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O paralclo das artcs


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I jacqueline Lichtenstein

_A parzir do Renasci ' ' ia das essoas quc


—' '€'*_r—-

rio que, pa iFiciQ zctérico tipico do ciiscurso


d m.q §§£9F_E‘E9 @551‘ $5-
ocro: a co ssa comparagio s*cficlWe-
scnvolvc dc duas manei'ras. A primeira. dc ordem geral ou,
mais prccisamentc, genérica. aproxima as artes c0nFo rme es-
ras sc rclacionam ao sentido da visio ou an scntido da au-
digéo. Ela sc inscrc numa longa tradigfio quc, scgundo Pla-
tio, rcrnontaria a Simonicles de Ccos. e que nos Poi trans-
rnitida através da Formulagéo Fcita por Horicio, no século
I, em sua Epistafa nos Pisfias: “O espirito é mcnos vi\/‘amen-
tc imprcssionado por aquilo qua 0 aucor confia ans ouvidos
que por aquilo quc cste poc cliancc dos olhos, essas tcstc»
munhas irrccuséveis”. Desdc 0 inicio, essa oposigio romou
a Forma dc uma comparaqio cntrc duas artes cm particular,
a pintura e a poesia — “Utpiczura poeszlv”, “um pocma é
corno urn quadro“, cscreve Horzicio, ainda na fijaistola aas
Pisaios. Reto mada pelos tcoricos do Rcnasci men to, cssa com-
paragio tradicional estaria na origern da chamada donni-
na do Urpicrura poesis.‘

1 Sobrc a histdria dcssa doutrina, vcr :1 obra fundamental dc R. W.

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O paraleio das artes
A pintura

tomou-se, para eles, Ur poesis pictura. a pintura é como a


_]:i a segunda comparagio, mais restrita, é, ao contrzirio,
poesia. 0 quadro é como um poema. E Foi esse sentido, ou
intrlnseca as artes da visao, uma vez que ela se tefere as re-
melhor, essa inversao dc sentido. que a tradigio conservou.
laqoes entre a pintura e a escultura. E 0 que foi chamaclo,
Entrou para a historia Fundando uma doutrina que nin-
no Rcnascimento, o probiema do “paragone".2 Alberti foi
guém ousaria realmente contestar antes da segunda metade
0 primciro a coloca-lo nos termos novos do humanismo. Na
do século XVIII. embora algumas rescrvas. ou mesmo cri-
geragao seguinte, a questio daria ensejo a um grande deba-
ticas, tenham se manifestado desde muito cedo;_ASeria pre-
te, do qua] extrafmos alguns dos textos aqui apresentados.
Embora diferentes em muitos pontos, cssas duas com- ciso esperar Lessing para que a doutrina do Ur picrur/z poeszlr
Tossefinffmentc questlonzlla demaneira radical. Mas essa
paragées estao, entretanto. Fundamentalrnente ligadas. Co-
ttadigao interpretativa. cuja Fectlndfiade pareciad definitiva-
mo se podcré vcr a leitura dos textos, o paragone so adqui-
meme esgotada, ainda vivcria alguns belos dias. _Se o Lao-
re vcrdadeiramente sentido, no interior da problcmatica
coonte de Lessing constitui uma data Fundamental na Els-
gcral do Utpictura poesit, na medida cm que a condieao atri-
toria do Utpicrura poesis, nao assinala seu Hm. VioIcnta-
buida it pintura, em relaeio £1 poesia, dctermina a condigao
meme ctiticada ao longo do séctflo XIX pefosflefegsp res da
concedida a escultura em relagao E1 pintura.
rnodernidade, essa doutrina renasceria varias vezes de suas
A doutrina do Utpicturapaeris, tal como se constituiu
cinias e sua historia ainda prosseguirra Eb seicnlo XX, do
no Renaseimento e se desenvolveu ao longo da época clas-
Ema Formg mais QU [gcnos lat_e27te. H _ Z ‘N
sica, baseia-se num contra-senso, num erro de interpreta-
N50 seria possivel compreender a Forga e a permanen-
§:71o da frase da Epirrola aw Pisdosz “Utpicturrz poesix erit”.
cia do Utpicrura poesis sem voltar as condigoes que deter-
Em Horacio. essa frase cornpara a poesia a pintura, Fazen-
minaram a elaboragao dessa problematica no Renascirnen-
do desta tiltima 0 termo rcfereneial da comparagéoz um poe-
to e, portanto, a inversfio de sentido cometida sobre a Frase
ma cxiste tal como um quadro. Dessa Forma, a frase cria um
privilégio em Favor das artes da imagcm, com as quais sao de Horacio. Pois esse contra-senso, tao rico em conscqiién-
cias, vai muito além de um simples erro de tradugio. Res-
relaeionadas as artcs da linguagem. A0 retomarem a Frase
ponde as novas exigéncias que entao surgiam no campo da
de Horacio, os teéricos do Renascimento inverteram o sen-
arte. Elc se insere, na realidade, na logic:-1 de uma transfor-
tido da comparagioz a poesia tornou-se 0 termo compara-
magao da situagfio dos pintores e da pintura que irnplica
tivo e a pintura o termo comparado. Utpictura poesis er-it
questoes fi.1ndarnentais._A doutrina do Ur picmyapaesis, taL
como a cornpreendianl os teoricos do Renascirnento, Foi
Lee, U! pirtum poesis: the humanistic theory ofpairrting. Nova York, W.
‘om dos meios — e certamente urn (dos mars importantesi
W, Norton 85 Co., 1967; cdiqio franccsa: Urpictura poms.‘ la I/ziorie hu-
manist: dc la peinturc, traduzida pot M. Brock, Paris, Macula. 1991.
— que iriam permitir 5 pintura gozar de_um reeonheck
memo até entao rcscrvado as artes da linguagem, isto é.
2 Embora a palavra tenha. no italiano. 0 scntido dc comparaeio em
geral, na Historia da Arte cla remete diretamcnte ao debate sobrc as rela-
ter acesso 5 dignidade de uma atividade fiB‘eraI.VTratava-se
qoes cntrc a cscultura e a pintura. nada menos do que levantar a hipotcca que uma hierar-

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F .
A pintura ‘ O paralelo das artes

quia, ao mesmo tempo metafisica e social, fazia pesar sobre llistoria. Como no século XVII seria infatigavelmente re-
a pintura ha séculos._Irnplicava, pot um lado, desagravar a _ petido, o pintor deve saber “narrarcom o pincel“. Desde
pintura da suspeita platonica, demonstrando que ela nao é Ent§o§ pirltar consiste em itransporutimaiseqiiencia narrati-
essa pfiiica ifisotia e sofi'stica que o fi16sol6§5qgl1¢iava inf va, e portfiito temporal, para 5 espaeo de visipl§i_l_id_ad'c tlue
seus teitosimas, sim, urn saber, taWez até vap_t1oLm3_r1|ais* E ozdo quadro; em descobrirwos rneios de reprtgentgn fiel-
PeTfeita dosalkr -_Pot outroladtferaipreciso
_ desfaaer
t . . o. vin-
__ . fiente uma_l_j_istoria respeitando um C€I't()—I1\1[I"1Cl'0 de exi-
culo social que, desde a Idadc Média, a ptendia as charna-_ géncias prdprias 21 composigao piotorica. Ainintura de his-
das artes “rfiecanicas”, provar que ela nao_e_1_-a_ um oficio. toria, queassinala ao mgmo *tei11_pQo‘tlirlfo7dQ_)Qgp;'_q;;4ra
uma ocupagio servil, mas uma arte “ligeral”, isto flit poesis c da estéticada imitagftoz seriéa, ipgtir de_en_t§_o e
atividadedigna de um lmmemlivre; 2§s—trar~t1€e‘o_pintor_ *fi1rante séeulos, considerada como a mais altaeqgpressiio da
550 é um operario, um sin1pl§ artesiio, maszum a1'_tist3_§t1l-_ arte de pintar. Na realidade: contribuiria com 0 testemu-
to e letradoz “lvuorao bimno er dagrg in bu nho irrecusavel da nobreza da pintuta na medida em que
escreveria Plibetti no Delk: pitrura. Portantol op Utpictaza __ pressupunha, tanto no pintor como no espectador, um co-
Iloesiré apega essencial dc urn_imensofiempre£11di_n_1;nto,de nhecimento lntimo da literatuta profana ou sagrada e da
legitirnagfio social e teorica da pintur§_ tradicao interpretativa. Demonstraria que a Pintura e a Poe-
ue sc finstaila E E_tIj_Ifrna__lidade. é. e.s.ta_be- sia sao efetivarnente irmas unidas por mtiltiplas rela<;6es.
jlecer que a pintura provém da Idéia, e nao _dafn1atg§ria;_dQ_ Os pintores tomariam seus ternas da literatura, transfor-
intelecto,_;_n:'io'tla sensiifilidade; da teoria, e nio da_p,11itip- mando a narrativa em quadros, e os escritores celebrariam
ca.l°ois_tal objetivo nao podenaE ser alcangado
iifld-‘—sem uma l i- os pintores em seus textos revelando a significacao, pot ve-
gagio constitutiva entre as artes da imagcm e as da lingua- zes obscura, dessas telas.
gem, na medida em que a linguagem goza precisamente, Mas essas duas irmis (ou itrnios, conforme o caso) sao
_tTesde a Antiguidade, doiprivilégfio de seifao mesmo tempo também rivals. A0 designarem a pintura como “poesia mu-
a Jrdem do discurso e ma maa.;Dessa“fo*rma,‘6 Urpiieiri da” e a poesia como “pintura Falante”, os defensores do Ut
joesis expressa a exigéncia do uma legitillidade quga pin-A pirrura paesis introduziriam. na realidade. uma hieratquia:
-i?__-n—-1-""-I _
tura so pode obter estaoeiecendo sua relagao pom o_discurso. _ enquanto a poesia, é apresentada com uma dupla determi-
"For meio dessa cornparacao, a p_intuta reintegra finalmen- nacao positiva — ela é uma pintura que Fala —-, a pintura
te 0 universo do Logos, e opintorpassa a ter acesso a coh- é defimda negativamente, como uma poesia 51 qual falta a
‘@1550 de orador ou depoeta. W '‘ palavra. Ao mesmo tempo em que lhe assegura uma nova
Mas o Utpicrurapaeris nao se contenta em modificar dignidade, a comparacao com a poesia impoe a pintura uma
o estatuto da pintura; ele transforma sua Clefinigio, impou- definlgiio que oculta sua espectflcidade, ,4 que a submete
do-lhe as categorias da poética e da retorica, como a inven- as artes da linguagem. Como diria Leonardo da Vinci, se a
gio ou a disposigao, e concedendo-lhe a mesma finalidade pintura é chamada uma poesia muda, entao é preciso, para
que Aristotcles atribuia a poesia dramatica: a dc contar a set justo, chamar a poesia uma pintura cega.

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O paralelo das artes


A pintura - >

E 0 que explica que a compatacao entre as artestenha estava no centro das discussoes telativas £1 abstraqao. Apos
uma anzilise histotica que parte dc Lessing, Greenberg es-
podido tomariidesde o inicio, a7ormTd?ima controver-
creve: “Norteando-se, quer conscientemente quer incons-
sia cujo ponto central era o da superii5ritl"adt.“d:rl"in'guagem -A
cientemenre. por uma nogao de pureza derivada do exem-
oucla imagem._Scrn questionar as necessidades impostasif
plo da musica, as atres de vanguarda nos tiltimos cinq't'1en-
pintura pelo Ur ictum poesis, numerosos teéricos, depois
ta anos alcancaram uma pureza e uma delimitacao radical
dc Leonardo se esforgarram po_r'irTvE—rter em favor da pin-
"‘.""*"."."". _... de seus campos de atividade sem exemplo anterior na his-
tura a hrerarqura tmplicrta na comparacao,_m_s1snndo na
toria da cultura. As artes encontram-se agora em seguran-
iiorgaeifiosjipoderes dapiritura ep,*de4i"na7neira mais gerai, na
ca, cad:-1 uma dentro de suas ‘lcgitimas' Fronteiras, e 0 livre
superioridadfl visivel sobretqdos os outros modos de
comércio Foi substituido pela autatcia. A pureza na arte con-
rspresentagao. 7*/if
siste na aceitacao — a aceitagao voluntriria das limitacoes
Mas tal inversao, pot importante que Fosse. jamais es-
do meio de cada arte especffica“.-Q Se escolhemos encerrar
capa da problematica do Ut picrura poesi: nem do contex-
nosso volume com o texto de Breton. é precisamente por-
to do paralelo. Como dissemos, Lessing seria o primeiro a
que ele oFerecia urn belo exemplo de “reacio" contempo-
se recusat a conceder o menor sentido 21 propria idéia de um
ranea A idéia moderna de especificidade. Na verdade, atta-
paralelo entre as artes do visivel e as do discurso. em nome
vés de sua defesa do simboiismo pictérico "sufocado pela
tie um argumento que teria imimeros desdobramentos no
moda do impressionismo”. Breton desenvolve uma critica
século XIX: o da especificidade das artes. De Baudelaire a
aos “deiensores tardios" da pintura “retiniana" que nao dei-
Huysmans. passando por Zola ou os irmios Goncourt. a
xa de lembrar certos remas Famosos da tradicfio do Urp:Tr-
critica a pintura literaria ou filosofica, Ea pintura de historia
tum poesis.
ou de idéias, a uma pintura que continua reivindicando :1
Mas, como assinalamos no inicio. 0 paralelo entre as
doutrina do Ur picmra poesis, é, efetivamente, um dos te-
artes niio se limitou ao paraiclo entre a pintura e a litera-
mas mais insistentes do discurso da modernidade. N50 é
tura. A comparagio entre a pintura e a escultura desempe-
cetto que essa critica esteja hoje totalmente ulrrapassada.
nha um papel importante na hisréria dessa problematica.
Mrfrltiplos exemplos contemporaneos atestam que a proble-
O mesmo acontece com a comparagao entre a pintura e a
matica do paralelo nao perdeu em nada sua atualidade. O
rntisica. quer esta tome a Forma de uma analogia entre o
importante artigo publicado pot Clement Greenberg3 na
som e a cor, de uma teoria dos tons ou de uma anzilise da
Partisan Review em 1940. “Rumo a um mais novo Lao-
coonte”,4 mostra que a questao da especificidade das artes
silcira: "Rumo a um mais novo lirocoonte“. in Clement Green!‘/erg r n dr-
Zurr: rr/rico. Gloria Ferreira e Cecilia Coirim dc Mcllo lorgs.). traduczio dc
Maria Luiza X. tie A. Borges. Rio dc laneiro. Funarre/Jorge Zahar Editor.
3 Sobre Greenberg. vcr o volume 15, Vdnguar/liar r rupmmr.
I997. pp. 45-59].
4 Clement Greenberg. The collected essays and criticism, john O'Brian
5 Op. r:'r.. p. $1 [ediqio brasileira: p. 5.5}.
(org.). The University of Chicago Press, 1986, vol. I. p. 23-37 [edigio bra-

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A pintura

Leonardo do Vinri
harmonia da composicao. Vigorosa no Renascimento e na
(145.2-1519)
época classica, essa comparagao chegaria ao climax no sé-
culo XX, com o triunfo de uma estética da cor. Embora di-
Ferindo em seus objetivos, essas trés cspécies dc comparagio Tratado da pintura
nos aparecem fimdamentalmente ligadas entre si, tanto de (“O przmgone”)
um ponto de vista historico quanto teorico. Por isso, 11:10 (I490-I517)
consideramos titil apresenta-las em categorias separadas.

lniciar este volume com os textos de Leonardo‘ consagrados


an pnrogone nao signifies apenas respeitar a cronologia. Esses tex-
tos. seguramente dentre os mais conhecidos do pintor, ocupam de
fato um lugar fundamental na hlstoria do paralelo entre as artes.
Eles poem em cena uma argumentaeéo que adquire valor dc mo-
delo para todas as analises posteriores. e tornar-se-50 uma fonte
inesgotével para todos os discursos de defesa e elogio da pintura.
Pois as reflexoes de Leonardo vao muito além de uma Slfl'1plCS dis-
cusséo sobre os méritos respectlvos da pintura, da musica, da poesia
ou da escultura. Nao se trata apenas de estabelecer a superiori-
d_ade da pintura sobre as outras artes. mas de situa-la no aplce de
todo 0 edlficio do saber. N50 lhe basta demonstrar que a pintura
é uma ativldade mais nobre do que a escultura: ele quer mostrar
que ela é a mais nobre de todas as atividades humanas, que é néo
apenas um conhecimento, mas a forma mais elevada e mais aca-
bada de todo o conhecimento. Universalidade da representagao vi-
slvel, dlversidade Encomparével das invencoes pictoricas (essa “Hus-
tre abundancia" cara aos teoricos da retorica), mas tarnbérn ele-
géncia do pintor. delicadeza de seu trabalho e llmpeza de seu atelié
— as observacoes de Leonardo dizem respeito tanto a eminéncia
intelectual da pintura como ao estatuto social dos pintores. Deto-
dos os seus argumentos, alguns dos quais tomados de emprésti-

1 Sabre Leonardo. vet o volume 1. O mrrn do ;u'nrura.

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