que deveria estar acompanhado.
Quem assim pensa, está imunizado contra a vanglória, pois é uma grande
verdade este pensamento: recebemos de Deus graças puras e perfeitas e, ao
executá-las, as manchamos com nossas imperfeições.

Compare as suas obras com as dos santos e outros servos de Deus cujo
trabalho é conhecido e louvado. Você logo compreenderá com clareza que
as suas realizações, as maiores e as melhores, são pequenas e de pouco
valor.

E se você quiser ir um pouco mais adiante, compare o que fez com a obra
de Cristo, pensando no que ele realizou nos embates de sua vida dura e
difícil e nos seus contínuos sofrimentos.

Veja Jesus somente em sua natureza humana, e suas realizações


revelar-se-ão perfeitas, carregadas das inspirações do afeto e da pureza do
amor.

As nossas obras, cheias de imperfeição e vazias de amor, são pouco mais


do que nada.

E se, por fim, você elevar a mente à divindade, à imensa Majestade do


nosso Deus e pensar em tudo o que ele merece de você, verá claramente
que jamais você poderá ter vaidade dos obras que fez. Ao contrário, temos
muitos motivos para nos envergonharmos da nossa antiga vaidade, plantada
em feitos tão pequenos, proporcionais às nossas pequenas qualidades, e
dons de valor discutível.

Devemos aprender a nos abaixarmos, conhecendo que nós, e nossas obras,


nada somos.

Este é o fundamento de todas as demais virtudes.

Não existíamos, quando Deus nos criou do nada. Agora, que existimos, ele
quer basear toda a edificação espiritual sobre o nosso conhecimento de que
nada somos. Quanto mais nos aprofundarmos neste conhecimento, tanto
mais alto será o nosso edifício. Quanto mais formos desentulhando do solo
o lixo das nossas misérias, tanto mais pedras firmíssimas aí colocará o
divino arquiteto para prosseguir na construção.

Nesta obra, o desentulhamento é tão importante quanto à construção. Não


pense que num dia você desentulhará uma grande parte do lixo acumulado.
Pois não se envergonhe de ter de si mesmo o seguinte conceito: se a
criatura humana pudesse ter alguma coisa infinita, esta seria a sua vileza.

E não se deprima com estes pensamentos, pois, se assim pensarmos, muito


poderemos fazer, e conseguir. Sem estes pensamentos, pouco mais que
nada conseguiremos realizar, mesmo se fizermos as obras de todos os
santos e sempre estivermos ocupados com Deus.

Ó feliz conhecimento, que nos torna felizes na terra e gloriosos no céu!

Ó luz que sai das trevas e torna brilhante e clara a alma!

Ó prazer não conhecido que rutila por entre nossas imundícies!

Ó nada, que, conhecido, torna-se senhor de tudo!

Nunca me cansarei de falar a você sobre isto: se você quer louvar a Deus,
acuse-se a si mesmo e procure ser acusado pelo: outros. Humilha-te com
todos e perante todos, se queres exaltar o Senhor na tua pessoa e exaltar-te
no Senhor.

Se você quer encontrá-lo, não se eleve, que ele se afastará.

Abaixa-te, abaixa-te o quanto possas, que ele virá ao teu encontro e te


abraçará. E tanto melhor lhe acolherá, tanto mais se unirá a você quanto
mais você se aviltar aos seus próprios olhos, e desejar que os outros te
aviltem e te reputem como coisa abominável.
E, consigo mesmo, no seu foro íntimo, onde não pode haver simulação,
faça com que você mesmo se considere indigno dos dons recebidos de
Deus, que tanto sofreu por você.

Nem deixe de lhe render graças e de mostrar-se agradecido a quem agora


está dando a você a oportunidade de crescer aos olhos de Deus por lhe
desprezar ou, se não tanto, só aceitar você com má vontade, ou não o
aceitar com boa vontade.

E faça isso sem deixar que transpareça.

Depois de todo este esforço, atenção e cautelas, ainda haverá risco de queda
por astúcias do demônio. Nossa ingenuidade, ignorância e nossas más
inclinações podem ainda prevalecer em nós, de modo que pensamentos de
orgulho e vanglória não deixassem de nos sobreviver.

A defesa final consistirá em extrair deste mesmo fato ocasião de nos


humilharmos aos nossos olhos, pois teremos comprovado quão pouco
aproveitamos na vida do espírito e no conhecimento leal de nós mesmos,
pois não fomos capazes de nos livrar destas moléstias enraizadas em nossa
vá soberba.

E assim, do veneno tiraremos mel, e dos ferimentos, saúde.


Das virtudes
I - Como vencer as paixões viciosas e adquirir novas virtudes

Por mais que eu tenha falado da maneira de venceres a ti mesmo e te


ornares com as virtudes, ainda algo me resta a dizer.

Primeiro: não existem regras de tempo na luta pela conquista das virtudes.
Evite métodos espirituais jungidos aos dias da semana. Você verá adiante
por que motivo os parâmetros temporais não ajudam neste tipo de escalada.
Portanto, nada de delimitar os dias da semana, um para cada virtude.

A ordem a seguir deve ser a seguinte: guerrear os paixões que têm sempre
feito mal a você, e ainda lhe assaltam e continuam fazendo mal, e adquirir
as virtudes contrárias àqueles vícios.

As virtudes estão sempre encadeadas entre si. Por isso, basta conseguir uma
virtude para que facilmente e com poucos atos você alcance logo todas as
outras, pois ocasião para isso não faltará. Quem conseguiu plenamente o
domínio de uma virtude já se encontra disposto favoravelmente para
conquistar todas as demais.15

Segundo: não determinar o tempo para a conquista das virtudes, nem dias,
nem semanas, nem anos. O combate tem quiser permanente, e, portanto,
sem qualquer condicionamento de tempo.

15
São virtudes teologais a fé, a esperança e a caridade, e virtudes cardeais a prudência, a justiça, a
fortaleza e a temperança. Quando o autor diz que as virtudes estão sempre encadeadas entre si está-se
referindo aos atributos virtuosos que, como elos de uma corrente, unem as virtudes umas às outras. A
paciência é atributo dos justos e dos fortes. A sabedoria é atributo da prudência e da justiça. Presidem
sobre todas as demais, transmitindo-lhes energia espiritual, a fé, a esperança e a caridade.

São as virtudes, no pensamento do autor, a contrapartida dos vícios, ou imperfeições. É aqui muito
referida a virtude da humildade, que se contrapõe ao vício da soberba, a da diligência, contrária à
negligência. Como forma de combate a um defeito, o autor recomenda o cultivo da virtude que lhe é
oposta.
A regra é: combata-se, sempre, como se agora tivéssemos nascido. E com
postura de soldados novos, batalhando como o exige a grandeza das
perfeições que queremos atingir.

Outro aspecto do fator tempo que deve ser considerado é a desaceleração e


a perda de impulso que, no nosso caso, tem efeitos negativos prejudiciais.
Não se pode parar um instante que seja. No caminho da virtude e da
perfeição não existe pausa para descanso ou para tomar forças. Parar, nesta
escalada, é voltar atrás, e tomar-se mais fraco que antes. E a pausa pode ser
enganosa, quando se pensa que, por ter atingido plenamente uma virtude,
pode-se dar pouca importância às pequenos faltas e às ocasiões de obtenção
de novas virtudes.

Não perder a mínima ocasião de virtude é outra regra decisiva, que deve ser
diligenciada com o máximo ardor e solicitude.

Como já foi dito nos capítulos anteriores, é preciso que você aprenda a
amar as ocorrências que levam à virtude, sabendo, desde já, que elas são,
geralmente, desagradáveis. Afinal, a batalha para a conquista da virtude é
uma batalha, não um piquenique. E a principal razão pela qual você deve
receber bem as dificuldades e os desprazeres da luta é que os atos que se
praticam para superar as dificuldades, mais depressa, e com mais fortes
raízes, criam os hábitos. E a formação de hábitos virtuosos é a nossa meta.
Por isso, você deve agradecer, no seu íntimo àqueles que lhe oferecem,
ocasionalmente a oportunidade de aperfeiçoar-se. Mas, atenção: fuja,
depressa, e a passos largos, daqueles que te poderiam levar à tentação da
carne.

Terceiro: dê preferência às virtudes que você pode adquirir mais


rapidamente, empenhando nelas toda a sua diligência e dedicação. Deixe
para um pouco mais tarde, num prazo mais longo, aquelas que são
adquiridas pouco a pouco e subindo de degrau em degrau, como, por
exemplo, as da mortificação. Seja particularmente prudente e discreto em
tudo quanto possa trazer dano ao corpo: disciplinas, jejuns, vigílias,
promessas e coisas semelhantes, que podem abrir na alma brechas para a
entrada do demônio, se contiverem, no seu exercício, um pequenino grau
de sensação de heroísmo, onde se esconde o orgulho, a vaidade e o desejo
de sobrepor-se aos outros.

Melhor será que te entregues às outras virtudes mais autênticos, por serem
totalmente internas, como o amor a Deus, o desprezo do mundo e de si
mesmo, o ódio às paixões viciosas e ao pecado, a paciência, a mansidão, o
amor para com todos, mesmo para com quem te ofende. Estas virtudes
todas, não é preciso que sejam adquiridas pouco a pouco e de degrau em
degrau. Esforce-se por praticar cada ato destas virtudes com o máximo grau
de perfeição que você puder.

Quarto: concentre-se no esforço principal da luta pela conquista da virtude,


o combate contra a paixão viciosa que se estiver apossando de você. Que
todo o teu pensamento, e todo o desejo de teu coração de outra coisa não se
ocupem a não ser de vencerem aquela paixão e colocarem em seu lugar a
virtude contrária. Tendo em mente este objetivo, e nenhum outro,
desprezarás o mundo, o céus a terra. Esta luta será todo o teu tesouro, e o
fim de todas as tuas ações será o agrado de Deus.

Na batalha, haverá uma única meta: derrotar e vencer aquela paixão


predominante, e adquirir a virtude contrária. Ao comer ou jejuar, ao
trabalhar ou descansar, na vigília ou no sono, estando em casa ou fora,
ocupando o tempo em atos de devoção ou de lazer, que a tua ideia fixa seja
a vitória.

Quinto: seja inimigo declarado da comodidade e dos prazeres terrenos,


mundanos ou carnais. A qualquer acontecimento, você poderá ser atraído
pelos deleites, que são as raízes dos vícios e vice-versa, pois uns estimulam
os outros num ciclo permanente. Nossa tendência para os deleites,
acompanhando os rumos da natureza humana em sua permanente procura
de prazer, tem que ser combatida severamente, ainda que ao custo de
sermos hostis a nós mesmos. Quando ferimos essa tendência pecaminosa
para os deleites com o ódio és nossas fraquezas, os vícios perdem a força.
Mas, se você quiser guerrear, de um lado algum vício e, de outro lado,
atender a alguns deleites terrenos, mesmo que não pecaminosos, mas de
ligeira culpa somente, a guerra será dura e a vitória há de ser sanguinolenta,
incerta e rara.

Por isso, você terá sempre em mente esta sentença divina: “quem ama sua
vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida
eterna.” (Jo, 12.25) “Irmãos, somos devedores não à carne, para vivermos
segundo a carne. Pois se viveres segundo a carne, morrereis, mas, se, pelo
Espírito, fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis” (Rm 8,12).

Sexto: advirto-lhe ainda, que muito bom seria e, talvez, mesmo necessário
que, antes de iniciar a luta, e cada combate, você fizesse uma confissão
geral, para que você mais se se assegure de que estará na graça do Senhor,
pois dele, somente, devemos esperar as graças e a atuação, do Espírito
Santo em nosso auxílio.

II - Descrição no uso das virtudes e busca de uma só de cada


vez

O verdadeiro soldado de Cristo busca a perfeição pela vitória contra os seus


inimigos. Por isso, nunca julga que já fez o bastante.

Apesar disto, a discrição deve refrear os fervores de espírito a que alguns se


dão no princípio da luta e que cedo esquecem, esmorecendo em caminho.

Além do que eu já disse a respeito da moderação necessária nos exercícios


externos, lembremo-nos, ainda, de que também as virtudes externas devem
ser adquiridas pouco a pouco e por degraus. Cresceremos, assim, na virtude,
e nela estaremos mais firmes.

Nas adversidades, por exemplo, só aqueles já dotados com a virtude da


paciência, ainda que em seus graus inferiores, podem tentar a escalada, por
estarem capacitados para enfrentar o sofrimento. A regra geral é a de que
naquelas ocasiões, mais penosas, devemos nos limitar a uma postura
defensiva.

Só depois de habilitados para enfrentar graus crescentes de sofrimento e de


maldade, poderemos pensar em exercícios espirituais.

Não aconselho você a que se dedique a muitas virtudes ao mesmo tempo.


Cuide, agora, de uma só, e depois cuidará das outras. Assim, mais fácil e
mais firmemente se formará na alma o hábito virtuoso.

Agindo deste modo, a virtude em que nós estivermos exercitando, estará


sempre viva na nossa memória e a inteligência cuidará sempre de ir
procurando novos modos de a adquirir e novas motivações para nos
estimular à luta. A vontade, então, com maior afeto se inclinará a ela, coisa
que não faria, se se ocupasse de muitas coisas, dispersivamente.

E há mais. Os atos de prática de outros virtudes se tornarão menos difíceis,


para quem tiver adquirido o pleno domínio daquela a que se dedicou
prioritariamente. Devido à conformidade que os virtudes têm entre si, você
irá passando de uma à outra pelos elos da corrente que elas formam umas
com as outros.

Um ato chamará e ajudará outro ato semelhante. E até mesmo essa


semelhança produzirá efeitos benéficos, no seu impacto em nosso coração
já predisposto para receber bem os novos atos, que virão a ser os
precedentes de atos futuros. Podemos chamar a isto a projeção virtuosa do
encadeamento das virtudes.

Grande força têm as razões que expus neste capítulo, pois certo é que quem
se exercita bem em uma virtude aprende a exercitar as outras. Quando uma
cresce, crescem as outras, devido à inseparável união que as virtudes têm
entre si, pois são raios procedentes da mesma luz divina.

III - Dos meios de progredir numa virtude e de fortalecê-la


Além de tudo o que já foi dito sobre as virtudes você deve saber que, para
adquiri-las, é preciso ter alma grande e generosa, e vontade resoluta e forte.

Nada conseguirá quem tiver a alma pequena, senão iludir-se com as


simulações de virtude que o diabo sabe tão bem preparar para satisfazer
àqueles que querem possuir virtudes somente para sobrepor-se às demais
pessoas.

Quanto à alma forte e resoluta, é qualidade essencial do soldado consciente,


que sabe que terá de passar por contratempos e adversidades.

Além disto, importa que tenhamos inclinação para a prática das virtudes, a
fim de adquirirmos crescente afeição por elas.

De nada adianta alcançar uma virtude para coroar-se com ela e ficar
sentado num trono imaginário. Pior do que isto, só será não alcançá-la e,
assim mesmo, coroar-se e ficar também sentado de braços cruzados. O
demônio gosta destes candidatos a seus futuros hóspedes.

Para termos inclinação à prática verdadeira da virtude, traduzida em atos


meritórios e não meras palavras, devemos pensar sempre no quanto esta
prática agrada a Deus, e, principalmente, considerar como são nobres e
excelentes as virtudes em si mesmas, e como nos são úteis e necessárias,
pois são o princípio e a meta final de toda a perfeição.

Aconselho a você que adote a seguinte prática: faça cada manhã o firme
propósito de aproveitar de todas as ocasiões que se apresentarem no resto
do dia para exercitar-se numa só virtude, aquela em que você decidiu
fortalecer-se. E, durante o dia, faça, de vez em quando, um exame para ver
se está cumprindo os seus propósitos. Aproveite para renovar, reforçar ou
rememorar os seus propósitos. Não custa nada e não toma tempo. Em
alguns segundos, você pode fazer isto pela manhã, pela tarde, e à noite,
antes de dormir.
Uma outra prática que é essencial, como será examinada extensamente nos
capítulos 44 a 52, é a do oração.

Aplique à virtude que estiver exercitando a prática da oração, como será


sugerido neste capítulo, um pouco mais adiante, e, se quiser, alguma
meditação sobre a vida de Cristo e sobre os exemplos dos Santos que tanto
nos ajudam a vencer as restrições que sentimos devido à nossa condição de
mortais.

Procuremos nos acostumar de tal modo aos atos virtuosos externos e


internos, que venhamos a praticá-los com aquela prontidão e facilidade com
que antes fazíamos tudo aquilo que agradava à nossa natureza.

Este é também um outro bom exercício: note e anote quantos atos bons e
contrários à sua índole ou aos seus hábitos antigos estão sendo praticados.
Quanto mais atos e quanto mais estes forem contrários à nossa índole ou
hábitos antigos, mais depressa nossa alma alcançará o hábito bom.

No tocante à oração e à meditação, maravilhosa força nos dará o repetir, de


viva voz ou na mente, do modo que melhor convier, as sagradas palavras da
divina Escritura.

Você procurará aprender passagens do Evangelho a respeito daquela


virtude sobre a qual esteja trabalhando, e memorizá-las, repetindo-as
seguidamente. Elas serão um precioso reforço na sua luta, quando,
eventualmente, levantar-se a paixão oposta àquela virtude.

Vejamos alguns exemplos práticos. Se você estiver particularmente


interessado em desenvolver e fortalecer a virtude da paciência, poderá
repetir os seguintes trechos:

a) “Filhos meus, suportai pacientemente a ira que sobre vós se abateu da


parte de Deus” (Hb 4,25);

b) “No final, a paciência dos pobres não se frustrará” (Sl 9,19);


c) “Melhor é o homem paciente do que o herói, e o que é senhor de si do
que o conquistador de uma cidade” (Pr 16,32);

d) “É pela paciência que mantereis vossas vidas” (Lc 21,19);

e) “Corramos com paciência para o certame que nos é proposto” (Hb 12,1).

Do mesmo modo, e com igual propósito poderemos rezar as seguintes


jaculatórias:

— “Quando, Deus meu, meu coração se armará com o escudo da


paciência?”;

— “Quando suportarei de ânimo tranquilo qualquer contratempo, por meu


Senhor e meu Deus?”;

— “Meus sofrimentos me tornam semelhante ao meu Senhor Jesus, que eu


amo tanto!”;

— “Como é possível, meu Deus, que por tua glória eu não viva contente,
mesmo nesta angústia?”;

— “Feliz de mim, se no meio do fogo das tribulações, for capaz de


aguentar sofrimentos ainda maiores!”

Destas e de outras jaculatórias que sirvam ao nosso progresso nas virtudes,


nós podemos utilizar. E você mesmo pode improvisar, seguindo o que lhe
inspirar a sua devoção.

Estas pequenas orações têm o nome de “jaculatórias” porque são dardos


(jaculus, em latim) que se lançam ao céu e têm grande força para nos
exercitarem na virtude e para chegarem até ao coração de Deus, se forem
acompanhadas de duas coisas, como que de duas asas:
uma é que conheçamos o prazer que damos a Deus, quando nos
exercitamos nas virtudes;

a outra é termos um verdadeiro desejo de possuir as virtudes, com o único


fim de agradar à divina Majestade.

IV - Na escalada das virtudes, parar é o mesmo que voltar


atrás

Marchar sempre, e sem parar.

Entre as coisas mais necessárias para que você adquira uma virtude, a
disposição de marchar sem parar é a mais decisiva. Para chegar ao fim que
nos propusemos, é preciso marchar sempre. Parar é o mesmo que voltar
atrás.

A jornada espiritual é diferente das caminhadas que o viajante faz aqui na


Terra. Nestas, nada se perde quando se para. O mesmo não ocorre na
jornada espiritual, em que não há pausa sem prejuízo.

Mais: o cansaço do peregrino sempre cresce, quanto mais caminha.


Enquanto que, no caminho do espírito, maior vigor e força se adquire,
quanto mais se anda.

Quando deixamos de praticar atos virtuosos, nossa virtude diminui. Devido


à inclinação dos apetites sensitivos para a satisfação dos prazeres, sem
qualquer discernimento entre o bem e o mal, geram-se em nós muitas
paixões desordenadas que diminuem q nossa virtude, podendo, até mesmo,
destruí-la. Outros fatores exteriores também podem produzir o mesmo
resultado.

É por este motivo que a luta não pode parar, além do fato de que somos
privados de muitas graças e dons que teríamos recebido do Senhor, se
tivéssemos continuado combatendo.
Prosseguindo a marcha sem interrupção, à parte inferior da nossa alma
tende a arrefecer o seu ritmo com o prosseguimento dos exercícios
virtuosos e vai-se cada vez mais debilitando. Com a parte superior ocorre
exatamente o inverso: esta cada vez mais se firma e se fortifica com o
prosseguimento da marcha.

E assim, à medida que se vai caminhando na estrada do bem, mais e mais


vão diminuindo os sofrimentos que devemos suportar nesta marcha. E
maior se vai tornando um certo gozo que, por intervenção divina, se
mistura aos sofrimentos.

Continuando a escalada, sempre com maior agilidade e alegria na conquista


das virtudes, chegaremos, finalmente, ao cume da montanha onde a alma, já
aperfeiçoada, trabalhará com muito maiores e melhores resultados, sem
relutâncias e com crescente júbilo e gosto.

Sim, pois venceu e domou as paixões desregradas, desprezou todos os


restos, de si mesmo, e vive contente no coração do Altíssimo, onde
descansa, suavemente, trabalhando.

V - Não se deve fugir das ocasiões de adquirir as virtudes.


Agarre a oportunidade. O tempo é: agora.

Vimos, no capítulo 33, que não existem regras de tempo na luta para a
conquista das virtudes, pois à recomendação é uma só: caminhar sempre
para a frente e nunca parar na marcha que vai ter à perfeição. Pode ser que
não cheguemos a esta meta suprema, que exigiria a perfeita realização de
todos as virtudes. Mas, com total segurança podemos saber que somos
capazes de derrotar todos os vícios, ou seja, as imperfeições que são a
contraparte de cada virtude.

Chegamos, assim, ao núcleo central do nosso tema: se, em vez do tempo


humanamente concebido, o nosso, aqui, é a continuidade de um caminhar
sem parar na busca da virtude, torna-se evidente que não podemos deixar
passar nenhuma ocasião, nem a menor ou menos relevante que seja, para
adquirirmos a virtude que se apresente.

Erram, portanto, aqueles que fogem das coisas que lhes desagradam, ou que
sejam contrárias ao seu gosto, pois são exatamente as que lhes poderiam
servir, na conquista das virtudes, que é a meta final da nossa batalha. Em
vez de se afastarem, deveriam, pelo contrário, agarrar estas oportunidades
que se apresentam.

Podemos dizer, portanto, que as virtudes também têm o seu tempo, um


tempo divino, diferente do que é humanamente convencionado. Este tempo
se chama: agora.

Um exemplo prático nos ajudará a compreender melhor tudo isso. Se você


deseja adquirir, por exemplo, o hábito da paciência, não deve procurar
afastar-se das pessoas, ações e pensamentos que levam à impaciência.
Dentro desta mesma linha de raciocínio, seria um erro deixar de lado
qualquer tarefa por ser ela desagradável, ou enfadonha. Tratando, ou
conversando com qualquer pessoa que lhe cause aborrecimento, você deve
ter a vontade sempre disposta a suportar tudo o que puder ocorrer de
fastidioso ou irritante.

Não há outra maneira de se aprender a ter paciência.

O aprendizado começa portanto, na área da vontade, preparando-a para


receber e aceitar a contrariedade. Depois, o exercício irá dando a você
crescente capacidade de ter paciência.

Do mesmo modo, se um trabalho lhe aborrece, não deixe de executá-lo,


apesar de fazer você sentir-se inquieto, ou se você soubesse que sossegaria
se deixasse de lado aquele trabalho. Pense, também, que o motivo do
aborrecimento pode ser porque o trabalho seja, de fato, enfadonho, mas
também pode ser que a impaciência não seja derivada do trabalho
propriamente dito mas, sim, da pessoa que o impôs, o que muda
completamente o enfoque do problema. E, pior ainda, pode ser que a
impaciência se manifeste, porque a tarefa a realizar te impede de fazer outra
coisa que te agradaria mais. Se o que você pretende é que a alma fique
isenta de paixões ou de defeitos, tendo virtudes em seu lugar, não deve
fugir do que lhe contraria, e sim procurar ir ao encontro destas
oportunidades, que se oferecem para a conquista da virtude.

O mesmo lhe digo dos pensamentos desagradáveis que, algumas vezes,


molestam e perturbam q sua mente. Você não deve afastá-los
completamente, pois com o incômodo que causam, ajudam a que você se
acostume a suportar as coisas adversos.

As pessoas bem-intencionadas lhe ensinam a fugir dos incômodos e


aborrecimentos que impacientam, sem saber que o que verdadeiramente
nos interessa é conseguir a virtude, e o instrumento para isto é exatamente a
vitória sobre aqueles incômodos e aborrecimentos.

Todavia, o soldado principiante deverá lutar com muita prudência e


destreza, com avanços e recuos táticos, conforme as ocasiões e conforme a
virtude e a energia que a alma vai adquirindo. Mas uma coisa é certa: você
não deve voltar sempre as costas e fugir, deixando que se perca toda a
ocasião de contrariedade. Poderia, naquele momento, evitar uma queda,
mas se arriscaria muito aos golpes da impaciência por não se ter armado
antes, com o uso das virtudes contrárias.

Uma cautela, porém, como já foi dito anteriormente: estes conselhos não se
aplicam aos vícios e às paixões da carne.

VI - Do amor às ocasiões de exercitar a virtude

As ocasiões são meios necessários para que adquiramos as virtudes,


proporcionados por Deus. Por isso, quando você pedir uma virtude,
aproveite para pedir também a ocasião de adquiri-la. Pois Deus não dará a
você as virtudes de mão beijada: elas só serão suas se você as conquistar.
Se você pretender obter à virtude sem a escalada, a sua oração será inútil, e,
até mesmo, desrespeitosa a Deus, pois ele não dá a paciência sem as
tribulações, nem a humildade sem os desprezos, e assim por diante em
todas as virtudes. Todas elas, só as conseguiremos por meio das ocasiões
que se apresentarem.

É, portanto, perfeitamente compreensível que desejemos ardentemente que


surjam as ocasiões, e que as amemos pelo muito que nos ajudam. E tanto
mais as amemos, quanto mais dificultosas sejam.

Escute este conselho de combate que lhe dou especialmente, para seu uso:
nas ocasiões dificultosas. Os nossos atos são sempre mais generosos e mais
fortes. É nas batalhas difíceis que se destacam os grandes generais. E no
nosso modesto combate, os nossos atos serão considerados mais nobres e
mais valiosos na proporção das dificuldades que tenham sido vencidas, e
dos obstáculos que tenham sido ultrapassados.

Se, como foi dito no capítulo anterior, devemos aproveitar todas as


oportunidades, por menores que sejam, o nosso amor às ocasiões de
exercitar a virtude também deve ser o mesmo, tanto para as grandes como
para as pequenas ocasiões. Por exemplo: uma única palavra, ou um olhar
que nos mortifique.

E, além disso, há um outro ponto a ser considerado. É o de que na vida, se


apresentam muitas vezes mais as oportunidades para os atos menores,
porém de grande valor pessoal, do que para os grandes feitos heroicos.
Com os atos, vamos nos exercitando, para quando tivermos de enfrentar os
grandes desafios.

Outra consideração, em que já toquei acima, é lembrar-nos de que tudo o


que nos ocorre vem de Deus, para benefício nosso, e para que daí colhamos
frutos. Os nossos méritos haverão de ser conquistados por nosso próprio
esforço. Como Pai e Criador, ele regozijar-se-á com as nossas vitórias, e
tanto mais quanto tenham sido alcançadas com nossas próprias mãos.

Estejamos certos, portanto, que o Senhor quer que suportemos de boa


vontade qualquer incômodo, venha ele de nossos erros ou de faltas alheias.
Quando o que sofremos for causado pelo erro, pela injustiça ou pela
maldade de outros homens, principalmente se eles tiverem sido
beneficiados por nós, mais agradaremos ao nosso Deus.

Pois estaremos dando uma demonstração da nossa capacidade de repressão


do nosso orgulho e muito alegraremos o nosso Deus, se suportarmos de boa
vontade aqueles sofrimentos, os grandes e os pequenos, cooperando com
ele numa obra em que refulge, brilhantemente, a sua inefável bondade e
onipotência.

Também estaremos cooperando com ele, ao proporcionar-lhe prazer de ver


o mel sair do fel: o de tirarmos do veneno pestífero da malícia e do pecado,
precioso fruto de virtude e de bem.

- Mal o Senhor descobre, filha, (e filho meu) o nosso desejo vivo de assim
trabalhar e dedicar-nos a tão gloriosa empresa, ele nos apresenta o cálice
das tentações fortes e de duríssimas provas, a fim de que nos exercitemos
para enfrentar o produto da malícia do mundo, instilada pelas forças
infernais.

Esta é a prova do soldado, este homem e esta mulher que vieram ao mundo
leais a seu Pai e Criador e, assim, desejam se manter.

Nós, que reconhecemos o seu amor e o bem que haveremos de lucrar, de


olhos fechados, tudo devemos receber de boa vontade e beber até o fundo
do cálice com segurança e prontidão, pois o remédio foi fabricado por mão
que não pode errar e com substâncias que tanto maior bem farão à alma,
quanto mais amargas sejam.

VII - Como ocasiões diversas nos servirão para exercitarmos


uma mesma virtude

Já vimos como é mais eficiente exercitar, durante algum tempo, uma só


virtude. Vamos agora examinar mais a fundo o assunto. Já sabemos que
toda virtude requer exercício e alimento. Por isso, devemos estar
particularmente atentos para que aproveitemos bem cada ocasião que se
apresente, mesmo que estas ocasiões sejam muito diversas entre si.

Poderá acontecer que, várias vezes por dia, ou mesmo por hora, façamos
ações boas, mas, devido a elas, os outros murmurarão de nós. Ou então, que
nos neguem algum favor que peçamos, ou qualquer coisa pequenina. Ou
que suspeitem de nós sem motivo. Ou que nos advenha alguma dor
corporal. Ou que nos imponham algum trabalhinho incômodo. Ou que nos
deem a comer alimentos mal preparados. Ou outras coisas mais importantes
e mais duros de tolerar, coisas todas de que está cheia a miserável vida
humana.

Em todos estes casos, poderemos fazer muitos atos de virtude. Desejando,


porém, guardar a regra de que falamos, isto é, exercitar em todas as
ocasiões uma mesma virtude, mesmo assim, estaremos, nos exercitando em
todas as virtudes.

Vejamos um exemplo: se, no tempo em que nos advierem estes incômodos,


estivermos exercitando a virtude da paciência, o que faremos será tudo
suportar de boa vontade e de ânimo alegre.

Se o nosso exercício for de humildade, reconheceremos que tudo


merecemos devido aos nossos pecados.

Se estivermos procurando ter o hábito da obediência, curvar-nos-emos


prontamente à potentíssima vontade divina. Assim agindo, contentaremos
ao Senhor, pois ele quer que seja assim.

Se nos exercitamos na pobreza, ficaremos contentes de ser abandonados e


privados de qualquer consolo, grande ou pequeno, deste mundo.

Se estamos trabalhando para adquirir a virtude da caridade, faremos atos de


amor ao próximo, que é instrumento, dos melhores, para o reforço das
virtudes, tantos são os agravos, desconsiderações e humilhações de que nos
cumulam, todos os dias. Deus, que muito nos ama, nos mandou ou permitiu
aqueles incômodos, para exercício e proveito espiritual nosso.

Mas o proveito espiritual pode ser obtido, também, quando a ocasião para o
exercício da virtude seja uma só, porém demorada, como em caso de
enfermidade ou de algum trabalho de longa duração. Da mesma forma,
nesses casos poderemos praticar atos que conduzam ao engrandecimento
daquelas virtudes, em que nós estejamos exercitando.

VIII - Como cada virtude tem seu tempo, e dos sinais pelos
quais conheceremos nossa virtude

Não cabe a mim determinar o tempo, durante o qual se deve continuar no


exercício de uma mesma virtude. É preciso ver o estado e a necessidade de
cada um e o progresso que a alma está fazendo, no caminho da virtude.
Disto julgará você mesmo, e, se quiser, com o auxílio de um confessor, que
tenha como seu conselheiro.

Mas, para só ter uma ideia, posso dizer que se alguém se esforçasse
verdadeiramente, com toda a solicitude e disposição de ânimo, em poucas
semanas alcançaria grande progresso.

Um sinal de progresso na virtude, de acordo com o que foi dito sobre os


males das pausas e interrupções é a continuidade do seu exercício,
principalmente, se esta prosseguir sem alteração, mesmo naquelas fases de
aridez ou, quando trevas e angústias envolvem a alma.

Outro sinal altamente positivo é o da fraqueza da resistência oposta pela


sensualidade quando atacada pelos atos virtuosos. Tanto mais se terá
avançado quanto mais a sensualidade se tiver enfraquecido. Por isso, é
lícito dizer-se que já se possui a virtude, quando se sente que a parte
sensual e inferior não se agita, mesmo sob o assalto súbito e imprevisto dos
sentidos.
Do mesmo modo, podemos afirmar que tanto mais teremos aproveitado do
nosso exercício quanto maior for a nossa prontidão, espontaneidade e
alegria de espírito.

Lembro-me, porém, de que nunca sabemos com certeza se adquirimos as


virtudes, e venceremos verdadeiramente uma paixão nossa. Mesmo se
desde muito tempo e depois de termos atravessado muitas batalhas não
mais tenhamos sido atacados pela paixão, o demônio ainda pode, com sua
astúcia enganar-nos.

E, como já foi examinado nos capítulos iniciais deste livro, a soberba não
nos permite ver que aquilo que nos parece virtude, não passa de vício. '

Além disto, se meditarmos sobre a perfeição a que Deus nos chama,


seremos capazes de compreender que por mais que tenhamos progredido na
virtude, a nossa luta espiritual mal está começando.

Você, então, minha filha (ou meu filho), como novel guerreira, ainda
criança no combate espiritual, pois nasceste agora mesmo para combater,
recomece sempre os exercícios, como se nada tivesse feito, ainda. Nesta
fase inicial, a marcha para frente nas virtudes supera, em necessidade, tudo
o mais.

O nosso Pai, Deus, Senhor dos nossos corações e seu único juiz, pode fazer
com que alguns conheçam as próprias virtudes, conforme ele entenda que o
conhecimento possa trazer humildade, ou orgulho. Como Pai bondoso, livra
alguns do perigo ao mesmo tempo em que lança outros no meio da batalha
para que tenham ocasião de crescerem na virtude.

Devemos, porém, continuar com ânimo total em nosso exercício, ainda que
Deus não nos tenha concedido o conhecimento de seu progresso, pois
chegará o dia radioso e iluminado em que a alma verá o seu próprio
andamento, quando aprouver ao Senhor.
Da paciência
Se você está sofrendo com paciência qualquer coisa penosa, cuidado! O
demônio sabe que a paciência, às vezes, desaparece de súbito, ou se esgota
num só jato, e trabalha em você para conseguir que você se perca, num
momento de irritação. Ou, então, estimula o seu amor próprio para que
você tenha vontade de ver-se livre da amolação, o que é meio caminho para
a impaciência.

Deste desejo, dois danos lhe adviriam:

Primeiro: mesmo que naquele momento conseguisse vencer a impaciência,


pouco a pouco ela viria se impondo, pois você mesmo iria formando as
disposições para isso.

Segundo: sua paciência se tornaria defeituosa, e isto prejudicaria todo o


esforço de obtenção da virtude de maneira crescente e cada vez mais firme.

Muito podemos aprender sobre os caminhos de Deus, observando como


operam as suas recompensas à virtude da paciência, por ser esta um
instrumento de uso constante. Você verá que a lição maior que ela nos
ensina é que devemos guardar nossos desejos para objetos restritos, e ter
em vista como único e verdadeiro propósito, o de cumprir a vontade divina.
Assim orientando a nossa vontade, os nossos desejos serão sempre justos e
corretos, e nossa alma, sejam quais forem as circunstâncias, estará não
somente quieta, mas contente. Sim, pois desejando sempre em consonância
com a vontade divina, tudo o que sobrevier estará de acordo com os teus
desejos.

Eis a razão pela qual é conveniente para você impedir que a sua paciência
se tome defeituosa, pois a recompensa de Deus é para a virtude, e não para
a hesitação. Mas, em compensação, se você se tiver entregado
decididamente à divina bondade e aturado pacientemente o sofrimento,
mesmo que este durasse menos de uma hora, o Senhor lhe haveria de
recompensar por ter sido servido durante todo o tempo, mesmo que você
não tenha sido molestado. Pois, como já tive ocasião de dizer antes, Deus
não está preocupado com os eventos, e sim com a tua pessoa, com as tuas
reações positivas, com o teu aperfeiçoamento, com a tua vitória no
combate.

Devemos suportar com paciência aquela parte dos sofrimentos da qual não
pudermos fugir, após termos lançado mão dos meios lícitos para nos
libertarmos, pois isto mostra que é da vontade divina que os suportemos.

Também para nos libertarmos devemos seguir as disposições da vontade


divina. Foi Deus quem as facultou, para que delas nos servíssemos, porque
ele assim o quer, e não para que nos apegássemos a nós mesmos e
desejássemos ficar livres do que nos molesta. Conforme foi aqui visto, em
muitos casos, o que nos aborrece, irrita, e, por vezes, nos faz sofrer, é
precisamente o instrumento que nos conduz à virtude.

É por este motivo que, a solução mais sensata e a mais habilidosa é sempre
aquela que corresponde ao desejo do nosso Pai.
Da tentação de indiscrição
Uma das características marcantes do demônio é a de sermão perdedor.
Quando percebes que os nossos desejos são sólidos e bem-estruturados, fica
furioso em sua gana de nos conduzir à perdição, e é capaz de tudo, até de
transfigurar-se em anjo de luz.16

Para o ilusionista é muito fácil aproveitar-se da névoa e da penumbra em


que vivem as calmos que veem encanto nos ilusões. Quem já é propenso ao
clima de magia e encantamento dos tempos de criança, deslumbra-se com
tudo aquilo que se esconde entre véus, e aparece e desaparece no
lusco-fusco em que se confundem as luzes semiapagadas dos fulgores das
chamas que morrem, que mais escondem do que iluminam.

16
Acrescentamos algumas linhas, no início do capítulo, ao texto original com o propósito de familiarizar
os leitores um pouco mais com o conceito do autor sobre o demônio, o qual é expresso com coerência nos
demais capítulos, e não é uma imagem literária ou uma abstração, mas um ser real. Este conceito sobre a
“voz sedutora que se opõe a Deus” está perfeitamente conforme com o posicionamento mais moderno da
Igreja Católica, em seu Catecismo recentemente publicado, do qual transcreveremos, abaixo, os itens 391,
395 e 2.851.

Aquela “voz sedutora” que nos engana, não somente pelos ouvidos, mas por todos os nossos sentidos e
pensamentos, é uma criatura, uma pessoa, ainda que não humana, mas espiritual, e, por isso mesmo,
dotada de poderes, que utiliza para enganar, seduzir, ludibriar e destruir o homem desavisado ou ingênuo,
levando-o à perdição e à morte. As manhas, armadilhas, fantasias e ilusões do demônio assemelham-se às
da Maya enganadora da filosofia hindu, ilusões das quais podemos escapar facilmente com o uso da
inteligência, num abrir das nossas pálpebras, como quem desperta de um sonho, mas que podem enredar e
destruir aqueles que têm inclinação para criar, espontaneamente, as suas próprias ilusões, facilitando o
trabalho do diabo.

Quanto aos nomes e atributos do Demônio de acordo com o pensamento da Igreja Católica,
transcreveremos a seguir os itens acima referidos do Catecismo:

391: “Por trás da opção de desobediência dos nossos primeiros pais há uma voz sedutora, que se opõe a
Deus e que, por inveja, os faz cair na morte. A Escritura e a Tradição da Igreja veem neste ser um anjo
destronado chamado Satanás ou Diabo”.

395: “Contudo, o poder de Satanás não é infinito. Ele não passa de uma criatura, poderosa pelo fato de ser
puro espírito, mas sempre criatura”.

2.851: “Neste pedido (livra-nos do mal, do Pai-nosso) o mal não é uma abstração, mas designa uma
pessoa, Satanás, o Maligno, o anjo que se opõe a Deus”. Para concluir a denominação e a definição do
nosso inimigo, feitas diretamente por Jesus Cristo segundo João 8,44: “Vós sois do diabo, vosso pai, e
quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade,
porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da
mentira”.
Quando o inteligente demônio encontra na alma das suas vítimas os ilusões
já ali residindo, por si mesmas implantadas, já tem a seu dispor o palco
ideal para o seu elenco de mentiras, vestidas com um número inesgotável
de fantasias e de disfarces, utilizadas para enganar ainda mais o enganado.
A um ponto, é difícil distinguir entre as fantasias da pessoa e as do demônio,
e nem é preciso que as distingamos, pois muitas pessoas são mais
inclinados a ver as tentações como fraquezas da alma humana, sem a
presença, necessária, da pessoa asquerosa do diabo.

Assim é, se assim lhes parece. O que importa é conhecer as nossas próprias


deficiências, e saber que estas são utilizadas pelas forças malignas para nos
levar à perdição.

E também o que importa é saber quem, quando é difícil para o demônio


colher vantagens com enganos claros, ele é capaz de transfigurar-se até
mesmo em anjo de luz. Como é também capaz de fazer que uma alma bem
orientada no caminho da virtude caia no precipício, utilizando-se, para isso,
de pensamentos espirituais, sentenças da Escritura e exemplos da vida dos
santos.

Cínico, aconselha-nos a castigarmos asperamente o corpo com disciplinas,


abstinências, cilícios e coisas semelhantes. Sua meta é encher a vítima de
soberba, por lhe parecer que conseguiu atingir altos níveis espirituais.

Ou, então, o fim do tentador será que nos sobrevenha uma doença e, por
causa disso, não mais nos possamos dedicar às nossas obras boas, ou então
que, enfermos, nos seja difícil o exercício espiritual devido à fadiga.

De uma forma ou outra, e ainda por um dos outros tantos ardis do diabo,
somos induzidos a ir enfraquecendo a marcha no caminho das virtudes e a
nos irmos entregando aos passatempos e deleites terrenos.

Isto aconteceu a muitos. Deixaram-se iludir, seja pelas ilusões do demônio,


seja por suas próprias ilusões (ou, quem sabe, por um demônio que reúne
em si todos os enganos e todas as fantasias, ao qual poderíamos denominar
de ilusão...) e seguiram, presunçosamente os ímpetos de um zelo anormal,
destituído de qualquer prudência ou discrição, exagerando nos sinais
externos da verdadeira vida espiritual, que é, e deve ser, por tudo, discreta.

Dentre tantos erros, o da indiscrição parece ser o menor, mas, nestes casos,
é a razão de tudo, atuando numa linha direta de quedas: indiscrição no trato
das coisas íntimas da alma, imprudência, não prevendo o risco de cair na
tentação da presunção que conduz à soberba.

A queda não ocorrerá, se forem ponderadas as razões que aqui


apresentamos. As penitências e mortificações devem ser moderadas,
segundo a qualidade e a natureza de cada pessoa. Serão exercícios por tudo
louváveis, e muito proveitosos, se quem os praticar tiver condições
corporais e humildade de espírito. Mas não, em caso contrário.

A prudência ensina àqueles que não podem seguir os santos, nesta aspereza
de nossa vida, outras maneiras de imitá-los, seguindo o exemplo da sua
força de vontade e do seu fervor na oração, desejando receber, por
merecimento, as gloriosas coroas dos que verdadeiramente combateram ao
lado do nosso Comandante Jesus Cristo.

Não será com gestos visíveis de zelo religioso, de efeito externo, que
imitarão os santos, mas sim com seus sentimentos mais íntimos de desprezo
por si mesmos e pelas coisas do mundo, recolhendo-se no pudor do silêncio
e da solidão, ninhos de amor que Deus fez com suas próprias mãos para o
recato das nossas almas. Imitarão os santos, sendo humildes e mansos,
suportando os males que o próximo lhes trouxer, como sempre traz, e
fazendo o bem a todos, principalmente aos mais adversos e difíceis.

Todos estes atos agradam ao Senhor muito mais do que as penitências. Se


você quiser penitenciar-se, faça-o, mas com discrição, para escapar ao
orgulho da penitência, pois este, te levará para baixo.

Sob o pretexto de servir melhor a Deus, pessoas tidas como espirituais e,


até mesmo, religiosas, dão a si mesmas um tratamento extremamente
cuidadoso na conservação da saúde corporal. Na verdade, o que fazem é
instigar sem proveito algum, e, ao contrário, com grave dano de ambos, o
espírito e o corpo. Pois, com sua solicitude exagerada, tiram do corpo o
equilíbrio necessário à saúde, e do espírito, a devoção.

É mais seguro e louvável um modo de vida discreto, procedendo com


moderação tanto nos atos exteriores como nos interiores.

Na conquista da virtude, fuja da tentação da indiscrição, é o que te digo.


Do Juízo Temerário
Muitas pessoas não sabem o que é juízo temerário, ou não puseram
suficiente atenção na gravidade desta falta. Por isso, julgamos conveniente
esta informação prévia, para melhor compreensão do capítulo.

O juízo temerário é o passo inicial que antecede a maledicência. É, portanto,


o meio-caminho percorrido para uma imputação caluniosa, se os fatos não
forem verdadeiros. E, mesmo que sejam verdadeiros, a maledicência pode
ser movida por um sentimento de inveja, que também é condenável. Santo
Agostinho via na inveja “o pecado diabólico por excelência.” Diz São
Gregório Magno que “da inveja nascem o ódio, a maledicência, a calúnia, a
alegria causada pela desgraça do próximo e o desprazer causado por sua
prosperidade.”

Estes são ingredientes do juízo temerário, que dá vazão à maledicência,


praticada, por vezes, ingenuamente, na forma de “mexerico” social, mas,
que, em outras ocasiões, pode transformar-se em acusações graves,
chegando até à calúnia. Estas maneiras de proceder das pessoas em suas
relações umas com as outras denotam falta de caridade, ou seja, a
negligência do dever de amor ao próximo, que, por vezes, passa
despercebida, por ingenuidade, ou falta de atenção.

Mas a falta é grave, pois não pode ter nenhum amor ao próximo quem o
calunia, propagando fatos, juízos e conceitos que lhe são desfavoráveis, e
que contribuem para que venha a ser julgado, levianamente, pelos seus
semelhantes. Peca, portanto, contra a virtude da caridade quem assim
procede, mesmo que não tenha sido movido, diabolicamente, pela inveja.

Verá o leitor, na leitura deste capítulo, a confirmação do que foi dito na


Apresentação de abertura deste livro sobre os conceitos do autor, que
dispensam qualquer modernização. Para um cotejo do pensamento do Padre
Lourenço Scúpoli sobre o juízo temerário e matérias afins, com o
pensamento, mais recente, do Catecismo da Igreja Católica, recomenda-se a
leitura dos parágrafos 2477 a 2480 do Catecismo.

Do nosso amor à nossa capacidade de avaliação do comportamento humano


nasce um outro vício, que grande dano nos causa: fazemos juízo temerário
do próximo e chegamos a desprezá-lo, a humilhá-lo, a tê-lo por pessoa vil,
quando não pior, classificando-o com adjetivações desprimorosas.

Este defeito tem origem na soberba, característica que se faz muito presente
nas pessoas humanas, e que muito agrada a Satanás, pois abre muitas portas
para ele entrar nas almas.

Nascido da soberba, o juízo temerário é por ela fomentado e nutrido, com


crescente prazer, pois sempre lhe retribui, aumentando e fortalecendo a sua
fonte geradora. Cresce a soberba, e também o nosso orgulho e amor próprio.
Vão crescendo estes defeitos morais, comprazendo-se a si mesmos, e, com
isso, nos enganando e destruindo moralmente, sem que o percebamos.

Pois, sem notar, insensivelmente, quanto mais desprezarmos o próximo


tonto mais soberbos ficaremos, pois pensaremos que estamos longe
daquelas imperfeições que julgamos ver nos outros.

E o demônio, após instigar em nós esta péssima disposição de ânimo,


permanece vigilante para que nós não percamos um só minuto da nossa
atenção, vendo, examinando, e exagerando as faltas dos outros, sem termos
tempo para cuidar das nossas próprias faltas.

Todos os que estão mordidos pelo vício do juízo temerário ficam


extremamente ativos e diligentes, quando o demônio se põe a imprimir em
suas mentes os pequenos defeitos (quando não pode fazê-lo com grandes)
desta ou daquela pessoa.

Sem saber, esses “julgadores” dos seus irmãos estão a serviço do diabo,
pois fazem um importante trabalho de destruição da reputação, que é tarefa
auxiliar complementar da atividade demoníaca.
Mas, se o teu inimigo vigia para tua perda, filha minha (ou filho meu),
cuida em não cair nos seus laços, não te prestando a praticares a
maledicência que ele quer.

Tão logo percebas que ele está apontando alguma falha de teu próximo,
deixe de pensar naquilo imediatamente.

Pode ser que por tua própria conta, ou por instigação do diabo, te venha um
desejo de voltar a fazer juízo sobre aquela pessoa. Não se deixe levar,
mesmo que você esteja gostando de apontar a falha, e diga a você mesmo,
severamente que não lhe compete julgar. E que, mesmo que você estivesse
autorizado a fazê-lo, não conseguiria formar um juízo reto enquanto
estivesse agitado pelas paixões e pela inclinação de pensar mal dos outros,
sem razão suficiente.

Desta má inclinação se aproveitam as forças dissolventes das virtudes, para


estimular o que é errado. Contra este vício só há um remédio eficaz:
aconselho a você que ocupe integralmente o seu pensamento com as
necessidades do seu coração. Você logo verá que existe tanta coisa a fazer
na sua própria pessoa e para ela que não haverá nem tempo nem vontade de
meditar sobre os atos dos outros.

Se você atender convenientemente a este exercício, livrará os olhos da alma


das escamas que distorcem a sua visão espiritual, escamas que devem ser
eliminadas, porque é delas que procede este defeito pestilento.

Quando você pensa mal do seu próximo, esteja certo de que existe no teu
coração qualquer raiz do mesmo mal.

Por isso, quando lhe venha o desejo de julgar os outros por qualquer defeito,
pense que você mesmo é o culpado e diga à sua alma: “Como ousaria
levantar a cabeça para ver e julgar os defeitos dos outros, estando eu
coberto destes mesmos defeitos, e de outros?” E assim, a arma com que
feria o seu próximo e que se virava contra você mesmo, transforme-a em
remédio para os seus males e defeitos, virando-a, deliberadamente você
mesmo, contra si.

O terceiro e mais eficaz de todos os remédios é fazermos uma análise


ampla e rigorosa da nossa alma, para sabermos como estamos cumprindo o
mandamento do amor ao próximo, pois o uso da caridade tudo corrigirá. Se
o erro do teu próximo é claro e manifesto, desculpa-o, desde logo, e
acredite que naquele irmão há outras virtudes ocultas e que o Senhor
consente que eis tenha por algum tempo aquele defeito, a fim de que venha
a ser o ponto de partida para a conquista de alguma virtude.

Mas, o mais provável é que você venha a descobrir, naquela autoanálise


prévia, que o seu juízo era temerário. Somos propensos, por exemplo, a ver
defeitos nas pessoas que estão sendo elogiadas por seus méritos ou por suas
qualidades exteriores, principalmente a riqueza e a beleza física.

Às escamas que pousam sobre os olhos da nossa alma, são eficientíssimas


na distorção da nossa visão, para que só vejamos o lado negativo dos outros.
Não tivessem sido elas ali postas pelas próprias mãos do demônio,
precisamente para que praticássemos os pecados do juízo temerário, da
maledicência e da calúnia.

Porém, se o pecado do teu próximo é fora de dúvida, por ser claro e


manifesto e, além disso, é grave e indica coração obstinado, ponha-se q
pensar nos juízos de Deus, e você verá homens que foram primeiro grandes
celerados e deram, depois, sinais de grande santidade. E outros que, de um
grande estado de perfeição a que pareciam ter chegado, caíram no mais
miserável precipício.

Para concluir: tenha como coisa certa que, todo o bem e contentamento que
sentimos a respeito do nosso próximo é obra do Espírito Santo. E, em
contrapartida, todo o desprezo e juízo temerário vem do demônio, que cria
e estimula a malícia. A regra mais recomendável, portanto, é a seguinte: se
causou alguma impressão em você qualquer imperfeição de outrem, cuide
logo de sanar o mal e buscar o corretivo do teu próprio defeito, arrancando
depressa do teu coração todo o sentimento daninho que tenha sido nele
produzido.
Da oração17
I - A Quarta arma

Dissemos, no primeiro capítulo deste livro que você necessita de quatro


armas para vencer neste combate espiritual, a saber: a desconfiança em si
mesmo, a confiança em Deus, o exercício e a oração, e, que a arma da
oração é, sem dúvida, a mais poderosa de todas.

Aqui dizemos, como ponto de partida, que a quarta arma, a da oração, é a


mais importante de todas porque, com ela, você pode conseguir de Deus,
Nosso Senhor, não só os bens, as dádivas e as virtudes de que até aqui
tratamos, mas todos os outros bens, dádivas, dons, carismas e virtudes, tudo,
enfim, que possamos obter das mãos de Deus.

A oração, filha minha e filho meu, é o instrumento com que você vai obter
da divina fonte de bondade e amor, todas as graças.

Quanto mais árdua a batalha, quanto mais difícil se faça o combate, se você
souber servir-se bem da arma da oração, será como se tivesse posto a sua
espada nas mãos de Deus para que combata e vença a batalha por você.
Esta é a força da oração.

Há, porém, sete pontos essenciais para o seu êxito no uso da oração, aos
quais você deverá estar afeito ao empunhe esta poderosíssima arma:
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Confirma-se, nesta série de nove capítulos sobre a Oração o que foi dito na Introdução deste livro sobre
o vigor dos conceitos do autor, que dispensam modernização. O pensamento mais recente da Igreja sobre
esta matéria encontra-se explanado nas Seções I e II da PARTE IV do Catecismo da Igreja Católica,
recentemente publicado, de onde extraímos as seguintes referências: nº 2559: “A humildade é o
fundamento da oração”. nº 2565: “É o coração que reza”. nº 2643: “A Eucaristia contém e exprime todas
as formas de oração”. nº 2716: “As palavras na oração não são discursos, mas gravetos que alimentam o
fogo do amor”. nº 2725: O combate espiritual da vida nova do cristão é inseparável do combate da
oração”.

Outras referências para consulta: nº 2560; Sto. Agostinho — “Deus tem sede de que nós tenhamos sede
dele”.

2610/11 — Oração de fé; 2629: oração de súplica; 2634: oração de intercessão; 2639: oração de louvor;
2709: oração mental; 2705: meditação; 2742: Orai sem cessar”; 2746/51: A oração da hora de Jesus.
Primeiro: você deve estar sempre imbuído de um verdadeiro desejo de
servir, em tudo, à Divina Majestade, da maneira que mais lhe agradar.
Mantenha aceso este desejo, considerando:

— que Deus, devido à sua admirabilíssima excelência, bondade, majestade,


sabedoria, beleza e outras perfeições infinitas, é excelsamente digno de ser
servido e honrado:

— que ele esteve durante trinta anos a teu serviço direto, tratou e curou-te
de tuas fétidas chagas envenenadas pelo pecado, e sarou-as, não com óleo,
vinho e tiras de pano, mas com líquido precioso que saiu de suas
sacratíssimas veias e com sua carne puríssima, dilacerada pelos açoites,
pelos espinhos e pelos pregos.

Medite, além disso, que servindo e honrando ao Senhor, você assume a sua
verdadeira e nobilíssima posição de filho de Deus, e de senhor de si mesmo,
superior a todos os embates da vida e ao demônio com todas as suas
maldades.

Segundo: a tua fé e confiança devem ser suficientemente fortes. Você deve


ter viva fé e confiança em que o Senhor lhe dará tudo aquilo que for
necessário para o seu serviço. Esta confiança é o vaso que a misericórdia
divina enche com os tesouros de sua graça, que tanto maior e mais eficaz
será, quanto mais rica for a nossa oração.

O Senhor não nos negará a sua graça, pois foi ele mesmo que nos ordenou
que a pedíssemos, e nos prometeu o envio do Espírito Santo, se o
solicitássemos com fé e perseverança.

Terceiro: procure a vontade divina. É preciso saber pedir. Acostuma-te a


orar com a intenção de olhar não para a tua vontade, mas para a vontade
divina. Você não deve querer nunca mudar a vontade de Deus, porque esta
é sempre a que maior bem trará a você. Deus quer muito que você reze para
obter aquilo que já te concedeu no seu coração. A tua intenção será, assim,
a de unir a vontade divina com a tua, e não a de fazer que a vontade de
Deus seja semelhante a que já havias por tua conta, determinado, pois esta é
falível e erra muitas vezes. Basta que você se lembre que a vontade humana
é escrava do amor próprio, e você, em muitas ocasiões, não sabe bem o que
está pedindo.

A vontade divina quer e merece ser seguida e obedecida por todos. Por isso,
devemos pedir, sempre, coisas que sejam do divino agrado, pois este é o
roteiro mais seguro para o pedir. Quando você tiver dúvida e não souber se
alguma coisa deve ou não deve ser pedida, peça desta forma: somente você
a desejará, se o Senhor quer que a alcance. Já quando você souber ao certo
que é uma coisa do agrado de Deus, como por exemplo, qualquer uma das
virtudes, peça com vigor e incondicionalmente, acrescentando, ainda, que o
foz com o propósito de lhe agradar.

Quarto: concordância do pedido com a sua capacidade de honrar o seu


compromisso. Pede coisas equivalentes aos teus méritos e, depois da oração,
esforça-te para te tornares capaz da graça e da virtude que desejas.

O exercício da oração deve estar sempre acompanhado de vitórias sobre


nós mesmos. Devemos ser humildes no pedir mas não modestos, desde que
nos esforcemos na proporção da altura do nosso pedido. Pois pedir uma
virtude e não se esforçar por adquiri-la seria tentar a Deus.

Quinto: antes de você pedir, agradeça os benefícios que já recebeu


anteriormente. Revele a sua gratidão. Se o pedido foi para obter uma
virtude que está faltando em meio à crise, mostre que a contrariedade vem
sendo suportada corajosamente, pois isto virá em teu benefício. Agradeça
ao Senhor a ocasião que ele propiciou para o seu aperfeiçoamento.

Sexto: use e abuse do amor do Pai pelo Filho e do amor de ambos por você,
ao pedir, se o seu pedido for justo. Não faz mal se você invocar a sua
bondade e misericórdia, a louvar os méritos da vida e da Paixão de Jesus
Cristo, relembrando a promessa que ele nos fez de atender ao que lhe
pedíssemos. Conclua com uma jaculatória, de que já te falei em capítulo
anterior, dirigida ao Pai ou ao Filho, pedindo pelos méritos de cada um, ou
da Santíssima Trindade, da Virgem Maria ou de outros santos, inclusive
algum que seja de tua especial predileção. Todos os santos são poderosos
junto de Deus, que muito os honra, pois, durante sua vida eles, honraram a
divina Majestade.

Sétimo: perseverança. É necessário que você tenha perseverança na oração,


pois a perseverança humilde é a única maneira de vencer o invencível. Se a
insistência da viúva do Evangelho fez com que a atendesse o juiz, que era
um malvado (Lc, 18), como não terá força a nossa insistência para
sensibilizar nosso Deus, que é a plenitude de todo o Bem?

Por isso, mesmo que o Senhor demore a te escutar ou dê sinais de não


querer atender a teus rogos, continua a orar e a ter firme confiança nele,
pois ele é a infinita superabundância de todas as virtudes, que são
necessárias para conceder as graças de que você necessita. Ele pode estar
querendo que você insista, fortalecendo a virtude da perseverança.

Para concluir: tenha a certeza de que você obterá tudo o que pedir por meio
de oração, se esta não for imperfeita. Tudo o que você pedir, e tudo que for
útil para você.

E quanto mais você constatar que foi atendido, mais humilde deve se sentir,
porque humilhando-se, com suas culpas, perante a piedade divina, o filho
de Deus aumenta a sua confiança no Pai, e se esta se mantiver viva, tanto
mais agradará ao Senhor quanto mais for combatida.

Agradece-lhe, sempre, reconhecendo sua bondade, sabedoria e amor e


manifestando a tua gratidão, mesmo quando alguma coisa te seja negada.

E em qualquer acontecimento, se você guardar no coração a humilde


submissão à divina providência, sentir-se-á sempre firme, e receberá o
melhor de todos os prêmios, que é o de uma plena alegria, preenchendo
todos os espaços do seu coração.
II - Da oração mental

A oração mental é uma elevação da mente a Deus, com um pedido,


expresso ou tácito, de alguma coisa que se deseja.

O pedido é expresso quando, mentalmente, se pede graça, com estas


palavras: “Senhor Deus meu, concede-me esta graça, por tua honra”. Ou,
então: “Senhor meu, penso que te agrada e é para tua glória que te peça e
alcance de ti esta graça. Realiza então, em mim, o que te apraz”.

Quando você estiver sofrendo combate de seus inimigos, rezará assim:


“Vem depressa, Senhor, ajudar-me, para que eu não ceda aos inimigos”. Ou:
“Deus meu, refúgio meu, fortaleza de minha alma, socorre-me depressa,
para que eu não caia...”

E, continuando a batalha, prossiga também neste modo de orar, resistindo


sempre, virilmente, a quem te combate.

Quando arrefecer a luta, volta-te para o teu Senhor, mostra-lhe o inimigo


que te combateu e a tua fraqueza em resistir, e diz:

“Eis, Senhor, a tua criatura, formada pelas mãos de tua bondade, e remida
com teu sangue. Eis o teu inimigo que tenta afastar-me de ti, para me
devorar. A ti, Senhor meu, eu recorro, somente em ti confio, porque és
onipotente e bom, e vês a minha impotência, e vês como logo cederei ao
inimigo, se não for sustentado pelo teu auxílio. Ajuda-me, portanto,
esperança minha e fortaleza de minha alma”.

Pedido tácito, ou virtual, é aquele em que elevamos a mente a Deus,


mostrando apenas a necessidade que temos, de alguma graça. Como, por
exemplo, quando elevemos a mente a Deus e, em sua presença,
reconhecemo-nos impotentes para nos defendermos do mal e fazermos o
bem. E então, acesos no desejo de o servir, contemplamos o Senhor,
esperando, com fé e humildade, o seu socorro.
Este conhecimento da própria insuficiência e este desejo de servir a Deus
são uma oração. Pois quem precisa, virtualmente está pedindo. E quanto
mais claro e sincero for este conhecimento e mais aceso o desejo e mais
viva a fé, tanto mais eficaz será a oração que a alma estará fazendo.

Há, ainda, uma outra espécie de oração, mais restrita, e que fazemos com
um simples olhar da mente a Deus, para que o Senhor nos socorra. Este
olhar é uma lembrança tácita da graça que antes havíamos pedido.

Aprenda bem esta espécie de oração e repita sempre o seu uso, pois a
experiência mostrará a você que ela é uma pequena arma de grande eficácia,
que você poderá ter à mão facilmente, em qualquer ocasião e momento, e
que tem um valor maior do que se supõe.

III - Do modo de orar por meio da meditação

A meditação da Vida e Paixão de Jesus Cristo é um valiosíssimo


instrumento de elevação espiritual para ser utilizado nos momentos de
oração.

Quando você for rezar, seja durante quinze minutos, meia hora, ou mais
tempo, poderá acrescentar alguns minutos daquela meditação, procurando
sempre relacionar os fatos sobre os quais medita com as virtudes que queira
adquirir.

Por exemplo; se você deseja reforçar a virtude da paciência, acrescente à


sua oração este fortíssimo catalizador que é a meditação sobre algum ponto
preciso da vida e da Paixão de Jesus Cristo, como o é o da Flagelação.

Façamos juntos o exercício, pois, ao final, você sentir-se-á reforçado na sua


capacidade de resistir ao sofrimento e à humilhação, se não de forma tão
violenta, pelo menos com uma capacidade maior de ter paciência no meio
da adversidade:
Primeiro: meditemos sobre a ordem de Pilatos, mentalizando a imagem de
Jesus arrastado, entre gritos e zombarias ao local da flagelação.

Segundo: como lhe arrancaram a roupa, e é posto, despido, como um


criminoso, ao lado da coluna da flagelação.

Terceiro: como suas mãos inocentes, que tanto bem fizeram aos seus
semelhantes, foram amarradas na coluna com cordas molhadas, que lhe
cortaram a pele dos pulsos.

Quarto: como o seu corpo foi dilacerado pelos flagelos, chegando o seu
sangue a molhar o chão.

Quinto: os golpes, batendo num mesmo lugar, aumentavam a dor e


esfolavam a carne que depois teria que suportar o peso da cruz.

Ao meditar sobre cada um destes pontos acima descritos, procure visualizar


aqueles acontecimentos e, para adquirir as virtudes da fortaleza de ânimo e
da paciência do autocontrole, aplique os sentidos num esforço para sentir, o
mais vivamente possível as angústias e as dores que o Senhor padeceu em
cada parte de seu corpo e em todo o corpo ao mesmo tempo.

Esta meditação abrangerá a Alma santíssima daquele homem submetido a


tremendo sacrifício, e as virtudes que a compõem, refletindo você mais
longamente sobre a paciência e a mansidão com que suportava tantas
aflições, e tudo isso para benefício nosso.

Contempla-o, depois, lembrando-te do seu vivo desejo de que cumpras o


teu dever, e veja como o Filho, dirigindo o seu olhar para o Pai, também
ora por você, para que o Pai se digne de conceder-te a graça de suportares
pacientemente a cruz que agora te mortifica.

Que estas meditações ajudem você a adquirir a disciplina e a fortaleza que


permitem ao soldado curvar muitas vezes a sua vontade, adquirindo
condições para desejar tudo suportar com ânimo paciente.
Voltando o pensamento para o Pai Criador, agradeça-lhe por ter mandado a
este mundo, por pura bondade, o seu Filho Unigênito para que sofresse
tantos tormentos terríveis e orasse por você.

Peça-lhe, depois, a virtude da paciência, por mérito das obras e rogos do


seu Filho.

IV - De outra maneira de orar meditando

A meditação da Vida e Paixão de Jesus Cristo pode processar-se nos mais


diversos ângulos e facetas. O mesmo exercício descrito no capítulo anterior
pode, assim, desdobrar-se em outros.

Você poderá orar e meditar de outra maneira: depois de você ter


considerado atentamente as dores que o Senhor padeceu, a prontidão de
ânimo com que tudo suportou, a grandeza de suas obras e a sua paciência,
você passará a duas outras considerações. Uma, sobre o seu mérito; outra
sobre o contentamento e a glória do Pai Eterno como resultado da perfeita
obediência de seu Filho.

O pedido da graça que você deseja será feito em seguida, em virtude destas
duas coisas, cuja consideração você apresentará à Divina Majestade.

Isto você poderá fazer meditando não somente sobre cada mistério da
Paixão do Senhor, mas sobre cada ato interior ou exterior que em cada
mistério ele praticava.

V - Da oração por meio da meditação sobre a Virgem Maria

A maneira de orar meditando, pode ter como tema a vida e as virtudes de


Nossa Senhora Virgem Maria.

Primeiro, você pensará no Eterno Pai Criador. Depois, no dulcíssimo Jesus.


E, por fim, na sua gloriosa Mãe.
Meditando sobre Deus, você levará duas coisas em consideração:
primeiramente, os sentimentos de Deus em relação à sagrada Mãe de seu
Filho.

Não somente o seu prazer pelas virtudes da Virgem, em sua passagem pelo
mundo, mas, também, elevando a tua mente para além das coisas terrenas,
quando considerares o que seja a mente de Deus e as delícias que ele sentia
em si mesmo, pensando em Virgem Maria, antes de todo o tempo, antes
mesmo da Criação.

E pede, então, que te seja dado gozares tudo aquilo em que pensas, e que
ele te dê graças e forças para destruíres teus inimigos, particularmente
aquele que agora te combate.

Passando, depois, à consideração das tantas e tão singulares virtudes e


ações da nossa Mãe Santíssima, e apresentando a Deus a tua perspectiva de
cada uma delas ou em seu conjunto, peça à Infinita Bondade, em virtude
dos méritos destas ações, tudo aquilo de que você precisa.

Volte, depois, a sua mente para o Filho de Deus que durante nove meses
habitou no corpo de Maria, uma virgem escolhida por Deus para ser a sua
Mãe. Tente imaginar a profundidade daquele amor cheio de reverência com
que a Virgem o adorou quando ele nasceu. Como ela o recebeu,
reconhecendo-o como verdadeiro Homem e verdadeiro Deus, por ser Filho
do Deus Criador de todas as coisas.

Pense nos braços que o sustentaram, nos olhos piedosos que se


compadeceram da sua origem tão pobre e humilde, nos lábios que tiveram o
privilégio de beijá-lo, tantas vezes, nos momentos de tristeza e de alegria.
No leite com que aquela pobre mãe o nutriu, para que crescesse forte,
suportando as fadigas das longas caminhadas e das noites sem dormir,
ensinando e orando até o nascer do sol. Rememore aquela vida de trabalhos
e de angústias, por ela suportada até o dia da sua morte na cruz.
Pelos méritos de todas estas ações, você fará ao divino Filho doce violência,
rogando-lhe que lhe escute.

Volte, depois, o pensamento para a Santíssima Virgem, lembrando-lhe que


ela foi eleita pela Providência eterna nossa Mãe, mãe de graça e piedade e
Advogada nossa. É por isto que, depois de seu Filho bendito a ninguém
podemos recorrer que seja mais poderoso do que ela.

Recorda-lhe, além disso, esta verdade que cada vez mais se escreve e se
testemunha a seu respeito: tantos têm sido os fatos miraculosos, conhecidos,
que não é exagero dizer-se que ninguém jamais a invocou com piedade e
verdadeira fé, que não fosse atendido.

Finalmente, mencione os sofrimentos que seu único Filho suportou, para a


nossa Salvação. Você fará, então, o seu pedido, para que ela obtenha de
Deus a graça desejada a fim de que, para sua alegria e glória, as dores do
Senhor deem em você os frutos pelos quais ele as quis sofrer.

VI - Como devemos recorrer com fé e confiança à Virgem


Maria

Se você quer recorrer com fé e confiança à Virgem Maria, poderá conseguir


o seu intento em todas as necessidades, se você considerar o que agora vou
dizer.

Primeiro: — Sabe-se, por experiência, que o recipiente onde havia algum


mofo ou licor precioso, guarda o cheiro, mesmo quando já não haja mais
licor ou mofo ali. E tanto mais tempo permanece o perfume quanto mais
tempo o recipiente conteve a substância que o originou. Mais longamente
permanecerá o odor se ficou no vaso alguma coisa do licor ou do mofo. E,
no entanto, a força de fixação do odor de uma e outra substância, é
limitada.

Assim, também, quem está junto de um grande fogo guarda calor por muito
tempo, mesmo quando se tiver afastado do fogo.
De que fogo de caridade, entretanto, de que misericórdia e piedade
poderemos imaginar que estejam acesas as entranhas de Maria Santíssima?

Durante nove meses, ela teve no seu ventre o Filho de Deus.

Já o tinha de longo tempo, no seu coração, desde a visita do Anjo. O Filho


de Deus, que é a mesma caridade, misericórdia e piedade, não já de
intensidade finita e limitada, mas de uma virtude infinita e sem limite
algum.

Pois, assim como ninguém se aproxima de um grande fogo sem ser


aquecido, assim, também, com muito maior razão, qualquer pessoa que de
algo tiver necessidade, prontamente receberá favores, auxílios e graças, se
se aproximar, com fé e humildade, do fogo de misericórdia, caridade e
piedade que sempre arde no peito de Virgem Maria.

E tanto mais assim será, quanto mais vezes e com maior fé se acorrer a
Nossa Senhora.

Segundo: — Nenhuma criatura amou tanto a Jesus Cristo, nem foi tão
submissa à sua vontade como sua Mãe Santíssima.

O próprio Filho de Deus, que dedicou toda a sua vida e sua própria pessoa a
nós, pobres pecadores, nos deu sua Mãe por nossa Mãe e advogada, a fim
de que nos proteja e seja, depois dele, o instrumento de nossa salvação.
Como poderá faltar-nos então, ou tornar-se rebelde à vontade do Filho, esta
Mãe e Advogada?

Recorre, pois, filha — ou filho — com confiança, em todas as tuas


necessidades, à Mãe Santíssima, à Virgem Maria, porque esta confiança é
de grande valia e seu auxílio é seguro, pois ela é a mãe das graças e das
misericórdias.
VII - Do modo de meditar e orar, pensando nos Anjos e
Santos

Os Anjos do céu são soldados, como nós, que participam nos combates ao
nosso lado e, nas grandes batalhas, ao lado do nosso General Comandante.

Os Santos estão empenhados, como Deus Pai e Jesus Cristo, na nossa


salvação, tendo à frente a Intercessora, Protetora Sagrada, Virgem Maria,
Nossa Senhora.

Você pode pedir e obter que os Anjos e Santos do céu lhe auxiliem nesta
batalha, formulando dois pedidos:

O primeiro, é invocar diretamente ao nosso Pai Eterno o mérito das fadigas


e penas que, por seu amor, os Santos sofreram na terra e o amor e os
louvores com que é ele exaltado por toda a Corte celeste. Pelo mérito de
tudo isto, peça à divina Majestade tudo o que te é necessário.

O segundo pedido, ou maneira de pedir, é que você recorra diretamente a


estes gloriosos Espíritos, que gozam de grande perfeição e desejam,
ansiosamente, a tua perfeição, para que sejas como eles. Pedirás o seu
socorro contra os teus inimigos e tuas falhas, e lhes rogarás que te auxiliem
a corrigir todas as tuas imperfeições, aniquilando, ao longo do caminho da
virtude, todas as manhas, mentiras e tentações do demônio.

Em tua oração, medite, também sobre as muitas graças que eles receberam
e ainda recebem do Criador, pelo muito que os ama com imenso amor, a
cada um deles. Excite em ti uma viva alegria e um grande amor para com
eles, como se fossem tuas as riquezas de dons que eles possuem. Como o
Pai, eles são perdulários de amor e de graças, que não guardam consigo,
senão para dá-las a nós.

Porém, se você estiver muito preocupado, tenso e assustado pela violência


dos ataques das forças inimigas, peça aos Anjos e Santos que lhe salvem
desta contingência, em que se encontra e que lhe defendam da morte.
O remédio heroico a que você poderá recorrer nestas horas de crise é o
apelo sistematizado a todas as legiões, que será desenvolvido da seguinte
maneira:

Em cada dia da semana, enquanto durar a crise, você rezará para cada
grupo que virá em seu auxílio, utilizando as orações mais adequadas à sua
situação e às suas necessidades:

Começando no domingo, antes da missa, você invocará os nove coros dos


Anjos;
na segunda-feira, sozinho, São João Batista, que vale por uma legião do
exército celeste;
na terça-feira, os Patriarcas e os Profetas;
na quarta-feira, os Apóstolos;
na quinta-feira, a legião dos Mártires;
na sexta-feira, todos os Santos e os Pontífices;
no sábado, as Santas.

Mas, neste tratamento de choque, você terá que não poupar esforços, não
deixando de recorrer muitas vezes à Virgem Maria, Rainha de Todos os
Santos, ao seu anjo da guarda, a São Miguel Arcanjo e a todos os santos
protetores que você tiver.

Peça todos os dias à Virgem Maria e seu Filho, e ao Pai Celeste, que te
concedam a grande graça de te darem como advogado e protetor a São José,
esposo da Virgem. Tendo-o, recorra rapidamente a este Santo, com grande
confiança e peça que o acolha debaixo da sua proteção.

Muitos favores receberam todos aqueles que recomendaram a ele, não


somente nas necessidades espirituais, mas também nas temporais, Ele é
solícito protetor, principalmente, quando se trata de encaminhar pessoas
devotas à verdadeira oração e meditação.
Deus ama os seus santos, porque estes lhe obedeceram e o honraram,
enquanto viviam entre nós.

Quanto, então, não é de crer que estime a São José, cujos pedidos lhe
valham na proporção do seu amor a este Santo, a quem o próprio Deus quis
submeter-se, tendo-o como pai?

VIII - Sobre o modo de excitar nossos afetos, meditando sobre


a paixão de Cristo

Ensinei a você; no capítulo 46 deste livrinho, um método para você


multiplicar em muito a eficácia da sua oração, acrescentando-lhe alguns
minutos de meditação, enfocada em temas previamente escolhidos e
relacionados com as virtudes que você queira adquirir.

Fizemos, inclusive, um exercício de meditação sobre um ponto da Paixão


de Cristo, o episódio da flagelação de nosso Senhor pelos soldados de
Pilatos, meditação que dirigimos à virtude da paciência.

Vamos agora, nestes dois últimos capítulos da série dedicada ao estudo da


oração, desenvolver melhor aquele método de meditação, mantendo-nos
sempre dentro do tema da Paixão de Cristo, cuja riqueza espiritual é uma
fonte inesgotável.

O que foi dantes exposto sobre a Paixão serve para se orar e meditar,
quando se tem alguma coisa a pedir. Acrescento agora, o modo de
excitarmos afetos em nosso coração por intermédio da meditação.

Vamos repetir o mesmo exercício anterior, procurando reconstituir


mentalmente e em nossos sentidos as seguintes cenas:

Primeiro: depois da flagelação e da subida do Calvário, os verdugos


arrancam as vestes de Jesus que haviam colado à sua carne flagelada,
causando novas feridas, e ainda mais dolorosas.
Segundo: tiram-lhe a coroa de espinhos que estava cravada na sua cabeça,
e cravam-na novamente, ferindo-o outra vez.

Terceiro: a golpes de martelo é cruelmente pregado, com cravos, na cruz.

Quarto: seus membros sagrados não alcançaram os orifícios praticados na


cruz para os cravos, e, então, seu corpo é repuxado com tanta fúria que se
poderiam contar os seus ossos, dolorosamente deslocados.

Quinto: O Senhor fica pendente na cruz, unicamente sustentado pelos


pregos que, devido ao peso do corpo, alargam suas chagas e reabrem as
feridas com insuportável sofrimento para o Senhor.

Medite sobre todos estes pontos, tendo em mente a excelência das


qualidades do nosso Senhor, principalmente a sua infinita bondade. Mais e
mais, você ficará amando-o, pelo tanto que se permitiu sofrer por nós.
Quanto maior se tornar este conhecimento, maior se tornará o amor.

Facilmente, você se arrependerá de ter tantas vezes cometido a ingratidão


de ofender o seu Deus, à medida que for compreendendo a bondade e o
amor infinitas que o Senhor demonstrou ter por você.

A tua esperança e confiança crescerão na proporção do teu entendimento da


grandeza de um Deus, que foi tão maltratado e ferido devido às tuas
iniquidades.

Para reforçar a tua confiança e avivar a tua esperança, basta que medites
sobre o estado de destruição a que se reduziu um tão grande Senhor, para
pagar os nossos pecados, para nos livrar dos laços do demônio e de nossas
culpas particulares, para tornar o Pai Eterno mais propício aos homens, e
para te infundir a confiança de recorreres a ele em todas as tuas
necessidades.

Quando o seu pensamento abarcar a plenitude dos fatos relacionados com a


Salvação, você sentirá grande alegria, pois são frutos daquele sofrimento
tudo o que conseguiu o nosso Salvador: ele apagou os pecados de todos,
confundiu o Príncipe das Trevas, aplacou a ira do Pai, acabou com a morte
e permitiu aos homens a entrada no céu.

Mais ainda contribuirá para a tua alegria a constatação do contentamento da


Santíssima Trindade, de Maria Virgem e de toda Igreja, militante e
triunfante.

Para fazer crescer em você o ódio aos seus próprios pecados, pense neles,
enquanto estiver meditando sobre os sofrimentos da Paixão de Cristo, como
se o Senhor não tivesse passado por eles a não ser para infundir em você o
ódio às más inclinações, principalmente àquelas que mais força têm sobre
você e, por isso mesmo, mais desagradam à sua divina bondade.

Para acender em você uma grande admiração, medite assim: que coisa mais
poderia espantar a você, e a qualquer pessoa, do que ver o Criador do
Universo, que dá vida a todas as coisas, ser perseguido e morto por aqueles
que ele criou? Ver assim desrespeitada e aviltada a Majestade suprema?
Ver condenada a própria Justiça eterna? Maculada a Beleza, que é de Deus?
Odiado o Amor, que é a essência do nosso Pai? Reduzida, aquela luz eterna
e inacessível, ao poder das trevas? A própria glória e felicidade reputadas
como vergonha e desonra, abismados diante da extrema miséria, a do Filho
de Deus pregado na cruz do suplício?

Para que você alcance a verdadeira dimensão da mágoa e da tristeza de


quem se compadece do Senhor que sofre, medite não só nas suas penas
exteriores, nas suas terríveis dores físicas; pense também naquelas, muito
maiores, que lhe atormentavam a alma.

Se a sensação das dores corporais do Senhor já foi suficiente para te causar


aflição, como não se despedaçaria o teu coração ao teres plena
compreensão dos sofrimentos que feriram a alma de Jesus?

Pense sobre isto; a alma de Cristo contemplava a essência divina como hoje
a vê no céu. Ele sabia que Deus é infinitamente digno de toda honra e de
toda a reverência, e em seu amor pelo Criador e pelas criaturas, desejava
que estas servissem a Deus com todas as suas forças, e virtudes.

Vendo que ocorria justamente o contrário, vendo as inumeráveis culpas e


os abomináveis crimes do mundo, coisas que ofendiam e conspurcavam a
divina Santidade, seu coração sofria dores infinitas. E tanto mais lhe
machucavam estas dores quanto maior foi o seu amor e o seu desejo de que
tão alta Majestade fosse honrada e servida por todos.

Nunca poderemos avaliar a grandeza deste amor e deste desejo. E, por isso,
jamais chegaremos a saber quão acerba e grave foi a aflição interna do
Senhor crucificado.

Além disto, ele amava todas as criaturas com um amor que é indescritível, e
sofria por seus pecados na proporção em que as amava, pois o pecado o
separa das almas. E todo o pecado mortal que tinham cometido ou
cometeriam os homens, que existiram e que existirão, separavam as almas
dos pecadores, da alma de Jesus. E tantas vezes isto aconteceria quantas
vezes os homens pecassem.

A alma — puro espírito, mais nobre e mais perfeito do que o corpo — era
mais capaz de sofrimentos do que o corpo. Por isso, esta sua separação dos
pecadores é mais dolorosa do que a separação dos membros do corpo
quando se deslocam e saem do seu lugar natural.

Se você quiser prosseguir na sua meditação sobre os sofrimentos internos


do nosso querido Jesus, pensemos, para mais nos compadecermos dele, nas
grandes dores que sofreu, não somente pelos pecados cometidos, como
também para que muitos pecados não fossem cometidos. Pois não há
dúvida de que tanto o perdão de uns como a proteção para que os outros
não se cometessem, devemos aos preciosos sofrimentos do Senhor.

Quando você bem considerar e compreender, meu filho (ou minha filha) a
causa de todas as dores que o nosso Crucificado, Redentor e Senhor
padeceu, não verá outra que não o pecado.
Por isso, a verdadeira e principal compaixão e o agradecimento que ele
pede de nós e que, sem dúvida alguma, lhe devemos, é que odiemos, por
sou amor, o pecado, e que combatamos generosamente contra todos os
inimigos de Deus e contra nossas más inclinações.

E assim, despojados do homem velho, nos vestiremos com o homem novo,


ornando as nossas almas com as tão desejadas virtudes.

IX - Dos proveitos que tiraremos da meditação e imitação de


Jesus crucificado

Muitos proveitos nos advirão desta meditação santa. Um deles, será que
você se arrependerá de seus pecados passados. Você se afligirá,
lembrando-se de que ainda existem dentro de você aquelas paixões
desregradas que crucificaram o nosso Senhor.

O segundo proveito será a reconciliação. Você desejará pedir a Deus


perdão das suas culpas, e que te dê uma visão bem nítida de todas as tuas
imperfeições, para que você tenha ódio delas. E pelo tanto que ele padeceu
para a nossa redenção, você o amará muito mais, e com uma crescente
disposição de lhe servir. Mas, lembre-se: sem esse ódio santo, você não
poderá realizar os seus melhores propósitos.

O terceiro proveito será que daí em diante você perseguirá as suas más
inclinações até matá-las, por pequenas que sejam. Para isto, você irá
esforçar-se enormemente para imitar as virtudes do Salvador, que sofreu
tanto, não só para te salvar, redimindo os teus e os nossos pecados, mas
também para te dar o exemplo, que você se esforçará por imitar.

Vejamos, agora, uma outra nova maneira de meditar, que proponho a você:
se você deseja adquirir, por exemplo, o hábito da paciência, considere
como pontos de imitação de Cristo os seguintes:

Primeiro: aquilo que a alma de Cristo opera, apaixonada por Deus.


Segundo: o que Deus opera com relação a Cristo.

Terceiro: o que a alma de Cristo opera a respeito de si mesma e do seu


sacratíssimo corpo.

Quarto: o que Cristo opera com respeito a nós.

Quinto: o que nós devemos fazer para com Cristo.

Primeiramente, então, medite sobre como a alma de Cristo contempla a


Essência Divina e maravilha-se daquela infinita e incompreensível
grandeza, comparada com a qual todas as coisas são um puro nada. E,
embora continue em sua glória, esta divindade suporta agora, na terra,
tratamentos indigníssimos, oferecendo tudo a Deus Pai. E tudo isso em
proveito do homem, de quem nada recebeu senão infidelidades e injúrias.

Segundo. Contempla o que Deus faz, a respeito da alma de Cristo: como


quer e anima-se a que suporte por nós as bofetadas, os escarros, as
blasfêmias, os açoites, os espinhos e a cruz, e como mostra que ele se
compraz em ver seu filho coberto de toda a sorte de opróbrios e aflições.

Terceiro. Medite, depois, sobre a alma de Cristo. Sua inteligência


lucidíssima, vendo quão grande era, em Deus, este prazer, e amando tanto
sua Divina Majestade, alegremente se dispõe a obedecer prontamente à sua
santíssima vontade, quando convidado a sofrer por nosso amor e para nosso
exemplo. E quem poderá penetrar dentro destes profundos desejos, de sua
puríssima e amorosíssima alma, de sofrer por nós? Ela fica quase em um
labirinto de desejos, procurando e não encontrando novas maneiras de
sacrificar-se. E por isso, de boa mente, entrega-se todo inteiro, pondo seu
inocentíssimo corpo à disposição daqueles homens iníquos para que, como
demônios do inferno, façam com ele o que quiserem.

Quarto. Depois de tudo isto, contempla o teu Jesus que, voltando sobre ti
os seus olhos piedosos, te diz: “Eis, filho, o estado em que me deixaram os
teus desejos imoderados, porque não te quiseste fazer um pouco de
violência. Eis quanto sofro. Mas peço-te, por todas as dores que padeço
com alegria por ti, para te dar exemplo, que leves de boa mente tua cruz e
qualquer outra que eu te envie, mesmo se eu te deixar nas mãos de todos os
teus perseguidores, por mais vis e cruéis que sejam contra teu corpo e tua
honra. Ó, se soubesses as consolações que me darias nesse momento... Mas
tu podes avaliá-lo por estas feridas que, como se fossem doçuras eu quis
sofrer, para amar de preciosas virtudes tua pobre alma, que eu amo muito
mais do que pensas. E se eu me reduzi a tal estado, por que razão, meu filho
querido, não quererás tu sofrer um pouco, para redimir os teus próprios
pecados e satisfazer o teu coração, pondo um pouco de bálsamo nestas
chagas causadas pela tua impaciência que me aflige mais amargamente do
que a própria chaga?”

Quinto. Medite bem sobre a pessoa que assim te fala: é o Rei da Glória, o
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Considere a grandeza e a
violência dos seus tormentos e injúrias recebidas, que encheriam de
vergonha os mais infames ladrões do mundo. Veja como ele suporta tantas
ignomínias, não somente com paciência e resignação, mas com alegria, que
provém de sua fé na vitória que virá por fim.

E assim, como com um pouco de água o fogo aumenta, assim também, com
o aumento das dores, que eram pouca causa para a sua imensa caridade,
mais cresciam os seus tormentos nas mãos dos homens-demônios que o
supliciavam e mais crescia e a sua caridade.

É preciso que você venha a compreender, pela via da meditação, como o


Senhor, clementíssimo, sofreu tudo isto, não em interesse próprio mas,
como ele mesmo disse, pelo seu amor por você e para que, a seu exemplo,
você se exercite na virtude da paciência. O que ele deseja é que,
percebendo bem o que ele quer de você, e a alegria que você lhe dará,
exercitando-se bem nesta virtude, queira ardentemente levar com paciência
e, até mesmo com alegria, para imitar e agradar ao seu Deus a sua Cruz
atual e qualquer outra que ele lhe envie.
Pense nas ignomínias é angústias que ele sofreu, lembre-se da sua
constância, e envergonhe-se de que seus sofrimentos não sejam verdadeiras
dores e infâmias. E, apesar disto, que você tenha somente uma sombra de
paciência, facilmente esgotável. Então não temas, e treme ante o
pensamento de que o teu coração se negue, um dia, a sofrer por amor a
Deus.

Este Senhor crucificado, filha (ou filho), poderá ser o modelo achado de
todas as virtudes. É o livro da vida e não somente age sobre a nossa
inteligência, inflamando-a com o exemplo.

O mundo está cheio de livros e, no entanto, todos eles juntos não ensinarão
tão perfeitamente o modo de adquirir todas as virtudes.

Alguns, filha, brilham muito, falando sobre a Paixão do Senhor e


considerando a sua paciência. Mostram-se, porém, impacientes nas
adversidades que sobrevêm, como do nada tivessem aprendido na oração.
Estes são como os soldados do mundo, que prometem muita coisa, sob as
bandeiras, antes da batalha; depois, quando aparece o inimigo, largam as
armas e fogem.

Que coisa será tão estulta e errada, como mirar, qual lúcido espelho, as
virtudes do Senhor, amá-las e venerá-las, e depois se esquecer de tudo, ou
não se incomodar quando se apresenta a ocasião de imitar aquelas virtudes?

Do Santíssimo Sacramento da Eucaristia

Já apresentei a você, meu filho, (ou minha filha) as quatro armas de que
necessita para vencer os seus inimigos. Ensinei-lhe, também, a usar estas
armas.

Mais uma, quero lhe propor agora: o Santíssimo Sacramento da Eucaristia.

Este sacramento está acima de todos os outros e, assim sendo, esta arma
também é a mais forte de todas.
Nos capítulos anteriores, vimos o valor dos méritos e da graça que nos
mereceu o sangue de Cristo. Agora, esta última arma é o próprio sangue e a
própria carne de Cristo, com sua alma e sua divindade.

Usando as outras armas, você combaterá com as virtudes de Cristo. Com


esta, você lutará ajudado pelo próprio Cristo.

Pois quem come da carne de Cristo e bebe do sangue de Cristo, está com
ele em si.

Você pode usar esta poderosíssima arma, de duas maneiras: pela comunhão
espiritual a toda hora e todo o momento. Você não deve deixar de,
comungar sacramentalmente, quando isto lhe for permitido.

Da comunhão sacramental

Com diversos propósitos, podemos nos apresentar à mesa da Comunhão.


Para conseguir os nossos fins, várias coisas devemos fazer: umas antes da
Comunhão, outras durante a Comunhão; e enfim, outras depois da
Comunhão.

Antes da Comunhão, seja qual for o fim pelo qual a queremos receber, é
necessário que, com o sacramento da penitência, nos purifiquemos das
manchas do pecado mortal, se acaso cometemos algum. Importa, ainda que,
com todo o afeto de nosso coração, nos entreguemos a Jesus Cristo com
todas as nossas forças e todas as nossas potências. Mas não só a Jesus
Cristo, pois devemos fazer tudo o que lhe agrada, já que, neste sacramento
santíssimo ele nos dá o seu sangue e a sua alma com sua divindade e seus
méritos.

Pouca coisa ou quase nada é o que oferecemos. Por isso, nosso desejo será
que tivéssemos tudo aquilo que, através dos tempos, lhe ofereceram todas
as criaturas humanas e celestes, para o podermos oferecer também à Divina
Majestade.
Se você quer receber o seu corpo, para que ele vença, em você os seus
inimigos, que são os mesmos dele, faça, na véspera do dia da Comunhão,
uma meditação concentrada no desejo que o Filho de Deus tem de que lhe
dê entrada no seu coração com este Santíssimo Sacramento. O Senhor quer
unir-se com você a ajudá-lo a vencer todas as paixões viciosas que você
tenha ou venha a ter.

Este desejo de Deus é um tesouro de grande valia que, infelizmente, a


inteligência humana não tem condições de apreender.

Comecemos a corresponder, pelo menos, a este anseio do Senhor,


colocando na mente estes dois pensamentos:

1º - o prazer inefável que Deus tem de estar conosco, pois que nisto se
delicia.

2º - o ódio que ele tem ao pecado, que ele detesta por ser um obstáculo à
sua união conosco e, sobretudo, por ser o oposto das suas divinas
perfeições.

O demônio, pai do pecado e da mentira, assassino-mor, fera sanguinolenta


que nos espreita para nos estraçalhar, é o nosso inimigo, porém muito mais,
o inimigo de Deus, em essência. Um é o sumo Bem, a luz pura, a infinita
beleza, o objeto da justiça e tem que odiar e abominar o Mal que é a
essência do pecado que enche nossas almas de trevas o manchas
intoleráveis.

Tão ardente é este ódio do Senhor ao pecado, que o escopo do Velho e do


Novo Testamento e, particularmente, da Sacratíssima Paixão do Filho é a
destruição do pecado.

Dizem os mais doutos que, para anular em nós toda culpa, pequenina que
seja, ele estaria pronto a se expor novamente a mil mortes, se necessário.
Por aí você pode ver, ainda que imperfeitamente, o grande desejo que o
Senhor tem de entrar no seu coração e destruir os seus inimigos juntamente
com os inimigos dele, que, via de regra, são os mesmos. Ora, se existe este
desejo por parte de Deus, que é que tem você a fazer? Para início, incitar
em si mesmo, um vivo desejo de recebê-lo com o mesmo intuito.

A ocasião é propícia para a Comunhão eucarística. Faça-se generoso e


pleno de esperança, na vinda do celeste general Comandante das tropas de
combate às quais você pertence. Antes de que ele venha, combata sem
cessar o vício que você deve vencer, reprima-o a todo o instante com
vontade firme, praticando, como você aprendeu, os atos da virtude que se
contrapõe àquele defeito. Assim você passará a tarde da véspera e a manhã
do dia em que irá receber a sagrada Comunhão.

Uns instantes antes de receber o Santíssimo Sacramento, você passará em


revista, ligeiramente, as faltas que cometeu desde a última Comunhão.
Você deixou-se cair naquelas faltas, como se Deus não tivesse sofrido tanto
nos mistérios da Cruz. Você caiu, porque levou mais em consideração os
seus vis contentamentos do que a honra e a vontade de Deus. É natural,
então, que você sinta um santo temor, e que, envergonhado de si mesmo, se
arrependa da sua ingratidão e indignidade.

Esta será a hora de lembrar-se de que o abismo incomensurável da bondade


do nosso Senhor compensa o abismo da tua ingratidão e pouca fé.
Aproxima-te dele, portanto, confiantemente, oferecendo-lhe o teu coração
para que o Senhor tome inteira posse dele.

Você dará um lugar digníssimo e cada vez mais amplo na sua alma ao
Senhor Deus, à medida em que você se for livrando dos afetos e paixões
indignos de convivência com a pureza, e substituindo-os pelas virtudes que
tanto agrado lhe darão. Quanto às coisas terrenas, feche as portas da alma
ao mundano corruptível, para que não entre aí ninguém que não seja o
nosso Senhor.
Quando você tiver comungado, retire-se para o silêncio do seu coração.
Adore com humildade e reverência o Senhor, assim rezando:

“Estás vendo, único bem meu, como te ofendo facilmente e como são fortes
minhas paixões, das quais não me posso livrar por minhas próprias forças.
Mas esta batalha é mais tua que minha. De ti espero a vitória, embora me
seja ainda preciso combater”.

Depois, voltando-te para o Pai Eterno, oferece-lhe em ação de graças e para


que alcances vitória, o seu bendito Filho, que te foi dado por ele e já tens no
coração.

Combata corajosamente contra as paixões que você deseja eliminar,


referidas nas suas orações e espere de Deus confiantemente, a vitória, que
certamente conseguirá, mesmo que ela tarde um pouco, se tiver feito, de
sua parte, tudo o que cabia fazer.

Do amor que devemos excitar em nós antes de recebermos a


sagrada Comunhão

O excelso sacramento da Eucaristia poderá servir para que você alcance um


maior amor a Deus.

O primeiro pensamento neste sentido deve dirigir-se, repetidas vezes, ao


amor que ele demonstrou ter por você.

Na tarde da véspera do dia da Comunhão, você meditará na bondade que


este grande e onipotente Senhor teve, deixando-se a si mesmo no
Santíssimo Sacramento do altar, para ser seu alimento e solução para as
suas necessidades e carências. Como se não fosse o bastante ter-te criado à
sua imagem e semelhança e ter-te enviado o seu Filho Unigênito para que
sofresse nesta terra por trinta e três anos por tuas iniquidades e terminasse,
para reunir os teus pecados, suportando terríveis sofrimentos e penosa
morte na cruz.
Considere bem, filho (ou filha minha), a incompreensível excelência deste
amor, perfeitíssimo e sem igual, seja qual for o ponto de vista do qual o
examinares.

Primeiro: se considerarmos o Tempo, Deus nos amou perfeitamente desde


toda a eternidade. É eterno no Amor tanto quanto o é na Divindade, pois foi
com este mesmo Amor que, desde toda a eternidade, estatuiu na sua mente
dar aos homens, miraculosa e maravilhosamente, o seu Filho, em pessoa,
diariamente, no Santíssimo Sacramento.

Diante desta constatação, rejubile-se no íntimo da sua alma, e diga, com


alegria e reverencial admiração:

“Neste abismo de eternidade, a minha pequenez era tão estimada e amada


pelo grande Deus que ele pensava em mim e já cogitava, com sua infinita
caridade em dar-me em alimento o seu próprio Filho!”

Segundo: todos os outros amores, por grandes que sejam, têm algum fim,
nem podem crescer sem medida. Mas o amor do nosso Deus é infinito.

Por isso, querendo satisfazer inteiramente o seu amor desmesurado, nos deu
o seu Filho, que é igual a ele em majestade infinita, na substância e na
natureza.

Tal o amor, qual o dom ofertado. E tal dom ofertado, qual o amor. E ambos
são de grandeza tal que nenhuma inteligência poderá imaginar grandeza
maior.

Terceiro: não foi nenhuma necessidade ou força que levou o Senhor a nos
amar, senão a sua bondade natural e intrínseca. Somente esta o moveu a nos
amar de tal maneira, e tanto. A bondade natural de quem é Pai e Criador, o
seu amor por aqueles que ele criou do nada e deu ser, na forma que quis, a
mais bela e generosa de todas: à sua imagem.
Quarto: nenhuma obra ou mérito nosso precedeu o seu amor, ou levou-o a
ter tal excesso de caridade para conosco.

Foi somente por sua liberdade que Ele se deu inteiramente a nós,
indigníssimas criaturas suas.

Quinto: se você pensar na pureza deste amor, verá que ele em nada se
parece com os amores mundanos, onde sempre entra algum interesse.

De nada servem ao Senhor os nossos bens, pois ele é gloriosíssimo e


felicíssimo em si mesmo, sem nós. Por isso é que foi inefável a sua
bondade, pois tudo fez, não para o seu, mas para o nosso proveito.

Pense nisto, e diga consigo mesmo:

“Por que tão sublime Senhor foi pôr o seu coração em uma tão baixa
criatura?

Que desejas de mim, ó Rei da Glória?

Que esperas de mim, que sou pó da terra?

Teu grande amor por mim me faz ver claramente, na luz de tua ardente
caridade, que te deste a mim em alimento, para que eu me converta
inteiramente em ti.

Não porque tenhas necessidade de mim, mas para que, vivendo tu em mim
e eu em ti, nesta amorosa união, eu me transforme em ti, e a vileza de meu
coração terreno faça, com o teu coração, um só coração”.

Com seu amor onipotente, ele não quer de ti outra coisa que cobrir-te com o
seu amor, tirando do teu coração todo o apego pelas coisas criadas e depois,
tirando-te a ti mesmo de lá, pois também és criatura. Vendo-se tão amado e
querido por Deus, você terá uma alegre surpresa e, na sua felicidade, terá o
desejo de oferecer-se por inteiro a Deus, para que daqui por diante somente
o amor e o agrado divino te movam a inteligência, a vontade, à memória e
os sentidos.

Nada neste mundo pode produzir estes efeitos em você, a não ser a Santa
Comunhão. Receba-a, portanto, com alegria e com a dignidade devida a tão
importante acontecimento.

Abra o coração às santas graças sacramentais de que você será portador.


Você poderá embelezar o ato com as seguintes orações jaculatórias:

— “Ó alimento celeste, quando chegará o dia em que, abrasado unicamente


no fogo do amor a Deus, poderei retribuir, oferecendo o meu amor e a
minha alma ao meu Criador?”

— Ó pão vivo, quando viverei somente por ti e de ti? Quando isto


acontecerá, é vida minha, vida sublime, feliz e eterna?”

— “Ó maná celeste, quando virá a hora em que, sentindo náuseas de


qualquer outro alimento terreno, somente querer-te-ei a ti, somente de ti me
alimentarei? Quando virá esta hora, quando, único bem meu?”

— “Ah, Senhor meu, amoroso e onipotente, livra este mísero coração de


qualquer apego terreno e de qualquer paixão viciosa! Orna-o com tuas
santas virtudes e com o hábito de tudo fazer unicamente para te agradar.

Assim sendo, poderei abrir-te meu coração e te convidarei e te farei doce


violência para que entres. E então, Senhor, poderá, sem resistência de
minha parte, fazer em mim aquilo que sempre desejaste”.

Você poderá exercitar-se nestes santos afetos na tarde da véspera e na


manhã do dia da Comunhão. Nesse dia, ao avizinhar-se a hora da Eucaristia,
avolume o seu pensamento dirigido à excelsa grandeza, beleza e bondade
daquele que vais receber.
É o Filho de Deus, de majestade incomparável e incompreensível, diante do
qual treme o céu e a terra.

É o Santo dos Santos, o espelho da Eternidade, sem mancha, de pureza


infinita, com a qual não há criatura comparável, por não existir criatura sem
pecado.

É aquele que, sendo imaculado, aceitou fazer-se verme da terra por amor a
você, para ser flagelado, pisoteado, cuspido, traído, atormentado e
crucificado pela malícia e iniquidade do mundo.

É Deus que tu vais receber, o mesmo Deus que tem em suas mãos a vida e
a morte de todo o Universo!

E você, que vai receber esta graça e esta grande honra, o que é?

Por você mesmo, nada.

Por teus pecados e por tua malícia, um frágil idiota, capaz de ser
confundido e enganado por todos os demônios do inferno. E que, quando
caído em tentação, torna-se, pelo pecado, inferior a qualquer vilíssima e
imunda criatura irracional.

Em paga das honras e benefícios de que ele lhe cumula desde que o criou à
sua própria imagem, você só retribuiu com negligências e caprichos,
desprezando um Senhor tão bom, magnânimo e generoso, que verteu seu
sangue por você.

Apesar disto tudo, ele, com seu amor paternal e, mais do que este amor, o
de quem criou você do nada, já o perdoou, na sua caridade perpétua e
imutável bondade, e agora convida você à sua divina mesa. Mais do que te
convida, te obriga à comunhão com ele, ameaçando-te com a morte eterna.
Ele não te fecha a porta, mesmo que, pelos teus atos, mereças que te volte
as costas.
Somente uma coisa ele pede de você: que você se arrependa de o ter
ofendido, desprezando-o, e que você tenha um grande ódio ao pecado, tanto
aos grandes como aos pequenos.

Atendido com um arrependimento sincero e sincero desejo de corrigir as


suas deficiências, ele pede que o ajudes a desenvolver as tuas virtudes,
entregando-te, docilmente, em todas as circunstâncias, à sua vontade, e
obedecendo-a.

Finalmente, para que estejas pronto para participar no santo banquete da


Eucaristia, ele te pede que tenhas fé no perdão, com firme esperança de que
ele te perdoará, te apagará todos os pecados, e te livrará de todos os
inimigos.

É chegado o momento do Maravilhoso Encontro. O da alegria, no céu, dos


Santos e dos Anjos, que te acompanham em todos os transes do teu
combate, orando pelo teu bem. O doente desprezível derrotado, rangendo
os dentes de despeito pela alma que o venceu.

Confortado pelo Amor dos que te amam, você irá receber a hóstia sagrada,
dizendo:

— “Senhor, eu não sou digno de te receber por te ter ofendido gravemente


tantas vezes e por não me arrepender, quando devo, destas ofensas”.

— “Senhor, eu não sou digno de te receber porque ainda não vive em mim
suficiente ódio e repelência pelos meus pecados veniais”

— “Senhor, eu não sou digno de te receber porque ainda não me entreguei


sinceramente à totalidade do teu amor, da tua vontade e da tua obediência”.

— “Ah, Senhor meu, onipotente e infinitamente bom! Em virtude de tua


bondade e de tua palavra, faz-me digno, Amor meu, de te receber com esta
fé!”
Depois de você ter comungado, recolhido dentro do teu coração, pense em
todas as coisas criadas, e fale assim, — ou de maneira semelhante —, ao
Senhor:

— “Ó altíssimo Rei do Céu, por que razão entraste no peito desta criatura
miserável, torpe e cega?”

E ele te responderá:

— “Porque te amava”.

Você será induzido a perguntar:

— “Ó Amor Eterno, é doce Amor, que coisa queres de mim?”

E ele responderá:

— “Somente amor.”18

Nem outra coisa desejo que arda no altar do teu coração e em teus
sacrifícios, em tuas oblações, em tuas obras. Basta o fogo da caridade, cujas

18
Conforme assinalado nas páginas finais do capítulo, após a pergunta feita a Deus “que coisa queres de
mim?”, cumpre registrar uma pequena alteração feita no texto original do autor, com base na tradução
inglesa, adaptando-o ao público em geral, ao qual é dirigida esta edição.

Contudo, a beleza da resposta àquela pergunta, que parece ter sido dirigida a Deus por uma noviça, devido
à referência às “vestes nupciais” feita em outro capítulo, será aqui reproduzida, a seguir, com a fidelidade
devida: “E ele responderá”:

“Somente o amor. Nem outra coisa desejo que arda no altar do teu coração e em teus sacrifícios e em
todas as tuas obras. Basta o fogo do meu amor, que consumirá todo outro amor e toda a tua vontade
própria e fará arder em teu coração fogo que me será suavíssimo. Isso eu o peço e sempre pedirei, porque
quero ser todo teu e quero que sejas toda minha.

Isto, porém, não acontecerá, enquanto não tiveres aquela resignação que tanto me agrada e enquanto não
estiveres livro do amor do ti mesma, do teu próprio parecer e de toda a tua vontade e apego à reputação.

Quero que tenhas ódio a ti mesma, para eu te dar o meu amor. Quero o teu coração, para que ele se una
com o meu, pois foi para este fim que, na cruz, me abriram o peito. E quero que sejas toda minha, para
que eu seja todo teu. Vês que sou de um preço incomparável e, no entanto, por minha bondade, faço-me
do mesmo valor que tu! Compra-me, portanto, alma dieta, dando-te toda a mim”.
chamas ardentes consumirão os fulgores impuros da paixão e farão arder
em teu coração um fogo suavíssimo que muito me agrada.

Isto eu sempre desejei: que a tua alma seja toda minha, para que eu seja
totalmente dela. Mas, para que isto aconteça, é preciso que tenhas a
resignação do despojamento que tanto me agrada ver nos meus filhos
queridos, e que estejas libertado das cadeias do amor a ti mesmo e do apego
vaidoso à tua vontade e às tuas próprias determinações.

Saiba, então, que eu desejo que os meus filhos morram para o mundo, para
que possam viver para mim. Para este fim foi que na cruz o meu peito foi
aberto, para que o meu coração seja todo de vocês, e meu o teu coração.
Minha a tua alma e tua a minha alma. Teu o meu Espírito e meu o teu
Espírito.

Num esbanjamento de amor, igualei-me a você, sendo o meu preço


incomensurável, e ofereço, agora, o amor do teu Deus em troca do teu amor,
que é bem menor do que o meu. Compra-me, portanto, alma querida, da
forma como te ofereço. Dar-me-ei inteiramente a você, nada desejando,
senão que você faça o mesmo.

Nada queiras, nada penses, nada procures a não ser o que já tens.

O teu nada, perdido no abismo da minha infinitude, nela se transformará.

Tuas fraquezas, tua infirmeza, tuas hesitações, desaparecerão.

Estarás plenamente feliz em mim, e eu estarei contente.

Consubstanciada a Comunhão, você oferecerá ao Pai o seu Filho amado em


ação de Graças e, também, em atendimento aos pedidos que você queira
dirigir a Deus naquela ocasião que é bem propícia para tanto.
Poderá também oferecer por toda a Igreja, seus Santos, seus Anjos e toda a
Hierarquia, por todos os teus, por outras pessoas em particular e pelas
almas do Purgatório.

Estes pedidos serão feitos com o oferecimento, ao Pai, do seu Filho


Homem, em memória e em união com aquela oferta que o Salvador fez,
pendente da cruz, ao Pai Eterno.

E do mesmo modo, você poderá oferecer todos os sacrifícios que se fazem,


naquele dia, na Santa Igreja.

Da Comunhão Espiritual

No sacramento da Eucaristia, apenas poderemos receber uma vez, no


mesmo ato, o Corpo do Senhor. À comunhão espiritual, você pode fazê-la a
qualquer hora, a cada instante, pois ninguém pode impedia a não ser a
negligência ou o esquecimento.

Conforme as circunstâncias, esta comunhão pode vir a ser, às vezes, mais


agradável a Deus, e mais frutuosa do que muitas comunhões sacramentais,
devido a defeitos daqueles que as recebem.

Sempre que você se apresentar para esta comunhão, encontrará o Filho de


Deus, que o alimentará espiritualmente, com muita alegra, com suas
próprias mãos.

Como preparação, volte a mente para ele, e peça-lhe em oração, que te dê


boa disposição espiritual para o encontro.

Faça um rápido exame das suas faltas, de memória, arrependendo-se


daquelas que constituam pecado ou ofensa a Deus, e peça-lhe, com muita
humildade e fé, que se digne de vir até à sua pobre alma, dando-lhe novas
graças e fortificando a contra os inimigos.
Ou, então, se você não se considerar suficientemente preparado para
receber o Senhor, faça desde logo um forte combate contra as paixões e
pecados que ainda restam, querendo tomar conta da sua alma. Ao mortificar
algum apetite ou praticar qualquer ato de virtude, tenha por único propósito
preparar melhor o seu coração para o Senhor, o que muito lhe contentará,
pois, é isto que ele está permanentemente desejando que você faça.

Volte-se para ele, chame-o, peça-lhe que venha ao seu coração,


trazendo-lhe novas graças para lhe sarar e lhe livrar dos inimigos, a fim de
que venha ele a ser, afinal, o único possuidor do seu coração.

Trazendo à mente a lembrança da sua última comunhão, peça


ardentemente:

“Quando, Senhor meu, te receberei outra vez? Quando?”

Você pode querer preparar-se e comungar espiritualmente de maneira mais


digna, aplicando todas as mortificações, atos de virtude e obras boas que
tenha praticado, pela intenção de habilitar-se para a Comunhão espiritual.

Quem recebe o Santíssimo Sacramento do altar, readquire os virtudes


perdidas, sua alma retoma a beleza de antes e recebe os frutos e méritos da
paixão do próprio Filho de Deus. Pensando sobre isto, considera, de manhã,
a felicidade da alma que se alimenta com o sagrado pão, e quanto agrada a
Deus que frutifiquem em nós as graças que ele nos infunde com a
Comunhão.

Esforce-se, então, para que fique aceso em sua alma um grande desejo de
recebê-lo, para lhe dar contentamento.

Diga-lhe, então:

“Não me foi concedido, Senhor, que te recebesse hoje. Peço-te, então, que
venhas a mim espiritualmente, para que eu, perdoado de minhas faltas, a
cada hora e todo o dia, adquira novas forças contra os inimigos,
principalmente este que tanto combato, para poder dar prazer ao meu Pai,
dizendo-lhe que o venci”.

Da Ação de Graças

Temos obrigação de agradecer a Deus por qualquer vitória que alcancemos


e por todos os benefícios, particulares ou comuns, que recebamos de sua
mão piedosa.

E para agradecer de maneira justa e completa, devemos considerar o fim


que o Senhor tem em mente ao nos conceder suas graças. Com este
pensamento, poderemos entender o modo pelo qual o Senhor quer que lhe
agradeçamos.

Em tudo, Deus considera, em primeiro lugar, os seus filhos, as suas


criaturas e o amor, que as criaturas lhe tributarão. Ao agradecer pela graça
recebida, pense com que poder, sabedoria e bondade Deus a concedeu a
você, que mereceu o seu amor. E, olhando para dentro de si mesmo, veja
com os olhos da sabedoria que em realidade, nada existe em você e,
partindo de você, que possa merecer qualquer prêmio, pois o que você tem,
e em abundância, são culpas, defeitos e ingratidões. Ponha-se em postura
de profunda humildade e diga ao Senhor:

“Como te dignaste. Senhor, olhar para um verme tão desprezível,


concedendo-me tantas graças? Seja teu nome bendito, nos séculos dos
séculos!”

E, finalmente, compreendendo no fundo da tua consciência que, com o


benefício que te fez, ele quer que o ames e escute sempre mais, inflama-te
de amor para com um Senhor tão amoroso, e faz crescer na tua vontade o
desejo sincero de servir a Deus, obedecendo-lhe sempre.

De acréscimo, faça-lhe um pequeno oferecimento, na forma que lhe


ensinarei no capítulo seguinte.
Do oferecimento

Para que o oferecimento de si mesmo seja agradável a Deus, duas coisas


são necessárias: o desapego de tudo, e a união do seu oferecimento com o
que Cristo fez ao Pai.

O Filho de Deus, enquanto viveu entre nós, oferecia permanentemente ao


Pai Celeste não somente suas obras e sua pessoa, mas também as nossas
obras e as nossas pessoas. Nossos oferecimentos devem ser feitos em união
com os de Cristo.

Quanto ao desapego que devemos ter pelas coisas do mundo, faça uma
análise geral, para ver se a sua vontade tem apego a qualquer coisa. E veja,
se esse afeto está ligado a alguma virtude ou se é puramente gratuito. Se for
um afeto sem qualquer mérito, trata logo de te livrares dele.

Recorra a Deus para que, com o seu auxílio, você possa oferecer-se à divina
Majestade livre de qualquer apego terreno.

Mas, veja bem, pois este ponto é muito importante: se você oferecer-se a
Deus com a alma cheia de apego és coisas que foram criadas, não estará
oferecendo coisa sua, mas dos outros.

Porque nós pertencemos às coisas a que estivermos apegados. Você não


será totalmente dono de si mesmo, pois terá outros donos. Se oferecermos o
que não possuímos, desagradamos o Senhor, pois parece que o estamos
enganando.

É por este motivo que, muitas vezes, nossos oferecimentos e oblações a


Deus não operam, por serem vazios e sem fruto, razão pela qual podemos
cair, pouco depois, em várias falhas e pecados.

Enquanto estamos apegados às coisas, podemos nos oferecer a Deus,


unicamente, tendo em vista que a sua bondade nos auxilie a preparar-nos
para que, no futuro, possamos nos oferecer plenamente, numa dádiva
perfeita à Divina Majestade.

E deveremos agir, assim, muitas vezes e com grande amor, até


conseguirmos fazer a dádiva correta de nós mesmos.

Seja, portanto, o teu oferecimento feito sem qualquer apego à tua vontade
própria. Não tenhas em mira nem os bens terrenos nem os bens celestes,
mas tão somente a vontade e à Providência Divina. A ela, você deve
submeter-se inteiramente, fazendo de si um holocausto permanente.
Desprezando todas as coisas criadas, pense assim:

“Eis que ponho em tuas mãos, Senhor e Criador meu, todas e cada uma de
minhas vontades. Faz de mim o que te apraz, na vida e na morte, depois da
morte, no tempo e na eternidade”.

Você saberá claramente se diz estas palavras com sinceridade, quando algo
adverso acontecer a você. A sua força será, porém, muito grande se você
tiver falado lealmente, pois você passará do plano terreno e material para o
de Deus, e você será de Deus e Deus será seu. O Senhor é sempre daqueles
que desprezam as coisas criadas e a si mesmos, e tudo sacrificam por seu
amor à Divina Majestade.

Você vê, então, meu filho (ou minha filha), um modo poderosíssimo de
vencer os seus inimigos: se você fizer esse oferecimento, unir-se-á de tal
forma com Deus que você será dele e ele inteiramente seu. E que inimigo,
que poder, terá força então, sobre você?

Quando você quiser oferecer algum ato seu ao Senhor, como jejuns,
orações, atos de paciência e outras coisas boas, relembre primeiro o
oferecimento que Cristo fazia ao Pai, de seus jejuns, orações e outras obras.
Se você, assim pensando, aumentar a sua confiança no valor e na virtude
destas dádivas de Cristo, oferecerá também com crescente confiança as
suas obras.
Se você quiser oferecer a Deus, por suas culpas, as ações de Cristo, poderá
agir da seguinte maneira:

Examine, primeiramente, os seus pecados, e se você sentir que não pode


por si mesmo, sozinho, satisfazer à Justiça Divina, recorrerá à Vida e
Paixão de Jesus, pensando em algumas de suas ações: nos seus atos de
amor e de coragem, nos seus esforços e fadigas, nos seus sofrimentos, no
seu derramamento de sangue. Era para aplacar a ira do Pai contra os
homens pecadores, inclusive você, que ele oferecia suas obras, sua paixão e
o seu sangue, como que dizendo: “Eis, Pai Eterno, que tenho satisfeito,
segundo tua vontade, a tua infinita justiça, pelos pecados deste homem.
Que tua Divina Majestade o perdoe e o receba no número dos teus eleitos”.

Também podes fazer a Deus um oferecimento idêntico, suplicando-lhe que,


em virtude dos méritos do seu Filho, perdoe os teus pecados.

E o teu oferecimento pode repetir-se, contendo, em cada ocasião, uma


meditação sobre os vários mistérios da vida de Nosso Senhor, concentrando
o teu pensamento em cada ato de cada episódio da vida de Cristo, todos
eles tão ricos em ensinamentos. E este oferecimento, você poderá fazê-lo
não somente pela sua pessoa como também pelos outros.

Da devoção sensível e da aridez

A devoção sensível é ocasionada ou pela natureza, ou pelo demônio, ou


pela graça. É pelos seus frutos que você pode ver qual é a sua origem.

Se ela não induz a uma vida melhor, seguramente não provêm da graça
divina, que sempre produz o bem, e nunca o mal.

Será, portanto, oriunda da natureza, ou do demônio, pois, como já vimos


nos capítulos anteriores, o demônio se infiltra na natureza com relativa
facilidade, produzindo prazer. Tanto mais quanto mais você se apegar
àquela sensação, tanta maior doçura e estima de si mesmo você sentirá.
Quando você sentir estes prazeres espirituais, não perca tempo,
investigando sobre a sua causa, nem os aceite desde logo, nem comece a
reduzir-se espiritualmente, mas pelo contrário, assuma uma posição firme,
cuidando, com grande diligência, de livrar o teu coração de qualquer apego
a este sentimento, mesmo no plano espiritual.

A maneira mais eficaz de repelir aquilo que não sabemos se é de Deus, é


concentrarmos todo o nosso pensamento e vontade em Deus e seu agrado.
Se assim você fizer, aquele gozo, mesmo que fosse da natureza ou do
demônio se transformará em graça.

De qual maneira, a aridez pode provir destas três causas:

1) do demônio, para amolecer o coração, enfraquecendo-o, e depois levá-lo


às diversões e gozos do mundo, abandonando os trabalhos espirituais;

2) pode vir a aridez de nós mesmos, devido às nossas culpas, ao nosso


apego às coisas terrenas e por causa de nossas negligências;

3) da graça, virá para que percamos qualquer apego ao mundo, como


ocorreu com muitos santos, e abandonemos qualquer ocupação que não
tenha Deus como fim. Ou então, para que saibamos que tudo nos vem de
Deus. Ou, para que estimemos mais, para o futuro, os dons divinos e
sejamos mais humildes e coutos em os guardar. Ou para que nos unamos
mais estritamente com sua divina Majestade, renunciemos totalmente a nós
mesmos, mesmo durante o gozo espiritual, de modo que este gozo não
divida o nosso coração, que o Senhor quer inteiramente para si.

Ou, finalmente, porque o Senhor se alegra ao nos ver combatendo para


nosso bem e para o bem de todos, com todas as nossas forças, ajudadas
pelas suas graças.

Portanto, se você sentir-se dentro de um momento de aridez, examine a


razão por que perdeu a devoção sensível. Descobrindo o motivo, combata-o,
não para recuperar o gozo sensível, pois este lhe virá como graça, mas para
afastar de si o que é daninho e que desagrada a Deus.

Pode ser que você não descubra a causa da aridez. Não se preocupe, pois
estando voltado para Deus, o cumprimento da vontade divina substituirá em
sua alma a devoção sensível.

O importante é que você não se descuide, durante a aridez, de seus


exercícios espirituais. Continue a praticá-los, ainda que exijam mais esforço,
por mais infrutuosos e insípidos que pareçam.

Dispõe-te a beber de boa vontade o cálice de amargura, que a amorosa


vontade de Deus te apresenta.

Atenção: às vezes, a aridez vem acompanhada de obscurecimento da mente,


tão forte que a pessoa não sabe para onde se voltar, nem que rumo tomar.

Não se incomode com isto, e limite-se a carregar a sua cruz, contente em


seu sofrimento, com sua coragem e disposição de soldado, e toda a firmeza
e tenacidade que de um soldado se requer.

Oculta o teu sofrimento a qualquer criatura, exceto na confissão, que


ajudará muito, nesta contingência.

E comungando, orando ou fazendo outro exercício, você não deve fazê-lo


com o fim de se livrar da cruz que estiver carregando. O propósito deve ser
o de alcançar crescentes forças para mais exaltar esta cruz, para a maior
glória do Crucificado.

Se, devido às circunstâncias e à confusão que você tenha na mente, você


sentir que não consegue meditar da maneira que costuma fazer, faça-o de
qualquer modo, da melhor forma que puder. Aquilo que a gente não possa
conseguir com a inteligência, esforce-se para conseguir com a vontade e
com as palavras, falando consigo mesma, interiormente, e com o Senhor.
Logo você verá os efeitos maravilhosos da atuação do Espírito Santo, e o
seu coração tomará alento e força.

E você poderá dizer assim:

“Quare trístis es anima mea et quare conturbasme? Sperain Deo, quoniam


adhuc confiatebor il, salutare vultus mei, et Deus meus. Ut quia, Domine,
recessisti longe? Dispicis in opportunitate, in tribulatione, non me
derelinquas usque quaque”.

Recordando-se aqueles ensinamentos que Deus ministrou a Sara, mulher de


Tobias, no tempo da tribulação sirva-se, você também, daquelas palavras,
dizendo:

Deus meu, todos os que te servem, sabem que se forem afligidos em sua
vida pelas tribulações, serão premiados; se pela opressão, serão libertados e
se castigados pela tua justiça, podem esperar a tua misericórdia. Porque não
te comprazes com a nossa perdição. Tu envias a paz após a tempestade, e a
alegria após o lamento. Ó Deus de Israel, seja o teu nome bendito através
dos séculos (Tb 3).

Recorde-se também do Cristo que, no Horto e na Cruz foi abandonado pelo


Pai, na sua parte humana, mas, como Homem, cumpriu o seu sacrifício até
o fim. Suporte, você, portanto, a sua cruz e diga de todo o seu coração:
“seja feita a vossa vontade”.

Se você assim age, esteja certo de que as chamas do seu sacrifício


elevar-se-ão até ao céu, e a sua devoção será realmente piedosa.

Como já expliquei, a verdadeira devoção é uma viva e firme disposição da


vontade, que gera o desejo sincero de seguir a Cristo com a cruz és costas,
por qualquer caminho que ele queira. A verdadeira devoção que é plena e
livre de ilusões é a que te permite querer a Deus somente por ele mesmo,
deixando de lado as doçuras de Deus pela própria pessoa de Deus.
Se muitas pessoas, especialmente as mulheres, olhassem o proveito que
podem tirar, não da devoção sensível, mas desta devoção verdadeira, não se
deixariam enganar por si mesmas e pelo demônio, nem se lamentariam
inutilmente, e também ingratamente, de um tamanho bem que lhes faz o
Senhor. E cuidariam, com maior fervor, de servir à Divina Majestade, que
tudo dispõe e permite, para glória sua e para nosso bem.

Quanto a este ponto, também, muitas vezes os mulheres se enganam:


guardam-se, com temor e prudência, das ocasiões de pecado, mas, se são
molestadas por pensamentos maus, horríveis, mesmo às vezes, por imagens
brutalmente chocantes, angustiam-se, perdem o ânimo e pensam que Deus
as abandonou e que estão longe de Deus. Não se conseguem persuadir de
que o espírito divino pode habitar em mentes onde se agitam tais
pensamentos involuntários.

E ficam abatidas, quase se desesperam, e deixando todo o exercício bom, já


não veem mais o rumo para a frente e querem voltar para o Egito,
esquecidas de Canaã.

Não compreendem a graça recebida de Deus, que lhes permitiu que fossem
assaltadas por aquelas tentações. Nem percebem que o Senhor assim dispôs,
a fim de que elas melhor se pudessem conhecer a si mesmas e, devido à
necessidade de auxílio que haveriam de sentir, recorressem a ele.

E por isso, aqueles lamentos são uma verdadeira ingratidão, cinda que não
compreendida por elas, que não percebem que dever-se-iam mostrar
agradecidos perante a infinita bondade.

O que você deverá fazer, se isto suceder a você algum dia, é procurar
conhecer bem a sua inclinação perversa. Deus quer, para o seu bem, que
você saiba, conscientemente, que as suas tendências más estão sempre
prontas para fazer qualquer mal.

Ele quer também que você salva que sem o seu socorro, logo cairá no
abismo.
Tenha, portanto, total e serena confiança. Ele virá ajudá-lo, fará você ver o
perigo onde hoje não vê, e lhe livrará, se você pedir. E por ele ser assim,
que nós devemos render-lhe muitas graças, todos os dias.

Concluindo: desde que nos coloquemos imediatamente, sob o amparo de


Deus, estes pensamentos maus combatem-se melhor com uma tolerância
paciente e com um desprezo imediato do que com uma ansiosa resistência.

Do exame de consciência

No exame de consciência você deve examinar três coisas: as faltas daquele


dia, suas causas, e a diligência com que as devem combater e como se deve
conquistar as virtudes contrárias.

A respeito das faltas que ocasionam quedas, você já foi instruído como
deve lutar, nos capítulos iniciais deste livro.

Quanto às ocasiões de queda, você cuidará de fugir delas. Para isto, e para
que você adquira as virtudes, fortificará a sua vontade com a confiança em
Deus, com a oração, com muitos atos contra aquele vício e com muitos
desejos ardentes da virtude contrária.

Mas, como já foi aqui alertado: não confie nas vitórias que você já
conseguiu e nas boas obras que você já efetuou. Você não deve considerar
muito estes atos virtuosos, devido ao grande perigo que você corre de cair
no pecado da soberba, pelo caminho da vaidade e da vanglória.

Deixa os teus méritos nas mãos de Deus como se fossem de Deus as tuas
obras, e volta depressa o teu pensamento para o muito que alindo resta a
fazer.

Quanto à ação de graças pelos dons e favores que o Senhor fez a você
naquele dia, reconheça-o como o autor de todo o Bem e agradeça a ele de
ter livrado você dos inimigos manifestos e ocultos que tinha, e por haver
dado a você os pensamentos bons e os ocasiões de virtude de que
necessitava.

Agradeça-lhe, enfim, por todos os benefícios que lhe proporcionou, sem


que você percebesse.
Do combate até a morte
I - sobre a necessidade que temos de combater até a morte

Uma das coisas mais necessárias neste combate é a perseverança. Devemos


mortificar continuamente as nossas paixões, que nunca morrem, como
ervas daninhas que sempre germinam de novo.

A batalha só acaba com a morte, e, assim, não podemos nunca nos furtar à
peleja. Quem não combate, será logo aprisionado ou morto.

Além disso, nossos inimigos nos votam um ódio sem tréguas. Por isso, não
podemos esperar um só instante de paz, ou descansar a atenção, pois
mesmo os que se fazem seus amigos, eles cruelmente os trucidam.

Mas não te assustes com a sua força e o seu número, pois, nesta batalha, só
é vencido quem o quer. Toda a força dos inimigos está nas mãos do nosso
Comandante, por cuja honra combatemos. Ele não permitirá que a luta
supere tuas forças, e virá em teu auxílio e — mais poderoso do que todos os
adversários — te dará a vitória, se combateres virilmente e confiares, não
em ti, mas em seu poder e bondade.

E mesmo que o Senhor tardasse a lhe conceder a vitória, nem por isso, você
deveria desanimar. O seguinte pensamento confortará você: o que Deus
quer, como seu Pai e Criador, é que você se mostre um fiel e corajoso
combatente. Se você fizer isto, todas as coisas que lhe molestarem, sejam
quais forem elas e, por mais que pareçam pôr em perigo a sua vitória, todas
elas se converterão em benefício e vantagem para você.

Siga, portanto, filho, o seu celeste general que, por amor a você veio ao
mundo e deu-se a uma morte ignominiosa.

Seja diligente nesta grande batalha, e cuide da total destruição de todos os


seus inimigos, pois um somente que você deixasse vivo, seria como uma
lança fincada no nosso corpo, que impediria que você alcançasse uma tão
gloriosa vitória.

II - Da preparação para uma boa morte

Embora nossa vida inteira seja uma contínua guerra, a principal batalha
ocorre no momento de nossa passagem para a outra vida.

Se alguém cair nesta peleja final, não se levantará mais.

O que você deve fazer, a fim de estar preparado para esta hora, é combater
virilmente durante o tempo que lhe é concedido.

Quem lutou bem, durante sua vida, pelo hábito bom já adquirido,
facilmente obterá vitórias na hora da morte.

Além disso, a morte é um tema sobre o qual você deve pensar seriamente.
Assim, você temerá menos quando ela chegar, e a inteligência estará lúcida
e pronta para a batalha.

Os homens do mundo geralmente fogem deste pensamento, para não


interromperem o gozo das coisas terrenas. Estão voluntariamente apegados
a elas e se afligiriam ao pensar que deveriam deixá-las algum dia. E assim,
em vez de diminuir, vai sempre crescendo o seu amor às coisas terrenas.
Por isso, lhes é de grande sofrimento separar-se desta vida e das coisas da
terra. E mais sofrem aqueles que mais gozam delas.

Como preparação, você poderá imaginar-se à morte, estando sozinho e sem


o auxílio de ninguém. Você procurará pensar nas coisas que lhe poderão
incomodar, naquela contingência. E, em seguida, nos remédios necessários
para superar aquela situação, sobre os quais falarei nos próximos capítulos.

Este combate só se tem uma vez, e, por isso, é preciso cuidar muito em não
cometer erros, que seriam irremediáveis.
III - Da tentação contra a fé, uma das quatro armas com que
na hora da morte o inimigo nos assalta

São quatro as principais e mais perigosas armas com que os inimigos


investem contra nós, na hora da morte: a tentação contra a fé, o desespero, a
vanglória e a transfiguração do demônio em anjo de luz.

Quanto ao primeiro assalto, se o inimigo te começa a tentar com seus falsos


argumentos, retira-te logo da inteligência para a vontade, dizendo: “Fora
daqui, Satanás, pai da mentira! Não te quero ouvir! Creio em tudo o que crê
a santa Igreja!”

E não te ponhas a pensar muito sobre a fé, porque estes pensamentos, por
bons que te pareçam, podem ter sido suscitados pelo demônio, para
começar a luta.

Mas se não for possível afastar da mente estas considerações, tenha cuidado
em não ceder a nenhum raciocínio, a nenhuma aparente autoridade da
Escritura, que o inimigo alegue.

Tudo o que ele disser estará errado, ou mal citado, ou mal interpretado,
embora parecesse que aqueles raciocínios fossem claros e evidentes.

Se a astuta serpente perguntasse a você, que coisa crê a Igreja, não


responda, e vendo as suas manhas e como lhe quer confundir, faça um vivo
e ostensivo ato de fé, qualquer, como, por exemplo, o sinal da cruz. E
responda-lhe, dizendo que a Igreja crê na verdade.

Se o demônio retorquir: “e qual é esta verdade? “Você responderá,


tranquilamente, encerrando o papo: “é aquilo em que ela crê”.

Será esta a hora de você voltar o seu coração para o Crucificado e pedir:
“Deus meu, Criador e Salvador meu, vem depressa me socorrer e não te
afastes de mim, para que não me afaste da tua santa fé. Nasci nesta fé, por
tua graça e faz com que, por tua glória, nela eu termine esta vida mortal”.

IV - Do desespero

Uma artimanha com que o perverso demônio nos procura abater é


assustar-nos com a ideia da morte pela lembrança de nossas culpas, para
que caiamos em desespero.

A forma de quebrar esta artimanha, lembre-se bem, é a seguinte: a


lembrança dos pecados vem da graça, para o nosso bem. Por conseguinte,
sendo de Deus, não nos faz mal, só nos ajuda, porque produz a humildade,
o arrependimento e a confiança.

Quando essas lembranças inquietam, produzem desânimo e parecem


pecados atuais e verdadeiros, você já sabe: são produtos do demônio para
lhe perder, pois ele produz pecados falsos suficientes para que você já
esteja condenado e não tenha mais remissão.

Como, neste caso, trata-se de uma tentação do demônio, você tem que
repelir, rapidamente, a tentação e entregar-se, com humilde confiança, ao
protetor nosso Pai, que nos criou e nos quer ver brilhando como luzes
eternas.

Não há dúvida de que você deve arrepender-se sempre que lhe vier à
memória algum pecado praticado. Mas, você pedirá perdão ao Senhor sem
perder, nunca, a confiança que tem nos méritos da Paixão.

Vou ainda mais longe: se no desespero da tentação parecer a você que, o


próprio Deus lhe diz que você não é de suas ovelhas, mesmo assim, você
não deve perder a confiança nele. Responderá assim, humildemente:

“Tens muita razão em me condenares por meus pecados, Senhor meu. Mas
tenho muita confiança em tua piedade e confio em que haverá de me
perdoar. Por isso, peço-te que salves esta mesquinha criatura tua,
condenada pela sua própria malícia; mas, redimida pelo Redentor meu, eu
quero me salvar e, confiante em tua imensa misericórdia, entrego-me, toda
inteira, em tuas mãos. Faz de mim o que te agradar, porque és o meu único
Senhor. E mesmo se me ferisses de morte, ainda assim, eu guardaria viva a
esperança em ti.

V - Da vanglória

O terceiro assalto é o da vanglória ou presunção, que pode pôr tudo a


perder no final da jornada. Por isso, atenção, muita atenção, para que você
não se deixe levar pela menor complacência para consigo mesmo ou seus
atos. O teu agrado deve estar voltado, nesta época, para a pessoa e as belas
obras do nosso Senhor, sua misericórdia, sua Vida e sua Paixão.

Para fugir a qualquer resquício de vanglória, avilte-se, diminua-se sempre


aos seus próprios olhos, como se você fosse e quisesse ser a última das
criaturas, e reconheça a Deus como causa única de todo o bem que você fez
em sua vida. Peça o seu auxílio, mas não o espere por teus méritos, por
numerosos que sejam, e por maiores que tenham sido as tuas vitórias nas
batalhas que venceste. E conserve sempre na alma um santo respeito e
temor, confessando com sinceridade que todos os teus recursos nada seriam,
se Deus não te amparasse com a sua força.

Somente nesta força você tem que confiar.

Se você seguir estas advertências especiais, os inimigos não poderão


prevalecer contra você. O caminho que te conduz a Jerusalém celeste está
bem aberto, e aberto ficará para a tua caminhada final.

VI - Das ilusões enganadoras e das falsas aparições - O


combate final

O seu obstinado inimigo não quer soltar os dentes que tem cravados em
você, como estes insetos repelentes que se prendem na nossa pele até serem
mortos. Você já sabe que ele combaterá até o fim, e que poderá chegar ao
extremo de utilizar-se de falsas aparições e até mesmo transfigurar-se em
anjo de luz.

Quando isto acontecer, firme-se bem na atitude humilde que você já


aprendeu e, certamente, adotou como norma permanente de vida e diga-lhe
corajosamente:

“Vai-te, infeliz, para as tuas trevas, porque eu sei que não mereço visões.
De nada, preciso a não ser da misericórdia do meu Jesus e da proteção da
Santa Virgem Maria e dos Santos!”

E se razões fortíssimas e quase evidentes te dessem a crer que aquelas


aparições provinham do céu, mesmo assim, só há uma coisa a fazer,
resolutamente: repeti-las, para longe de ti.

Não há nenhum motivo para que você sinta temor de desagradar ao Senhor,
porque se a visão for celeste, Deus saberá fazer que, como aconteceu com
tantos outros de que nos conta a Escritura, você acabe entendendo que está
nas mãos dele, e não do diabo. Pois quem dá a graça aos homens não a
tirará unicamente, porque o homem agiu com humildade, por não se
considerar merecedor daquela graça.

Além disso, você já sabe, agora, e está alertado de que estas são as armas
mais comuns de que o inimigo se utiliza contra nós, neste último passo.

Vá exercitando as tuas forças, nos pontos onde o inimigo provavelmente


atacará.

Antes, porém, que se aproxime a hora do último combate, devemos


aproveitar o tempo que ainda temos disponível para combater os últimos
resquícios de todas as paixões, que tão bem conhecemos, e para nos
armarmos bem, contra as mais violentas e mais capazes de exercer domínio
sobre nós.
Com esta preparação derradeira, você terá assegurada e facilitada a sua
vitória naquela hora decisiva, em que se ferirá o último combate, cujo
resultado final será por toda a Eternidade.
Este livro foi publicado no mês de maio do ano de 1996, pela Edições
Louva-a-Deus,
Localizada na rua Cortinez Laxe n° 2, 4, 6 - Centro
CEP 20090-020 - Cidade o Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Tel.: (021) 263-3725 / Fax: (021) 233-7596

Informações sobre a edição digital:

Editor: Anônimo
Edição: 3ª

Capa adaptada a partir da versão da editora Cultor dos Livros

Deo Gratias

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