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A Escola é o Mundo

Acervo Online

por Vinicios Kabral Ribeiro

22 de Março de 2016

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Estamos em sítio, sitiados. Milton Santos, alegoricamente dividia o mundo entre dois tipos de
pessoas: os que não comem e os que não dormem. Estes não dormem com medo
daqueles.Vinicios Kabral Ribeiro

111 tiros. 111 tiros. Fuzis e pistolas. Um carro alvejado por mais de 60 disparos. Elza Soares,
em seu show “A mulher do fim do mundo”, denuncia o massacre de mais 5 jovens negros. 5
vidas interrompidas. 5 amigos que saíram para celebrar uma conquista profissional e foram
dizimados com o aval do Estado. Elza se comove, a carne mais barata do mercado é a carne
negra. Ela ainda é a carne negra aniquilada, destruída, humilhada, arrastada pelo asfalto. A
política de pacificação falha, não há proximidade e sim controle territorial ou ainda o
persistente compartimento do espaço colonial, como nos diz Frantz Fanon.

Costa Barros chora, o Complexo do Alemão Sangra, o Pavão-Pavãozinho se estarrece. O Morro


da Coroa, Parada de Lucas, Madureira, Pavuna, Providência, Queimados, Caxias. Estamos em
sítio, sitiados. Milton Santos, alegoricamente dividia o mundo entre dois tipos de pessoas: os
que não comem e os que não dormem. Estes não dormem com medo daqueles. A
globalização, iniciada com o violento processo de expansão marítima europeia, ainda deixa
suas marcas indeléveis: a segregação, a desigualdade e a exploração humana.

No Brasil, podemos perceber indubitavelmente o que Santos considerou como uma forma de
perversidade: a cidade partida, a precariedade dos serviços públicos e órbita em um espaço
socialmente e racialmente marcado. As mães continuam chorando ou alertando seus filhos:
não saiam sem camisa, sem chinelo ou sem dinheiro no bolso. Para o governador e o prefeito
do Rio a mensagem parece ser outra: não saia se você for negro. A corporeidade negra é
suficientemente acusatória em um Estado e sua polícia com referências lombrosianas, em suas
práticas e condutas. Os jovens são expostos, humilhados, sentam sobre suas mãos no chão
quente e aguardam horas intermináveis de constrangimento para a triagem da assistência
social, se será encaminhado para casa ou para um centro de “ressocialização”

Um antigo programa da TV Manchete reaparece nas redes sociais por tratar de um


acontecimento persistente no verão carioca: o arrastão. Celebrada como ponto de encontro,
democrática, acessível e, porque não, um símbolo da nossa famigerada democracia racial, a
praia é a arena onde são externadas a nossa política de segregação e desigualdade vigentes
em nosso país. A dificuldade começa na condução. Ônibus com frequência reduzidas, lotados e
em más condições de preservação. Trens acima da sua capacidade de passageiros e,
finalmente, a polícia à espreita, determinada a garantir a tranquilidade e o lazer de uma classe
média “cordial”. A classe média que ama a cultura negra, desde que eles fiquem circunscritos
na escola de samba, no “quarto de empregada”, nos uniformes brancos, fora das
universidades e com a sua indestrutível alegria à prova de qualquer catástrofe, calamidade ou
desigualdade.

O programa da Manchete continua. Já estamos no fim dos anos 80. Uma jovem moradora da
zona sul e frequentadora da praia da Barra esbraveja: “tenho horror a essa gente”. Segunda a
entrevistada, é impossível frequentar as praias da zona sul, pois as mesmas estão tomadas por
pobres suburbanos. Para ela, essa “gente” faz barulho, levam comida e estão abaixo de uma
linha civilizatória na qual o Brasil se esforça solenemente para apagar sua presença africana e
se projetar em uma Europa. Ao gosto do próprio francês Bruno Latour, jamais fomos
modernos e jamais seremos ao percebermos que o residual, as sobras indesejadas e os
condenados da terra, como disse Fanon, resistem. Reexistem. Zaíra Pires, jovem jornalista
negra e lésbica reitera: “apesar de tudo, sobrevivemos”. Afirmação dolorosa e irrefutável
diante de dados oficiais que constatam a redução de cerca de 10% do assassinato de mulheres
brancas e o aumento de quase 50% do feminicídio de mulheres negras.

“A favela é o útero da criminalidade”, disse Sérgio Cabral. Ele está errado, da favela emana
potências, devires e resistências. Do lixo à BBC de Londes, como demonstrou Regina Tchelly
dos Morros Chápeu-Mangueira e Babilônia, do seu Favela Orgânica nascem refeições com
cascas, brotos, sementes e raízes que seriam descartados. Do Cantagalo temos a força de
Deise e seu grupo “Mães vítimas da violência policial”. Mulher negra que perdeu seu filho para
o Estado. Dentro do Degase, o filho de Deise foi executado pelo poder soberano, aos moldes
descritos por Foucault como o poder do rei: ele é capaz de fazer morrer ou deixar viver.

Na periferia da cidade de São Paulo, as Mães de Maio reivindicam recursos e editais para se
estudarem. Estão cansadas de serem matérias primas de teses e de pesquisas. Desejam
escrever suas próprias histórias, remontar os lampejos de suas memórias e romper
radicalmente com a ideia de que as periferias urbanas e favelas são territórios sem solução. As
soluções também estão lá dentro. Elas querem ser ouvidas e consultadas, sobretudo,
protagonizarem suas vidas. O documentário argentino de Frederico León vai nesse sentido. Em
“Estrellas”, um grupo de moradores da cidade de Buenos Aires começam a recusar a
participação em filmes que tratam sobre a pobreza e a miséria na periferia portenha. Eles
começam a cobrar cachê para atuarem sobre si mesmos. Uma forma de contrapartida, visto
que muitas vezes os entrevistados têm acesso aos materiais filmados e editados.

Recordo que em uma aula do curso de “Educação Quilombola”, da Universidade Federal de


Goiás, na cidade de Alto Paraíso exibi vários curtas sobre os Kalungas da região da Chapada
dos Veadeiros. Eram vídeos disponíveis na internet. Dos quase 100 estudantes presentes,
nenhum havia vistos as imagens e os depoimentos. Com alegria e risos iam reconhecendo
parentes, amigos, cumpade e cumadre.

Discutindo esta questão com a turma e as relações com a escola, a comunidade e a


universidade, havia um enorme abismo. Uma estudante, graduada em Educação do Campo,
pela Universidade de Brasília apontou: “vieram nos ensinar a fazer farinha” referindo-se a um
projeto de uma universidade, e ela continua: “quem mais sabe fazer farinha do que nós? ”. As
e os estudantes narravam o quanto a experiência urbana no entorno de Brasília ou mesmo em
Alto Paraíso era hostil. A escola regular exigia o abandono de sua oralidade e impunha
inexoravelmente a gramática normativa. As cidades circunvizinhas exploravam a mão de obra
infantil e adolescente de maneira análoga ao trabalho escravo, além dos abusos, crimes
sexuais cometidos contra as meninas. Essa preocupação foi ressaltada pela estudante ao ver
em um dos vídeos uma adolescente tomando banho no rio.

O fantasma colonial paira sobre nós. Para Fanon, é urgente uma descolonização mental e
psíquica das feridas da colonização. Talvez esse seja o caminho. Como brilhantemente disse
bell hooks, o amor cura. O amor é capaz de curar as feridas da diáspora ou ao menos minimizá-
las. O amor e a empatia podem contribuir para o apagamento das imagens estereotipadas e da
sub-representação para emergir um Brasil enegrecido e indinizado. Mas bell hooks ainda nos
lembra que falta amor sobretudo para as mulheres negras. Seus corpos, seus afetos, seus
carinhos e suas forças foram surrupiados, vilipendiados e expropriados.

As mulheres negras sempre estiveram nos espaços públicos e privados trabalhando, por isso
Suely Carneiro enfatiza a necessidade de enegrecer o feminismo. Hooks continua: alisar o
cabelo era uma partilha e um momento de intimidade, um momento em que as mulheres da
casa não permitiam a presença masculina, elas escutavam Jazz enquanto comiam peixe frito.
Hooks lembra do corpo de sua mãe bem próximo ao seu e, mesmo um ritual tão doloroso
como alisar o cabelo com ferro quente, ela se sentia iniciada e agraciada com o tempo de sua
mãe, esse tão escasso e limitado pelas dezenas de atribuições de sua progenitora. Ao iniciar
seus estudos na Califórnia e deixar as montanhas do Kentucky, bell hooks percebeu o quão
violento é o ato de alisar o cabelo. Com apoio mútuo, leituras e reflexões em sua trajetória,
hooks viu o alisamento como uma implacável política da supremacia branca. Ao retornar de
férias para casa, sua mãe diz não gostar de seu cabelo trançado, nesse momento a intelectual
observa o quanto devemos nos unir e eliminar essa brancura que impõe padrões eurocêntricos
que deteriora a autoestima de mulheres e homens negros. O curta metragem de Yasmin
Tainán, Kbela, pode ser aproximado do texto de hooks. A história é centrada na personagem
que dá nome ao curta, do seu processo de não reconhecimento e nas tentativas de
normalização ao empoderamento de sua existência, de sua fala e de seu corpo. Yasmin, ao
falar sobre o processo de criação e pesquisa poética para o filme, remete ao trabalho de
Zózimo Bulbul. O curta “Alma do Olho” dos anos de 1970, com uma linguagem ousada e
revigorante, mostra o corpo de Zózimo livre, desnudado, celebrando a vida e a ancestralidade.
Passa pelo processo de diáspora e chega na contemporaneidade da época com a população
negra excluída e segregada das cidades brasileiras.
De Zózimo, podemos nos encontrar com Carolina Maria de Jesus e seu “Quarto de Despejo”.
Por que pouco se houve, se lê e se discute na escola e nas universidades o seu trabalho? Ou do
próprio Zózimo? Onde estão as produções, auto-representações e auto-apresentação cultural
e artística negra e periférica? Quarto de despejo foi traduzido para diversas línguas. Quarto de
alvenaria, seu livro posterior discutiu justamente o entrelugar ocupado por ela: mulher negra,
catadora de materiais recicláveis e periférica. Se ela escreve, e consegue romper com as
barreiras visíveis e invisíveis, qual o seu lugar na teoria literária brasileira e na vida cultural do
nosso país. Por que poucas escolas apresentam sua obra? E por que muitas vezes a
comunicação, a pedagogia, letras, história e ciências sociais silenciam sua voz, assim como
fazem com Beatriz Nascimento? Ou mesmo Milton Santos, um dos maiores geógrafos do
mundo, muitas vezes esquecido em seu país.

No começo ano de 2015 tivemos um momento histórico na cidade do Rio de Janeiro. O


espetáculo “Na Batalha”, de Julio Ludemir e Raul Fernando como diretores, chega ao Teatro
Municipal. Um lugar símbolo da supremacia branca e herança das muitas tentativas de
europeização e “civilização dos trópicos”. Reduto da chamada “alta-cultura” que supõe haver
algo baixo e inferior. O espetáculo, marcado para as 11:30 da manhã de um domingo, trazia
consigo algo além do palco. Crianças e adolescentes negros e negras da baixada, da região dos
lagos e das periferias da cidade brincavam, dançavam e se fotografavam. Olhavam para os
monumentos da Cinêlandia, a Biblioteca Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes. Era um
momento de celebração, auto-afirmação e auto-apresentação para uma cidade que os rejeita
e deseja que fiquem confinados em seus territórios. Curioso notar que a polícia estava na
espreita e, se tratando de uma triste coincidência ou ordem expressa de um comando
superior, estavam munidos de fuzis e viaturas de captura, com amplos porta-malas para
acomodar os “possíveis infratores”.

Nos palcos a mensagem era incisiva: “estão nos matando”. As letras das músicas ressaltavam a
sobrevivência, o racismo institucional, social e cotidiano. A vontade de pertencer a redes de
afetos e solidariedade. Ter escola, emprego, dinheiro, zoar, namorar, dançar, ser respeitado
pelos vizinhos, pelos professores, pela comunidade, pelo Estado. Já o filme, “A Batalha do
Passinho”, acompanha as origens e as raízes de um movimento que se inicia no Jacarezinho e
se capilarizou pelo Estado do Rio e até mesmo no país. Além de chegar nos teatro e cinemas
de países europeus e nos Estados Unidos. O mais triste é, ao final do filme e antes dos créditos
subirem, a lista de jovens mortos durante ou após as filmagens. A lista aumenta.

O trabalho de Mauricio Dias & Walter Redwig também trazem para o museu o universo do
Funk, registrando bailes, personagens e territórios. Temos a construção de um mini-inventário
visual de representações e, em certa medida, auto-representação. Por mais que exista uma
escuta atenta e uma sensibilidade dos artistas propositores, ainda são homens externos aos
espaços, inclusive um sendo de nacionalidade suíça. Em uma instalação com mais de 500
balanças, com projeções em tela, temos diante de nós uma pergunta secretamente formulada:
quanto pesa a vida? Quanto pesa a vida da/o jovem negra/o na favela? As balanças são
pintadas em verde e amarelo, lembram a bandeira do Brasil. Na tela uma travesti negra com
diversos marcadores sociais da diferença enuncia trechos da constituição federal. Ela denuncia
uma vida precária e reitera com seu corpo, com sua voz e com seus dentes perdidos que a
cidadania no Brasil tem cep e tem cor. Ela faz parte de uma camada da população entendida
como abjeta, destituída de direitos, Sacers urbanos contemporâneos, como diria Agamben. O
Sacer é uma figura do direito antigo romano que cometia um crime não suficientemente grave
ao ponto de ser executado, mas que poderia ser “matado” por qualquer um que o vesse
circulando nos entornos da cidade. As travestis e transexuais estão diante da violência e da
vulnerabilidade. O documentário “Borboletas da Vida” de Vagner de Almeida escancara essa
questão: travestis mortas nas rodovias, estupradas, esfaqueadas, baleadas, atropeladas
inúmeras vezes, ao ponto de o corpo formar uma massa irreconhecível. E quem mais são os
Sacers contemporâneos? Claudia, Amarildo, Verônica?

Cildo Meirelles reedita em seu trabalho “Inserções em circuitos ideológicos” onde carimbava
em notas de cruzeiro a pergunta: quem matou Herzog? Em 2013, em cédulas de reais lemos:
cadê o Amarildo? Amarildo e Claudia são símbolos do genocídio impingido à população negra.
Os autos de resistências, entendidos como salvo-conduto para matar não são mais aceitos. A
narrativa ficcional jornalística que insiste em criticar e criminalizar a juventude periférica e
empobrecida tem agora que lidar com a polifonia das redes sociais, sua simultaneidade e a
contestação das coberturas midiáticas. Coletivos, como a mídia-ninja, estão no instante do
acontecimento. Flagram professoras tendo seus cabelos puxados por policiais, ou os mesmos
revistando jovens e plantando falsas provas. Celulares nas favelas, como no Morro da
Providência, registram o jovem rendido no chão e sendo executado.

Os rolezinhos, sensação do ano de 2014, surgem como respostas à segregação socioespacial.


Jovens, habitantes muitas vezes de áreas precárias e sem serviços públicos de qualidade, como
asfalto, água, esgoto. Sem perspectivas de centros culturais, quadras de esportes e outras
opções, ocupam os Shoppings para dizerem: existimos. Um dos primeiros rolezinhos na cidade
do Rio de Janeiro aconteceu no Shopping Rio Sul, em Botafogo. Do seu registro, surge o curta
de Vladimir Seixas “Hiato – Passeio no Shopping”. Pelas imagens vamos descortinando o
mundo de desabrigados e integrantes dos movimentos de moradia. Ao chegarem na rua de
acesso ao shopping, foram interpelados pela polícia. O que fazem aqui? Respondem que
vieram passear e ver lojas. Com a presença da imprensa comercial e do documentarista eles
não são proibidos de entrarem.

A chegada de pobres e negros em um grande grupo causa medo e pânico no shopping. Lojas
são fechadas, seguranças acompanham os passos, e a cara de nojo, a mesma da garota da
reportagem da TV Manchete, reaparece. O shopping, como analisado por Teresa Caldeira é o
espaço de exclusão por essência e ele se ancora no projeto de deterioração do espaço público,
na privatização das cidades e na homogeneização de grupos étnicos. Sua estrutura é a mesma
de um enclave fortificado, como um condomínio residencial privado, prometendo segregação
e exclusividade, a maneira à brasileira do marketing transformar a desigualdade como um
valor e não como um problema social, político, econômico e urbano.
O rolezinho desafia as estruturas da casa grande e implode a senzala. Se nas classes médias e
altas há a promessa de contato com pobres apenas como prestadores de serviços, ela se
desfaz quando os jovens querem fazer o rolê, curtir e existir. Não por acaso dezena de
shoppings, em variadas cidades, entraram na justiça com liminares proibindo o rolezinho. Essa
prática confirma a tese de Wacquant, que ao analisar as questões urbanas e periféricas
guetizadas ressalta uma redução do estado de bem-estar social e o crescimento de um estado
penal, como diria Deleuze: são numerosos demais para o confinamento e pobre demais para a
dívida. Deleuze também disse que a arte resiste a tudo, mas que o povo não poderia se ocupar
dela, por serem expropriados de suas forças vitais pelo capitalismo. Mas as periferias urbanas,
e em especial a juventude existe e quer se ocupar da arte. O rolezinho é um fato estético e
político. É uma partilha. As rádios comunitárias, as webtvs, o novo cinema da baixada, são
exemplos dessa pujança. Aliados a isso, temos iniciativas de bibliotecas populares, cineclubes,
concursos de beleza, resgates da oralidade e da ancestralidade.

Lembro de jovens negras do coletivo “Encrespando” no programa da Fátima Bernardes, a


apresentadora dizia que encrespar o cabelo não pode ser uma imposição, elas revidam: “alisar
é uma imposição”. “Sexo e as Nega” se propõe a ser o “Sex And The City” da favela. O
movimento de mulheres negras recusa o rótulo da sexualidade colonial, afinadas com Glória
Anzaldúa elas dizem “não vamos mais ser marcadas a ferro como propriedade, tirem suas
mãos de nossos corpos”.

Em grande parte da periferia de São Paulo o governo recua ao tentar impor o fechamento de
escolas sem planejamento e consulta popular. O governo acusa o movimento de estudantes de
vândalos, fechados ao diálogo e guiados por interesses políticos. Oras, acaso o governador não
sabe que viver é um ato político? Nessas escolas um novo cenário se desenha, auto-gestão,
assembleias coletivas e exercícios diários de democracia. Estão rompendo a educação
bancária, aquela que Paulo Freire tanto combateu. Estão ensinando e sendo ensinados a
transgredir, como bell hooks propõe e nos aquece com sua paixão pela liberdade.

A periferia, as favelas e os espaços socialmente marcados pela exclusão não querem o rótulo
de copa do mundo ou das olimpíadas. Não querem ser cartão-postal da desigualdade. Eles
querem incendiar as chamas dos afectos, querem ser devir, e o devir é sempre minoritário, é o
devir-favela, o devir-periferia, devir-trans, devir-negra-negro. É a Piracema subindo a favela da
Maré. É o Jongo da Serrinha, é o Cais Estelita que diz não à especulação urbana e a
verticalização. É se opor aos desastres como o dos condenados pela Vale e Samarco. Vale, que
aos moldes do capitalismo mundial integrado, descrito por Guattari, destrói e expulsa famílias
de Mariana a Moçambique.

O Rio de Janeiro não quer ser uma smart city como na ilusão veiculada pela prefeitura da
cidade. Seguimentos das artes, das periferias e das favelas estão fartos e ávidos pelo fim do
sangue que escorre do morro para o asfalto, como na performance “O que rola vc vê” de
Ronald Duarte, onde caminhões pipas molham as ruas do Rio com um líquido vermelho. O
branding urbano na cidade do Rio de Janeiro se sustenta com a carne negra. Aos moldes de
Pereira Passos, Eduardo Paes remove, expulsa e segrega. Concreta a memória negra da região
portuária. Cimenta histórias de vida. Assedia a Irmandade dos Negros do Rosário: “por que não
um estacionamento e um shopping”. Libera a conta-gotas verbas para o Instituto dos Pretos
Novos. A cidade está em disputa, as favelas estão nessa disputa. Impedir que os ônibus da
zona norte, oeste e da baixada cheguem na zona sul não vai brecar esse movimento disruptivo.
Vamos fazer como imagina Ardiley Queirós, cineasta do Distrito Federal, jogar uma bomba
cultural em Brasília, vamos fazer o desvio de percurso, romper com o caldeirão de raças e
reiventar as pequenas utopias. A cidade continua partida e nós, nas universidades, somos
convocados a rever nossos privilégios e contribuir com práticas de liberdade. E não
esqueçamos: a escola é o mundo.

Vinicios Kabral Ribeiro é doutorando em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Professor da


Escola de Belas Artes da UFRJ.

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