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Choques morfológicos e crises de sociabilidade no espaço

universitário e no espaço urbano

Luiz Augusto Fernandes Rodrigues


Universidade Federal Fluminense, Instituto de Artes e Comunicação Social, Departamento de Arte, Rio
de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: luizaugustorodrigues@id.uff.br

Submetido em 25 de março de 2019. Aceito em 25 de abril de 2019.

Resumo. O presente texto busca discutir algumas permanências do modelo


morfológico implantado no Brasil desde um pouco antes da metade do século
XX até hoje, argumentando que se privilegiou aspectos formais em
detrimento das relações sociais incitadas/permitidas pelos territórios.
Retomou-se estudos realizados sobre a produção de espaços universitários,
afirmando-se que a produção de determinados espaços urbanos de cidades
contemporâneas - em especial aqueles tratados sob a lógica da atratividade
turística, mas não somente - reforçam idealizações tão falaciosas quantas as
primeiras. Criam-se, assim, morfologias distintas que pouco dialogam:
sejam as rupturas observadas nas relações morfológicas entre espaço
universitário e espaço urbano circundante, sejam em rupturas no interior do
tecido urbano de modo geral. O texto se baseia em argumentações que
bucam reforçar qualidades urbanas assentadas nas possibilidades de reforço
da sociabilidade, ponderando que tais preceitos são minimizados por lógicas
que privilegiam a carga imagética dos espaços em detrimentos de demais
valores socioculturais.
Palavras-chave. espaço universitário, espaço urbano contemporâneo,
sociabilidades, planejamento urbano e cultural.

Introdução como um dos setores conformadores da


planejada cidade moderna (conforme
Meus estudos de doutorado desenvolvidos
preceituada pela Carta de Atenas, de 1933)
nos anos 1990 me levaram a
promoveu, em muitos casos, uma ruptura
concluir/constatar que o modelo urbano e
desastrosa e elitizada entre cidade e
arquitetônico modernista se revelou
universidade.
falacioso, mesmo que tendo se constituído
como modelo cristalizado no Brasil Em complemento a isso, os ideários do
(Rodrigues, 2001). Falacioso tanto no sentido planejamento estratégico contemporâneo da
de que uma das máximas da arquitetura virada do século XX para o XXI, ao invés de
modernista "a forma segue a função " se se afastar de soluções que já vinham se
mostrou muito mais uma retórica discursiva mostrando desagregadoras, vão na direção de
do que um parâmetro norteador de muitas acirrar determinadas características
morfologias urbanas e tipologias setorizantes e excludentes (mesmo que
arquitetônicas, podendo-se argumentar que travestidas de inclusivas e diversificadas) que
mesmo sob tal "máxima", se produziu privilegiam as relações econômicas em
campus e cidades universitárias povoadas de detrimento das relações socais, produzindo
edifícios-ícones muitas vezes com graves espaços de forte atratividade turística e de
deficiências de utilização (como questões investimentos de capitais internacionais
sonoras e ambientais do Instituto Central de globais, mas que não potencializam relações
Ciências [ICC] da Universidade de Brasília de sociabilidade e de apropriação espacial
[UnB], projetado por Oscar Niemeyer, entre mais efetiva. Pode-se observar tais resultados
outros exemplos), assim como a tanto nos estudos que desenvolvi sobre as
preconização de se ter o espaço universitário soluções urbanas implementadas na cidade

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de Niterói/RJ, a partir de projetos brasileiras se mostrou tão cristalizado que


arquitetônicos de Oscar Niemeyer algumas tentativas de ruptura se revelaram
(Rodrigues, 2015a; 2015b), assim como inócuas. A excessiva setorização do espaço
diversos estudos sobre regeneração de áreas universitário no interior de tecidos urbanos, o
portuárias pelo mundo afora, como no caso islomento espacial e ruptura morfológica
da região do Porto Maravilha (Rio de (modelo modernista intra-campus versus
Janeiro/RJ) que apontam o mesmo tipo de soluções mais vernaculares extra-muros)
solução: espaços de forte atratividade embora tenham gerado soluções guetificadas,
turística e de consumo estruturados a partir se mostraram tão enraizadas e cristalizadas
de soluções arquitetônicas emblemáticas que inviabilizaram propostas diferenciadas
"assinadas" pelos mais reconhecidos desse modelo. Exemplos são muitos, mas
arquitetos internacionais. destacamos aqui três momentos conjunturais:
a implantação da Cidade Universitária da
Acrescente-se, ainda, que se percebe
Universidade do Brasil a partir do final dos
inclusive soluções arquitetônicas
anos de 1930; a construção do Campus
contemporânas falaciosas, conforme
Universitário da Universidade de Brasília no
comentado anteriormente em relação ao
início dos anos 1960; a tentativa derrotada de
campus universitário; "a forma segue a
implantar a área de ciências humanas da
função" parece nem sempre vigir mesmo
Universidade Federal do Maranhão em parte
hoje em dia, podendo-se ilustrar com projeto
do Centro Histórico de São Luís.
do próprio arquiteto Oscar Niemeyer: o
projeto do Teatro Popular Oscar Niemeyer Soluções urbanas mais contemporâneas vêm
apresenta uma parede lateral toda em vidro, o produzindo espaços de forte atratividade
que o torna inadequado à função teatral turística assentada em valores icônico-
quando se considera a entrada de imagéticos, mas nem sempre acompanhados
luminosidade, tanto de dia quanto à noite. de soluções que potencializem suas
Também em relação às morfologias urbanas dimensões sócio-relacionais; voltaremos e
percebe-se muito mais permanências do que exemplificaremos tal assertiva mais à frente.
rupturas quando se observa o modelo
Este texto busca reforçar a necessidade de
norteador de meados do século passado e o
soluções urbanas capazes de se contrapor a
modelo atual, mesmo após toda as críticas
essa lógica, se configurando como
tecidas em relação ao modelo urbano
alternativas que possam justificar a expressão
modernista: setores inteiros de muitas de
de Walter Benjamin (2012, p. 245) ao propor
nossas cidades ainda são pensados/planejados
"escovar a história a contrapêlo". Busca-se
desconsiderando a necessária diversidade
refletir sobre a produção do espaço e as
funcional dos espaços (cf. Jacobs, 1977, entre
práticas socioculturais resultantes e
outros). Como exemplo podemos citar o
vislumbrar/flagrar formas de produção de
Caminho Niemeyer em Niterói/RJ (que será
espaço que tragam reforço à sociabilidade.
melhor explorado ao longo deste artigo) que
apresenta uma grande área formada por Resistências e cristalização do moderno na
apenas edifícios com uso cultural, arquitetura brasileira
caracterizando-se como um local pouco
frequentado (à exceção de momentos de O Rio de Janeiro do século XIX nos lembra a
fluxo de turistas ou de grandes eventos) por cidade grega. Não que o tivéssemos dividido
conta de sua monofuncionalidade (a em uma área sagrada, e outra residencial e
apropriação desse local por jovens em busca pública; em certos casos, até tínhamos os
de utilizar suas superfícies lisas para prática mosteiros e igrejas coloniais assentados nos
de alguns esportes é reiteradamente principais morros centrais. Não é a isso que
"negada", como será mais detalhadamente pretendo me ater, mas sim olhar a realidade
explorado). habitacional daquele momento – o século
XIX –, onde elites ricas e população pobre
Se o campus moderno/modernista se mostrou conviviam lado a lado, tendo como
um modelo falacioso diferenciação entre eles forma e tamanho de
uniforme/uniformizador, o modelo urbano suas residências e não locais propriamente
atual se mostra regido por lógica similar. separados conforme a condição econômica,
Ressalte-se, aqui, breves referências tal qual a cidade da antiguidade grega.
empíricas: o modelo urbano implantado nos
espaços físicos da maioria das universidades
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Essa convivência espacial de classes modernização: política, industrial, financeira


diferentes acirra-se tanto com a vinda da corte e espacial.
portuguesa para o Brasil (aumentando
O Brasil já vinha despontando, nos primeiros
quantitativamente a elite, aristocrática),
anos do século, no campo literário e artístico
quanto com a ascensão da economia cafeeira
modernista. Só para lembrar: o manifesto
e a independência política (aumentando
futurista divulgado por Oswald de Andrade
quantitativamente a elite, urbana e
em 1912; as exposições de arte moderna de
capitalista), momento em que o centro da
Anita Malfati (em 1917, em São Paulo) e de
cidade passa a acolher, cada vez mais,
Di Cavalcanti (em 1921, no Rio de Janeiro); a
escravos livres e homens pobres dedicados
Semana de Arte Moderna em 1922; a
aos serviços urbanos. São duas ordens
publicação de Macunaíma de Mário de
econômicas que se sobrepõem – escravista e
Andrade em 1928. Em termos de arquitetura,
capitalista – e duas classes distintas que se
era o neocolonial que ganhava adeptos e que
avizinham.
marcava um movimento de renovação de
A partir de fins do século XIX, os novos cunho nacionalista. Chamando a si, também,
meios de transporte implantados na antiga o cunho nacionalista, o modernismo tenta
cidade colonial – bonde a burro e trem a impor-se como “arte nacional sem
vapor – vão permitir que tais classes tão nacionalismos”, conforme palavras de Di
díspares tomem direções opostas, uma rumo Cavalcanti. Le Corbusier foi o paradigma
ao sul, outra rumo ao norte. Coube, dessa vertente arquitetônica moderna.
principalmente, à área central, ainda manter
Pesquisei, ao longo da década de 1990,
usos comuns para classes diferentes, porém
morfologias do espaço universitário.
não por muito tempo, pois as reformas
Peguemos como ilustração o projeto da
urbanas do início do século XX vão tratar de
Cidade Universitária da Universidade do
pôr “ordem” ao espaço urbano central carioca.
Brasil. Embora tenha havido todo um
Com justificativas que vão desde melhores empenho por parte do Governo Federal,
condições de higiene esaúde pública até o representado aqui na figura do Ministro
embelezamento e ordenamento necessários Gustavo Capanema, foram difíceis os
para pôr a capital da República no rol das caminhos desse projeto modernista. As
“modernas” cidades do mundo, inicia-se, tendências eram várias e as opiniões da
deforma mais explícita, o processo de intelectualidade e dos técnicos da época
apartamento das distintas classes sociais da divergiam em muitos pontos. As propostas da
cidade. equipe italiana Piacentini-Mopurgo, volta e
meia, eram retomadas. As ideias formuladas
Não pretendo alongar-me nesse período – já
por Le Corbusier, embora tenham influído no
tão trabalhado sob infindos enfoques –, e sim,
projeto finalmente levado a cabo, não f oram
apenas, ilustrar esquematicamente os
aceitas totalmente. Enfim, o projeto que
primeiros momentos de guetificação, daquela
visava dar forma nova à materialização
que se tornaria a primeira cidade brasileira a
arquitetônica-urbanística no Brasil da
entrar nos rumos da modernização urbana.
maneira mais abrangente, e com o respaldo
A velha cidade colonial, de feições medievais do Governo Federal, não foi hegemônico
(ruas estreitas, densos casarios mesclando naquele momento , haja vista a longa demora
moradia e trabalho, ocupações estratégicas e as alterações a que foi submetido o projeto
dos morros) cedia lugar a um ideal novo: urbanístico daquela universidade.
modernas áreas portuárias, modernos meios
Se a construção do MES - Ministério de
de transporte – o bonde elétrico e o automóvel
Educação e Saúde1 - já dera alguns louros ao
–, modernos edifícios-símbolos da nova
governo varguista2, como promotor da nova
ordem capitalista, cafeicultora e imobiliária.
arquitetura moderna, a construção da Cidade
Enquanto estilo arquitetônico, vivia-se, ainda,
Universitária ratificaria e assentaria,
sob o signo de um ecletismo de cunho
definitivamente, tal posição. Os caminhos, no
classicista, ou mesmo neocolonial. A forma
entanto, esbarraram em resistências. No final,
urbana modernista virá somente depois.
vence o projeto modernista de inspiração
É nos anos 1930 que as correntes corbusiana. Mais do que isso, aos poucos vai
arquitetônicas modernistas vão ter eco no despontando e marcando definitivamente o
Brasil. O país em construção durante o seu lugar, a moderna arquitetura brasileira.
Governo Vargas é o país em fase de “O Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de
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Nova York, em 1939-40, consagrou surgirem propostas de revisão do


definitivamente Lúcio Costa e Oscar modelo, que praticamente não saem do
Niemeyer”, como nos afirma o professor papel, ou são inexplicitamente rejeitadas.
Carlos Lemos (1979), abrindo o caminho que Importante exemplo foi o que aconteceu
os colocaria na posição de emblemas com a Universidade Federal do
nacionais de nossa arquitetura. Maranhão. No início dos anos 1980,
Estabeleci, a partir de minhas pesquisas de técnicos do MEC (Ministério da
pós-graduação, três diferentes fases da Educação e Cultura) conseguiram
implantação do modernismo arquitetônico convencer o BID (Banco Interamericano
no Brasil: a construção do signo modernista de Desenvolvimento) quanto à aplicação
(e as resistências inerentes à construção de dos recursos financeiros contratados
um novo signo, de uma nova ordem junto ao Acordo MEC-BID III na
estético-cultural); a naturalização desse
consolidação de ao menos parte da área
signo, a sua incorporação definitiva; e, uma
vez perfeitamente incorporado, a física daquela universidade no Centro
idealização que fez dele um signo estanque Histórico (no caso, a área de ciências
(e as resistências domoderno a mudanças, a humanas, que não demandaria
alterações em seu significante). Tal instalações e laboratórios mais
periodização tem rebatimentos claros complexos e diferenciados). Convence-se
quando se observa o espaço universitário o agente financiador, mas a proposta foi
brasileiro: rejeitada pela comunidade universitária.
▪ 1ª fase (1930/1960) - caracterizada pelas A Figura 3 nos apresenta a proposta do
propostas de Cidades Universitárias, MEC de utilização de quadras no Centro
seguidoras de uma ótica funcional Histórico.
conforme retratada na Carta de Atenas Esta periodização pode ser associada às
(1933). Pela Figura 1, observa-se: a) a reflexões em formulação: a) uma 1ª fase,
setorização prevista para o Plano Diretor caracterizada pela resistência ao
da Universidade Federal do Rio de modernismo, e que seria o momento dos
Janeiro/UFRJ; b) a separação formal esforços para sua implementação; b) uma 2ª
entre espaço urbano e espaço fase, na qual o projeto de modernidade da
universitário, unidos por duas pontes, arquitetura brasileira já se encontra
assim como a morfologia interna do definitivamente assentado; c) uma 3ª fase,
campus que, através de grandes quadras e desdobramento da anterior, na qual se vê uma
pregnância tão acirrada do modelo, que
separação de acessos motorizado e
inviabiliza qualquer proposta de ruptura, na
peatonal, corrobora a ruptura com a
qual o que se constata é a resistência do
morfologia mais vernacular que estrutura moderno. Uma idealização da modernidade,
o tecido urbano (aqui não representado). tida então como modelo único, não
▪ 2ª fase (nos 20 anos seguintes) - pluralizado, cristalizado.
Tecidas, anteriormente, algumas das forças
caracterizada pelos modelos de Campi
que compuseram a 1ª fase, vejamos, então,
Universitários, definidos segundo uma
certas forças que compõem as demais.
ótica muito próxima à anterior, e
diferenciando-se daquela, O modelo urbano modernista, proposto ao
principalmente, em relação ao tratamento longo da década de 1930, encontrou eco nas
dos edifícios. Pela Figura 2, observam-se propostas de algumas das maiores
universidades brasileiras: a UB (hoje
o zoneamento setorizado e a separação
UFRJ), a USP, a UFMG3, principalmente.
dos meios de acesso – motorizado e Encontrou ressonância, também, em várias
peatonal – tal como observado na Figura propostas de renovação e/ou ampliação
1. urbana, podendo-se destacar o projeto do
▪ 3ª fase (pós-1980) - caracterizada pela bairro da Pampulha em Belo Horizonte
como o de maior relevância, e aquele que
manutenção do modelo anterior, embora
poria Oscar Niemeyer como o emblema,
este apresente claros sinais de não só de nossa arquitetura oficial, mas,
esgotamento e muitas críticas. Vê-se

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efetivamente, como o emblema da Construída Brasília, falácia


arquitetura brasileira. democrática oferecida ao consumo da
parcela mínima da população
brasileira que podia assumir a
‘cidadania’ proposta pelo Plano-
Piloto, dedica-se, nos anos 60, a
oferecer os mesmos esquemas
racionalistas para os de mais baixa
renda. [O Governo] Financia, através
do BNH, os Conjuntos Habitacionais.
[...]

As cidades teriam de se configurar


pelo código racionalista porque todos
os brasileiros, não importando as
enormes diferenças interclasses,
teriam em comum uma só razão.
Ao modelo morfológico de Brasília, baseado
na rígida separaçãodos espaços por funções
específicas (o que é, na verdade, ainda um
reflexo daCarta de Atenas com suas funções
urbanas: morar, trabalhar, circular,
sedivertir), juntou-se o modelo educacional
universitário proclamado por certossetores da
sociedade, e posto em prática a partir da
criação da UnB/Universidade de Brasília. O
Figura 1. Plano físico da Universidade Federal do ensino separado em setores (departamentos)
Rio de Janeiro (UFRJ), conforme acervo do permitia que o espaço se moldassesegundo a
Escritório Técnico da Universidade do Brasil mesma lógica. Os campi universitários
(ETUB) (fonte: ETUB apud Rodrigues, 2001, p. serviriam, então, como palco de realizações
98) urbanas racionalistas/modernistas.
Assistiu-se, nas décadas que seguiram a
Quando a II Guerra Mundial acabou, a criação da UnB, a soluções reflexas desta,
arquitetura brasileira já tinha cruzado fosse no norte ou no sul, fosse em
fronteiras. Em 1942 o Museu de Arte universidades públicas ou privadas, leigas ou
Moderna de Nova York fizera uma confessionais.
exposição sobre nossa arquitetura,
confrontando o tradicional e o moderno, da As críticas ao modernismo pouco
qual resultou a publicação Brazil Builds, conseguiam atingir a produção arquitetônica
com 40 projetos modernistas. brasileira. Estávamos imbuídos da certeza do
modelo certo, afinal, fora ele que melhor
Não existiam mais motivos para se buscar divulgara o País. Sua grandiosidade era
técnicos estrangeiros, tínhamos os possível e desejável a um Brasil-grande-
melhores. Niemeyer projetou a Pampulha potência e país do milagre econômico -
(1939-1941) e, junto com Lúcio Costa, máximas da conjuntura da ditadura militar
Brasília (1957-196l). Se Getúlio Vargas e vigente no País de 1964 a 1985. As grandes
Gustavo Capanema haviam sido os somas em empréstimos mundiais contratados
mecenas da primeira fase, Juscelino junto ao BID/Banco Interamericano de
Kubitschek foi o da segunda - Desenvolvimento, mais do que melhorar a
enquantoPrefeito de Belo Horizontee qualidade do ensino e da aprendizagem nas
depois Presidente do Brasil. O Rio de universidades, serviam para dotar-lhes de
Janeiro a capital-ícone da primeira modernos espaços físicos.
fase;Brasília a capital-ícone da segunda.
Como asseverou Carlos Nelson dos Santos
(1988, p. 43-44):

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Figura 2. Plano físico da Universidade de Brasília (UnB), conforme proposta de zoneamento constante
dos documentos do Acordo entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) (fonte: Programa MEC/BID I apud Rodrigues, 2001, p. 134).

Nem a “crise do milagre”, a revogação do


AI-5, ou o início de uma “abertura política”
conseguiram favorecer novos olhares sobre o
planejamento urbano segregador. O
descrédito da velha fórmula (planejamentos
desenvolvimentistas; planos diretores
centrados em longos levantamentos
quantitativos; conjuntos habitacionais
segregados e monótonos) não resultou na
busca de outras possibilidades. As propostas
novas acabavam recaindo na velha solução.
A construção do signo modernista único
mostrava-se ainda forte.
É de novo Santos quem argumenta:

Se algo deve ser destacado nas


tipologias urbanas brasileiras é sua
insistência em soluções emblemáticas.
Háquase cem anos, Estado e
sociedade investem, de comum acordo,
em um futuro que pode ser apressado
através da construção de novas
cidades. A cidade, símbolo
econsequência do progresso, é usada
Figura 3. Proposta de implantação de parte do como sinédoque. (Santos, 1988, p. 65)
campus da Universidade Federal do Maranhão no
Em relação ao espaço universitário, os anos
Centro Histórico de São Luís, conforme acervo do
Centro de Desenvolvimento e Apoio Técnico à
1980 viram surgir propostas que apontavam
Educação (CEDATE) do Ministério da Educação rupturas com o modelo vigente. Pode-se citar
e Cultura (MEC) (fonte: MEC/CEDATE apud o projeto de adensamento da Universidade
Rodrigues, 2001, p. 186) Federal de Goiás na Praça Universitária
(Centro de Goiânia), o projeto para a
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Universidade Federal do Maranhão no usado para informar estratégias


Centro Histórico de São Luís, o projeto de coletivas, planejamento de processos,
eixos de integração para o Campus da UnB. ou outras iniciativas. Estes bens são
Todos projetos “derrotados”! tangíveis, ou quantitativos (por
exemplo, espaços físicos, as
Somando-se à uniformização do modelo
organizações culturais, formas
físico, pode-se acrescentar que a setorização
públicas de promoção e auto
espacial criada resultou em certa guetificação
representação, arte pública, indústrias
do espaço, seja em relação aos diálogos
culturais, patrimônio natural e
universidade/cidade, seja quanto às relações
cultural, arquitetura, pessoas,
sociais geradas intra-campus universitário.
artefatos e outros recursos materiais)
Edifícios-ícones e campi segregados se
e intangíveis, ou qualitativa (por
mostram tão inibidores e reificadores quanto
exemplo, valores e normas, crenças e
imagens-símbolos produzidas
filosofias, linguagem, narrativas da
contemporaneamente em muitas de nossas
comunidade, histórias e memórias,
cidades, como exemplificam o Museu do
relações, rituais, tradições,
Amanhã na área portuária da cidade do Rio
identidades e sentimento comum de
de Janeiro, e o Museu de Arte
lugar). Juntos, esses bens ajudam a
Contemporânea na cidade de Niterói.
definir as comunidades (e ajudam as
Acredita-se que as cristalizações observadas comunidades a se definirem) em
em relação ao espaço universitário termos de identidade cultural,
acontecem de maneira similar quando vitalidade, senso de lugar e a
enfocamos outros espaços da cidade, em qualidade de vida.
especial produções mais contemporâneas,
assentadas na atratividade turística e de Defendemos que se fortaleçam ações e
capitais internacionais, como abordaremos e pesquisas que se apoiem na possibilidade de
ilustraremos mais ao final do artigo. se estudar mecanismos de maior integração
entre ações governamentais e formas de
Aproximações metodológicas participação social, entendendo-os como
subsídios para melhores soluções para as
Precisamos, urgentemente, desenvolver cidades, assim como para a
metodologias que nos ajudem a identificar produção/ampliação de novos e maiores
potências (e mesmo inibições) nos modos repertórios que suportem nossas práticas
possíveis (e mesmo permitidos) de efetiva culturais.
apropriação dos espaços com reforço das
sociabilidades. Venho apostando na Considera-se que as metodologias apontadas
utilização de métodos que mesclem a trazem expressivos aportes de experiências
dimensão urbana e a dimensão cultural, em no campo do planejamento (tanto urbano
especial duas estratégias metodológicas de quanto cultural) ao se afastar de perspectivas
discussão mais contemporânea: o Cultural somente econômicas e administrativas na
Mapping e o Multicultural Planning; ambas direção de possibilidades identitárias, cidadãs
apoiadas no conceito de diversidade cultural e participativas que se apoiam na ideia de
–cada vez mais presente nas realidades diversidade cultural com reforço das
urbanas em geral. diferenças e maiores possibilidades de
inclusão social, e que se configuram como
O Cultural Mapping é uma ferramenta que importantes ferramentas do chamado
busca auxiliar o planejamento urbano Multicultural Planning – que pretende ouvir
combinando recursos culturais, sociais, as vozes esquecidas, superando o risco de
territoriais etc. Como apontam Duxbury, ignorar as diferenças e, desse modo, se
Garret-Petts e MacLennan (2015, p. 22, opondo ao caráter pretensamente universal (e
tradução minha): uniformizador) das práticas de planejamento.
cultural mapping é considerado como Mohammad Abdul Qadeer e Sandeep Kuman
uma ferramenta sistemática para Agrawal (2011, p. 132, tradução minha)
envolver as comunidades na assim argumentam sobre o Multicultural
identificação e registro dos bens Planning:
culturais locais, com a implicação de
que esse conhecimento será então Usando a noção de políticas
muticulturais como base para a
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formulação de um questionário, vamos territorialidades que se rebatam nos valores


examinar os departamentos de culturais dos usuários, e com isso reforcem
planejamento urbano das regiões práticas e relações de sociabilidade.
metropolitanas com uma alta taxa de
imigrantes nos Estados Unidos e no Fundamentos
Canadá. Passar em revista a noção de A cidade nos tempos atuais vive um grande
políticas multiculturais, apesar de impasse, considerando que os espaços
condições limitadas, revela diferenças coletivos estão perdendo seu uso de forma
interessantes na prática do crescente e a princípio por questões diversas:
planejamento urbano. [...] Tal prática 1. pela questão da segurança, pois se tem
vai para além do quadro teórico, e medo de ficar em espaços livres de forma
preconiza principalmente maior desinteressada; 2. pela questão ideológica,
sensibilidade para as diferenças que demanda o uso de espaços mais
culturais e uma ênfase sobre a privatizados como praças de shoppings e
participação das minorias étnicas espaços mais fechados e restritos; 3. pela
Ainda seguindo propostas do Multicultural questão do modelo urbanístico, uma vez que
Planning, Leonie Sandercock (2005) aponta os espaços são valorizados mais por sua
a necessidade de captura de discursos carga imagética do que relacional, ou seja,
diversos sobre as experiências vividas nas espaços esteticamente valorizados, mesmo
cidades e cujas histórias precisam ser que com pouco uso (verdadeira falácia; uma
"resgatadas" (e propõe a sua gravação em "permanência" do modelo arquitetônico-
vídeo como metodologia de trabalho) e que urbanístico moderno que se estrutura muito
devem se transformar em estratégias para o mais a partir da solução icônico-imagética do
planejamento. Eis como a autora argumenta que das soluções relacionais entre forma
sobre o uso das histórias no planejamento: arquitetônica e vida urbana). Ou seja, cidades
"Foi o processo de narração de histórias que pensadas como cenários; então proponho
levou as pessoas a superar 'as minhas tensionar o espetáculo que vem sendo a
necessidades versus as suas necessidades' cidade.
para chegar a um 'plano mais elevado' em Atualmente, venho pesquisando algumas
direção a algum objetivo comum" (p. 295). A relações entre práticas de planejamento
autora destaca que "nos contextos urbano e práticas culturais lato sensu, em
multiculturais, geralmente há uma cultura especial observando o esvaziamento de uso
dominante cuja versão de eventos, de em espaços públicos; ou mesmo usos
comportamento e de práticas constitui a intensos, mas "esvaziados" de sociabilidade.
norma implícita" (p. 300). Sandercock (2005,
p. 292) propõe como metodologia a gravação Em meus estudos de doutorado (meados dos
em vídeo argumentando que: anos 1990), analisei aspectos morfológicos
do espaço universitário (e as concepções
Primeiro, há uma estrutura temporal arquitetônicas e político-ideológicas que lhes
ou sequencial, que muitas vezes deram suporte). Me ocupei, naquele
envolve o tique-taque de um relógio momento, em perceber como o projeto
para criar tensão dramática. Segundo, modernista que deu base ao projeto
há um elemento de explicação ou morfológico universitário (em especial no
coerência, em vez de uma enumeração Brasil) se tornou modelo vitorioso e
de uma coisa depois da outra. hegemônico, e como tal modelo inibe/impede
Terceiro, há algum potencial para relações sociais mais plenas. Embora eu
generalização, para ver o universal no tenha desviado meu objeto de pesquisa do
específico, o mundo em um grão de espaço universitário para o espaço urbano em
areia. Quarto, há a presença de si, venho buscando retomar o objeto inicial.
convenções genéricas e reconhecidas Meu objetivo é dar prosseguimento às
que se relacionam com uma estrutura minhas reflexões atuais, ou seja, buscar
esperada, uma estrutura de enredo e compreender aspectos culturais e de
protagonistas. sociabilidade presentes na cidade
Acreditamos que flagrar percepções e formas contemporânea (ainda impactados pelas
de recepção do espaço contribui de forma críticas dos situacionistas e dos críticos à dita
decisiva para melhor produzir arquitetura neomoderna), mas fazendo o

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devido cruzamento com a temática de meus Outro exemplo de construção de políticas


estudos anteriores (ou seja, os espaços culturais para o território a partir de grupos
universitários e a separação entre espaço sociais pode ser observado na prática
universitário e a cidade como um todo). corrente das Rodas Culturais que vêm
ocupando diversas praças de várias cidades
Tais análises, acredito, em muito podem
com atividades ligadas à cultura hiphop,
contribuir com críticas às soluções que hoje
como as Batalhas de Rima entre outras
são pensadas para as cidades
expressões. Esta questão será retomada mais
contemporâneas, especialmente a partir de
adiante.
grandes projetos de cunho turístico e cultural.
Venho buscando refletir sobre políticas Os exemplos são vários, mas ficamos por
culturais para os territórios assim como aqui com apenas uma ilustração do que
políticas urbanas que fomentem práticas queremos defender como construção de
culturais, construídas com participação políticas culturais para além das gestões
comunitária. Política concebida como públicas governamentais, numa espécie de
exercício de nossos direitos e disputa por duplo exercício em que os cidadãos também
nossas concepções de mundo e de vida. Por constroem políticas e ressignificam
mais que as políticas tendam a ser entendidas processos.
como ações governamentais, é bom reforçar
que todos nós podemos construir políticas a Direito à cultura
partir de nossas ações coletivas. Começo fazendo eco às palavras de
Meu foco são políticas culturais e políticas Alexandre Barbalho (2009, p. 2-3, tradução
para os territórios. Comecemos pelas minha da citação de Bolán) quando aponta
políticas culturais e trazendo o entendimento que
de Néstor García Canclini (1990, p. 26,
traduição minha), que a define como o política cultural (cultural policy) diz
respeito ao universo das políticas
conjunto de intervencões realizadas públicas voltadas para a cultura
pelo Estado, por instituições civis e implementadas por um Governo. Em
por grupos comunitários organizados outras palavras: “um processo no qual
afim de orientar o desenvolvimento o Estado impõe um tratamento político
simbólico, satisfazer as necessidades – isto é, resultado do debate público
culturais da população e obter sobre o sentido da ação do Estado –
consenso para um tipo de ordem ou de àquilo que chama cultura” e cujos
transformacão social. objetivos consistem em
“ordenar,hierarquizar ou integrar um
Os exemplos que se pode apontar são vários, conjunto necessariamente heterogêneo
mas atento-me ao caso da região oceânica do de atores, discursos, pressupostos e
município de Niterói/RJ. A região não conta práticas administrativas” (Bolán,
com nenhum equipamento cultural público (e 2006, p.60). Já as políticas de cultura
mesmo quase nenhum equipamento cultural, (cultural politics) se referem às
à exceção de alguns ateliês de artistas disputas de poder em torno dos
visuais). O projeto Ponto de Cultura Niterói valores culturais ou simbólicos que
Oceânico – por mim coordenado a partir de acontecem entre os mais diversos
edital do Ministério da Cultura, de 2006 a estratos e classes que constituem a
2012 – passou a representar um importante sociedade. Apoiando-se em Jim
lócus de construção de política, tanto para McGuigan (1996), podemos afirmar
alavancar ações no âmbito da cultura quanto que elas dão conta do confronto de
na produção de um território de idéias, das disputas institucionais e
sociabilidades, e mesmo criar condições das relações de poder na produção,
iniciais para diversos jovens assumirem circulação/distribuição e
autonomia em suas ações políticas, e recepção/consumo de bens e
satisfação de algumas de suas necessidades significados simbólicos. Deve-se
culturais (assim como a criação de outras entender que as dimensões da cultural
tantas demandas de acesso a outros policy e da cultural politics não são
repertórios e práticas culturais e artísticas), independentes, muito pelo contrário,
corroborando o apontado por Canclini. são interdependentes, já que as ações

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e disputas de uma alimentam a outra e cultura de sua suposta autonomia e


vice-versa (Ortiz, 2008). utilizá-la como recurso para intervir
na transformação social. As políticas
Estou aqui buscando reforçar a ideia de que culturais atuais devem posicionar-se,
as políticas culturais são e precisam ser acima de tudo, como agentes críticos
pensadas a partir da noção de da modernidade que Walter Benjamin
compartilhamento de sua construção e figurou como um pavio aceso. Em sua
gestão; e aqui não estou nem minimamente opinião o progresso, liderado somente
me referindo a certos entendimentos de por uma pura acumulação do capital,
gestão pelo viés empresarial ou não se dirige ao desenvolvimento, mas
empreendedorista. Gestão de políticas à destruição do mundo. Benjamim
culturais é aqui entendido com seu acento da sustentava: “É preciso cortar o pavio
palavra cultura e não na palavra gestão ardente antes que a chama alcance o
(perspectiva já trabalhada nos textos dinamite” ([1955] 1987, p. 64).
(Rodrigues, 2009; 2012 e Rodrigues &
Correia, 2017). Quero, com isso, reforçar que o campo das
políticas culturais deve criar condições de
Além de buscar fortalecer e reafirmar a
expressão para todos os sujeitos sociais em
noção de política e de gestão cultural a partir
seus mais diversos universos simbólicos,
do viés do compartilhamento de suas
satisfazendo e ampliando repertórios
construções, reforço aqui duas outras ideias a
estéticos e relacionais, e reforçando
embasá-las. Primeiro a questão acionada por
condições de coesão social. Ainda tem se
Nancy Fraser ao chamar atenção para o fato
mostrado necessário retirar a compreensão
de que as lutas por reconhecimento
sobre cultura de sua suposta ligação a
identitário dos diversos e diferentes modos
determinados padrões e valores estéticos
culturais não devem ser concebidas sem a
(muito redutores) e/ou apenas à valorização
necessária luta por redistribuição de renda e
de determinadas práticas e concepções de
construção de condições econômicas mais
mundo (também – tendencialmente – muito
igualitárias. As premissas do reconhecimento
redutores); é preciso desculturalizar a noção
multicultural não são plenas sem justiça
de cultura para que as políticas de cultura
social:
sejam mais amplas, inclusivas, integradas,
A “luta por reconhecimento” está estruturantes, instituintes, enfim políticas
rapidamente se tornando a forma culturais que reforcem também universos
paradigmática de conflito político no éticos ampliados, e se destacando que
final do século XX. Demandas por maiores vínculos sociais e sociabilidades
“reconhecimento da diferença” dão mais plenas tendem a reforçar tal
combustível às lutas de grupos possibilidade.
mobilizados sob as bandeiras da
nacionalidade, etnicidade, “raça”, Direito à cidade
gênero e sexualidade. Nestes conflitos Assim como as condições econômicas, e
“pós-socialistas”, a identidade de como reflexo destas, as condições de uso e
grupo suplanta o interesse de classe apropriação dos espaços são muito desiguais
como o meio principal da mobilização entre os possíveis usuários e fruidores das
política. A dominação cultural cidades. Tanto as opressões econômicas
suplanta a exploração como a quanto outras opressões negam
injustiça fundamental. E o recorrentemente nosso direito à cidade. As
reconhecimento cultural toma o lugar interseccionalidades se impõem sobre muitos
da redistribuição socioeconômica de nossos direitos. Quem frequenta e quem
como remédio para a injustiça e não frequenta os espaços mais formais da
objetivo da luta política. (Fraser, cultura? Quem se apropria e quem não se
2006, p. 231) apropria dos diversos espaços das cidades?
Tanto algumas práticas culturais quanto
Acrescentem-se, também, a concepção sobre
alguns territórios não negados a alguns
desculturalizar a cultura apontada nas
sujeitos, e fica evidente a reduzida
palavras de Victor Vich (2015, p. 20):
mobilidade e apropriação na/da cidade
A proposta de desculturalizar a gerada por questões de gênero, de condição
cultura implica então em arrancar a econômica, de raça etc.

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O território não é neutro, tendo seus usos Em publicação mais recente, a autora reforça
permitidos, estimulados, proibidos. Vive-se sua proposição sobre a insurgência dos
forte disputa e conflito entre a dominação do espaços inventados:
espaço pelo Capital e pelo Estado
(normalmente atuando em parceria) e a O planejamento insurgente avança
apropriação do mesmo pelos usuários. essa tradição ao abrir a teorização do
planejamento a outras formas de ação,
A definição de território apresentada por para incluir não apenas formas
Barbosa (2017, p. 13) mostra-se oportuna selecionadas de ação dos cidadãos e
para aclarar o entendimento que queremos de suas organizações sancionadas
corroborar: pelos grupos dominantes, as quais
designo de espaços de ação
Afigura-se um conceito de território
convidados; mas também as
como um conjunto complexo e
insurreições e insurgências que o
indissociável de práticas sociais –
Estado e as corporações
econômicas, políticas, culturais,
sistematicamente buscam colocar no
ideológicas – que se revela como
ostracismo e criminalizar – que
escrita temporal de sujeitos e como
designo de espaços de ação
impressão espacial de ações, técnicas
inventados. [...] Os dois tipos de
e objetos no chão de nossas
espaços que discuto encontram-se em
existências. É assim que as
uma relação dialética e de interação
contradições, os conflitos e as disputas
mutuamente constituída, não em uma
sobre os rumos de uma sociedade
relação binária. Evidências concretas
ganham visibilidade e praticidade. E, é
mostram que as práticas dos
claro, onde as relações de
movimentos sociais, que almejam
solidariedade, amizade e confiança
alcançar mais do que as necessidades
também marcam sua insistente
individuais, que é a meta da inclusão
presença para renovar o presente e
liberal, frequentemente tem de se
inventar outro futuro.
mover através e entre aqueles espaços
Acontece que, e seguindo a perspectiva da de acordo com as necessidades
produção capitalista do espaço, na maioria específicas da luta. Mas instituições de
das vezes os espaços são produzidos com poder, tais como a mídia dominante, o
ênfase em seu valor de troca; queremos aqui Estado, organizações internacionais
evidenciar que os territórios sejam de ajuda, configuram esses espaços
produzidos sob outra lógica que não a do convidados e inventados em uma
mercado: produção do espaço por seu valor relação binária, e tendem a
de uso - sobre este tema, pode indicar os criminalizar os últimos, designando
textos de Rodrigues (2015a; 2015b). apenas os primeiros como espaços
“apropriados” para as vozes e
A arquiteta urbanista iraniana Faranak participação dos cidadãos. (Miraftab,
Miraftab (2004; 2016) propõe duas 2016, p. 368-369)
terminologias, designando por espaços
convidados aqueles sob controle e produção Constatamos a crueldade (às vezes
por parte do Estado e grupos hegemônicos, e ostensivamente, às vezes sob a tônica da
espaços inventados aqueles produzidos pela ideologia no plano do imaginário) que Estado
informalidade dos grupos sociais que se e Capital fazem para inibir a livre produção
apropriam dos espaços, mas que são muitas espacial e o pleno direito à cidade, sua
das vezes “criminalizados”. produção e apropriação.
Miraftab (2004, p. 1, tradução minha) assim Alguns exemplos observados em pesquisas
apresenta: “Espaços 'Convidados' são ajudam na ilustração. Praças públicas de
definidos como aqueles ocupados por grupos nossas cidades vêm sendo palco de rodas
sociais e suas organizações não- culturais (com batalhas de rima e demais
governamentais aliadas que são legitimadas expressões da cultura hip hop), manifestações
pelo governo. Espaços 'Inventados' são que costumam dotar esses espaços públicos
aqueles, também ocupados por bases sociais de maior vitalidade e laços de coesão social e
e suas ações coletivas, mas que confrontam afetividade. Muitas das vezes tais práticas
diretamente as autoridades e o status quo". artístico-culturais são criminalizadas e os

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jovens delas praticantes são coagidos, "pensados" de modo falacioso. A imagem


constrangidos e/ou alijados, geralmente por mostra outro trecho do Caminho Niemeyer,
aparatos policiais. Entender formas novas e no Centro de Niterói. O local é visitado
mesmo recorrentes de apropriação dos sobretudo por turistas que querem apreciar as
territórios coletivos e sua potência em termos obras desse famoso arquiteto. Os moradores
de sociabilidade pode promover e reforçar a da cidade por vezes pouco conhecem o lugar,
disputa por políticas urbanas e culturais mais mesmo aqueles que moram no Centro.
inclusivas e socialmente justas (ver Muitos jovens têm se dirigido para esse local
Rodrigues & Correia, 2017). Pudemos após as aulas, mas muitas vezes têm sido
observar relações hostis em várias Rodas impedidos de entrar – o local é todo gradeado
Culturais, com forte rejeição e preconceito – sob alegações de que há pouco
aos jovens delas participantes, com policiamento para efetivo controle do espaço
expressões do tipo "são marginais esses [sic]. A situação se altera quando são
jovens que ficam cantando aqui na praça; previstos eventos, acentuando a negação de
falam palavrões e usam argumentos bem que esse espaço seja um lugar público de uso
impróprios"; "a única coisa boa que acontece corrente na cidade. Na Figura 5 podemos ver
nos dias desses eventos é que a polícia vem um castelo de areia erguido em novembro de
vigiar o que estes jovens estão fazendo". 2014 com o objetivo de ser a maior
Raros são os casos nos quais comerciantes e realização do tipo e entrar para o livro dos
moradores dos entornos de praças com tais Records (o que de fato se deu). Pois bem, o
atividades interagem com os participantes fato poderia ter sido um bom atrativo de
das Batalhas de Rima4. Estes exemplos pessoas para o Caminho Niemeyer, espaço
ilustram a criminalização dos denominados normalmente com pouco uso; qual nada, após
por Miraftab (2004) como espaços os registros fotográficos, o Castelo de Areia
inventados. foi demolido.
Outro exemplo, fruto de pesquisas pessoais,
que merece destaque são determinadas
práticas juvenis que acontecem no Caminho
Niemeyer no centro da cidade de Niterói/RJ:
exemplifica a criminalização de
determinadas práticas sob alegações que vão
desde "andar de skate e patins aqui devia ser
proibido; suja e pode estragar a bela
arquitetura de Oscar Niemeyer" até "os
jovens vêm pra cá para beijar na boca, beber
vinho e fumar maconha..."

Figura 5. Trecho do Caminho Niemeyer no qual


se vê, à esquerda, a construção do recordista
Castelo de Areia erguido em novembro de 2014
(fonte: autor).

Seguimos presenciando a cultura ser tratada –


muitas das vezes – como espetáculo; também
a cena urbana não privilegiando que
possamos ser protagonistas ao invés de meros
coadjuvantes. Quero que o espetáculo de
nossas vidas possa ser inspirado em Bertolt
Figura 4. Trecho do Caminho Niemeyer em Brecht, que defendia que os expectadores
Niterói/RJ no qual se vê o Teatro Popular Oscar tivessem plena consciência sobre a
Niemeyer e as superfícies em plaqueado de encenação, num movimento contrário à
cimento para os quais muitos jovens se dirigem catarse no teatro grego e à passividade do
após a saída do colégio (fonte: autor, 2018). palco italiano. A referência a Brecht me
parece adequada para defender como deve se
A figura seguinte (Figura 5) é muito configurar o espetáculo das cidades, a
emblemática sobre como os espaços são apropriação efetiva dos espaços urbanos

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coletivos. Brecht refletiu sobre a situação dos várias cidades serem tratados também de
anos 1940, 1950. A tônica da urbanística maneira idealizada que mais valoriza sua
modernista, desejada sobretudo a partir dos carga sígnica do que suas possibilidades de
anos 1930, ganhou fortes críticas nos idos apropriação. Ou seja, há uma tensão entre as
dos anos 1960, sob a alegação que a possibilidades de mudança e diversidade e a
setorização e o excessivo planejamento dos cristalização de valores que as emperram.
espaços das cidades geravam distanciamento Outros exemplos ilutrativos podem ser
entre os usuários e enfraquecimento de suas trazidos, mantendo-se a implantação de
possibilidades de efetiva apropriação. Tal outras obras de Oscar Niemeyer em Niterói.
pensamento teve pouca aderência em muitas
O Museu de Arte Contemporânea (MAC) foi
partes do mundo e pode-se dizer que nenhum
implantado num platô que era um mirante
impacto aqui no Brasil (basta lembrar que
onde se reuniam os jovens após as "baladas"
estávamos, naquele momento, construindo
noturnas (por conta de trailer que vendiam
Brasília – exemplo maior do urbanismo
hamburgeres e similares). Sua construção
modernista [para maiores reflexões sobre o
data de 1996 e foi o primeiro projeto de
tema, sugiro em especial os capítulos 6 e 8 de
Niemeyer na cidade. Logo se tornou
Rodrigues (2001). Minha argumentação vai
importante ícone, como atestam as manchetes
na direção de reafirmar que muito pouco se
do jornal O Globo à época: “O cálice está
avançou na perspectiva de se retomar os
quase pronto para a festa” (28/07/96);
espaços coletivos das cidades para real uso e
“MAC transforma Niterói em pólo turístico”
apropriação dos mesmos, reforçando elos de
(09/03/97); “Uma cidade com a grife Oscar
coesão social entre os sujeitos. A tônica do
Niemeyer” (04/05/97).
planejamento estratégico cada vez mais em
sintonia com a lógica do capital, buscando a
melhor forma de “vender” as cidades para a
especulação financeira e turística de forte
atratividade e fraca apropriação. Práticas
culturais e vida urbana ficam, ambas, sob as
luzes da espetacularização. Se precisamos
desculturalizar a cultura como defendeu
Victor Vich, eu diria que precisamos também
desplanejar o planejamento urbano.
Parto do pressuposto de que o espaço urbano
pleno é aquele que possibilita uma Figura 6.Museu de Arte Contemporânea,
apropriação múltipla que o consolide implantado no mirante da Boa Viagem
enquanto “lugar”, nas acepções de Certeau (Niterói/RJ) (fonte: autor).
(1998), que aponta que lugar é espaço
praticado, pois ligado às pessoas, e Augé
(1994), que cunha a expressão não-lugar para
designar espaços marcados pela efemeridade,
por apropriações rarefeitas e momentâneas.
Lucrecia Ferrara (1999) chama de turismo
dos deslocamentos virtuais a forma como os
visitantes tendem a se relacionar com o
espaço: de modo efêmero e superficial,
atentando-se a recortes imagéticos que pouco
ou nada traduzem do lugar em si, e que são
efeitos perversos da contemporaneidade.
Figura 7. O MAC, devidamente "resguardado"
Constatei– como já apontado – que a
pelas grades (fonte: autor).
produção do espaço universitário no Brasil ao
longo do século XX seguiu a idealização e
consolidação de um modelo urbanístico O mirante onde se reuniam e se encontravam
único, com possibilidades mínimas de constantemente vários moradores cedeu lugar
ruptura (ao menos até fins do século, mas ao principal ícone da cidade, que mesmo com
provalvemente até hoje). Em complemento, suas generosas áreas externas é vedado à
constato, ainda hoje, espaços privilegiados de livre circulação (atualmente as grades foram

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substituídas por vidros para melhor têm, sob este aspecto,maior independência. A
visualização da obra arquitetônica). busca da arquitetura moderna foi,
utopicamente, a de nãosignificar nada além
A gentrificação é outro resultado desse
do que sua forma/função, no entanto uma
modelo urbanístico que pouco favorece à
carga simbólica sempre haverá, e as pessoas
apropriação e uso do espaço pelos cidadãos
fatalmente lhe darão outros significados.
como um todo5.
Estes, ao invés de aproximar as pessoas, as
Crítica racional X crise de paradigmas afastam dos espaços assim constituídos.

A modernidade, nesses tempos de Críticas ao moderno que ganham vulto da


globalização, transforma os preceitos década de 1970 não são absorvidas. Um dos
fundamentais da História, e de forma símbolos dessa crítica pós-moderna, um
paradoxal. Transforma o tempo em falta de símbolo de ruptura com o modernismo, pode
tempo e, por outro lado, altera as relações ser associado à implosão do projeto
temporais. Transforma o espaço em falta de habitacional Pruitt-Igoe, em St. Louis,
espaço e, por outro, cria relações Missouri (EUA), dinamitado em 15/07/72,
transespaciais. Cria a perplexidade do novo, após várias tentativas de recuperá-lo das
que a um só tempo apóia-se e descarta a destruições promovidas por seus usuários
tradição. Nas palavras de Boaventura Santos (Connor, 1993).
(1996, p. 21 e 22), No Brasil, a metaforização do “arquiteto”
como um“não comummortal”, talvez seja
assiste-se a um desabrochar de novas uma pista, em relação às resistências à
identidades regionais e locais ruptura com um modelo universal e
alicerçadas numa revalorização do segregador. A arquitetura moderna no Brasil,
direito às raízes [...]. Este localismo desde a década de 1930, foi tendo muita
(...) é com freqüência adotado por ênfase, tornando-se algo importante
grupos deindivíduos nacionalmente, e com ela a expressividade
‘translocalizados’(...)”; “o indivíduo desse seu responsável, ou seja, o arquiteto. A
parece hoje menos individual do que coisa foi só crescendo: Pampulha e Brasília,
nunca”... “a sua liberdade de escolha no cume. Não apenas Niemeyer e Lúcio
nunca foi tão derivada dasescolhas Costa são postos em cena; de certa forma eles
feitas por outros antes dele. puxam os demais. Eles são como metonímias
do arquiteto , e mais do que isso, da
arquitetura modernista. Então, num país em
que este símbolo está tão impregnado em
nossa fantasia, fica difícil romper com ele.
Na implantação do modernismo na
arquitetura e nourbanismo, noBrasil, as
universidades acabaram tendo um peso forte,
até por conta da associação que foi feita por
parte de governos autoritários (em especial a
Era Vargas e a Ditadura Militar), que
Figura 8. O MAC e seus entornos gentrificados queriam legitimar-se a partir desses
(fonte: autor). preceitos: ligados à modernidade através
desse forte viés –aarquitetura moderna–, e
É interessante a observação desse autor, em fazendo da educação um dos caminhos de
relação à crise paradigmática da modernidade naturalização dessa imagem.
contemporânea, ao associar o seu Poderíamos ter vislumbrado para a
esgotamento, com a “redução das Universidade também o papel de “revisora
possibilidades da modernidade, às desse modelo homogêneo”, mas não foi o
possibilidades do capitalismo”. (Santos, que aconteceu. As tentativas de ruptura
1996, p. 34) buscadas por algumas universidades, ao
A arquitetura não pode correr à margem do menos em relação ao seu espaço físico
sistema, uma vez que ela precisa do Capital interno, tiveram pouco eco. O quadro
(e do Estado) para concretizar-se. Outras contemporâneo é – ao que nos parece – cada
produções culturais (literatura, pintura etc.) vez mais acirrado: a cidade aparta-se cada

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vez mais, segrega-se internamente cada vez na perspectiva de que somos todos capazes
mais; condomínios gradeados, dicotomia de produzir políticas) e com nossos direitos à
cidade/morro, áreas de interesse turístico cultura, entendida aqui em dimensões amplas
cooptadas/direcionadas aos interesses que ultrapassam o campo estrito da Arte e a
prioritários do capital, planejamento colocam inserida em nossas práticas como
territorial entendido sob lógicas do um todo, com foco nas interações sociais
planejamento estratégico de grandes permitidas/estimuladas pelo uso do espaços
intervenções etc. O símbolo da racionalidade público.
da modernidade ficou impregnado em nós.
Adorno e Horkheimer (1985), em sua Notas
Dialética do Esclarecimento, já nos 1
Marco da arquitetura moderna no Brasil, o
apontavam, em meados do século passado, a edifício do Ministério da Educação e Saúde (atual
falácia do projeto racionalista, pois o próprio Palácio Gustavo Capanema), no Rio de Janeiro, é
conceito de razão que conforma a cultura o resultado do trabalho de um grupo arquitetos
converte civilidade em barbárie. A gênese da liderados por Lucio Costa, e do qual participaram
subjetividade é construída a partir da fantasia diversos arquitetos de vertente modernista, entre
do poder sobre a natureza e sobre o eles Oscar Niemeyer, tendo tido consultoria de Le
indivíduo. O totalitarismo da modernidade Corbusier. A construção do edifício, iniciada em
espelha-se numa lógica de uniformização a 1937, conhece um primeiro acabamento exterior
em 1942, mas só é inaugurada oficialmente em
degradar o próprio homem a mero objeto da
1945, por Getúlio Vargas.
natureza. Cabe, porém, destacar que esse
2
sempre-o-mesmo apresenta-se disfarçado em O presidente Getúlio Vargas foi eleito em 1930,
novidade (a lógica capitalista). tendo ficado do cargo até 1945, após golpe de
Estado em 1937.
Vivemos um reiterado processo de retomada 3
UB - Universidade do Brasil; UFRJ -
de ideais iluministas que produzem
Universidade Federal do Rio de Janeiro; USP -
uniformizações (travestidas de diversidade, Universidade de São Paulo; UFMG -
cabe reiterar). É preciso "remar contra a Universidade Federal de Minas Gerais
correnteza", isto é "varrer a história a 4
contrapêlo" e buscar soluções que melhor Exemplo contrário, importante de se citar aqui, é
o da Batalha do Tanque, na Praça dos Ex-
vivifiquem nossos espaços de convívio, seja
Combatentes em São Gonçalo/RJ no qual
na cidade como um todo seja em alguns de participantes desta Batalha e alguns comerciantes
seus recortes. Preconizamos (neste artigo e do entorno interagem de modo pleno; maiores
em outros escritos) a necessidade de se exemplificações e reflexões sobre essa temática
mesclar métodos que tragam aportes culturais podem ser encontradas em Correia, 2019.
à produção urbana, de modo a melhor 5
Maiores detalhamentos sobre resultados
entender certos impasses que nos envolvem e econômicos, simbólicos e sociais provocados
vislumbrar alternativas. Metodologias e pelas implantações de obras assinadas por Oscar
reflexões que possam aclarar (ou se Niemeyer na cidade de Niterói se encontram em
aproximar de possíveis razões) inibições e Rodrigues (2015a).
expectativas de recepção e uso de espaços
urbanos, contribuindo mais incisivamente
com nossos direitos à cidade (e a produzi-la

Referências em: http://dx.doi.org/10.9771/1983-3717pcr.


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Revista de MorfologiaUrbana (2019) 7(1): e00053 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Choques morfológicos e crises de sociabilidade 17 / 17

Tradução do título, resumo e palavras-chave


Morphological shocks and crises of sociability in university space and in the urban space
Abstract. The present text discusses the permanence of some morphological models implanted in Brazil
since shortly before the middle of the 20th century until today, arguing that it privileged formal aspects
instead of social relationsin the territories. Based upon studies on the production of University spaces,
stating that the production of certain urban spaces in contemporary cities — particularly those treated
under the logic of the tourist attractiveness, but not only-reinforce fallacious ideas, such as the first. In
this way, are created distinct morphologies that present little dialogue: ruptures in the morphological
relations between University space and urban space, and ruptures within the urban fabric in general. The
text is based on arguments that claim to reinforce urban qualities based on the possibilities of
strengthening sociability, pondering that such precepts are minimized by logics that privilege the
imaginary load of spaces in detriment of other social and cultural values.
Keywords. university space, contemporary urban space, sociabilities, urban cultural planning.

Editor responsável pela submissão: Renato Saboya.

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