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NEUROBIOLOGIA

DO COMPORTAMENTO HUMANO

O progresso no conhecimento da função cerebral, em particular o desenvolvimento de


múltiplas técnicas de imagem, abriu janelas para a compreensão dos mecanismos
responsáveis pelo comportamento humano. Não se conhecem as causas nem as
justificações no contexto do Universo, mas compreendem-se algumas relações
entre a estrutura neuronal e a conduta

A. CASTRO CALDAS

A interpretação dos fenómenos psíquicos é, des-


de há muitos anos, uma das principais preo-
cupações dos pensadores. A capacidade de
reflectir sobre a Natureza, que constitui o atributo dis-
tintivo do homem para as outras espécies, levou-o, des-
foram encontrados crâneos humanos com sinais de te-
rem sobrevivido a trepanações realizadas, provavel-
mente, com o intuito de libertar os maus espíritos.
Porém, nessas culturas era também hábito moldar o
crescimento das cabeças das crianças que estavam des-
de muito cedo, a interrogar-se sobre essa mesma tinadas a ocupar posições importantes na sociedade.
capacidade. Admitia-se que o formato da cabeça era determinante
Ultrapassa o âmbito do presente texto, a revisão das para a forma de pensar e, assim, se preparavam os sa-
principais contribuições do passado para a teoria do cerdotes e os chefes. Não se conhece, infelizmente, a
conhecimento, mas importa dizer formulação teórica que conduziu a
que nem sempre foi tomada em li- estas práticas que constituem, afi-
nha de conta a estrutura biológica, nal, os primórdios da manipulação
que constitui determinante funda- biológica.
mental para a actividade cognitiva. No início do Século XIX,
Em muitos dos modelos propostos, desenvolveu-se na Europa uma
a matéria que forma o homem era escola que se fundamentou em
regida por regras universais de na- princípios idênticos ao que era prá-
tureza espiritual que justificavam os tica nos povos da América do Sul:
comportamentos humanos como a Frenologia (do grego, espírito-
emanação da vontade divina. -discurso).
Na cultura Europeia, o corpo A Frenologia representa o nas-
começa a ser objecto de estudo só cimento da nova corrente de pen-
muito tarde, depois da Idade Média. samento que nos trouxe até aos
O cérebro é então considerado nossos dias. Vale, por isso, a pena
como simples orgão de reserva e determo-nos um pouco no relato
pulsão de humores líquidos arma- Licenciado, Doutorado e Agregado pela Facul- do que foram esses trabalhos ini-
zenados em cavidades e libertados dade de Medicina de Lisboa, Alexandre Castro ciais, assentes mais no génio dos
Caldas é professor catedrático de Neurologia da
para o corpo quando necessário. As mesma Faculdade. Dirige o Laboratório de Es- seus obreiros do que em trabalho
capacidades a que esses humores tudos de Linguagem (Neurologia do Comporta- experimental. Foi em 1796 que o
correspondiam eram bem distintas mento) do Centro de Estudos Egas Moniz (INIC), público conheceu pela primeira vez
de que é Secretário; coordena o recém-criado
daquelas que a moderna Neuropsi- Centro de Neurociências de Lisboa e preside no continente Europeu os trabalhos
cologia considera. Diziam respeito (1989/92) à Sociedade Portuguesa de Neurolo- de François-Joseph Gall que viriam
a paixões e a estados de espírito gia. Membro de numerosas Sociedades e Asso- a penetrar também em Inglaterra
e não a aptidões para a activi- ctrabalhos
iações Científicas, é autor de múltiplos
sobre neurologia do comportamento,
vinte anos mais tarde. Como acon-
dade cognitiva. Em culturas mais publicados na literatura internacional. Perten- tece com a maioria do trabalho ino-
antigas, como as do período pré- ce ao conselho editorial de quatro revistas in- vador, a reacção da cultura
-colombiano da América do Sul é ternacionais e integra a direcção de um projecto estabelecida foi enorme e, em qua-
europeu de investigação em Neuropsicologia,
bem possível que existissem equiva- em que colaboram oitenta equipas especia- se todos os textos da época, os au-
lentes a esta forma de pensar, pois lizadas. tores sentem a necessidade de

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recorrer a exemplos históricos da inovação científica distinguiam pela mesma particularidade. Entrado
para justificarem o seu apoio à nova teoria. Galileu e na Universidade, observa os estudantes com os olhos sa-
os seus conflitos com o tribunal da inquisição são fre- lientes e reconhece que eram todos excepcionais a
quentemente citados como exemplos da oposição que aprender de cor as matérias e a repeti-las correcta-
as novas teorias vão gerando nas camadas intelectuais. mente, embora a maioria deles não fosse de forma
Mais livre de atavismos, porque também mais ignoran- nenhuma excepcional na inteligência... embora a
te, é a opinião pública que apadrinhou com entusias- conexão entre a faculdade de decorar e aquele sinal exte-
mo as novas teorias. rior não fosse, na época, estabelecida como evi-
Como nasceu, então, a Frenologia? Geoge Combe dência suficiente para que dela se pudesse tirar uma
relata, em 1825, esta história. “Até aos nossos dias as conclusão filosófica, Gall não pode deixar de consi-
teorias professadas pelas diferentes escolas sobre o es- derar que esta coincidência não era acidental... À for-
tudo do cérebro, eram tão vagas, tão obscuras, tão ça de reflectir sobre este assunto, compreendeu que
inexactas, tão pouco satisfatórias, e os ensinamen- se a memória das palavras podia ser indicada por
tos que delas recebiam os estudantes eram tão con- um sinal exterior, podia acontecer o mesmo com as
fusos e ininteligíveis que parecia que o sistema outras faculdades intelectuais; todos os indivíduos
nervoso não podia ser considerado senão como uma que se distinguiam por uma capacidade mental se
amalgama inextricável, longe de se igualar às outras tornaram objecto da sua atenção. Acabou, a pouco
obras da Natureza. Estava reservada a Gall a intro- e pouco, por se convencer que podia, a partir de cer-
dução de um método de investigação diverso daque- tos sinais exteriores, reconhecer nos indivíduos a ap-
le seguido até então por fisiologistas e metafísicos. tidão para a pintura, para a música e para as artes
Para poder chegar à solução do problema, era ne- mecânicas. Tendo conhecido algumas pessoas notá-
cessário demonstrar as relações das diferentes par- veis pela energia do seu carácter, constatou que cer-
tes do cérebro com as diferentes faculdades mentais. tas regiões das suas cabeças estavam particularmente
Ele adoptou, portanto, nas suas investigações, um desenvolvidas: este novo facto sugeriu-lhe a ideia de
método diferente e incontestavelmente mais racio- procurar no crâneo sinais que indicassem a predo-
nal... ” minância das faculdades afectivas, mas nunca lhe
“O doutor François-Joseph Gall (nascido em Tif- veio ao espírito acreditar, como erradamente se afir-
fenbrun em 9 de Março de 1757), médico em Viena, mou, que se deviam atribuir à forma do crâneo as
e mais tarde estabelecido em Paris, foi o fundador propensões características dos indivíduos ou os seus
do sistema frenológico. Dotado de um espírito essen- talentos, mas sim ao cérebro. Prosseguindo as suas
cialmente observador, reparou, desde a sua mais jo- observações sobre um assunto que a sorte lhe tinha
vem infância, que cada um dos seus irmãos e irmãs, fornecido não tardou a encontrar enormes dificul-
e dos seus companheiros de jogos e de estudos, se dis- dades. Ignorando, na época, as opiniões dos fisiolo-
tinguia por algum talento ou aptidão particular. Al- gistas sobre o cérebro e dos metafísicos sobre as
guns dos seus companheiros de escola salientavam-se faculdades mentais ele contentava-se, simplesmente,
pela beleza da escrita, outros tinham grande facili- com a observação da natureza. Quando quis aumen-
dade para a aritmética, outros ainda eram brilhan- tar os seus conhecimentos através da leitura, encon-
tes nos estudos de história natural e finalmente outros trou nos livros o mais desesperante conflito entre as
distinguiam-se pela grande facilidade na aprendiza- opiniões então em voga e, durante algum tempo du-
gem de línguas... Enfim, cada indivíduo apresenta- vidou das suas próprias observações: a maior parte
va algum traço de carácter que lhe era particular. dos afectos e das paixões eram atribuídos às vísce-
Gall observou, por outro lado, que aqueles que reve- ras abdominais e torácicas e, enquanto Pitágoras,
lavam, de início, disposição para o egoísmo e para Aristóteles, Platão, Galeno, Haller e alguns outros
a astúcia não viriam a ser nunca amigos bons e fisiologistas localizavam a alma, ou as suas facul-
fiéis ”. dades intelectuais, no cérebro, Van Helmont
“O seu espírito observador fê-lo, ainda, consta- localizava-a no estômago, Descartes e os seus discí-
tar que os estudantes que eram os seus mais temíveis pulos na glândula pineal, Drelincourt e alguns ou-
rivais eram aqueles que facilmente decoravam os as- tros, no cerebelo” (Figura 1).
suntos. Estes indivíduos suplantavam-no frequente- Podíamos continuar a interessante narrativa de
mente por causa desta capacidade, retirando-lhe Combe sobre este marco histórico das ciências do Sis-
posições que ele tinha adquirido por mérito das suas tema Nervoso, porém, o essencial julgamos que ficou
composições originais”. explicitado na citação que respigamos do seu tratado
“Alguns anos mais tarde, tendo mudado de resi- de Frenologia. A obra de Gall cresceu e foi continua-
dência, teve, ainda, ocasião de encontrar indivíduos da, em particular, por Jean Gaspar Spurzheim, seu alu-
dotados do talento de decorar e de repetir com faci- no em Viena em 1786 e que viria a falecer em Boston
lidade tudo o que tinham aprendido. Foi nesta épo- em 1832 (quatro anos depois de Gall). Feitas as ob-
ca que reparou que os estudantes com esta servações empíricas da natureza, os frenologistas
capacidade tinham os olhos proeminentes e recorda- preocuparam-se depois em dar corpo científico às suas
-se que os seus primeiros companheiros de estudo se concepções voltando-se para o estudo do cérebro, ten-

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Fig. 1 – Algumas representações de conceitos de função cerebral. A – Representação do sistema ventricular (Philosophia pauperum,
Albertus Magnus 1206-1280). B – O mesmo esquema na versão de Leonardo da Vinci em 1490. C – As relações com o mundo exterior
são representadas em 1496 por Gerardus de Harderwyck em Epitomate. D – O modelo das três células em esquema mais elaborado por Ro-
bert Fludd (1574-1637).

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do sempre como pano de fundo o ambiente crítico, do modelo e os mapas de frenologia atingiram minú-
e tantas vezes mordaz, dos cultores da ciência fisio- cias a todos os títulos inaceitáveis. Este exagero, bem
lógica da época. Como ficou dito acima, nunca o longe da cuidadosa observação que se impunha,
crâneo foi considerado o elemento fundamental aumentou a contestação à teoria por parte dos acadé-
determinante da actividade cognitiva, pelo contrário, micos. Estava, todavia, dado o passo importante que
o crâneo desenvolvia-se moldando o cérebro e os seus permitia atribuir funções psicológicas a regiões espe-
acidentes anatómicos externos não eram mais do que cíficas do cérebro. Feita a correlação entre aptidões e lo-
o reflexo do desenvolvimento dos diversos “orgãos” calizações cerebrais era necessário encontrar mais ar-
que, na concepção frenologista, o constituiam. A pri- gumentos que viessem consolidar os modelos pro-
meira preocupação foi, assim, provar que havia uma postos.
completa aderência entre o cérebro e as suas membra- É de novo em França que se acende a centelha que
nas envolventes e a calote craneana, para validar o iluminará o capítulo seguinte desta história. Bouillaud,
método de medida exterior da cabeça e da sua confi- acérrimo defensor da teoria de Gall, estava particular-
guração como medida do próprio cérebro. Isso foi mente empenhado em demonstrar que o centro res-
conseguido com base em inúmeros estudos anatómi- ponsável pela memória das palavras se encontrava no
cos em que havia sempre a preocupação de procurar lobo frontal (ver Figura 2). Tinha presente a observa-
o caso particular de indivíduos que, tendo uma parti- ção de Gall sobre a proeminência dos olhos daqueles
cular aptidão em vida, eram também portadores de que tinham grande facilidade em decorar informação
uma configuração particular da caixa craneana. Não verbal. Essa proeminência corresponderia a um maior
era raro o próprio Gall solicitar autorização às famí- desenvolvimento do lobo frontal que se encontra si-
lias para estudar o cérebro de indivíduos falecidos que tuado sobre as órbitas, e que dessa forma empurraria
em vida tinham demonstrado aptidões especiais para os olhos para fora. Trabalhava, então, com Bouillaud
uma qualquer actividade, o que decerto não terá dei- um jovem médico chamado Paul Broca que, com base
xado de lhe trazer alguns dissabores de carácter social neste pressuposto, com ele colaborou na criação de um
e motivo de crítica dos seus delatores ( 1 ). novo modelo experimental. O raciocínio que hoje nos
Interessante é ainda relatar outros factos que cons- parece tão simples, capaz de comprovar estas ideias
tituiram argumento para relacionar o cérebro com a estudando doentes com lesões cerebrais localizadas
função. Observando, durante o sono, doentes que por surge, assim, como uma novidade quando era já de-
traumatismo grave do crâneo tinham exposta a super-
ficie cortical, estes autores verificaram que o cérebro
pulsava mais se o indivíduo sonhasse e mais ainda
quando tinha pesadelos. Face a estes dados de obser-
vação os autores concluiram que quando existe acti-
vidade cognitiva é chamado mais sangue ao cérebro.
É bem claro que a base experimental que permitiu
estas conclusões está longe de obedecer aos requi-
sitos exigidos na ciência de hoje, porém, mais de um
século depois, as técnicas de imagem do cérebro, de
que falaremos adiante, vieram demonstrar a pertinên-
cia das observações feitas no início do século XIX.
A Frenologia constituiu na realidade uma verda-
deira revolução nos conceitos até então estabelecidos
e ensinados nas Universidades. Curioso é notar a
popularidade que teve junto da opinião pública onde
passou a ser conhecida como a teoria das bossas. Não
era raro, nos salões elegantes fazerem-se medidas das
cabeças com os compassos especialmente criados
para o efeito. A própria linguagem assimilou a teoria,
sendo frequente a utilização da expressão “ter a bos-
sa para...’’ que significava “ter aptidão para...”.
Esta expressão correu o mundo e encontra-se escrita
por alguns romancistas da época como Balzac e Cami-
lo Castelo Branco.
Como acontece com muitas das descobertas cien-
tíficas, também neste caso houve exageros de descri-
ção na tentativa de levar o mais possível a virtude
Fig. 2 – Mapa de representação das funções de acordo com a mor-
(1) Menciona-se, a propósito, que o cérebro de Einstein está, ainda fologia da cabeça segundo o Frenologista Gaspar Spurzbeim
hoje, conservado aguardando que alguém o estude. (1776-1832). A cada região assinalada correspondia uma função.

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corrido mais de meio século sobre as primeiras publi- que a seguir a algumas convulsões se regista paralisia
cações frenologistas. da língua e paralisia do lado direito do corpo e que
Era sabido já há muito tempo que as lesões do cé- as feridas de uma das temporas provocam espasmo no
rebro provocavam alterações da linguagem falada mas lado oposto do corpo. Estas duas afirmações são afi-
nunca ninguém se tinha preocupado com saber se ha- nal idênticas à de Dax, uns séculos mais tarde, mas
veria uma localização particular dessas lesões. Broca distiguem-se do trabalho experimental de Broca.
procurou então doentes portadores desta afecção e es- É interessante notar que a força dominante das
perou a sua morte para ter oportunidade de estudar ideias fez negligenciar outros dados de observação re-
o cérebro. O primeiro dos doentes estudados chamava- latados por Gabriel Andral. Este autor mostrou que era
-se Leborgne e tinha a sua linguagem oral restringida possível haver alterações da linguagem com lesões que
ao vocábulo “tan”. A inspecção do cérebro, exclusi- não envolviam os lobos frontais, com base no estudo
vamente na sua face externa, revelou a presença de de 14 doentes com lesões que não envolviam esta re-
uma lesão na região frontal (no pé da terceira circun- gião. A sua conclusão foi assim: “La perte de la paro-
volução) que estava de acordo com os modelos pro- le n’est donc pas le résultat nécessaire de la lesion des
postos na teoria frenologista (ver Figura 3). Depois de lobules antérieurs, et, en outre, elle peut avoir lieu
ter estudado um segundo doente com sintomas idên- dans des cas oú l’anatomie ne montre dans ces lobu-
ticos e lesão cerebral semelhante Broca afirmou publi- les aucune altération”.
camente que a linguagem articulada se localizava na ter- Alguns anos mais tarde estas afirmações viriam, to-
ceira circunvolução frontal. davia, a ser confirmadas pela escola alemã. Influencia-
do pelos trabalhos de Meynert sobre os feixes de
associação do cérebro, Wernicke publicou, em 1874,
a monografia entitulada “Der aphasiche symptom-
-complex” que o viria a celebrizar. Neste trabalho, o
autor realça a existência de um centro de memórias
sensoriais que seria responsável pela compreensão au-
ditiva da linguagem falada. Os doentes com lesões des-
te centro (que Wernicke começou por localizar na
Insula e só mais tarde localizou no lobo temporal) per-
deriam a capacidade de compreender a linguagem.
O aspecto mais interessante deste modelo é, porém,
o facto de terem sido descritas vias de ligação entre
os diversos centros, dando assim uma visão funcional
Fig. 3 – Cerebro de Leborgne estudado por Broca. ao cérebro que até então não tinha sido considerada.
Com estas investigações nasce uma nova escola desig-
Interessado em consolidar o valor desta afirmação, nada por associacionista em que se fala de centros
continuou a estudar o assunto com a mesma metodo- localizados e de vias de ligação entre eles. Merece men-
logia, vindo a verificar que todos os seus casos tinham ção particular, a contribuição dada por Sigmund Freud
lesões do hemisfério cerebral esquerdo. Acrescentou no seu livro sobre a afasia, para o progresso destes es-
então à sua primeira descoberta um novo conceito afir- tudos. Embora fora do âmbito do presente texto, in-
mando em 1865, na Academia de Medicina fran- teressa salientar que a teoria Psicanalítica, que viria a
cesa: “falamos com o hemisfério esquerdo”. desenvolver mais tarde, reflecte em muitos pontos es-
Broca ficou, assim, ligado à história da medicina tas concepções fundamentalmente neuronais da fun-
como o pai do conceito de dominância cerebral. Po- ção psíquica.
rém, em 1836, Marc Dax tinha apresentado na mesma A escola alemã tem também a sua repercussão em
Academia de Medicina, um trabalho em que afirmava França, em particular através de Jules Déjerine. Este
exactamente o mesmo, baseado em dados diferentes. autor celebrizou-se pelos seus trabalhos sobre a capa-
Dax tinha observado que os doentes que perdiam a cidade de ler e de escrever e muito do que foi relata-
capacidade de falar eram aqueles que ficavam parali- do, então, é válido ainda nos nossos dias. Déjerine
sados do lado direito do corpo. Quando a paralisia descreveu duas variedades de perturbação da leitura
surgia do lado esquerdo não havia alterações da lin- relatando quer os dados de observação clínica, quer
guagem. Este trabalho foi esquecido durante muitos a correcta descrição anatómica das lesões cerebrais por
anos e só raramente a ele se faz referência. Sem retirar eles responsáveis, a que faremos referência mais
o mérito às observações de Dax não podemos deixar adiante.
de reconhecer que a investigação de Broca se integra Não pode deixar de fazer-se menção à influência
num contexto experimental de maior interesse cientí- de Pierre Marie neste período da viragem do Século.
fico. A ligação entre o defeito motor à direita e as al- Este autor pretendeu destruir por completo a teoria de
terações de linguagem, realçada por Dax, aparece Broca afirmando num dos seus mais célebres trabalhos:
referida em múltiplos textos anteriores à época que es- “La troisième circunvolution frontale gauche ne joue
tamos a considerar. Hipócrates, por exemplo, afirma aucun rôle spécial dans la fonction du langage”.

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Para Marie a verdadeira afasia era aquela que tinha O progresso registado desde então nas técnicas de
sido descrita por Wernicke e aquilo que Broca descre- exploração funcional do cérebro, nas técnicas de ava-
via não era mais do que o somatório deste defeito com liação, e na experimentação animal permitiu ter hoje
uma perturbação de carácter motor que designava de um vasto conjunto de conhecimentos que será resu-
anartria. Contestava, assim, o conceito de um centro mido nos próximos capítulos.
de memórias motoras e contestava também o aspecto di-
nâmico das ligações entre os diversos centros que
era afinal o cerne da concepção associacionista. Ficou ALGUNS CONCEITOS DE ANATOMIA
célebre a polémica entre Marie e Déjerine em 1906 que E DE FISIOLOGIA
está transcrita na Révue Neurologique, e que por pou-
co não culminou com uma deslocação ao museu onde Nos últimos anos tem-se registado um interesse
se encontra ainda hoje o cérebro do doente Leborgne crescente pelos estudos relacionados com as ciências
com o intuito de o estudar através de cortes anató- do sistema nervoso. Este interesse tem tido como re-
micos (o que, como dissemos já, não tinha sido sultado um enorme progresso no desenvolvimento de
feito) ( 2 ). técnicas que permitem conhecer melhor a função nor-
A viragem do Século é, assim, um período de gran- mal deste que parece ser o mais complexo sistema do
des convulsões na comunidade científica e é descrito organismo humano. Os estudos sobre o comportamen-
por Henry Head como um período de “caos”. Pena to beneficiaram com estes progressos registados nos
foi que na realidade as relações científicas entre a outros campos e vale, por isso, a pena rever, de forma
França e a Inglaterra estivessem tão distantes pois, no sucinta, alguns dos aspectos que nos parecem mais re-
mesmo período, Hughlings Jackson vinha publicando levantes para ser possível compreender o que ficará
uma série de textos que inexplicavelmente não tive- dito adiante sobre a função cerebral.
ram a audiência que mereciam. Jackson preocupava- Desde o tempo de Ramon y Cajal que se conhecem
-se fundamentalmente com os aspectos da pesquisa dos as células nervosas (neurónios) e alguns dos mecanis-
sinais clínicos, salientando a necessidade de hierarqui- mos que permitem as suas funções. Os estudos de ana-
sar os fenómenos estudados e fazer uma descrição cui- tomia macroscópica e microscópica, de fisiologia e de
dadosa do ponto de vista fenomenológico dos achados bioquímica, permitiram conhecer melhor as diferen-
da observação. As suas publicações viriam a influen- tes estruturas que constituem o cérebro, permitindo
ciar o trabalho de Henry Head que publicou uma vo- ter hoje o conceito, inaceitável há pouco mais de um
lumosa monografia com aquilo que se pode considerar século, de ser o cérebro constituido por uma infinida-
como a primeira bateria de provas destinadas a ava- de de redes de neurónios que transportam informação,
liar alterações do comportamento humano resultantes tratando-a e armazenando-a em lugares próprios. É
de lesões cerebrais. bem conhecida a especificidade de diversas regiões, ou
Ao concluir este breve resumo histórico que, es- áreas, sendo possível afirmar com algum grau de cer-
tando muito longe de ser exaustivo, pretende enqua- teza o seu envolvimento em tarefas determinadas. Por
drar o presente que vivemos no contexto da evolução outro lado, é possível hoje compreender como é feita
das ideias, deve fazer-se uma referência especial ao tra- a passagem da informação de célula para célula nas es-
balho de Norman Geschwind que foi, em grande par- truturas que se designam por sinapses. São conheci-
te, o impulsionador de importantes progressos feitos dos diversos tipos de sinapses, umas designadas por
neste campo de estudos. eléctricas em que a transferência de informação pare-
Geschwind, infelizmente falecido na década de 80, ce depender de mecanismos de contacto, outras de-
quando ainda muito se esperaria do seu trabalho, pu- signadas por químicas em que o mecanismo de
blicou, em 1965, na revista Brain um longo artigo com o transferência é mais complexo. Nestas últimas existe
título “Disconnexion Syndromes in animals and um botão terminal da célula transmissora onde se ar-
Man” que foi germen do reacender do interese pelos mazenam substâncias químicas – os neurotransmis-
estudos do comportamento e das suas relações com sores – que são libertados na fenda sináptica e fixa-
o cérebro. Neste trabalho incorporou os ensinamen- dos nos receptores da célula receptora. Esta ligação ao
tos da escola alemã nos modernos achados da experi- receptor origina uma mudança do estado bioeléctrico
mentação animal e, bem assim, em resultados da sua pró- da membrana que reveste a célula, condicionando a
pria pesquisa feita em doentes com lesões cerebrais, sua função futura. O facto de determinadas regiões do
estudados com os mais modernos meios disponíveis cérebro trabalharem predominantemente com certos
na altura. neurotransmissores corresponde também ao concei-
to de especificidade.
Em termos gerais, e de forma muito simplificada,
podemos, portanto, dizer que as células nervosas se
(2) O estudo deste cérebro veio a ser feito mais tarde, aquando do
organizam no cérebro em agregados que constituem
centenário de Broca nos anos sessenta, recorrendo à Tomografia Axial
Computorizada e ficou demonstrado que a lesão existente tem uma núcleos, ou áreas, com funções específicas,
importante extensão sub-cortical que não tinha sido considerada por interligando-se através de vias que podem ser descri-
Broca. tas pelo seu trajecto anatómico, como por exemplo a

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via nigro-estriada que liga o locus niger ao estriado, Na Figura 4 estão representadas esquematicamen-
ou pela sua função, como a via piramidal que conduz te as regiões mais relevantes para o tema que nos inte-
informação respeitante à motilidade voluntária, ou, ressa analisar. Não é possível aqui fazer uma revisão
ainda pelo neurotransmissor que utiliza na transmis- exaustiva da anatomia do cérebro, nem é esse o nosso
são dos impulsos nervosos – vias dopaminérgicas, vias objectivo, mas parece-nos conveniente fornecer ele-
adrenérgicas, por exemplo. mentos que permitam a compreensão dos temas que
Também de forma simplificada podemos dizer que vamos tratar. A legenda da figura permite a sua com-
os corpos das células nervosas se distribuem pelo man- preensão, e em cada capítulo faremos referência a al-
to que se designa cortex cerebral ou se agrupam em guns detalhes de particular interesse para o tema em
núcleos na profundidade dos hemisférios cerebrais, e questão.
que os seus prolongamentos (axónios), que vão cons-
tituir as vias, preenchem a restante estrutura encefá- Para finalizar este capítulo podemos acrescentar
lica envolvidos por tecidos de suporte constituídos por que o conhecimento da função cerebral encerra ainda
células gliais. Designam-se por substância cinzenta as muitos segredos que a investigação científica se esfor-
regiões ocupadas pelos corpos dos neurónios e por ça por descobrir com o objectivo não só de conhecer
substância branca as regiões percorridas pelas vias. a função normal, mas também para conhecer os me-
canismos produtores de doenças, elas próprias tantas
vezes reveladoras dos mecanismos da normalidade.

OS MÉTODOS DE ESTUDO EM NEUROLOGIA


DO COMPORTAMENTO

Antes de avançar na descrição de alguns dos capí-


tulos que têm sido objecto de estudo dos investigado-
res que se dedicam à neurologia do comportamento
interessa fazer referência aos métodos utilizados.
Posta a questão que se pretende explorar, o inves-
tigador cria o modelo experimental que melhor se
adapte à obtenção de resultados. A título de exemplo
podemos recorrer a um problema relacionado com a
linguagem. O investigador pretende saber, por exem-
plo, como é processada no cérebro a operação de pro-
dução oral do nome de um objecto quando este
objecto é visto por um indivíduo. Começa, então, por
elaborar uma prova de denominação de objectos que
aplica a indivíduos sem lesões do cérebro no sentido
de conhecer o comportamento considerado normal.
Mas ao desenhar essa prova deve ter em linha de con-
ta determinados aspectos que têm a ver com as carac-
terísticas do material utilizado. Assim interessa ter em
linha de conta, por exemplo a frequência relativa de
utilização das palavras que integram a prova pelos
falantes da língua em que é realizada a prova, as possí-
Fig. 4 – Representacão esquemática do cérebro e algumas das veis variáveis semânticas a ter em conta – é teorica-
estruturas anatómicas mais importantes mente diferente dar o nome a uma caneta ou a um
1 - LOBO FRONTAL Trata a informação abstracta; intervém no pla-
neamento e na programação;
animal – e ainda a forma de apresentação do estímu-
2 – LOBO TEMPORAL Trata a informação auditiva; lo visual – é sabido que ver e reconhecer um objecto
3 – LOBO PARIETAL Trata a informação das diferentes formas de real a três dimensões é diferente de ver e reconhecer
sensibilidade; a representação desse mesmo objecto em desenho bi-
4 – LOBO OCCIPITAL Trata a informação visual; dimensional ou mesmo em fotografia.
5 – CORPO CALOSO Permite a passagem de informação entre os
dois hemisférios; Concluído este primeiro trabalho, que tem que ser
6 – CORTEX CEREBRAL Cobre toda a superfície do cérebro; rigoroso, dispõe o investigador das variáveis respei-
7 – AMÍGDALA Envolvida nos processos emocionais; tantes ao material e ao comportamento da população
8 – HIPOCAMPO Consolida a memória recente; normal que lhe permitem a comparação e o estudo no
9 – TÁLAMO Recebe a informação sensorial e projecta-a para o cor- modelo experimental que seleccionar.
tex;
10 – TRONCO CEREBRAL Ligação entre o cérebro e a espinal me- O método mais acessível é o estudo de doentes que
dula; regula funções vitais como a respiração; por qualquer razão tenham sofrido uma lesão cerebral.
11 – CEREBELO Responsável pela coordenação do movimento. Os modernos métodos de visualização das lesões ce-

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Fig. 5 – Algumas representações da morfologia e função cerebral com as modernas tecnologias.
A – Tomografia axial computorizada; G – Composiçâo tri-dimensional a partir das imagens de Ressonân-
B – Ressonância Nuclear Magnética; cia Nuclear Magnética (H. Damásio, R. Frank. Arch Neurol 49:
C – Mapa baseado em sinais electro-encefalográficos; 137-143, 1992);
D – SPECT – baseado em débitos sanguíneos;
E – PET – baseado no metabolismo; H – Combinação das imagens de PET com a Ressonância Nuclear
F – SQUID - baseado nos campos magnéticos; Magnética (J. Sergent et al. Cerebral Cortex 2:68-80, 1992)

rebrais como a Tomografia Axial Computorizada ou são cerebral o investigador pode concluir que essa área
a Ressonância Nuclear Magnética põem em evidência do cérebro tem um papel importante no desempenho
com clareza a região do cérebro afectada pela lesão. da função em estudo.
O doente representa neste caso um modelo experimen- Em certas situações o estudo de um só caso pode
tal produzido pela Natureza. O método é, assim, se- trazer informações de grande relevância para os pro-
melhante ao que Broca propôs há um século atrás: blemas em estudo. O princípio que norteia esta forma
avaliar a possível alteração da função por perda de uma de estudo baseia-se no facto de que se uma determi-
determinada região do cérebro e inferir a partir daí as nada ocorrência é possível num indivíduo que sofreu
relações dessa estrutura com a função. Quando se ve- uma lesão cerebral então essa corresponde a uma pos-
rificar que num número razoável de observações se en- sibilidade geral do sistema. Este corresponde, em linhas
contra um desvio da normalidade constantemente gerais, ao método seguido pela corrente designada
relacionável com uma determinada localização da le- Neuropsicologia Cognitiva.

78
Outro método de estudo possível hoje em dia, mas Dominância cerebral
só em centros muito sofisticados, seria o recurso à
Tomografia de Emissão de Positrões que permite pôr Ficou atrás relatada a história que levou ao nasci-
em evidência a actividade metabólica do cérebro em mento deste conceito. Em linhas gerais podemos di-
indivíduos normais e estudar as variações regionais zer que dominância cerebral significa afinal uma
dessa actividade durante a execução de tarefas especí- distribuição de diferentes funções por cada um dos he-
ficas – neste caso a denominação de objectos. Outros misférios cerebrais. É difícil aceitar que um hemisfé-
métodos existem ainda para o estudo das variações fun- rio domine o outro nas suas funções. Aceitava-se essa
cionais do cérebro durante o desempenho de activi- ideia no passado quando não se conheciam ainda as
dades quer em indivíduos normais quer em doentes funções do hemisfério direito e porque as funções da
com lesões cerebrais: o SPECT, que permite pôr em linguagem eram consideradas de certa forma mais no-
evidência o fluxo sanguíneo cerebral, os mapas cere- bres. Aceita-se hoje o conceito de distribuição de fun-
ções por cada um dos hemiférios cerebrais sendo,
brais baseados na actividade electroencefalográfica e
assim, cada um dominante para a função de que é res-
ainda o moderno SQUID que se baseia na actividade
ponsável. O hemisfério esquerdo é dominante para a
magnética do cérebro (ver Figura 5). Merece referên-
linguagem porque é nele que se encontram os arran-
cia ainda a nova possibilidade de juntar informação
jos neuronais que lidam com esse tipo de informação,
proveniente de diferentes técnicas dando origem a e o hemisfério direito será dominante para tarefas que
belas imagens como aquela que reproduzimos na mes- exijam o tratamento de informação visuo-perceptiva
ma figura retirada de um recente trabalho de Justine como, por exemplo, a orientação no espaço. Tem ha-
Sergent. vido a tendência para identificar as diferentes funções
hemisféricas com formas gerais de funcionamento de
No caso particular que consideramos, o da tarefa cada um dos hemisférios. Assim, há quem considere
de denominação de objectos, não há lugar para a ex- que o hemisfério esquerdo tem uma forma de funcio-
perimentação em animais já que estamos a tratar de nar relacionada com mecanismos de análise enquanto
uma função exclusiva da espécie humana, embora na que o direito se relacionaria com mecanismos de sín-
análise completa da função em estudo se entre em tese, ou, por outras palavras, o primeiro seria discre-
linha de conta com dados respeitantes à percepção to e o segundo analógico. Em nosso entender é dificil
visual que foram adquiridos neste tipo de experimen- atribuir a cada um dos hemisférios uma função global.
tação. No estudo de outras funções, como por exem- Eles tratam na realidade a informação de forma dife-
plo em tarefas de exploração do espaço, a experi- rente e empenham-se também em diferentes tarefas,
mentação em primatas tem permitido avanços signifi- mas cada uma delas obedece a regras próprias que é
cativos. dificil subordinar a uma regra geral hemisférica.
Podemos, assim, dizer que basicamente o neuro- Para além deste conceito de distribuição de funções
logista do comportamento recorre a diferentes méto- por cada um dos hemisférios, interessa considerar que
dos de estudo que podem ser enumerados da seguinte em cada momento, no decurso do tratamento da in-
forma: formação que constitui o decorrer da nossa activida-
de cognitiva, os dois hemisférios se encontram em
contacto constante através do Corpo Caloso, que cons-
A) estudos realizados em humanos com lesões ce- titui a enorme avenida de transporte da informação de
rebrais; um lado para o outro do cérebro.
B) estudos realizados em humanos sem lesão ce- Esta diferença de funcionamento dos hemisférios
rebral recorrendo a técnicas de exploração fun- cerebrais reflecte-se também na sua estrutura anatómi-
cional; ca. É interessante referir que durante muito tempo,
C) estudos realizados em animais quando o ho- mesmo depois de se conhecer já a diferença funcional
mem partilha a função em estudo com outras entre os dois hemisférios, não eram relatadas diferen-
espécies animais. ças anatómicas. Só muito recentemente, já nos anos
setenta, surgem os primeiros trabalhos relatando assi-
metrias anatómicas entre os dois hemisférios cerebrais
que sempre estiveram ao alcance da vista dos anato-
CORRELAÇÕES CÉREBRO/COMPORTAMENTO mistas mas que nunca tinham sido relatadas. Essas di-
ferenças dizem respeito à maior dimensão do planum
Passaremos agora a rever algumas das situações em temporale à esquerda e à diferente inclinação do rego
que as relações do cérebro com o comportamento têm de Sylvius em cada um dos hemisférios (ver Figura 6).
sido mais estudadas. Consideramos desde já que não Ambas as diferenças parecem sugerir um maior desen-
é possível mencionar todos os aspectos que têm sido volvimento das áreas responsáveis pelo tratamento da
objecto de estudo pois é vastíssima a literatura sobre informação auditiva verbal. Por outro lado, em medi-
o assunto, mas focaremos aquelas que pensamos ser das feitas em cortes de Tomografia Axial Computori-
mais facilmente compreendidos por não especialistas. zada, verificou-se que o polo frontal direito é mais

79
proeminente que o esquerdo e que o lobo occipital es- quência canhotos na família. Estes achados permitiram
querdo é mais proeminente que o direito. concluir que existem duas razões para o canhotismo:
Temos estado, até agora, a considerar a situação uma genética, com vários individuos na mesma famí-
que por ser a mais frequente se pode dizer que consti- lia e que não acarreta qualquer problema para a acti-
tui a regra, porém há excepções que interessa men- vidade cognitiva normal, e outra considerada
cionar. patológica. Neste último caso, as crianças são canho-
tas porque têm à partida problemas no seu cérebro,
problemas esses que são responsáveis pela inversão da
lateralidade e também pelas dificuldades de aprendi-
zagem. Não quer isto dizer que qualquer canhoto sem
história de canhotismo na família tenha obrigatoria-
mente uma lesão do cérebro, pode haver casos gene-
ticamente determinados considerados esporádicos. O
que importa é que em situação alguma se justifica for-
çar a utilização da outra mão: nos casos familiares se-
ria forçar a tendência natural e criar às crianças um
problema que elas não tinham, nos outros casos seria
contrariar um mecanismo adaptativo, natural também,
e aumentar, assim, os problemas que a criança já tem.
Por outro lado, é necessário ainda ter em considera-
ção que entre o indivíduo completamente dextro pa-
ra todos os actos motores que exigem uma opção de
lateralidade e o canhoto completo, há várias formas
de transição, sugerindo que lateralidade motora não
é uma função única do cérebro. Há pessoas que
Fig. 6 – Representação tridimensional do cérebro, baseada em ima- optam pela mão direita para escrever ou usar uma
gens de ressonância magnética, demonstrando as assimetrias entre tesoura mas preferem a mão esquerda para arremeçar
os dois hemisférios. Em A e B compara-se o rego de Sylvius em C objectos. É pois aceitável que o conceito de laterali-
e D assimetria do planum temporale (H. Damásio, R. Frank, Arch
Neurol 49, 137-143, 1992).
dade deva ter sempre em linha de conta a função mo-
tora a que se destina. A haver uma determinação
genética ela não será seguramente dependente de um
Consideremos em primeiro lugar a questão da la- único gene.
teralidade motora. A grande maioria da população usa Para além do que acabamos de referir em relação
preferencialmente a mão direita em todas as tarefas; à lateralidade, a regra da dominância hemisférica
da mesma forma, opta pelo pé direito quando quer esquerda para a linguagem pode também ter as suas
pontapear. Porém, como é sabido, nem sempre assim excepções. Assim, é possivel que os mecanismos res-
é, e o canhotismo é uma realidade conhecida há mui- ponsáveis pelo processamento da linguagem se encon-
tos anos. Utilizar preferencialmente um lado do cor- trem no hemisfério direito em alguns indivíduos.
po nas actividades motoras pressupõe a existência de Durante muito tempo pensou-se que linguagem e do-
operadores especializados para o controle da motrici- minância motora se acompanhavam, isto é, os dextros
dade no hemisfério contralateral. Assim, os dextros tinham a linguagem no hemisfério esquerdo e os
processam a motricidade voluntária preferencialmen- canhotos tinham-na no hemisfério direito. Sabe-se hoje
te no hemisfério esquerdo enquanto que os canhotos que assim não é. A probabilidade de um dextro com-
a processam no hemisfério direito. Durante muito tem- pleto ter a linguagem no hemisfério esquerdo é da
po pensou-se que esta variação da preferência manual ordem dos 95 %, quanto aos canhotos é provável que
representava um handicap já que eram frequentes as cerca de 60% tenham também a sua linguagem no
referências a maiores dificuldades de aprendizagem das hemisfério esquerdo. É dificil ter um rigor absoluto
crianças canhotas. Por essa razão não era invulgar con- nestes dados visto que são obtidos através de estudos
trariar a tendência natural das crianças em idade esco- de doentes com lesão cerebral exigindo séries muito
lar, quer pelos pais quer pelos próprios professores do grandes e dificeis, por isso, de obter num único centro.
ensino primário. A questão que pode agora levantar-se respeita à
Estudos recentes vieram esclarecer melhor esta si- confrontação destes dados com aqueles que referimos
tuação. Tomando em consideração um número con- acima a propósito das assimetrias anatómicas. Seria de
siderável de alunos canhotos do ensino primário, os esperar que quer os canhotos quer os indivíduos que
autores do estudo dividiram-nos em primeiro lugar em revelaram ter a sua linguagem no hemisfério direito (o
função do rendimento escolar e depois consoante ti- conhecimento desta situação obtem-se quando num
nham, ou não, outros indivíduos canhotos na família. determinado indivíduo uma lesão do hemisfério direito
A análise dos resultados veio revelar que os canhotos provoca alterações de linguagem) tivessem um padrão
com rendimento escolar normal tinham com mais fre- de assimetria anatómica diferente do da população de

80
dextros com linguagem no hemisfério esquerdo. A ver- existência de centros de memórias auditivas de pala-
dade é que nem no primeiro caso nem no segundo vras que comunicavam unidireccionalmente com cen-
isto se verifica. As nossas próprias investigações levam- tros de memórias motoras. Aceitamos, hoje, modelos
-nos a supôr que tal só acontece quando está invertida que preconizam o envolvimento de grandes redes neu-
a dominância para funções de natureza visuo- ronais integradas com conexões complexas multidirec-
-perceptiva não-verbal. No entanto estes dados care- cionais e envolvimento de sistemas acessórios que
cem ainda de estudos complementares. ultrapassam a actividade do cortex cerebral e as clás-
É possivel ainda que exista uma associação entre sicas áreas ditas da linguagem. As alterações de lingua-
a variabilidade genética que conduz ao canhotismo gem relatadas com lesões pequenas, sub-corticais, já
com alguns aspectos da imunologia, sendo assim mais nos anos 70, que constituiram afinal uma moderna for-
frequentes algumas doenças deste foro na população malização daquilo que Pierre Marie pretendeu provar
de indivíduos canhotos. Este campo está, porém, ain- há quase um século, vieram contribuir para a melhor
da em fase precoce de exploração. compreensão da forma como o cérebro processa a in-
Como veremos mais adiante, grande parte dos co- formação relacionada com a linguagem oral. Por ou-
nhecimentos de que hoje dispomos sobre a função de tro lado, a possibilidade de estudar a actividade
cada um dos hemisférios cerebrais resulta dos estudos cerebral com a Tomografia de Emissão de Positrões
realizados com doentes a quem foi cortado o Corpo (PET scan) durante a execução de tarefas em indiví-
Caloso, por razões medicamente justificadas. duos normais trouxe também informação complemen-
A ausência desta estrutura que a cada momento trans- tar de interesse. Verificou-se, por exemplo, que a área
porta informação de um lado para o outro, permite suplementar motora, que está localizada na face inter-
compreender o que se passa em cada lado isola- na do lobo frontal desempenha um papel de relevo du-
damente. rante a produção de discurso e a activação cerebral não
se confina às áreas clássicas, embora nessas regiões se
registe uma maior actividade metabólica.
Apesar destas dificuldades existe um campo de es-
Linguagem oral
tudo que se dedica a este assunto e que é merecedor
de estatuto autónomo: a Neurolinguística.
A linguagem oral constitui uma parcela fundamen- Os estudos de Neurolinguística têm tido por mate-
tal da comunicação entre os humanos (e não só, visto rial de análise os casos de indivíduos que após terem
que é possível transmitir mensagens a outras espécies sofrido uma lesão cerebral ficaram com alterações de
através de códigos de expressão oral embora este linguagem ou, por outras palavras, os afásicos. Estes
aspecto não esteja suficientemente estudado). É cons- casos acrescentam uma dimensão à análise linguística
tituída por uma sequência de sons produzida por apa- que diz respeito à situação em que é produzido o dis-
relho fonador especializado que, transmitidos por via curso. Assim, um afásico que não é capaz de descodi-
aérea, são ouvidos e descodificados através de estru- ficar (compreender) o significado de uma estrutura
turas anatómicas também elas particularmente adap- gramatical, pode ser capaz de a produzir oralmente
tadas para essa função. As variações das características noutro contexto de observação experimental. Quer
dos sons e a sua sequência permitem formar unidades isto dizer que o que foi perdido, neste caso, não foi
de significado para os utilizadores do mesmo código. um operador relacionado com a estrutura gramatical
Estas unidades vão desde uma relação muito clara e em questão, mas sim a capacidade de utilização dessa
directa com o mundo das percepções até à abstracção estrutura em certo contexto (neste caso a compreen-
de conceitos só possíveis num imaginário muito ela- são auditiva). Porém, o estudo da afasia tem trazido
borado. algumas informações de interesse para a linguística,
A tentativa de aplicar as regras das gramáticas for- dizendo respeito fundamentalmente aos aspectos dis-
mais a modelos de função cognitiva cerebral tem sociativos que se podem encontrar em alguns casos.
resultado em relativo fracasso. A razão fundamental Esta perspectiva, que constitui o cerne da nova Neu-
para este fracasso reside no facto de serem as gramáti- ropsicologia Cognitiva, tem permitido, através do
cas elaboradas a partir do estudo da língua enquanto estudo de casos isolados, pôr em evidência compor-
código explicitável em forma escrita em que os elemen- tamentos de doentes que põem em causa a generali-
tos que o constituem se relacionam entre si através de dade de algumas regras, ou, por outras palavras, tendo
regras com maior ou menor número de excepções, sido encontrada uma determinada alteração na lingua-
também elas consideradas matéria de análise em ter- gem de um doente afásico, essa alteração pode fazer
mos de formulação lógica. A dificuldade reside no es- supor a impossibilidade de utilização de uma determi-
tabelecer de uma relação entre as regras identificadas nada regra pressuposta universal, porém esse mesmo
na gramática e as estruturas cerebrais que as suportam. doente vem a ser capaz de ter acesso a essa regra quan-
Estamos longe hoje do antigo conceito do Século XIX do utiliza outro tipo de enquadramento verbal (e não,
em que se atribuía a uma área restrita do cérebro o de- neste caso, outra situação de teste, como foi referido
sempenho de uma função verbal restrita também. As acima). Estes aspectos permitem ainda contribuir
concepções de Wernicke e Lichteim preconizavam a para a elaboração de modelos computacionais que têm

81
tendência a reproduzir a função cerebral relacionada
com a linguagem.
Olhando agora para o problema da afasia do pon-
to de vista de um neurologista, é possivel dizer que de-
terminadas configurações de alteração da linguagem
correspondem a determinadas localizações cerebrais.
Vários estudos têm permitido elaborar classificações
de quadros clínicos que se correlacionam aceitavel-
mente com as localizações das lesões, feitas por meio
dos exames que permitem imagens do cérebro, como
a Tomografia Axial Computorizada ou a Ressonância
Nuclear Magnética. Constituem, afinal, estas localiza-
ções cerebrais as regiões do cérebro que se têm reve-
lado ser mais importantes para a génese dos diferentes
componentes que constituem a função de falar, e de
compreender o que é dito.
No nosso Laboratório usamos como elementos de
diagnóstico os resultados obtidos em quatro provas
fundamentais: a análise do discurso espontâneo (que
pode ser fluente ou não-fluente conforme o débito, va-
riabilidade do léxico e riqueza das estruturas sintáti-
cas utilizadas), a capacidade de nomear objectos em
voz alta, a capacidade de compreender palavras e fra-
ses por via auditiva e a capacidade de repetir palavras.
Consoante os resultados obtidos nas provas desenha-
das para estudar cada uma destas funções é possível
fazer um diagnóstico clínico do tipo de afasia, que tem
interesse não só para efeitos de inferir a localização da
lesão cerebral responsável (objectivo que hoje se con-
sidera secundário tendo em conta a existência dos mé-
todos de imagem), mas também para a organização de
grupos mais ou menos homogéneos destinados a in-
vestigação científica no sentido de compreender as re-
gras universais responsáveis pelos defeitos. É, ainda, Fig. 7 – Representação das lesões responsáveis pelos diversos ti-
útil classificar as afasias para orientar as técnicas de rea- pos de afasia na face externa do hemisfério esquerdo. As áreas indi-
bilitação que cada vez estão mais desenvolvidas com cadas correspondem ao máximo de sobreposições de lesões
individuais (Reproduzido de Kerterz et al, Arch Neurol 34: 590-601
o aperfeiçoamento de programas de computador que 1977).
se têm revelado auxiliares de extrema utilidade na te-
rapêutica da fala.
No Quadro I estão representados os diferentes sín- A AFASIA DE BROCA é o quadro clínico cuja des-
dromes afásicos de acordo com as alterações encon- crição é mais antiga, sendo também aquele que tem si-
tradas na avaliação. A decisão de considerar normal do mais polémico na literatura. Aceita-se hoje que
ou perturbada uma capacidade resulta, evidentemen- existam duas variantes do quadro que foi inicialmen-
te, da comparação do resultado obtido na respectiva te descrito por Broca. A primeira corresponde a uma
prova com os valores obtidos na sua aferição na po- lesão extensa que envolve não só o pé da terceira cir-
pulação sem lesões cerebrais. Interessa ainda salientar cunvolução frontal, conhecida como área de Broca,
que a nomenclatura utilizada para os diferentes síndro- mas também as regiões frontais vizinhas e a substân-
mes é a mais geralmente empregue na literatura mas cia branca sub-cortical, podendo estender-se até aos
que há autores que a não aceitam, sendo porém possí- gânglios da base. Esta é afinal a anatomia da lesão do
vel estabelecer paralelo entre as diversas classificações cérebro do doente descrito por Broca, como ficou
Interessa agora rever, de forma sumária, as ques- comprovado quando se submeteu este cérebro a To-
tões que a cada um dos quadros de afasia dizem res- mografia Axial Computorizada. Nestes casos, o discur-
peito. Como vimos acima, cada um deles relaciona-se so dos doentes fica restringido ao uso quase exclusivo
com a lesão de uma determinada região do cérebro e de palavras isoladas, a maioria das vezes nomes (subs-
podem considerar-se quase como regra já que há uma tantivos), muitas vezes ao uso de uma única palavra
frequente reprodutibilidade de indivíduo para indiví- usada com diferentes entoações em diferentes contex-
duo (ver Figura 7). Passemos, então, em resumo os tos, que pode corresponder a uma palavra existente
principais síndromes. no léxico ou ser um neologismo. A expressão das

82
acções resulta muitas vezes no uso do verbo no infini- po. Para alguns autores a designação para esta pertur-
tivo e não são quase nunca produzidas partículas de bação é a de afemia.
ligação a não ser em situação de produção de discurso Para Damásio, as estruturas lesadas na afasia de Bro-
dito automático de expressões coloquiais sobreapren- ca e na afemia são parte de uma rede neuronal envol-
didas. Por outro lado a própria articulação verbal é la- vida na concatenação tanto de fonemas em palavras
boriosa, registando-se uma clara diminuição do débito como de palavras em frases – isto é, a ordenação dos
de produções vocais. No que respeita à compreeensão componentes linguísticos no tempo e no espaço. Ge-
auditiva está em geral normal para a linguagem colo- neralizando, este autor afirma que esta é a rede neu-
quial sendo, porém, possivel pôr em evidência, atra- ronal empenhada nos aspectos relacionais da
vés de provas específicas, algumas alterações de linguagem que incluem a estrutura gramatical das fra-
compreensão de estruturas sintáticas mais complexas ses e o uso adequado dos morfemas gramaticais e dos
como é por exemplo a forma passiva. Um teste muito verbos. Os outros componentes corticais da rede es-
utilizado em todo o mundo – o “Token Test” – re- tão localizados na face externa do cortex frontal, no
vela nestes casos resultados inferiores à média dos gru- cortex parietal esquerdo e no cortex sensoriomotor
pos padrão. Nesta prova é pedido ao doente que acima do rego de Sylvius e entre as áreas de Broca e
execute uma série de operações com peças de diferen- de Wernicke, tudo isto no hemisfério dominante para
tes formas, cores e dimensões. Os afásicos de Broca a linguagem. Esta rede inclui ainda parte dos núcleos
executam com facilidade uma ordem como: “aponte cinzentos da base, em particular a cabeça do núcleo
um círculo verde”, mas têm dificuldade em cumprir Caudado e o Putamen.
uma instrução como: “toque no quadrado grande e Na nossa perspectiva, optamos por considerar que
preto com o círculo pequeno e verde”. não existe uma rede com regras de relações gerais en-
A capacidade de dar os nomes correctos aos objec- tre os diversos elementos que constituem a linguagem
tos que lhes são apresentados encontra-se também per- falada; o sistema que falta diz antes respeito à capaci-
turbada. Em geral a dificuldade reside em evocar o dade de previsão na sequência da produção de elemen-
nome do objecto, mas não é raro também que seja pro- tos gramaticais, associada a uma dificuldade de
duzido um nome errado (por vezes aproximado quer selecção do elemento correcto. Um falante normal
no que respeita à sua estrutura fonológica quer no que quando produz uma unidade de significado linguísti-
respeita ao campo semântico a que o objecto perten- co, seja ela um fonema seja ela uma palavra, abre e res-
ce). Repetir é também uma actividade laboriosa, tringe de imediato o número de hipóteses possíveis
registando-se a maioria das vezes distorções fono- para colocar na sequência. Deste número limitado de
lógicas. opções selecciona a mais provável, acompanhando
Alguns autores consideram que é possível afirmar sempre este mecanismo por outros paralelos, destina-
que o defeito fundamental da afasia de Broca é o agra- dos à verificação. Um afásico de Broca perdeu preci-
matismo, entendendo agramatismo como a perda do uso samente estas capacidades de previsão e verificação
das partículas de ligação (pronomes, preposições) perdendo-se por isso num mundo de informação em
ou a perda da flexão dos verbos. Em nossa opinião o que não consegue orientar-se. Se assim não fosse o afá-
termo agramatismo não será o mais adequado visto que sico de Broca teria mais facilidade – ou igual
não se trata exactamente da perda do uso da gramáti- dificuldade – em nomear objectos em resposta (por
ca mas sim da capacidade de aplicação de algumas das exemplo: “pinta-se uma parede com um...”) do que
suas regras. Por outro lado, são uma raridade os casos em nomeá-los por confrontação visual, e em nosso en-
em que se verificam estes defeitos de forma clara, sen- tender passa-se exactamente o inverso. Trata-se assim
do francamente mais frequente a chamada desintegra- de uma questão de capacidade de planeamento de ac-
ção fonética que respeita à produção incorrecta dos ção verbal, mais do que de selecção de regras gerais
fonemas em todas as tarefas. Compreende-se bem que de uma gramática interior.
estando a área de Broca na proximidade da área mo-
tora, onde se encontram as células que dão início à via O quadro de AFASIA DE WERNICKE resulta de
da motricidade voluntária, a programação do acto uma lesão na porção mais posterior da face externa do
motor que constitui a articulação verbal esteja per- lobo temporal do hemisfério dominante para a lingua-
turbada, sendo por isso os fonemas produzidos incor- gem. A característica mais marcante deste tipo de afa-
rectamente em quase todas as situações experi- sia diz respeito à perturbação da capacidade de
mentais. compreensão auditiva de material verbal. Para além
Esta proximidade com a área motora, justifica tam- deste defeito, os doentes têm também perturbações das
bém que estes doentes apresentem com frequência um capacidades de nomeação e de repetição. O discurso
defeito motor dos membros direitos. espontâneo é fluente e constituído a maioria das ve-
Quando a lesão é de menores dimensões e atinge zes por parafasias, o que o torna frequentemente inin-
quase na exclusividade a área de Broca não se regista teligível. A análise deste tipo de afasia permite-nos
exactamente um quadro de afasia, mas uma alteração também fazer algumas considerações teóricas sobre os
que se aproxima mais da desintegração fonémica e que possíveis mecanismos alterados pela lesão nesta região
em geral tende a recuperar com a passagem do tem- do cérebro. Para alguns autores a afasia de Wernicke

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pode subdividir-se em diferentes quadros clínicos. Na e temporal); os doentes trocam com frequência as pa-
nossa experiência consideramos que existem funda- lavras ou substituem-nas por palavras como “coisa”
mentalmente duas variantes, concordando assim com ou “aquilo”, revelando a dificuldade de encontrar a
Hécaen: uma variante predominantemente expressiva palavra exacta sem que isso signifique que desconhe-
em que o discurso dos doentes é totalmente constitui- cem o contexto não-verbal da situação, visto que são
do por palavras incompreensíveis (jargonafasia), e uma capazes, muitas vezes, de descrever por gestos aquilo
variante em que predomina o defeito de compreensão que pretendem dizer. Por outro lado, são também fre-
aproximando-se do quadro de surdez verbal que des- quentes os erros de programação a nível fonético e as
creveremos adiante. Estas duas características consti- palavras produzidas revelam erros quer na selecqão dos
tuem afinal o cerne da questão da afasia de Wernicke. fonemas quer na sua sequenciação. Quer isto dizer que
Não se aceita já a proposta do próprio Wernicke que estas estruturas estão também envolvidas no processo
propunha que na área que tem hoje o seu nome esta- de codificação a este nível como o estavam a área de
riam as memórias auditivas das palavras, mas sim que Broca e regiões vizinhas, porém o processo pode ser
esta região é parte da tal rede neuronal que se distri- outro e ser também o inverso do da marcação tempo-
bui pelo hemisfério esquerdo e que suporta os proces- ral que descrevemos para os processos de descodifi-
sos da linguagem. cação. Sendo lento o sistema e havendo integridade
Muito provavelmente o papel desempenhado por da área de Broca e regiões vizinhas – que exigem um
essa região do cérebro nesta rede tem duas facetas: uma débito de discurso normal – o sistema da área de Wer-
respeitante aos processos de descodificação e outra re- nicke informa incorrectamente os processadores dos
lacionada com os processos de codificação. No que res- actos motores que levam à articulação verbal. O doente
peita à primeira podemos admitir que nesta região produz, por isso, grande quantidade de discurso com
ocorre a transformação dos sons da linguagem, que são um débito normal mas muito alterado na sua estrutu-
recebidos no cortex temporal em ambos os lados do ra morfológica. A situação agrava-se pois não existe um
cérebro (a informação recebida no hemisfério direito mecanismo de controle eficaz já que a descodificação
é transferida para o esquerdo através do corpo calo- está ela própria muito perturbada e o doente é inca-
so) em código interno do sistema, registando-se, pos- paz de reconhecer os seus erros. Deve ainda
teriormente, o endereçamento dessa informação às acrescentar-se que esta incapacidade de reconhecer os
multiplas áreas cerebrais que a ela digam respeito; não erros pode constituir uma agravante séria para estes
se trata por isso de um processo de compreensão mas quadros clínicos porque o doente não só não reconhe-
sim de um processo de descodificação – a compreen- ce os erros como considera que os não está a fazer –
são surge quando a informação atinge a região que lhe isto é, não tem consciência do defeito – atribuindo as
diz respeito e isso pode acontecer em qualquer lugar culpas da dificuldade de comunicação ao seu interlo-
do cérebro. Há alguma evidência experimental que su- cutor. A comunicação entre doente e os outros falan-
porta a ideia de ser o tratamento do tempo de entrada da tes é impossível porque o doente não compreende o
informação um dos mecanismos perturbados neste que lhe é dito e produz um discurso quase incompreen-
tipo de afasia. Assim, a compreensão melhora quando sível. Não é raro nestes casos vir a desenvolver-se sin-
as provas são apresentadas vagarosamente, sugerindo tomatologia paranóide, em particular se houver uma
ou uma maior lentidão dos processos de descodifica- personalidade prévia predisposta para este tipo de
ção que é superada se a informação entrar lentamen- reacção. Há referências na literatura a casos de agres-
te, ou um erro na marcação temporal da entrada da são física e mesmo a acções criminosas.
informação provocando erros de sequenciação ou, ain- Embora se volte adiante a este assunto vale a pena
da, uma perturbação de memórias operativas percep- mencionar desde já a dificuldade que representa mui-
tivas que permitem manter a informação em “stand tas vezes este fenómeno de não reconhecimento do de-
by” por pequeníssimas fracções de tempo, dificultan- feito e designado de anosognosia. O que se passa é que
do depois o relacionamento de todos os dados entra- em muitas situações de lesão cerebral o doente perde
dos. Este relacionamento permite a identificação de a capacidade de avaliar o seu próprio deficit
unidades com significado. considerando-o assim como não existente, remeten-
No que respeita ao papel nos processos de codifi- do para o mundo exterior a justificação do seu insu-
cação podemos entendê-lo a dois níveis: o primeiro cesso na realização das tarefas.
diz respeito ao processo inverso ao do endereçamen-
to que descrevemos acima, e regista-se, por isso, uma Sobre a AFASIA GLOBAL, sendo embora a forma
dificuldade de evocação que é mais marcada para no- mais grave de perturbação da linguagem, poucas con-
mes e acções do que para partículas de ligação (pro- siderações se podem fazer. Resulta de uma extensa le-
nomes e preposições), sugerindo que o acesso a esta são do hemisfério esquerdo envolvendo todas as
informação depende de outros mecanismos provavel- regiões que compoem a rede neuronal que suporta e
mente mais relacionados com regiões anteriores do cé- trata a informação verbal. Desta forma, os doentes pra-
rebro enquanto os nomes e as acções se relacionam ticamente não produzem discurso e têm uma pertur-
mais com o cortex dito sensorial e que se estende pe- bação grave da compreensão auditiva. Na fase mais
las regiões posteriores do cérebro (parietal, occipital aguda da instalação da lesão mesmo a comunicação

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não-verbal pode estar afectada, contudo esta vem a me- A AFASIA DE CONDUÇÁO foi matéria de polé-
lhorar progressivamente, sendo depois a forma de elei- mica durante muitos anos mas considera-se hoje uma
ção para a comunicação. É interessante notar como os realidade clínica. Foi descrita inicialmente pela escola
familiares destes doentes, ao fim de alguns meses, são alemã do final do século passado como o resultado da
capazes de compreender tanto daquilo que eles que- interrupção dos feixes de ligação entre o centro de me-
rem comunicar, servindo esta informação para a cria- mórias auditivas e o centro de memórias motoras (res-
ção de programas de reabilitação baseados prima- pectivamente as áreas de Wernicke e de Broca). Tinha
riamente na estimulação de capacidades não-verbais. como resultado a impossibilidade de repetir palavras
Pode comentar-se, a propósito deste facto, que a lin- e frases e também de nomear objectos, sendo para além
guagem é uma parcela da capacidade de comunicar e disso a compreensão auditiva normal e o discurso es-
que existem múltiplos sistemas alternativos que mui- pontâneo também normal.
tas vezes utilizamos até de forma não consciente. A lesão responsável por este tipo de afasia localiza-
-se na proximidade da área de Wernicke, no cortex da
A AFASIA ANÓMICA é o quadro afásico que pior circunvolução supra-marginal, com ou sem extensão
se relaciona com a localização da lesão cerebral. Re- para a substância branca subjacente à Insula, ou então
mais próximo das áreas auditivas primárias.
sulta evidentemente de uma lesão no hemisfério do-
A interpretação que damos para este tipo de afasia
minante para a linguagem em localizações diversas. O
corresponde à perturbação do mecanismo de codifi-
defeito principal é a dificuldade de encontrar os no-
cação fonológica que descrevemos a propósito da afa-
mes, estando poupadas as restantes capacidades. No
sia de Wernicke. A diferença reside no facto de existir
contexto do modelo explicativo das perturbações afá- compreensão da linguagem produzida e por isso o
sicas que temos estado a seguir constitui a perturba- doente é mais crítico em relação ao seu defeito e tem
ção dos mecanismos de evocação (o inverso do tendência a corrigi-lo.
endereçamento) sendo impossível traduzir para pala-
vras, sobretudo, os nomes dos objectos. A nível não As AFASIAS TRANSCORTICAIS caracterizam-se
verbal não há qualquer problema e os doentes têm ten- pela boa capacidade de repetição de linguagem. Po-
dência a substituir a palavra que não conseguem dizer, dem ser acompanhadas de defeito de compreensão au-
ou por palavras como “coisa” (tal como alguns afási- ditiva e designar-se por isso de SENSORIAIS, podem
cos de Wernicke), ou descrevendo a função. Por exem- apresentar um discurso não fluente e serem por isso
plo, querendo referir-se a caneta dirão “aquilo que chamadas de MOTORAS ou podem ter ambos os de-
serve para escrever”. No contexto da rede neuronal feitos e serem conhecidas por MISTAS.
que sustenta os processos verbais este mecanismo de Também estes quadros estavam considerados nos
evocação é talvez o mais complexo e mais distribuído modelos da escola alemã do final do século passado,
pelo cortex. É bem provável que para conseguir atin- mas a sua descrição era mais teórica do que baseada
gir um nivel de pré-codificação seja necessário reunir em factos de observação. O trabalho de Geschwind e co-
a maioria dos atributos referentes à palavra a produzir laboradores publicado em l966 com o título “Iso-
assim; a matriz de pré-codificação pode incluir infor- lation of speech area” veio trazer a informação empí-
mação referente ao uso, referente à forma, referente rica que faltava. Tratava-se da descrição de um caso
às qualidades físicas, referente a memórias de objec- clínico que, na sequência de uma intoxicação por mo-
tos concretos pertencentes ao próprio e tantos outros noxido de carbono, desenvolveu lesões cerebrais com
atributos possíveis que se relacionem com a palavra uma distribuição muito particular: distribuiam-se à vol-
a produzir. Não estando esta matriz completa haverá ta das áreas de linguagem, no hemisfério esquerdo. O
dificuldade em endereçar um resultado final para a área resultado, do ponto de vista da perturbação da lingua-
de codificação verbal. Parte da matriz pode contudo gem, era a ausência de discurso espontâneo, a ausên-
cia de compreensão auditiva, a impossibilidade de
constituir ela própria uma outra capaz de informar o
nomear objectos e uma excelente capacidade de repe-
codificador, como acontece com a descrição do uso,
tir palavras e frases. A interpretação dada foi a de ha-
pois que a informação acoplada a este conceito é mais
ver um isolamento completo das estruturas
restrita. Da mesma forma, é mais fácil para estes doen-
relacionadas com o processamento da linguagem do
tes produzirem palavras que são elas próprias atribu- resto do cérebro. Desta forma, não havia codificação
tos, como por exemplo o nome das cores, do que possível a partir da actividade do pensamento nem
palavras que permitem a evocação de múltiplos compreensão auditiva da linguagem por ser impossí-
atributos. vel o endereçamento. Porém quando o sistema era in-
Entendendo desta forma a afasia anómica, fácil se formado a operação de repetição sem compreensão era
torna compreender a razão porque pode surgir como possível pois estavam íntegros os mecanismos respon-
resultado de lesões em diversos pontos. O mecanismo sáveis por esta função.
de recolha dos atributos envolve seguramente uma ex- Casos como este são uma raridade, mas a presença
tensa região do cortex cerebral podendo ser perturba- de lesões na periferia das áreas de linguagem é frequen-
do pela interrupção em qualquer nível. te quer no que respeita às áreas topograficamente

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anteriores quer no que respeita às áreas posteriores, Para além destes quadros, foram também descritas
não sendo por isso raros os casos de afasia transcorti- alterações relacionadas com lesões da porção anterior
cal motora e transcortical sensorial. do cortex Temporal. Os achados referidos nestes
Deve ainda fazer-se menção ao caso particular do casos têm a ver com a capacidade de evocar nomes
defeito de linguagem resultante da lesão da área suple- próprios de pessoas e lugares estando poupada a
mentar motora. Esta área, como dissemos acima, está capacidade de evocar material relacionado com outro
localizada na face interna do lobo frontal junto ao re- tipo de informação. Parece, assim, haver uma especi-
go de Rolando e revela um aumento de actividade me- ficidade de determinadas regiões do lobo Temporal
tabólica sempre que se produz discurso. A sua lesão para arquivo deste tipo de informação da mesma for-
produz, na fase aguda de instalação, um mutismo que ma que acontece para as cores no lobo Occipital
rapidamente evolui para um quadro idêntico ao da afa- (como veremos adiante).
sia transcortical motora, havendo por vezes um fenó- Para além dos estudos baseados em doentes com
meno, que pode também ocorrer com lesões frontais lesões cerebrais existe ainda evidência interessante
noutras localizações, e que se designa por ecolália. Nes- oriunda de estudos de estimulação eléctrica cortical.
tes casos os doentes repetem compulsivamente o dis- Em casos particulares de cirurgia para tratamento da
curso que ouvem estejam, ou não, em situação epilepsia é possivel estimular o cortex cerebral e ava-
coloquial. Este fenómeno pode ser interpretado no liar o efeito desta estimulação. Os trabalhos de Pen-
contexto de ausência de programas próprios que é fre- field foram pioneiros neste campo de estudos tendo
quente em certas lesões frontais. O doente assume e revelado o limite das áreas que constituem a rede neu-
imita os programas que vêm do exterior. ronal envolvida na linguagem. Estudos mais recentes
vieram trazer informações interessantes relacionadas
O quadro de SURDEZ VERBAL não constitui exac- com o uso de duas línguas. Na realidade é possivel que
tamente um quadro afásico. Trata-se de uma situação no caso de bilingues as redes neuronais relativas a ca-
em que a lesão cerebral está estrategicamente locali- da língua só parcialmente se sobreponham, sendo no
zada de tal forma que a informação auditiva não tem
entanto a informação, disponível até ao momento, in-
possibilidade de chegar à área de Wernicke. Desta for-
suficiente para que se possa elaborar uma teoria coe-
ma, o doente comporta-se como se estivesse a ouvir
rente para esta situação. A evidência que temos da
uma língua estrangeira da qual nada compreende. Os
afasia em indivíduos bilingues é também controversa
mecanismos de codificação estão íntegros pelo que a
já que as variações inter-individuais são muito gran-
sua linguagem oral é normal e o doente relata com fa-
des e cada caso parece representar uma situação par-
cilidade as suas dificuldades. Todos os outros tipos de
ticular da qual não é possível inferir a regra.
informação auditiva são tratados e compreendidos.
Devemos ainda fazer menção às outras linguagens
Para além destes quadros que descrevemos e que
se podem considerar as situações mais clássicas, tem não orais. Os estudos nesta área são raros, sendo de
havido, nos últimos anos, descrições de entidades que destacar os trabalhos de Bellugi que demonstrou ser
não se integram nesta classificação mas que são impor- possível haver afasias nos surdos que usam linguagem
tantes para a compreensão global dos mecanismos ce- gestual, por lesões do hemisfério esquerdo. Estes doen-
rebrais responsáveis pelo processamento da linguagem. tes perdem a capacidade de comunicar por gestos tal
Assim, em 1982, Naeser e colaboradores e Damásio e como os afásicos a perdem através da linguagem oral.
colaboradores publicaram resultados do estudo de Foi igualmente demonstrado que nestes casos de sur-
doentes com pequenas lesões sub-corticais e com de- dez as lesões do hemisfério direito não alteravam a ca-
feitos de linguagem. Ficou assim demonstrado que não pacidade de utilização da linguagem gestual sendo
eram exclusivamente as estruturas do cortex cerebral possível, por isso, concluir que as redes neuronais usa-
as responsáveis por processos aparentemente tão ela- das na linguagem gestual dos surdos são possivelmen-
borados como o tratamento da linguagem. Conhecia- te as mesmas que sustentam a linguagem falada.
-se já o papel desempenhado pelo Tálamo Óptico Até agora temos estado sempre a fazer referência
através da análise de casos com lesão desta estrutura a funções do hemisfério esquerdo como hemisfério do-
que revelavam fundamentalmente uma perturbação da minante para a linguagem, todavia alguns estudos têm
nomeação (por provável destruição do sistema de ac- demonstrado que mesmo nestes casos o hemisfério di-
tivação Tálamo-cortical e consequente alteração dos reito pode também desempenhar um papel avaliável.
mecanismos que descrevemos acima precedendo a co- Assim, doentes com lesões hemisféricas direitas reve-
dificaçáo da linguagem) e uma diminuição do volume laram ter maior dificuldade no tratamento dos aspec-
da voz. Os outros casos revelavam porém sintomato- tos semânticos da linguagem em comparação com
logia mais complexa e mais próxima da das descrições indivíduos de controle sem lesão cerebral. Não se tra-
dos síndromes clássicos. É possivel encontrar altera- tará na realidade de defeitos de linguagem mas sim de
ções da compreensão auditiva que resultam da destrui- aspectos que com ela estão relacionados. O hemisfé-
ção das conexões entre a cabeça do núcleo Caudado rio direito parece desempenhar um papel importante
e o cortex Temporal e defeitos de fluência que têm a no arquivo da informação por características se-
ver com as funções do Putamen. mânticas.

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Existe, ainda, um campo de pesquisa que carece de iniciam os processos de reconhecimento da informa-
muita investigação e que respeita aos problemas de de- ção. Tanto quanto é legítimo extrapolar da investiga-
senvolvimento da linguagem e das lesões adquiridas ção animal, pode dizer-se que este cortex se encontra
em fase de desenvolvimento. No que respeita aos pro- organizado de tal forma que é possivel identificar sub-
blemas de desenvolvimento, pode dizer-se que exis- -regiões empenhadas em tarefas tão específicas como
tem poucos dados que permitam boas interpretações o reconhecimento de uma côr como o azul ou o ama-
neurofisiológicas (ver mais adiante o que é dito sobre relo ou, ainda, com formas específicas como círculos
dislexia de desenvolvimento), já no que respeita às le- ou linhas oblíquas.
sões adquiridas em fase de desenvolvimento o mesmo A partir desta fase de reconhecimento a informa-
não acontece. Nos últimos anos tem-se reunido infor- ção terá que ser tratada a um nível mais específico e
mação que tem permitido começar a compreender me- quando de linguagem escrita se trata tudo o que é per-
lhor a forma como os processos da aquisição decorrem
em relação com a maturação do cérebro. Pode dizer-
-se em linhas gerais que a topografia das lesões cere-
brais e os defeitos de linguagem delas resultantes
obedece às mesmas regras daquilo que é encontrado
em indivíduos adultos. As diferenças residem no fac-
to de haver uma maior plasticidade do sistema e, por
isso, uma melhor recuperação dos defeitos com o pas-
sar do tempo.

Leitura e escrita

É aceitável dizer-se que parte da rede neuronal li-


gada aos processos da linguagem oral está também im-
plicada no processamento da linguagem escrita. Desta
forma sempre que existe uma afasia, regista-se também
uma perturbação do domínio da linguagem escrita.
Existem, porém, mecanismos que são específicos da
leitura e da escrita e que merecem análise particular.
Antes de descrever as perturbações encontradas
como resultado de lesões cerebrais interessa conhecer
o que se passa no leitor normal. Como está documen-
tado na Figura 8, quando um indivíduo olha para um
texto escrito e faz uma leitura sem vocalização, são as
regiões posteriores do cérebro que revelam maior
actividade. A informação visual percorre a via óptica
desde a retina até a o cortex occipital (cortex Calca-
rino – localizado na face interna do lobo Occipital) de
tal forma que o que se encontra do lado direito do pon-
to de fixação visual é recebido no hemisfério esquer-
do enquanto o que se encontra do lado esquerdo será
percebido com o hemisfério direito. Para um leitor trei-
nado, bastarão algumas sacadas visuais para fazer a lei-
tura de uma linha de texto. Entende-se por sacada
visual, um movimento dos olhos desde um ponto de
fixação até ao seguinte. A leitura é feita em cada para-
gem dos movimentos dos olhos fixando o leitor tanto
o que está para a direita como o que está para a es-
querda do ponto em que fez a paragem. O que será o
mesmo que dizer que ambos os hemisférios cerebrais
participam nesta actividade.
No cortex Occipital identificam-se diferentes re-
giões de interesse para este processo. O ponto final da
via óptica constitui o cortex primário visual e recebe
informação exclusivamente a partir das vias que a con-
duziram desde a retina. Desta região partem ligações
para o cortex de associação, ou secundário, onde se Fig. 8 – Representação esquemática da via óptica (ver texto).

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cebido no hemisfério direito deverá ser transferido quer controle visual – embora durante a actividade de
para o esquerdo através da porção mais posterior do escrita se utilize a visão como sistema de correcção.
Corpo Caloso. A área que de seguida se identifica co- Todavia, a informação visual enquanto memória inter-
mo relevante para o processo da leitura é a chamada na deve ter um papel de relevo na actividade de es-
Prega Curva. Trata-se de uma região de confluência dos crita, mas esse processo ocorre longe das áreas occi-
três cortexes sensoriais (Parietal, Temporal e Occipi- pitais primárias e de associação. Acompanhando estas
tal) que permite associações ditas multimodais (res- alterações por lesão da prega curva é comum
peitantes às diferentes modalidades sensoriais) e que encontrar-se alterações afásicas do tipo da afasia anó-
é exclusiva da espécie humana. A partir daqui a infor- mica e, ainda, uma perturbação do cálculo numérico,
mação parece passar a partilhar com a linguagem os a desorientação entre os conceitos de “direito” e “es-
mesmos mecanismos. querdo” e alterações do reconhecimento de certas par-
Os mecanismos relacionados com a escrita parti- tes do corpo, mais geralmente dos dedos da mão. A
lham também com a linguagem oral os mesmos ope- este conjunto de sinais para os quais não é possível en-
radores até à fase de codificação. A partir daí há que contrar uma relação lógica para além do facto de ha-
transformar a informação em unidades de processa- ver uma coincidência anatómica das áreas cerebrais
mento motor do gesto que conduz ao desenho das le- que os sustentam é comum designar de síndrome de
tras. Do nosso ponto de vista, o processo da selecção Gerstman, em memória do autor que pela primeira vez
de unidades de significação para a escrita é bem diverso o descreveu.
daquele que leva à articulação verbal, já que implica A alexia pura é uma das entidades mais bem conhe-
o recurso a um código que nem sempre é de relação cida e discutida na literatura. Na Figura 9 está repre-
entre fonema e grafema. Será assim necessário admi- sentado o esquema desta afecção conforme o
tir a existência de operadores que transformam a lin- descreveu Déjérine. A lesão destrói o lobo occipital es-
guagem oral na escrita. É discutível se o processo segue querdo impedindo assim que seja aí recebido qualquer
essa sequência visto que, por exemplo, os surdos que tipo de informação visual (embora em alguns casos a
nunca tiveram acesso ao código oral conseguem do- destruição não seja completa e seja possível o trata-
minar a escrita sem dificuldades de maior. É possível, mento de informação de outros tipos que não a da lei-
assim, que haja uma relativa independência dos pro- tura – como vimos existe uma especificidade muito
cessos de codificação e não obrigatoriamente uma se- grande das diversas regiões do lobo occipital para
quência de eventos. Por outro lado, o tipo de produto determinados tipos de informação). A mesma lesão
final desta operação de codificação pode depois ser uti- estende-se para trás destruindo os feixes que transpor-
lizado pelos programadores dos gestos finos que per-
mitem fazer quer o desenho das letras sequencialmente
nas linhas de um papel, quer o carregar no teclado de
uma máquina de escrever, o que pressupõe o domí-
nio das relações no espaço.
Muita da informação que permitiu as considerações
que temos estado a fazer resulta, como nos outros ca-
sos, da análise do resultado das lesões cerebrais. Na his-
tória das perturbações da leitura resultantes de lesão
cerebral é forçoso mencionar Déjerine, que pela pri-
meira vez publicou trabalho respeitante a este assun-
to. Este autor estudou fundamentalmente dois
síndromes: um resultante da lesão da prega curva e ou-
tro resultante da lesão do lobo Occipital esquerdo . De-
signou o primeiro por alexia com agrafia e o segundo
por alexia pura.
Se tivermos em atenção o que foi dito a propósito
da estrutura do cortex da prega curva não será dificil
compreender a razão da perturbação da leitura quan-
do lesada. Corresponde ao ponto onde provavelmen-
te se encontram e se interligam as redes neuronais que
suportam os processos da linguagem oral e da leitura,
sendo também fulcral para os processos de escrita vis-
to que aí poderá ocorrer a integração da informação
espacial e da formação de conceitos relacionados com
memórias visuais de letras. Deve dizer-se que a infor-
mação visual é importante para as actividades de es-
crita, sobretudo durante a aprendizagem, podendo Fig. 9 – Diagrama de Déjerine destinado a explicar as perturbações
depois ocorrer todo o processo de escrita sem qual- da leitura (ver texto).

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tam informação visual através do Corpo Caloso, im-
pedindo que a informação chegada ao hemisfério di-
reito seja transferida para o esquerdo a fim de dar
continuidade ao processo de descodificação que só aí
pode ocorrer. Por esta razão o doente não é capaz de
ler. Porém, como a prega curva não está lesada, o pro-
cesso de escrita decorre normalmente, confrontando-
-se o doente, com perplexidade, com a impossibilidade
de ler aquilo que acabou de escrever.
Existem três variantes deste síndrome, a primeira
resulta de uma lesão sob a prega curva que disconecta
todo o sistema de tratamento visual da informação do
sistema de tratamento da linguagem, as outras duas
correspondem a alterações da leitura confinadas a um
ou outro lado do campo visual. Quando isso acontece
no hemicampo esquerdo, deve-se a uma interrupção
Fig. 10 – Esquema proposto pela Neuropsicologia Cognitiva para
do Corpo Caloso, o que impede a passagem da infor- interpretar as diferentes etapas do tratamento da informação durante
mação do hemisfério direito para o esquerdo. Quan- a leitura.
do acontece no hemicampo direito, resulta de uma
lesão pequena do lobo Occipital estrategicamente co-
locada de forma a impedir a passagem da informação no modelo e as regiões do cérebro com elas relacio-
do cortex Occipital esquerdo para a prega curva, per- nadas. Trata-se de um interessante modelo de traba-
mitindo, porém, a passagem da informação que vem lho que terá que ir sendo enriquecido com observações
do hemisfério direito. de casos bem estudados quer do ponto de vista da lei-
Para além destes tipos de alexia que se podem con- tura quer do ponto de vista da localização das áreas
siderar como clássicos deve ainda fazer-se menção ao cerebrais lesadas.
trabalho de Benson que chamou a atenção de novo para Um dos capítulos que tem também registado pro-
o que já tinha sido descrito na literatura francesa gressos interessantes é o da dislexia de desenvolvimen-
do início do século sobre as alterações de leitura por to. Esta situação é talvez mais frequente em países em
lesão frontal. Nestes casos os doentes são capazes de que a representação gráfica da língua falada tem me-
ler palavras isoladas mas têm dificuldades na leitura nos relação com a sua estrutura fonológica, sendo por
de textos e também na leitura de letras. É difícil en- isso necessário o maior desenvolvimento das capaci-
contrar uma interpretação satisfatória para este acha- dades de integração intermodal relacionadas com a lin-
do. Os casos são, também eles, raros e é possível que guagem. Embora a designação seja relacionada com a
estes doentes façam a leitura através de outros meca- dificuldade de aprender a ler na idade escolar, as difi-
nismos que permitem o reconhecimento das palavras culdades tornam-se mais patentes na capacidade de es-
globalmente, sendo incapazes de fazer uma leitura crita. Porém, a leitura é, para as crianças que sofrem
letra-a-letra. Esta última interpretação abre-nos a por- deste problema, sempre laboriosa e desconfortável, ra-
ta para fazer algumas considerações sobre os modelos zão porque o rendimento escolar acaba sempre por ser
de leitura propostos pela moderna Neuropsicologia prejudicado. Esta afirmação é tanto mais verdadeira
Cognitiva. quanto menor fôr a capacidade do sistema escolar de
Foram na realidade os estudos das capacidades de identificar, e de se adaptar a estas dificuldades.
leitura que inauguraram esta nova forma de olhar Visto que o nosso interesse se foca nas relações com
para as relações do cérebro com o comportamento. o cérebro não avançaremos muito mais no que respei-
O relato de casos com uma perturbação que os auto- ta às questões levantadas pela dislexia de desenvolvi-
res designaram de alexia de profundidade trouxe a mento. Interessa só dizer que em raros casos em que
este capítulo um interesse renovado. Alexia de profun- foi possível fazer o estudo anatómico do cérebro de
didade corresponde a uma perturbação da leitura com ca- indivíduos disléxicos, se encontraram alterações da
racterísticas muito especiais: o doente confrontado morfologia do cortex cerebral do hemisfério esquer-
com uma palavra para ler comete o erro de dizer ou- do exactamente na região de confluência occipito-
tra palavra mas dentro do mesmo campo semântico, -temporal, sugerindo a existência de perturbações nas
por exemplo perante a palavra “garfo” lê “colher” ou operações de integração visuo-auditiva que são cruciais
perante a palavra “gato” lê “cão”. Significa isto que para o domínio da linguagem escrita. Por outro lado,
a descodificação foi bem feita até atingir o campo se- levantou-se a hipótese de serem estas alterações rela-
mântico onde a palavra se insere. Só que aí se perde, cionadas com problemas embriológicos, nomeadamen-
cometendo o erro. Na figura 10 representa-se o esque- te os que dizem respeito à migração das células para
ma proposto para estes mecanismos. Não nos detere- o cortex. Sabe-se que esta migração é mais lenta e mais
mos muito na sua análise visto ser ainda difícil tardia no hemisfério esquerdo e que determinados fac-
estabelecer uma relação entre as operações previstas tores hormonais, como os níveis de testosterona (hor-

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mona sexual masculina), podem ainda atrasar mais es- Podemos começar por afirmar que as redes neuro-
te processo. Este dado pode contribuir para a com- nais responsáveis por estes mecanismos são mais difí-
preensão do facto de ser mais frequente este, e outros ceis de reconhecer e de localizar. Do ponto de vista
problemas do desenvolvimento cognitivo, nas crian- teórico podemos dizer que a causa para esta dificulda-
ças do sexo masculino. de reside no facto de ser mais difícil estudar estas fun-
O síndrome de hiperlexia que corresponde à pre- ções. É mais difícil estudar estas funções precisamente
cocidade e espontaneidade de aprendizagem da lei- por serem funções fundamentalmente não verbais e
tura é uma raridade, mas está suficientemente docu- não dispormos nós de utensílios de descrição suficien-
mentado para que a ele se faça menção. Crianças de temente eficazes nesta área. Isto é, quando queremos
idade muito jovem (2 ou 3 anos) começam esponta- descrever um fenómeno e discuti-lo recorremos natu-
neamente, sem que se lhes tivesse ensinado nenhum ralmente à linguagem; se as regras que explicam o fe-
rudimento de leitura, a ler as palavras que encontram nómeno forem de natureza não verbal o código
escritas por todo o lado, mesmo sem compreensão do utilizado não é o mais eficiente. É bem provável que
seu significado. Não é, ainda, possível adiantar qual- a pintura ou a escultura sejam mais eficazes mas não
quer interpretação neurofisiológica para este quadro são formas habituais de expressão científica. São-no,
que se integra no vasto campo dos problemas de pre- porém, de expressão afectiva, o que se justifica, por
cocidade para diversas aptidões que representam, tam- ser também o hemisfério direito mais importante no
bém eles, uma questão grave de integração escolar. Não processamento da informação de carácter afectivo: a
podemos deixar todavia de especular que estas situa- criação artística será, assim, em termos biológicos, o
ções deverão corresponder ao desenvolvimento anor- explorar, com a imaginação, as boas relações neurofi-
mal e precoce de certas estruturas cerebrais siológicas entre os afectos e a manipulação visuo-
responsáveis pela realização das respectivas tarefas. -perceptiva.
Tanto quanto é possível inferir da investigação animal, Atentos a estas dificuldades voltemos à descrição
uma das causas para o desenvolvimento desmesurado daquilo que se sabe sobre estas funções. Consideremos
de certas áreas cerebrais é a lesão de outras, em fase em primeiro lugar um sinal que é talvez o mais frequen-
precoce do desenvolvimento embrionário. Estes dados te e característico das lesões do hemisfério direito: a
podem ajudar a compreender também o facto das incapacidade de lidar com a informação relativa ao es-
crianças precoces em determinados aspectos revelarem paço que fica do lado esquerdo do doente ( em inglês
problemas noutras capacidades. usa-se a designação de “neglect” para a qual não exis-
A propósito deste assunto, interessa salientar que te uma boa tradução). Este sinal pode registar-se em
se existe um tempo próprio para a aprendizegem de diferentes situações e é reprodutível na experimenta-
certas actividades, este deve-se à criação de condições ção animal. Na Figura 11 está representado o esque-
internas – maturação celular, formação de redes neu- ma proposto por Heilman e Valenstein para a rede
ronais – indispensáveis para dar suporte ao tratamen- neuronal envolvida na sua génese. Vale a pena dar
to da informação, necessário para o desempenho alguns exemplos desta manifestação em diferentes con-
dessas mesmas actividades. textos. Na sua vertente de exploração visual do espa-
ço o doente, quando solicitado a fazê-lo, descreverá
numa sala todo o mobiliário que se encontra do seu
O tratamento da informação não verbal lado direito não fazendo qualquer pesquisa no que res-
peita ao seu lado esquerdo; se fôr mudada a sua posi-
Descrevemos, até agora, os aspectos mais relevan- ção para o lado oposto da sala passará a descrever o
tes do que são as funções do hemisfério esquerdo quan- mobiliário que tinha omitido esquecendo desta vez
do este é o dominante para linguagem, ou seja, na aquele que tinha já mencionado quando se encontra-
situação mais frequente. Interessa agora falar das fun- va do outro lado. Na vertente de exploração motora
ções que dependem mais de estruturas hemisféricas di- encontram-se comportamentos idênticos. Se pedirmos
reitas e começaremos por falar neste capítulo das ao doente que recolha todos os objectos que estejam
funções ditas visuo-perceptivas. Entende-se por fun- em cima de uma mesa ela fará a recolha daqueles que
ções visuo-perceptivas aquelas que têm a ver com a estiverem do seu lado direito. Quando não existe de-
percepção visual e o tratamento desta informação em feito motor resultante da lesão cerebral o doente tem
termos não verbais. É possivel que não seja esta a me- tendência a deixar a mão esquerda parada e a usar só
lhor designação mas está de certo modo aceite na lite- a mão direita. Por vezes existe uma paralisia dos mem-
ratura internacional, razão porque a utilizamos. Os bros esquerdos porque a lesão cerebral se estendeu às
mecanismos de que estamos a tratar implicam o trata- vias da motricidade. Nestes casos o doente nega a exis-
mento da informação recebida por via visual, de tal tência do defeito motor, o que representa muitas ve-
modo que possa ser utilizada em diferentes contextos zes um problema grave, pois o doente pretende andar
como o reconhecimento de estruturas gráficas com- sem ter força no membro inferior esquerdo e cai sem
plexas, a manipulação de objectos no espaço, a orien- compreender a causa da queda, pois não admite o de-
tação topográfica e até a fase de pré-codificação verbal feito (falámos já deste problema a propósito das afa-
que ocorrerá do outro lado do cérebro. sias). O comportamento de resposta aos estímulos

90
Fig. 11 – Esquema proposto por Heilman para interpretar a inatenção para o hemi-espaço (Reproduzido de Arch Neurol 38: 501-506, 1981).
1 Activação tónica; 2 Transmissão sensorial; 3 Projecção no cortex de associação; 4 Projecções no núcleo reticular do tálamo (NR); 5 Conver-
gência sensorial no cortex polimodal; 6 Conexões com o cortex supramodal (lóbulo parietal inferior) e com o sistema límbico; 7 Activação
cortical através da formação reticular mesencefálica (MRF) do NR..

auditivos é também reflexo deste defeito. Assim, se o


doente fôr chamado por um observador colocado do
seu lado esquerdo ele fará uma rotação completa do
corpo no sentido horário até encontrar quem o cha-
ma ao invés de rodar a cabeça para esquerda. A exe-
cução de tarefas gráficas põe bem em evidência este
defeito como está demonstrado na Figura 12. Final-
mente, a própria pesquisa do espaço na memória está
também perturbada: se pedirmos a um doente com esta
perturbação que se imagine de costas para o rio Tejo
em frente do Mosteiro dos Jerónimos e que descreva
aquilo que se pode ver desta posição ele omitirá a des-
crição do Centro Cultural de Belém.
As alterações que descrevemos constituem o acha-
do mais frequente, porém, uma pesquisa mais cuida-
da permite compreender ainda que o hemisfério
cerebral direito é também responsável por outras fun-
ções relacionadas com o tratamento da informação es-
Fig. 12 – Exemplo de um caso que revela inatenção para o hemi-
pacial e com a forma como o indivíduo se orienta a -espaço esquerdo. O doente ao copiar o modelo representado em
si próprio nesse espaço ou nele manipula os objectos. cima esquece a reprodução da sua metade esquerda.
Assim, nas situações em que o hemisfério direito se en-
contra lesado, os doentes são muitas vezes incapazes uma figura complexa que se lhes apresente. Neste úl-
de fazer construções com cubos copiando um mode- timo caso, o doente pode ser capaz de reconhecer ele-
lo, são incapazes de se orientar na sua casa ou na rua, mentos que integram a figura mas não reconhecer o
ou podem ser incapazes de fazer uma análise global de todo.

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Pode, assim, dizer-se que o tratamento mais elabo- sempre a mesma região do cortex cerebral.
rado da informação adquirida através da visão e de ou- Compreende-se, desta forma, como o cérebro recolhe
tras formas de entrada sensorial é de natureza a informação correspondente à localização relativa dos
predominantemente não verbal e processa-se por isso objectos no espaço. Porém, não é só este tipo de in-
por meio de redes neuronais distintas daquelas que ser- formação que se recolhe por esta via, também a infor-
vem os processos da linguagem. Essas redes têm sede mação correspondente à visão cromática. Os
fundamentalmente no hemisfério direito do cérebro mecanismos neurofisiológicos que dependem do cor-
e são talvez mais interdependentes e interconectadas, tex visual primário, tratam a informação de tal forma
de tal forma que não tem sido possível destrinçar as que seja possível dizer ao resto do cérebro qualquer
áreas envolvidas nos diferentes processamentos com coisa como: na coordenada X encontra-se o compri-
o mesmo rigor que foi possível atingir no que respeita mento de onda Y. Interessa, ainda, ter presente que
a outros processos como a linguagem ou a própria per- tudo o que se encontra à direita do ponto de fixação
cepção visual. se projecta no cortex visual do lado esquerdo e vice-
-versa (ver Figura 8). A ligação que permite a análise
de conjunto é feita através do corpo caloso. É neces-
A Percepção Visual e as suas alterações sário, de seguida, computar esta informação para lhe
atribuir significado.
O cortex cerebral envolvido no processamento da As células que compõem o cortex cerebral não
informação visual tem sido talvez aquele mais estuda- constituem um simples manto estendido à superficie,
do por ser acessível à experimentação animal. Na rea- elas dispõem-se em camadas que se encontram inter-
lidade é possível admitir que numa fase pré-cognitiva conectadas. O tratamento da informação resulta, as-
do tratamento da informação visual, exista nos pro- sim, das ligações dessas células umas com as outras no
cessos biológicos de simples entrada de estímulos uma sentido vertical e com as ligações que elas estabelecem
certa analogia entre o homem e as espécies animais que com outras células localizadas em pontos mais ou me-
dele mais se aproximam. Evidentemente que o proces- nos distantes. Essas ligações são feitas nos dois senti-
so de informação não é passivo e que o homem dis- dos, isto é, transportam informação para fora ou para
põe de sistemas mais elaborados de pesquisa activa da dentro do sistema. É sabido que o cortex visual
informação relevante para o seu pensamento que são, primário só tem conexões com o cortex vizinho cha-
decerto, diferentes daqueles usados pelas outras espé- mado de associação ou visual secundário para ele trans-
cies. Todavia, muito se aprendeu com a investigação portando, e dele recebendo, informação.
animal neste domínio. Os trabalhos pioneiros de Hu- As funções do cortex visual secundário são as de
bel e Wiesel sobre a percepção visual do gato e que tratar a informação de tal forma que seja utilizável pe-
valeram a estes autores o Prémio Nobel, permitiram los outros sistemas aos quais envia o resultado das suas
compreender como era conduzida a informação visual operações. Como foi dito acima, é possível identifi-
desde a retina até ao cortex visual numa cascata de tra- car nesta região áreas precisas onde são feitas opera-
tamento de informação sequencial. Desde então, muito ções relacionadas com diversos tipos de informação.
se progrediu e há hoje um enorme conjunto de conhe- No macaco é possível identificar grupos de células que
cimentos que tentaremos resumir. entram em actividade quando o estímulo apresentado
O cortex visual localiza-se na face interna dos he- é azul, outras que respondem ao vermelho e outras ain-
misférios cerebrais na sua porção mais posterior – o lo- da que respondem ao amarelo. Cada um destes gru-
bo occipital. Estende-se nas margens de um acidente pos só responde ao estímulo que lhe é específico, não
anatómico designado rego calcarino horizontalmente revelando actividade quando não se trata da “sua” cor.
ao longo da face interna do lobo occipital. Esta região O equivalente no homem é o que se obtém na sequên-
corresponde ao chamado cortex primário onde chega cia de uma lesão localizada numa área específica do
a informação proveniente da via óptica, que conduz cortex visual de associação. Estes doentes deixam de
a informação proveniente dos receptores localizados ser capazes de perceber a cor e passam a referir as ima-
na retina ocular. Importa dizer que a cada ponto esti- gens como se fossem a preto e branco. Isto pode acon-
mulado na retina corresponde um ponto no cortex vi- tecer de um só lado do campo visual se a lesão for do
sual primário. Assim, colocando no cortex visual um cortex visual contralateral ou de todo o campo visual
dispositivo capaz de medir a actividade bioeléctrica das se a lesão afectar ambos os lados e designa-se por Acro-
células e estimulando diversos pontos da retina, é pos- matopsia.
sivel determinar esta correspondência: ao mesmo pon- Outras regiões do cortex visual de associação es-
to da retina corresponde o mesmo ponto do cortex tão vocacionadas para o tratamento de outros tipos de
visual. A estimulação da retina pode ser feita directa- informação como as formas geométricas, as letras (fa-
mente através de eléctrodos ou pela apresentação de lámos já deste assunto a propósito das perturbações
estímulos em diferentes localizações do campo da da leitura) e, ainda, o reconhecimento de material vi-
visão. Isto significa que ao fixarmos um ponto no es- sual complexo como seja o reconhecimento de faces.
paço, aquilo que se encontra numa determinada coor- A capacidade de reconhecimento de faces repre-
denada em relação a esse ponto de fixação estimula senta um capítulo particularmente interessante do es-

92
tudo das relações ao cerebro com o comportamento. responsáveis pelas crises epilépticas, generalizando
Em casos com lesões das áreas de associação visual es- processos que poderiam ficar confinados a um só la-
trategicamente colocadas, envolvendo em geral ambos do do cérebro. Por esta razão se começou a fazer esta
os hemisférios cerebrais, pode perder-se a capacidade operação que se revelou eficaz na maioria dos casos.
de reconhecer, através da visão, as faces de pessoas A parte interessante no presente contexto não é, po-
que até então eram familiares (Prosopagnosia). Pode rém, discutir a eficácia do processo para o tratamento
inclusivamente perder-se a capacidade de reconhecer da epilepsia, mas sobretudo a análise das alterações do
a própria face num espelho, num retrato ou numa gra- comportamento resultantes desta cirurgia. Porque es-
vação em video. O doente pode ser testado com foto- tes estudos mereceram um prémio Nobel atribuído a
grafias ou mesmo recorrendo aos familiares. Neste Sperry, julgamos que se justifica algum detalhe no re-
último caso, o reconhecimento é feito ou através de lato desta história.
outras partes do corpo ou pela fala, não havendo de- Lendo com atenção os autores clássicos é possível
pois qualquer dificuldade em saber de quem se trata encontrar em Liepman a descrição de um defeito de
ou na comunicação com esse familiar. O aspecto mais controle voluntário dos movimentos da mão esquer-
interessante desta rara afecção é ter sido demonstra- da, quando as ligações entre os dois hemisférios a ní-
do em situação experimental que, embora o doente ne- vel frontal se encontram cortadas. O defeito torna-se
gue o conhecimento de uma face familiar apresentada particularmente evidente quando se pede a estes doen-
em fotografia, é possível encontrar sinais sugestivos de tes para executar determinados movimentos através de
que o reconhecimento é feito a nível inconsciente. Este um comando verbal (por exemplo: “ponha o lápis den-
aspecto foi demonstrado em duas situações distintas. Na tro da caixa com a sua mão esquerda”). A interpreta-
primeira, apresentava-se ao doente uma série de fo- ção dada por este autor para esta perturbação era a
tografias que incluía, distribuidas aleatoriamente, fa- seguinte: o hemisfério esquerdo, sendo dominante para
ces familiares e faces não familiares. O doente, ligado a linguagem, descodifica a frase ficando o doente per-
a um dispositivo que permite medir o potencial psico- feitamente ciente daquilo que lhe é pedido. Essa in-
-galvânico da pele (um potencial que permite avaliar formação terá depois que ser transferida para o
mudanças do estado emocional dos indivíduos), era hemisfério direito, responsável pela programação do
confrontado com a série de fotografias. O doente movimento da mão esquerda; havendo um corte das
mostrou-se incapaz de reconhecer qualquer das foto- vias de ligação entre os dois hemisférios a informação
grafias, mas os potenciais recolhidos na pele eram di- não pode transitar e por isso, perante a perplexidade
ferentes consoante se tratasse de faces familiares ou do doente, a ordem não pode ser executada. Liepman
não familiares. A segunda experiência foi de desenho, argumentou que essa ligação era feita através do Cor-
mais simples, mas conduziu a conclusões idênticas. po Caloso na sua porção anterior e designou esta per-
Eram apresentados ao doente conjuntos de quatro fo- turbação de Apraxia. Da mesma forma, Déjerine
tografias, das quais uma era familiar, e era pedido ao doen- discutiu o papel da porção mais posterior do Corpo
te que seleccionasse a face familiar. O doente co- Caloso quando elaborou o seu modelo das perturba-
meçava por dizer que não havia nenhuma face fami- ções da capacidade de leitura, como vimos já ao tra-
liar, mas forçado a escolher uma qualquer, a sua tar das alexias. Tudo isto se passa na Europa no final
escolha caía na face familiar com uma frequência su- do século passado e está publicado ou em alemão ou
perior à probabilidade ditada pela simples sorte. em francês.
Estes resultados revelam que existe percepção e As operações feitas ao Corpo Caloso ocorrem nos
mesmo tratamento do resultado dessa percepção que Estados Unidos da América por volta de 1940 onde não
permite orientar o comportamento a nível não cons- era hábito a leitura em línguas diferentes da inglesa,
ciente. Há, pois, que ter em conta que existem múlti- não sendo também grande a divulgação de textos eu-
plos níveis de processamento da informação que ropeus clássicos. Provavelmente por esta razão, os tra-
podem ser utilizados em contextos distintos e úteis balhos de Liepman e de Déjerine foram esquecidos nos
todos eles, sem dúvida, para a harmonia do compor- primeiros estudos realizados por Akelaitis nos doen-
tamento humano. tes que tinham sido operados. Estava em voga então,
no campo da Psicologia, o estudo de grandes funções
A disconexão do Corpo Caloso relacionadas com a inteligência e com a vida afectiva
e por isso a metodologia usada não permitiu pôr em
Nos anos quarenta, propôs-se uma técnica cirúrgi- evidência qualquer alteração nestes doentes, tendo si-
ca destinada ao tratamento da epilepsia de difícil con- do concluído que afinal o Corpo Caloso não tinha fun-
trolo que implicava o corte do Corpo Caloso. Como ções de relevo e que a cirurgia podia ser praticada sem
já ficou dito atrás, o Corpo Caloso é uma estrutura que qualquer risco de perturbação cognitiva. Chegou mes-
liga funcionalmente os dois hemiférios cerebrais, per- mo a afirmar-se que o Corpo Caloso estava lá só para
mitindo a passagem de informação de um lado para impedir que os dois hemisférios cerebrais caíssem um
o outro. Da mesma forma que permite a passagem da para cada lado e para transportar os fenómenos epi-
informação permite também a passagem dos impulsos lépticos de um hemisfério cerebral para o outro.

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Nos anos sessenta começa então o trabalho de seja colocado na mão esquerda para ser percebido
Sperry, na Califórnia, que veio a revelar-se da maior pelo tacto. Explica-se este achado porque a mão es-
importância. Este é mais um exemplo de como a in- querda transmite informação para o hemisfério direi-
vestigação animal pode contribuir para o conhecimen- to, devendo depois esta informação transitar para o
to de aspectos cognitivos do homem. Para estudar o esquerdo, através do Corpo Caloso, para que as áreas
problema da transferência de informação através do de linguagem lhe atribuam um nome. Estando cor-
Corpo Caloso foi seleccionado o gato como animal de
experiência. O primeiro passo consistiu no encerra-
mento de uma das pálpebras do gato ficando assim só
um dos olhos a receber informação visual. É sabido que
cada olho permite informar ambos os hemisférios ce-
rebrais e que a parte do campo visual mais próxima
da linha média segue directamente para o lobo occipi-
tal do mesmo lado e que a parte mais afastada segue
por uma via que cruza numa estrutura designada quias-
ma óptico. Assim sendo, o gato com um dos olhos en-
cerrados podia informar ambos os hemisférios
cerebrais. A experiência consistia em condicionar o ga-
to através do olho destapado para uma determinada
tarefa que o gato acabava por realizar com facilidade.
Quando o gato estava já treinado invertia-se o encer-
ramento do olho e o que se verificava era que o ani-
mal continuava a realizar a tarefa sem dificuldade. O
passo seguinte foi desenvolver a mesma experiência
só que, desta vez, tinha sido previamente cortado o
quiasma óptico, desta forma cada olho informaria só
um dos hemisférios cerebrais. Novamente se verificou
que o comportamento condicionado do animal se
mantinha quando era invertido o encerramento da pál-
pebra. Significava este achado que a informação con-
tinuava a passar de um hemisfério cerebral para o
outro. O terceiro passo da experiência consistiu no cor-
te do quiasma óptico e também do Corpo Caloso. Des-
ta vez a mesma experiência mostrou que quando se in-
vertia o encerramento das pálpebras o gato deixava
de ser capaz de responder ao estímulo condicionado.
A conclusão que foi possível tirar foi que a informa-
ção respeitante ao processo de condicionamento pas-
Fig. 13 – Experiências conduzidas no gato que permitiram avaliar
sava pelo Corpo Caloso. Na Figura 13 está representada a importância do corpo caloso (ver texto para mais detalhes).
esquematicamente a sequência destas experiências. A – o olho esquerdo do gato é encerrado sendo o animal condi-
Verificando-se estes factos no animal de experiên- cionado através do olho direito; B – no mesmo animal descerra-
cia e sendo já conhecida nessa altura a literatura euro- -se o olho esquerdo e encerra-se o direito: o animal mantém o
comportamento condicionado; C – o mesmo que em A só que desta
peia do final do século XIX, seria de esperar que vez seccionou-se previamente o quiasma óptico; D – invertendo
qualquer coisa se encontrasse nos doentes a quem ti- a venda do olho o animal continua a manter o comportamento con-
nha sido cortado o Corpo Caloso. Na verdade, o pro- dicionado; E – para além da lesão descrita em C é agora cortado
blema voltou a ser visto agora à luz destes factos e o corpo caloso; F – invertendo a venda do olho deste animal dei-
verificou-se que era possível pôr em evidência um con- xa de haver o comportamento condicionado.
junto de achados que vieram trazer importantes conhe-
cimentos sobre a fisiologia do cérebro humano. tada a via do Corpo Caloso, a informação não pode
Discutimos alguns destes aspectos quando falamos de passar e o doente não consegue realizar esta operação
dominância cerebral; daremos agora alguns exemplos aparentemente tão simples. Reproduzem-se, na Fi-
ilustrativos desta disfunção. Em primeiro lugar deve gura 14, alguns aspectos relacionados com este cam-
dizer-se que se confirmaram os achados referidos por po de pesquisa.
Liepman e por Déjerine sobre a transferência da infor- Estes trabalhos deram origem a um enorme núme-
mação motora para a realização de gestos por coman- ro de publicações que permitiram compreender as
do verbal com a mão esquerda e sobre a transferência relações funcionais entre os dois hemisférios cerebrais
da informação referente à leitura. Depois foram des- e conhecer melhor os mecanismos da especialização
critos muitos outros fenómenos como, por exemplo, hemisférica e da dominância cerebral que descrevemos
a impossibilidade de atribuir o nome a um objecto que acima.

94
A memória

Quando se fala de memória existe um consenso


quanto ao significado da palavra. Sabemos que se tra-
ta de qualquer coisa que se guarda e que se pode ir bus-
car quando dela necessitamos. Encarada nesta
perspectiva quase que se podia dizer que tudo o que
se passa no cérebro é memória, o que não nos ajuda-
ria muito a dissecar o conceito e a relacioná-lo com
mecanismos biológicos, como é o nosso intuito.
Podemos começar por dizer que existe uma memó-
ria dita sensorial que é fugaz mas indispensável para
a percepção. Este mecanismo está acoplado aos me-
canismos mais elementares da percepção sensorial
– visual, auditiva, somestésica – e permite reter, por
uma pequena fracção de tempo, a informação que aca-
ba de ser recebida de forma a ligá-la à informação que
imediatamente lhe sucede. É usando este mecanismo
que podemos ver movimento no cinema, ao invés de
ver uma sequência de fotogramas estáticos. Guardan-
do a memória de uma imagem correspondente a um
fotograma e sobrepondo-a à imagem seguinte
apercebemo-nos da diferença entre as duas: essa dife-
rença dá o sentido do movimento. Por outro lado,
este mecanismo permite ainda conotar a informação
entrada com uma marcação temporal sequencial o que
é particularmente relevante para a percepção auditi-
va. Se não armazenássemos breve e sequencialmente os
sons que ouvimos nunca poderiamos compreender
a linguagem, porque ao ouvir um novo som teríamos
esquecido o anterior, perdendo assim a capacidade de
identificar unidades com significado. Importa dizer que
o processamento deste tipo de memória é automático
e por isso independente da vontade e inconsciente.
Não é possível evocar esta memória elementar para o
campo da consciência e, por outro lado, a informação
não está codificada de forma a ser armazenada para
futuras utilizações. Há, porém, referências a indivíduos
que têm a capacidade de reter e utilizar estas memó-
rias sobretudo na modalidade visual. Estes indivíduos
são capazes de olhar para uma página de um livro, por
um curto periodo de tempo, e depois fazerem a leitu-
ra da página baseados nessa memória visual. Luria re-
lata o caso de um indivíduo que tinha uma capacidade
Fig. 14 – Representam-se esquematicamente as vias de condução deste tipo e que olhando para uma folha de papel
nervosa, os hemisférios cerebrais ligados através do corpo caloso onde estavam várias colunas de algarismos era capaz
e algumas funções relevantes para o estudo dos doentes calosoto-
misados. A informação referente à sensibilidade da mão direita e à
de recitar os algarismos começando por qualquer pon-
visão do campo do mesmo lado é conduzida ao hemisfério esquer- to que se lhe pedisse. Mais interessante, ainda, neste
do que é capaz de a tratar através de mecanismos verbais (é possí- relato de Luria, é o facto deste indivíduo ter sido ca-
vel dizer o nome de um objecto colocado na mão direita ou ler uma paz de realizar a recitação dos algarismos de uma fo-
palavra projectada no campo visual do mesmo lado). Quando as mes- lha que lhe tinha sido mostrada 20 anos antes,
mas operações são realizadas do lado esquerdo (mão e campo vi-
sual) a informação é conduzida ao hemisfério direito. Sendo tratada
afirmando sempre que estava como que a ler a referi-
através da linguagem deve atravessar o corpo caloso; estando este da folha.
cortado pela cirurgia, os doentes não são capazes de dizer os no- O segundo mecanismo diz respeito à capacidade
mes dos objectos colocados na mão esquerda ou ler as palavras pro- de reter informação por um breve período de tempo,
jectadas no campo visual do mesmo lado, só serão possíveis de mais longo que a memória sensorial e com a informa-
desencadear expressões de carácter não-verbal. No que respeita à
actividade motora passa-se algo semelhante: o doente é capaz de fazer ção mais elaborada, isto é, codificada de tal modo que
movimentos com a mão direita por ordem verbal, mas não os faz possa eventualmente ser armazenada por longos pe-
com a mão esquerda. ríodos. É comum designar este mecanismo por memó-

95
ria imediata ou de curto termo e o bom exemplo des- Até aqui temos falado sobretudo da capacidade de
ta capacidade é a possibilidade que temos de consul- arquivar a informação e dos mecanismos responsáveis
tar a lista de telefones, ver o número que nos interessa por esta actividade; devemos agora mencionar os me-
e discá-lo de seguida sem ter de recorrer a nova con- canismos que permitem a sua recuperação, ou seja, os
sulta. Foi possível reter a informação durante um cur- mecanismos de evocação.
to período de tempo podendo depois acontecer uma Tem havido um interesse crescente nesta área, nos
de duas possibilidades: ou esquecemos completamen- últimos anos, desde que se constatou que era possível
te o número depois de efectuar a chamada ou o arqui- encontrar, em determinados doentes com lesão cere-
vamos em memória, dita de longo termo. As razões bral, comportamentos que sugeriam perdas electivas
para arquivar em memória de longo termo podem ser de capacidade de evocação. Quer isto dizer que é pos-
diversas, ou porque há interesse para posteriores uti- sível não ser capaz de evocar memórias de factos au-
lizações e nessa altura quase de forma automática re- tobiográficos sem perder, por exemplo, outras
forçamos a informação através da repetição do memórias contemporâneas a essas como as do tipo to-
número, ou o número apresenta semelhanças com ou- pográfico. A título de exemplo, podemos referir o
tros previamente aprendidos e, de forma espontânea doente que não se recorda de ter feito serviço militar
o aprendemos acoplado ao primeiro. Isto só é possí- mas é capaz de descrever o quarto que tinha alugado
vel por estar o material já codificado de forma a ser nesse período. Significam estes achados que a capaci-
armazenado se necessário. Os mecanismos de memó- dade de evocar memórias se encontra organizada por
ria de curto termo decorrem em redes neuronais da categorias o que pressupõe obviamente que ao guar-
superfície do cortex sensorial de associação, muito li- dar as memórias as conotamos também por categorias.
gados por isso aos mecanismos de processamento bá- A grande maioria da informação de que dispomos
sico da informação. Como facilmente se depreende são neste capítulo foi obtida a partir de estudos individuais
mecanismos indispensáveis para toda a actividade cog- de casos de doentes com lesões cerebrais. Porém al-
nitiva e, por isso, alguns autores se lhe referem como guns dos mecanismos mais elementares podem tam-
memória de trabalho. É impossível responder a uma bém ser reproduzidos em experimentação animal onde
têm sido identificados diversos circuitos e redes neu-
pergunta se não fôr possível retê-la em memória de cur-
ronais envolvidos em processos de memorização.
to termo, é impossível compreender o sentido da lei-
Finalmente interessa ainda relatar um facto que
tura de uma frase se não ficarem retidas as palavras que
abre perspectivas para estudos futuros sobre sistemas
a compõem, é impossível resolver um problema de cál-
não conscientes de processamento de informação.
culo se o enunciado for rapidamente esquecido, e tan-
Existem referidos na literatura alguns casos de amné-
tos outros exemplos. Para além de uma boa função do
sia em que os doentes embora tenham perdido por
cortex sensorial de associação este mecanismo de me-
completo a capacidade de fixar novo material revelam
mória pressupõe ainda a existência de um outro mais
capacidade de aprendizagem. A situação experimen-
geral e potenciador desta capacidade e que se designa
tal é a seguinte: confronta-se o doente com a realiza-
por atenção ou capacidade de concentração. Esta ca-
ção de uma tarefa de vários passos que o doente deve
pacidade, que parece depender da função dos lobos
resolver etapa a etapa gastando para isso um certo tem-
frontais, é indispensável para a organização de toda a
po – é sabido que um indivíduo normal ao realizar
actividade cognitiva. A atenção corresponde à capaci- a tarefa mais do que uma vez reduz o tempo de execu-
dade de chamar para o campo de actividade o mate- ção revelando assim que aprendeu a realizar a tarefa.
rial considerado relevante para a operação em causa Estes doentes, realizando a tarefa várias vezes, em dias
relegando para segundo plano todo aquele que é su- diferentes, reduzem também o tempo de execução re-
pérfluo. velando capacidade de aprendizagem; porém, cada dia
A capacidade de concentração e a integridade do que se deslocam ao laboratório afirmam nunca lá ter
cortex sensorial são também indispensáveis para o me- estado e desconhecer por completo a tarefa que lhes
canismo da memória de longo termo, isto é, aquela que é pedido que realizem. Existe, pois, um outro meca-
se armazena por mais tempo e a que recorremos cons- nismo de aprendizagem não consciente que pode mol-
tantemente para confronto com novas experiências. dar o comportamento como fica expresso no facto
Para o funcionamento desta memória intervem ainda destes mesmos doentes, sem que lhes seja dada qual-
um outro sistema – o sistema límbico – cujas estruturas quer instrução, procurarem a cadeira em que se senta-
componentes se distribuem pela face interna dos lo- ram em dias anteriores.
bos temporal e frontal envolvendo o Corpo Caloso. As alterações da memória constituem o sinal mais
Este sistema permite fixar a memória de curto termo comum da doença de Alzheimer, que é um dos gran-
em memória de longo termo, muito provavelmente des problemas da saúde pública que se levanta nos nos-
por mecanismos de repetição, não consciente, da in- sos dias, devido ao envelhecimento progressivo da
formação. população e cuja causa está ainda por esclarecer.

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Alterações da esfera afectiva, da personalidade sistemas, ou redes neuronais, que só nessa fase da vi-
e do comportamento social da começam a ser operacionais, revelando-se, desta
forma, os sintomas.
Nos últimos anos tem-se registado um interessan- Um outro aspecto que se tornou evidente recente-
te acumular de informação respeitante a aspectos pa- mente diz respeito ao envolvimento das regiões baso-
ra os quais até então se não conheciam mecanismos -frontais no comportamento social. Na realidade,
biológicos. A depressão, considerada na sua forma ma- doentes portadores de lesões nessa região do cérebro,
jor, ou nas formas conhecidas como cíclicas em que como acontece em grande número de indivíduos que
se regista uma alternância entre estados depressivos e sofreram traumatismos craneoencefálicos graves, têm
estados de mania, era entendida como doença funcio- com frequência comportamentos considerados as-
nal e não se compreendia a forma como os sintomas sociais.
eram gerados. Os estudos de “PET scan” vieram re- Está, assim, aberta a via de pesquisa que muito pro-
velar que a actividade metabólica cerebral se encon- vavelmente nos vai permitir conhecer em breve a gé-
tra reduzida no cérebro durante as fases depressivas, nese e o mecanismo de múltiplas doenças rotuladas
com particular incidência no lobo frontal esquerdo. Es- como doenças mentais e que passarão a ser conheci-
ta modificação metabólica reverte na totalidade quan- das como doenças cerebrais.
do o doente recupera para o estado de normalidade
ou quando entra em mania. Por outro lado, o estudo
de determinados marcadores bioquímicos referentes CONCLUSÃO
à neurotransmissão têm também vindo a revelar dife-
renças conforme os estados afectivos que o doente Nas páginas anteriores foram revistos de forma bre-
atravessa. Significa isto que se começa a conhecer a for- ve alguns dos aspectos das relações entre o cérebro e o
ma como os sintomas são produzidos pelo cérebro em- comportamento humano que têm sido mais estuda-
bora não se conheça ainda o desencadeante para estas dos nos últimos anos. Mais havia para dizer, decerto,
alterações. sobre este assunto que tanto nos fascina, e de certo
A esquizofrenia é outra das áreas em que muito se muito mais haverá a relatar nos tempos próximos, pois
tem trabalhado no sentido de compreender não só a fervilha na comunidade científica o interesse por es-
causa da doença mas também os mecanismos de pro- tas matérias e existe o apoio das agências financiado-
dução de sintomas. O dado mais interessante que jul- ras da investigação para que prossigam os estudos.
gamos valer a pena mencionar diz respeito aos estudos Também a opinião pública está ávida por estes conhe-
realizados em gémeos em que um deles é portador da cimentos e os progressos relatados nas revistas cien-
doença. A comparação das imagens fornecidas por Res- tíficas rapidamente se tornam notícia, por mais espe-
sonância Magnética permitiu pôr em evidência diferen- culativos que possam ser, como foi recentemente no-
ças que se julgam de significado. Assim, a face interna ticiada a possível relação da estrutura do hipotálamo
do lobo temporal, onde estão estruturas relevantes com o comportamento sexual.
para as funções afectivas é diferente nos dois irmãos. Estudar e descrever as funções do cérebro relacio-
O portador da doença tem essa região mais atrofiada nadas com o comportamento pode sugerir o desejo de
do que o irmão saudável. A interpretação que presen- reduzir o Homem e o pensamento à dimensão das má-
temente se dá para este achado é que haverá uma le- quinas, marcado por um determinismo, neste caso bio-
são cerebral responsável pela doença. O facto dos lógico, sem lugar para a imaginação criadora. Não é
sintomas da doença se revelarem só no início da ida- esse o modelo por que nos orientamos na pesquisa, em-
de adulta é ainda difícil de compreender já que se pensa bora seja a postura metodológica necessária para ob-
que a lesão possa ter ocorrido em qualquer período ter resultados parcelares. Procuramos acordes que,
da infância, ou mesmo ainda na fase de desenvolvimen- juntos a outros, permitam compreender a complexa
to embrionário. O que se pensa é que ela interfere em sinfonia do Universo.

SUGESTÕES DE LEITURA

Combe G.: Traité de Phrénologie (tradução francesa). Société Belge Kandel E., Squire L. (Eds): Cognitive Neuroscience. Current Opinion
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