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1.

1 Utopia: contextualização e aspectos gerais

Desde os primórdios da história humana houve um desejo inquietante


em busca de uma resposta do propósito de estarmos neste mundo. Como
solução de satisfação, o ser humano criou ideias, conceitos e pensamentos e
adaptou-os em obras, publicando-as em seu tempo vivido. Tais pensamentos
carregam em sua bagagem uma grande importância, até os dias atuais, pois
tornou-se nítido que muitos conceitos surgiram baseados em pensamentos e
contribuições de figuras ilustres em seu tempo.

Na tentativa de explicar tal progresso, iniciaremos nosso debate teórico


pelas ideias fundamentais norteadoras a serem exploradas em nosso trabalho.
Primeiramente, encontramos no início do século XVI a publicação da obra
Utopia (1516), de Thomas More, a qual explana o conceito de seu título. Tal
construção em relação à semântica desse conceito, ocorre a partir do processo
de composição por justaposição das palavras gregas οu (ou), cujo significado é
não, somando-a a palavra tópos (τοπος), este com significado de lugar. Em
suma, este conceito pode ser denotado como “lugar nenhum” ou “não-lugar”.

Como forma de expandirmos nosso conhecimento acerca de tal ideia,


encontramos na fala de Marilena Chauí uma importante contribuição ao
empregar importantes considerações relacionadas ao termo em seu início
histórico:

A utopia passou a ser empregada para designar narrativas e


discursos muito anteriores, como, por exemplo, a cidade ideal na
República de Platão, ou o projeto arquitetônico da cidade perfeita
traçada pelo geômetra e astrônomo grego Hipodamos de Mileto, que,
aplicando a geometria e a astronomia ao plano urbanístico, concebeu
a cidade de acordo com a harmonia cósmica, ou ainda a descrição da
Idade de Ouro nos poemas dos latinos Virgílio e Ovídio (CHAUÍ,
2016, p. 29-30).

Percebemos em sua fala que o conceito de utopia não se limita apenas


ao meio literário. Meios sociais tais como arquitetônicos, astrônomos e
geométricos possuíram influência em suas produções à época. Deste modo,
optamos por limitar ideia de utopia apenas às produções literárias.

A partir de leituras e pesquisas, notamos que o termo em estudo possui


sua manifestação inicial localizada nos primórdios da Antiguidade Clássica, na
qual seu conceito baseava-se pela busca de um lugar ideal, diferente daquele
que o autor estava inserido. Tal local é perceptível no diálogo presente na obra
A República (387 a 367 a.C.), de Platão. Sua constituição utópica ocorre a
partir da conversa entre Sócrates e Glauco, em que debatem sobre construção
do conceito de cidade, decorrente da relação entre indivíduo e o senso de
justiça, conforme observado a seguir:

Sócrates — Logo, é nisso que consiste a injustiça. Ao contrário,


quando a classe dos homens de negócios, a dos guerreiros e a dos
magistrados exercem a sua função própria e só se ocupam dessa
função, não é o inverso da injustiça e o que torna a cidade justa?
Glauco — Acredito que não pode ser de outra maneira.
Sócrates — Não o afirmemos ainda categoricamente; porém, se
reconhecermos que esta concepção, se aplicada a cada homem em
particular, é também a justiça, então receberá a nossa aprovação. Do
contrário, dirigiremos a nossa análise para outra direção. Agora,
completemos esta investigação que, conforme pensávamos, nos
devia permitir divisar mais facilmente a justiça do homem, se
tentássemos primeiramente descobri-la em algum modelo mais amplo
que a contivesse. Pareceu-nos que esse indivíduo era a cidade; por
isso, fundamos uma tão perfeita quanto possível, sabendo muito bem
que a justiça se encontraria numa cidade bem governada. Vamos
transladar agora para o indivíduo o que encontramos na cidade e, se
concluirmos que a justiça é isso, tanto melhor. Contudo, se
descobrirmos que a justiça é outra coisa no indivíduo, voltaremos a
atenção para a cidade. Pode ser que, comparando estas concepções
e pondo-as em contato uma com a outra, façamos brotar a justiça
como o fogo de uma pederneira; em seguida, quando ela se tiver
tornado evidente, fixá-la-emos em nossas almas (PLATÃO, 2012, p.
118).

Com o desenvolvimento das civilizações, outras manifestações literárias


procuraram explorar tal idealização de lugar em seus respectivos contextos,
explorando diferentes esferas sociais, sejam elas no âmbito religioso, filosófico
ou social. Exemplo que merece destaque está presente no O livro do
apocalipse (1. d.C.), de João, no qual há manifestação de uma vidência
recebida pelo apóstolo de Jesus sobre uma nova Terra que estava por
ascender, governada pelo poder divino. Outro exemplo possível aparece em O
livro da Cidade de Senhoras (1404), da autora ítalo-francesa Cristine de
Pisano, no qual descreve a construção de uma cidade ideal constituída
exclusivamente por mulheres. Dando continuidade a tal ideia, encontramos no
prefácio da obra Utopia a seguinte passagem sobre a “Ilha de Utopia”, em que
há a felicidade de sua população baseada na razão de More:
Aquele povo que não faz guerra por motivo fútil teria conseguido
guiar-se pela razão, por valores cristãos, mesmo sem conhecer o
cristianismo, teria construído a mais perfeita organização política e
teria alcançado, com seus próprios costumes, distintos daqueles dos
europeus, o mais alto grau de civilização. Nenhum Estado terá jamais
atingido ou mesmo procurado atingir o ideal da Utopia na sua relação
com outros povos, ao tentar realizar um comércio internacional justo,
ao procurar eliminar a pobreza, ao ser altruísta e enxergar o interesse
alheio mais do que o seu próprio. O termo "utopia" entrou para o
vocabulário comum sobretudo com esse sentido, de uma utopia
positiva (ALMINO, 2004, p. 32).

Para o autor, uma das características fundamentais que compõe a sua


obra trata-se da preocupação com o bem comum, ao qual se submete o bem
individual. Para tanto, os utopianos, nomeação dada aos cidadãos da ilha de
Utopia, optam pela divisão dos bens de maneira igualitária, pois acreditavam o
poder de bens materiais não deveria se concentrar na mão de uma minoria
populacional, frisando um conceito político social na constituição de um lugar
ideal.

Deste modo, podemos afirmar que tais obras anteriormente citadas


possuem como aspecto em comum a criação de uma cidade ideal, a qual se
diferem de acordo com o olhar de cada autor. Tais obras são consideradas
eutópicas, pois o sentido positivo deste conceito “veio naturalmente
acrescentar-se ao sentido negativo, de maneira que utopia significa,
simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz, eutópos. Ou seja, o
absolutamente outro é perfeito” (CHAUÍ, 2016, p. 30).

É a partir dessa característica em comum que o filósofo alemão Patrick


Hübner baseou o seu estudo na criação de classificação de utopias em quatro
grupo. O primeiro grupo é classificado como utopia clássica, no qual
encontramos obras que exploravam tal conceito inconscientemente, tais como
as já citadas A República, O livro do apocalipse e O livro da cidade de
Senhoras.

Seguindo adiante, encontramos o segundo grupo denominado como


utopia renascentista, o qual se iniciou a partir do século XVI e se estendeu até
o século XVII. Característica deste grupo parte da descrição do Novo Mundo
proveniente do período das Grandes Navegações, possuindo como destaque
as obras A cidade do sol (1602), de Tommaso Campanella, Nova Atlantis
(1627), de Francis Bacon e Marcaria (1641), de Gabriel Plattes. Como
exemplificação de tal grupo, é importante destacar o diálogo presente na obra
de Campanella entre as personagens Grão-Mestre dos Hospitalários (G.M.),
curioso sobre a descoberta da Cidade do Sol, e Almirante (ALM.), sendo este o
descobridor e seu hóspede:

G. M. – Mas, diga-me, amigo: os magistrados, as repartições, os


cargos, a educação, todo o modo de viver é mesmo de uma
verdadeira república, ou o de uma monarquia ou de uma aristocracia?
ALM. – Aquele povo ali se encontra vindo da Índia, por ele
abandonada para livrar-se da desumanidade dos magos, dos ladrões
e dos tiranos, que atormentavam aquele país. Todos determinaram,
então, começar uma vida filosófica, pondo todas as coisas em
comum. E, se bem que em seu país natal não esteja em voga a
comunidade das mulheres, eles a adotaram unicamente pelo princípio
estabelecido de que tudo devia ser comum e que só a decisão do
magistrado devia regular a igual distribuição. As ciências e, em
seguida, as dignidades e os prazeres são comuns, de forma que
ninguém pode apropriar-se da parte que cabe aos outros. Dizem eles
que toda espécie de propriedade tem sua origem e força na posse
separada e individual das casas, dos filhos, das mulheres. Isso
produz o amor-próprio, e cada um trata de enriquecer e aumentar os
herdeiros, de maneira que, se é poderoso e temido, defrauda o
interesse público, e, se é fraco, se torna avarento, intrigante e
hipócrita. Ao contrário, perdido o amor-próprio, fica sempre o amor da
comunidade (CAMPANELLA, 2002, p. 19).

Durante o desenvolvimento do enredo, há alternância de vozes, em que


se torna possível a visualização desta eutopia para o leitor, uma cidade
descoberta em seus mínimos detalhes relatada pela exploração, feito realizado
pelo Almirante.

Dando continuidade em seu estudo, o autor denomina terceiro grupo


como Utopia Moderna, no qual se torna nítida a principal mudança na escrita
de seus autores. Nos grupos anteriores, encontrávamos em grande parte das
obras utópicas um foco na projeção espacial idealizado. Agora, notamos uma
grande mudança de perspectiva, voltada para projeção temporal. É neste grupo
que o autor explana pela primeira vez acerca do conceito de ucronia, cujo
significado pode ser compreendido como idealizações relacionadas em um
tempo distante ou futuro. Obras que merecem destaque por dialogarem com tal
características são O ano 2440, sonho se é que ele existiu 1 (1771), do francês

1
Cujo título original é L’an 2440. Rêve s’il em fut jamais.
Louis-Sébastian Mercier, cujo enredo é ambientado em uma Paris futurística,
mais precisamente no século XXV, 2894 ou The fossil man (1894)2, de Walter
Browne, no qual o protagonista está inserido em uma sociedade futurística
governadas pelas mulheres com os homens submissos a elas e Gloriana, ou A
revolução de 19003 (1890), de Lady Florence Dixie, romance feminista que
narra as conquistas femininas ambientadas em Londres no início século XX e
perpassa até o ano de 1999 conforme observado a seguir:

1999. It is a lovely scene on which that balloon looks down, – a scene


of peaceful villages and well-tilled fields, a scene of busy towns and
happy working people, a scene of peace and prosperity, comfort and
contentment, which only a righteous Government could produce and
maintain. The balloon is passing over London, a London vastly
changed from the London of 1900. Somehow it wears a countrified
aspect, for every street has its double row of shady trees, and gardens
and parks abound at every turn. This London, unlike its predecessor,
is not smoke-begrimed, nor can it boast of dirty courts and filthy alleys
like the London of 1900. Every house, great and small, bears the
aspect of cleanliness and comfort, for poverty and misery are things
no longer known. A stranger in the balloon looks down with interest
upon this scene. His gaze, wandering across the mighty city, is
arrested by two gleaming gilded statues crowning a monster edifice,
upon whose cap of glittering panes the sun is shining brightly."Is that
the Hall of Liberty?" he inquires of his guide. "Yes," answers the
person addressed, "the same as was raised a century ago by the
great Duchess of Ravensdale, of noble memory." "Is she buried
there?" asks the stranger dreamily. "Buried there! Ah, no!" replies the
man almost indignantly. "I thought all the world knew where Gloria of
Ravensdale sleeps. There is a beautiful grave overlooking the Atlantic
Ocean, on the shores of Glennig Bay. It is there where Gloria sleeps,
by the side of her husband Evelyn, the good Duke of Ravensdale. It
was her wish, and her wish with the nation was law. Every year the
grave is resorted to by thousands, who lay upon it their tributes of
lovely flowers4 (DIXIE, 1890, p. 345).

De acordo com o olhar sob perspectiva de um balão, é notável as


mudanças presentes na cidade de Londres a partir da projeção temporal
2
Obra raríssima disponível digitalizada por Internet Archive no seguinte endereço:
https://archive.org/details/2894orTheFossilMan
3
Obra disponível digitalizada por Internet Archive no seguinte endereço:
https://archive.org/details/glorianaorrevolu00dixi
4
Tradução:1999. É uma cena adorável em que esse balão olha para baixo - uma cena de aldeias pacíficas e campos
bem cultivados, uma cena de cidades movimentadas e trabalhadores felizes, uma cena de paz e prosperidade,
conforto e satisfação, que apenas um Governo justo poderia produzir e manter. O balão está passando por Londres,
uma Londres bastante alterada em relação à Londres de 1900. De alguma forma, apresenta um aspecto campestre,
pois cada rua tem sua dupla fileira de árvores frondosas, e jardins e parques abundam a cada passo. Esta Londres, ao
contrário de seu antecessor, não tem fumaça, nem se orgulha de quadras sujas e becos imundos como a Londres de
1900. Toda casa, grande e pequena, tem o aspecto de limpeza e conforto, pois pobreza e miséria são coisas não é
mais conhecida. Algo estranho no balão olha com interesse para esta cena. Seu olhar, vagando pela poderosa cidade,
é preso por duas estátuas douradas reluzentes que coroam um edifício monstruoso, sobre cuja tampa de painéis
brilhantes o sol está brilhando intensamente. "Esse é o Salão da Liberdade?" ele pergunta ao seu guia. "Sim",
responde a pessoa abordada, "o mesmo que foi criado há um século pela grande duquesa de Ravensdale, de nobre
memória". "Ela está enterrada lá?" pergunta o estranho sonhadoramente. "Enterrado lá! Ah, não!" responde o homem
quase indignado. - Pensei que o mundo inteiro soubesse onde Gloria de Ravensdale dorme. Há uma bela cova com
vista para o Oceano Atlântico, nas margens da Baía Glennig. É lá onde Gloria dorme, ao lado de seu marido Evelyn, o
bom duque de Ravensdale. Era seu desejo, e seu desejo com a nação era lei. Todos os anos, a sepultura é recorrida
por milhares, que depositam nela suas homenagens de lindas flores.
durante o século XX, tais como a limpeza e o ar não poluído, elementos
comuns em seu início.

Por fim, o quarto grupo é denominado pelo autor como utopia


contemporânea, no qual nos defrontamos com a figura do homem angustiado
do século XX. Um dos fatores que contribuiu para tal angústia foi a instauração
de regimes totalitários ao longo do século concomitante de interesses políticos
providos de guerras. Tal percepção é complementada pelo autor como o
oposto das eutopias clássicas:

A história recente das utopias tende a matar as eutopias clássicas,


avatares do mito de cidade ideal mais ou menos projetada no tempo,
para criar o contramodelo procedente de uma total inversão dos
valores da estrutura inicial e reativando o contramito da cidade
maldita (HUBNER, 2000, p. 927).

Pensemos que o desenvolvimento da ideia de utopia ao longo da história


e suas aparições em obras até o grupo atual produziram uma espécie de
contra modelo inicial, em que consequentemente outras denominações
surgiram a partir desta, tais como as famosas anti-utopia, contra-utopia e
distopia. Podemos encontrar o início de tais manifestações nas obras O
alimento dos Deuses (1923), de H. G. Wells, em que somos apresentados a
dois cientistas que descobriram uma fórmula, na qual poderia fazer que
qualquer indivíduo crescesse, eliminando grande parte dos problemas
mundiais, como por exemplo a fome. Porém, ocorre uma falha em um dos seus
experimentos e gera, consequentemente, e um cenário que era considerado
perfeito, se torna uma guerra entre os indivíduos gigantes e pequenos. Outra
obra que dialoga com tal tendência é 1984 (1949), de George Orwell, narrado
em terceira pessoa pelo protagonista Winston, em que é apresentada uma
sociedade oprimida pelo regime do Grande Irmão:

Em seguida o rosto do Grande Irmão se esfumou outra vez e os três


slogans do Partido, em letras maiúsculas, ocuparam seu lugar.
GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA O
rosto do Grande Irmão, contudo, deu a impressão de permanecer na
tela por vários segundos mais, como se o impacto que causara nas
retinas de todos os presentes fosse vívido demais para desaparecer
imediatamente. A mulher esguia e ruiva se jogara para a frente,
apoiando-se no encosto da cadeira diante dela. Com um murmúrio
trêmulo que parecia dizer “Meu Salvador!”, estendeu os braços para
a tela. Em seguida afundou o rosto nas mãos. Era visível que fazia
uma oração (ORWELL, 2009, p. 22).

Notamos que em ambos os exemplos citados não houveram de fato, em


nossa realidade, comprovações de que tais construções utópicas chegaram a
se concretizarem. Como forma de complementar o conceito em estudo,
Marilena cita em sua obra o filosofo polonês Bronislaw Baczko, o qual propõe
três possíveis definições para utopia:

Representação imaginada de uma sociedade que se opõe à existente


a) pela organização outra da sociedade tomada como um todo; b)
pela alteridade das instituições e das relações que compõem a
sociedade como um todo; c) pelos modos outros segundo os quais o
cotidiano é vivido. Essa representação, menos ou mais elaborada nos
detalhes, pode ser encarada como uma das possibilidades da
sociedade real e leva à valorização positiva ou negativa desta
sociedade (BACZKO, 1978, p. 405 apud CHAUÍ, 2016, p. 31).

Em nossas palavras, o autor afirma em que de fato há uma ruptura com


a sociedade existente em três diferentes níveis, a fim de chegar à perfeição.
Conforme observado nos exemplos acimas, podemos concluir que existiram
casos em que a sociedade recriada a partir da utopia foi baseada na negação
da sociedade atual, enquanto outras conseguiram se projetar em um futuro
inalcançável. Neste segundo caso, Chauí ressalta que utopia possa significar
também:

Eutópos e que o socialismo, por surgir de uma revolução integral,


pudesse ter sido visto por muitos como utopia, apesar de Marx e
Engels. O fundamental, porém, é que em qualquer desses sentidos —
ruptura completa, desenvolvimento do que há de melhor numa
sociedade existente — só pode haver utopia quando se considera
possível uma sociedade totalmente nova e cuja diferença a faz ser
absolutamente outra (CHAUÍ, 2016, p. 32).

Ainda evidencia em seu estudo seis importantes características da


utopia com a definição de alteridade perfeita. A primeira delas é que a utopia
pode ser considerada normativa, pois para existir uma idealização de um
mundo, este deve se tornar o oposto do presente.

Em seguida, demonstra que sempre é totalizante e crítica do existente,


ou seja, para atingir à perfeição, deverá ocorrer a negação de pontos
essenciais que a compõe, tais como, as leis, as formas de governo, os
comportamentos da sociedade, os seus valores éticos, as crenças, os
preconceitos, entre outros.
Sua terceira característica é complementada pela visão do presente sob
ótica das características negativas presentes nessas sociedades, ou seja, ela é
percebida a partir da violência, roubo e corrupção, aspecto muito semelhante
às encontradas no grupo utopia contemporânea de Hubner.

Na quarta, Chauí demonstra que a utopia é radical, pois procura a


liberdade e a felicidade do indivíduo no meio público, graças à reconciliação de
alguns importantes elementos, como exemplo do homem com a natureza, da
tríade entre indivíduo, sociedade e Estado, e na busca dos outros dois valores
presentes no ideal presente na Revolução Francesa, sendo estes a
fraternidade e a igualdade.

A quinta característica é que ela constituída pela ideia de imaginação


social, em que há combinação entre irrealismo, demarcado pela característica
da visibilidade pública, com o realismo, revelando os mínimos detalhes da nova
sociedade, resultando assim uma transparência social fundamental, servindo
como base para essa nova sociedade.

Por fim, a utopia é um discurso exercido pela imaginação e não pela


ação. Tal discurso pode ultrapassar as barreiras literárias, como já observamos
no projeto arquitetônico da cidade perfeita de Hipodamos. A autora ainda
ressalta que tal discurso “pode inspirar ações ou uma utopia praticada, que
assume o risco da história, mas com a finalidade de alcançar o fim da história
ou do tempo e atingir a perenidade” (2016, p. 34).

A partir da definição em construção do conceito de utopia, devemos


progredir nosso estudo explanando uma dúvida. Não há como negar que há
uma similaridade entre as ideias de utopia e ideologia. Logo, qual é a diferença
entre eles?

Em busca de tal resposta, recorremos aos estudos do sociólogo húngaro


Karl Mannheim, sobretudo em sua obra Ideologia e Utopia (1929). Deve-se dar
destaque ao contexto social na produção de sua ideia, visto que o autor foi
influenciado pelos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a
ascensão do regime totalitário nazista (década de 20).
Ambos os conceitos de ideologia e utopia são explicados pelo autor
como motivações coletivas inconscientes, as quais determinam as ações e
pensamentos dos indivíduos em dada sociedade, além de acreditar que
“servem para ocultar – em duas direções – certos aspectos da realidade social”
(MANNHEIM, 1972, p. 67). Assim, o pensamento de ideologia estaria ligado a
um estado de conservação. Para o autor, o conceito de ideologia pode ser
dividido em particular e total.

Na ideologia particular encontramos um caráter psicológico de


interesses do indivíduo, desqualificando o outrem como mentiroso ou ilusório.
Neste sentido, o autor complementa que:

Cada indivíduo participa apenas em determinados fragmentos deste


sistema de pensamento, cuja totalidade não é de forma alguma a
simples soma destas experiências individuais fragmentárias. Sendo
uma totalidade, o sistema de pensamento é integrado
sistematicamente, e não é um mero ajuntamento causal de
experiências fragmentárias dos membros isolados de um grupo.
Segue-se, assim, que somente se pode considerar o indivíduo como
portador de uma ideologia, na medida em que lidamos com aquela
concepção de ideologia que, por definição, se prende mais aos
conteúdos isolados do que à estrutura global de pensamento,
encobrindo modos falsos de pensamento e expondo mentiras
(MANNHEIM, 1972, p. 84-85).

Assim, conseguimos evidenciar que tal ideologia está voltada mais a um


pensamento individualista do que um coletivista, podendo produzir dessa forma
pensamentos falsos e mentiras.

Em contrapartida, encontramos na concepção de ideologia total a ideia


de não nos referirmos “a casos isolados de conteúdo de pensamento, mas a
modos de experiência e interpretação amplamente diferentes e a sistemas de
pensamento fundamentalmente divergentes” (MANNHEIM, 1972, p. 83), ou
seja, não se leva em conta apenas o pensamento individual, e sim o coletivo de
um determinado grupo.

Então como é possível uma ideologia particular se transformar em uma


ideologia total? Para isto é simples. Historicamente podemos observar
inúmeros fatos em que houveram contatos de diferentes grupos sociais e seus
pensamentos se tornaram “os valores básicos dos grupos contendores
constituam mundos à parte” (Ibidem, p. 91).
E como podemos diferenciar tal conceito de utopia? Diferentemente do
conceito chave de Thomas More, Mannhein considera as utopias como
“somente aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem a se
transformarem em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de
coisas que prevaleça no momento” (Ibidem, p.271), ou seja, é nítida a mudança
do pensamento, produzido pelo discurso literário, transformado em ação.

Desta maneira, Marilena complementa tal pensamento de Mannheim em


sua obra diferindo-o também ao conceito de ideologia:

Utopia é a negação do tópos da classe dominante ou uma visão


global da sociedade que se opõe à da classe dominante; é uma
elaboração da classe historicamente ascendente e expressão de seus
anseios profundos. Em contrapartida, ideologia é o sistema global de
representações e valores da classe dominante, que deformam e
mistificam a realidade social, imobilizando a consciência de classe.
Dessa maneira, a utopia não é propriamente um discurso, mas um
conjunto de práticas e de movimentos sociais contestadores da
sociedade presente no seu todo (CHAUÍ, 2016, p. 44).

Podemos chegar à conclusão de que há uma modificação de sentidos


sobre a ideia de utopia com o passar dos séculos. Encontramos primeiramente
na noção fundamental de Thomas More, em que há prevalência do
pensamento em busca de um lugar ideal. Já mais adiante, notamos o papel da
utopia como atuante, constituída pelo conjunto de práticas que contestam o
presente inserido do escritor.

Tal característica começa a se comum em obras do século XX, nas


quais os autores retratam lugares produzidos pelos regimes totalitários. Aquele
sonho e idealização de um governo pacífico e sociedade perfeita proposta pela
utopia, começa a se transformar em pesadelo, obtendo como resultado o medo
de um futuro em que tal regime continuou a vingar. O sonho está para o
pesadelo, assim como a utopia está para a distopia, conceito este que será
debatido na próxima seção.
1.2 – Distopia: o sonho que se tornou pesadelo

Toda imagem perfeita criada na utopia, recria em sua contraparte uma


imperfeição. O que pode ser considerado ideal para um indivíduo ou grupo
social, pode justificar o início de um tormento para aqueles que não se
identificam. É neste contexto tumultuado que presenciamos o surgimento da
ideia de distopia.

Como definição desse termo etimologicamente, encontramos as


palavras gregas dys, cujo significado é ruim ou mau somada a topos,
significando lugar. Em suma, o conceito significa “lugar ruim” e possui
sinônimos como antiutopia, utopia negativa e cacotopia.

Deste modo, poder-se-á elencar à distopia a noção de episteme, que


possui como conceito básico o “conjunto das relações que podem unir, em uma
época dada, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a
ciências, eventualmente a sistemas formalizados” (CASTRO, 2009, p. 140).

Explorando essa vertente, encontramos no início do século XX o estudo


do sociólogo polonês Jerzy Szachim, o qual complementa acerca do conceito
de distopia ou utopia negativa:

Para começar a discussão lembremos a verdade banal de que os


ideais humanos são extremamente heterogêneos. O que para um
parece ser a salvação é para outro pura perdição. O que atrai a uns,
repele a outros. Como notou Margaret Mead, “o sonho de um
indivíduo é pesadelo de outro”. Os sonhos da humanidade sobre a
ilha feliz não são – como já tivemos ocasião de dizer – sonhos sobre
uma e a mesma Utopia (1972, p. 112).

O filósofo Isaiah Berlin em sua obra Limites da Utopia: Capítulos da


História das Ideias (1991), segue a mesma linha de raciocínio sobre a
heterogeneidade social de Szachim. O que para a utopia é a busca do lugar
ideal de maneira harmonizada e pacífica, para a distopia é a busca da
liberdade pelo conflito:

É óbvio que a noção de uma solução harmoniosa para os problemas


da humanidade, mesmo em princípio, e, portanto, do próprio conceito
de utopia, é incompatível com a interpretação do mundo humano
como uma luta de vontades individuais ou coletivas perpetuamente
renovadas e em incessante conflito (BERLIN, 1991, p. 47-48)
Deste modo, o conceito de distopia nasce em crítica aos pensamentos
dos utopistas, os quais produziam em suas obras uma sociedade homogênea
universal, generalizando desejos tornando-os comuns a todos. Tal ideia
artificializa a sociedade, de modo que a individualização se torna extinta, pois
para o lugar ideal ser possível, todos devem seguir o modelo proposto pelo
utopista.

É a partir da segunda década do século XX que obras como Admirável


Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, Nós (1924), de Yevgeny Zamiatin e A
Revolução dos Bichos (1945), de George Orwell começaram a ganhar
destaques pela sua construção crítica a este pensamento homogêneo:

Daí o protesto – e as antiutopias – de Aldous Huxley, Orwell ou


Zamiatin (na Rússia do início da década de 1920), que pintam um
quadro horripilante de uma sociedade sem atritos em que as
diferenças entre os seres humanos são, tanto quanto possível,
eliminadas, ou pelo menos reduzidas, e o padrão multicolorido dos
vários temperamentos, inclinações e ideais humanos – em suma, o
próprio fluxo da vida – é brutalmente reduzido à uniformidade,
aprisionado em uma camisa de força social e política que fere e
estropia, terminando por esmagar os homens em nome de uma teoria
monística, do sonho de uma ordem perfeita e estável (BERLIN, 1991,
p. 48-49).

É notável que em tais obras há a construção de um modelo de


sociedade idealizada homogênea sob ótica utópica. Por outro lado, também
podemos inferir um carácter distópico nessa construção, pois os indivíduos
inseridos nesse meio são moldados no conceito de igualdade, com a
justificativa de manutenção da paz e ordem.

Do século XX em diante, foi se tornando frequente a produção de obras


que dialogam com tal conceito, a fim de utilizar em sua construção uma
sociedade oprimida por um governo autoritário que, consequentemente, sofrem
pelo abuso de poder de uma minoria. Temas como ausência de suprimentos
mínimos necessários para a sobrevivência para a população, violência
construída pelo discurso daquele que detêm o poder refletem uma sociedade
na qual não há expectativa de sobrevivência coletiva e em que o individualismo
permanece.
Por estarem presentes em lados opostos da mesma moeda, utopia e
distopia contrastam em:

Nas utopias positivas contrasta-se a sociedade ideal, concebida mais


ou menos em detalhe, com a sociedade má que é apreendida em
geral em termos bastante sumários; com as utopias negativas é o
inverso que ocorre. (SZACHI, 1972, p. 119).

Fato este é acrescentado pelas palavras Skorupa:

O ato de imaginar transformações da realidade com vistas a criar-se


uma nova e melhor, talvez, perfeita realidade, é próprio do
pensamento utópico; bem como a imaginação de uma transformação
que tenda para a deterioração e a imperfeição é característico do
pensamento distópico. Assim, pensar em termos de utopia e distopia
pode auxiliar no trabalho das imagens, de modo a esboçar a
existência ou inexistência de uma utopia ou distopia científica. (2002,
p.180)

A distopia literária se caracteriza justamente por desenvolver um


projeto literário cuja base de representação aciona mecanismos de
poder material e simbólico que alocam os sujeitos humanos em
relações de extrema negatividade, interpretados “ao rés do chão”,
diferenciando-se das narrativas utópicas naquilo que estas têm de
apresentação de um mundo/sociedade melhor: a distopia literária
confere às suas personagens um lugar num mundo “piorado” em
relação à realidade aparente, sem saídas ou utopias positivas, sem
possibilidades de sonhos para o dia seguinte, sem respostas para as
angústias inaugurais daqueles que passam a experienciar o limiar de
uma sociedade tecnocrata, injusta com a cultura e com a natureza,
priorizando princípios isolados de sobrevivência em detrimento do
apoio coletivo à manutenção dos membros sociais, estratégias essas
desenvolvidas ou postas em prática por governos totalitários e
ditatoriais (Erickson & Erickson 2006).

“Este elemento distópico é coetâneo e fruto não só dessa


nova consciência da individualidade, mas também da biopolítica
que se torna aos poucos, desde a Revolução Francesa, o centro da
política.” (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 309). Sendo assim, a
literatura cumpre o papel de compensadora crítica de uma realidade
limitada e questionada.

Para uma melhor compreensão estética e política do papel da


literatura nesse contexto, é importante ressaltar que a distopia
não é a subsunção do particular ao geral, do indivíduo ao
todo, mas sim o movimento constante de choque e negação desse
todo. O todo é falso. [...]. Este olhar para o singular resume a
revolução romântica: ao salvar o individual, ela deu um tiro na
tradição das utopias que sempre estipularam um triunfo do todo, de
um modelo da razão universal, sobre o indivíduo. [...]. Esta
reviravolta implicou, no campo da utopia, o abandono e a crítica
radical dos grandes modelos a serem imitados. (SELIGMANN-
SILVA, 2009, p. 319).

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