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A Conspiração dos losers

Paul B. Preciado

Publicado originalmente no Libération, 27/03/2020

Tradução para o português: Gabriela Nobre

Fiquei doente em Paris, na quarta feira, 11 de março, antes do


governo francês ordenar confinamento à população, e quando
acordei dia 19 de março, pouco mais de uma semana, o
mundo tinha mudado. Quando fui para a cama o mundo era
próximo, coletivo, viscoso e sujo. E quando saí da cama ele
tinha se tornado distante, individual, seco e higiênico.
Enquanto estive doente, não pude acessar, de um ponto de
vista político e econômico, o que estava acontecendo porque a
febre e o desconforto tomaram conta da minha energia vital.
Ninguém pode ser filosófico com a cabeça explodindo. De
tempos em tempos, eu via as notícias, que só aumentavam o
meu descontento. A realidade era indistinguível de um sonho
ruim, e as manchetes dos jornais eram mais desconcertantes
do que qualquer outro pesadelo trazido pelos meus delírios
febris.
Por dois dias inteiros, como uma receita anti ansiedade, decidi
não visitar nenhum site. Atribuo minha cura a isso e ao óleo
essencial de orégano. Não tive dificuldade em respirar, mas
era difícil acreditar que eu continuaria respirando. Eu não
estava com medo de morrer. Eu estava com medo de morrer
sozinho.

Em meio a febre e a ansiedade, pensei comigo mesma que os


parâmetros de organização do comportamento social haviam
mudado para sempre e não poderiam mais ser modificados.
Senti isso com tal convicção que a coisa perfurou meu peito,
quase como se a respiração tivesse se tornado mais fácil.
Tudo carregará para sempre o novo formato que as coisas
tomaram. Daqui para a frente, teremos ainda mais acesso a
formas digitais de consumo ainda mais excessivas, mas
nossos corpos, nossos organismos vivos, serão privados de
toda e qualquer vitalidade. A mutação tomará forma de uma
cristalização da vida orgânica, da digitalização do trabalho e do
consumo e da desmaterialização do desejo.

Os que estão casados estão agora condenados a viver vinte e


quatro horas por dia com a pessoa com a qual casaram,
mesmo que se amem ou se odeiem, ou os dois ao mesmo
tempo - o que, aliás, é a mesma coisa: casais são governados
pela lei da física quântica que diz que não há oposição entre
termos contrários, mas sim uma simultaneidade de fatos
dialéticos.

Nessa nova realidade, os que entre nós perderam o amor ou


não o encontraram a tempo – quero dizer, antes da grande
mutação do COVID-19 - estão condenados a passar o resto de
suas vidas completamente sozinhos. Sobreviveremos, mas
sem toque, sem pele.

Os que não ousaram dizer à pessoa amada que a amam, não


podem mais fazer contato com ela para expressar o seu amor
e terão que viver para sempre com a impossível antecipação
de um encontro físico que nunca acontecerá. Os que
escolheram viajar ficarão para sempre do outro lado da
fronteira, e os ricos que viajaram para suas segundas casas de
praia ou de campo (tadinhos deles!) nunca retornarão às
cidades.
Suas casas serão requisitadas para acomodar os sem teto,
que, inclusive, diferente dos ricos, viveram todo seu tempo nas
cidades. Tudo será determinado sob a nova e imprevisível
forma que as coisas tomaram depois do vírus. O que parecia
como um trancafiamento temporário continuará para o resto de
nossas vidas. Talvez as coisas mudem de novo, mas não para
os que entre nós têm mais que quarenta anos. Essa era a nova
realidade. A vida antes da grande mutação. E me perguntei
então se a vida valia a pena ser vivida assim.

A primeira coisa que eu fiz quando saí da cama depois de ter


estado doente desse vírus por uma semana que foi longa e
estranha como um novo continente, foi me perguntar a
seguinte coisa: em quais condições e de que forma a vida
continua a valer ser vivida? A segunda coisa que eu fiz, depois
de ter encontrado uma resposta a essa pergunta, foi escrever
uma carta de amor. De todas as teorias de conspiração que li,
a que mais me intrigou é a que diz que o vírus foi criado em um
laboratório para que todos os ​losers ​do mundo recuperassem
seus ex – sem serem obrigados a voltar com eles.

Estourando de lirismo e ansiedade acumulados por uma


semana doente, com medo e insegura, a carta para a minha ex
não era só uma declaração poética de amor. Mais que isso era
um documento vergonhoso de quem a assinou. Mas se as
coisas não mudarem mais, se quem ficou afastado não puder
mais se encontrar, que importância haveria em ter sido tão
ridículo? Qual o problema de dizer a pessoa que você ama que
você a ama, mesmo sabendo que ela já te esqueceu ou já te
substituiu, se você nunca poderá revê-la novamente? O novo
estado das coisas, em sua escultural imobilidade, determina
um novo sentido para o ​what the fuck,​ mesmo em todo o seu
ridículo.
Escrevi então essa bela e horrivelmente patética carta a mão,
coloquei-a em um envelope branco e escrevi nela, com a
melhor caligrafia, o nome e o endereço da minha ex. Me vesti,
botei uma máscara, calcei luvas e sapato que tinha deixado na
porta, e desci até a entrada do prédio. Lá, seguindo as regras
do confinamento, não saí para a rua, fui em direção à saída de
lixo. Abri a lixeira amarela e joguei nela a carta para a minha ex
– ela já estava escrita mesmo em papel reciclável. Voltei
calmamente ao apartamento. Deixei meu sapato na porta.
Entrei, tirei a calça e botei dentro de um saco plástico, tirei a
máscara e coloquei na varanda para tomar ar, tirei as luvas e
joguei no lixo, e lavei as mãos por intermináveis minutos.
Tudo, absolutamente tudo, estava sob a forma que tomou
depois da grande mutação. Fui até meu computador e abri
minha caixa de e-mails: e lá estava uma mensagem da minha
ex, intitulada: “Penso em você durante a crise do vírus”.

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