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O Templo da Abominação

(por Robert E. Howard)

- Calma, todos – grunhiu Wulfhere Hausakliufr. – Vejo o brilho vago de


uma construção de pedra através das árvores... Pelo sangue de Thor,
Cormac! Você está nos guiando para dentro de uma armadilha?

O gaélico alto sacudiu a cabeça, com uma careta lhe obscurecendo o


rosto sinistro e cicatrizado:

- Nunca ouvi falar de um castelo por aqui; as tribos britânicas nestas


imediações não constroem em pedra. Deve ser alguma velha ruína
romana...

Wulfhere hesitou, olhando para trás, em direção às linhas compactas


de guerreiros barbados, usando elmos com chifres:

- Talvez seja melhor mandarmos um batedor.

Cormac Mac Art riu zombeteiramente:

- Alaric liderou seus godos através do Fórum há mais de oito anos,


mas vocês, bárbaros, ainda estremecem diante do nome de Roma. Não
tema; não há legiões na Grã-Bretanha. Acho que é um templo druida. Não
temos nada a temer deles... principalmente, quando nos movemos contra
seus inimigos hereditários.

- E a prole de Cerdic uivará como lobos, quando os atacarmos do


oeste, ao invés do sul ou leste – disse o Rachador de Crânios, com um
sorriso largo. – Foi uma idéia astuta da sua parte, Cormac, esconder
nosso navio-dragão na costa oeste e marchar diretamente através da
região da Grã-Bretanha, para cair sobre os saxões. Mas é loucura,
também.

- Existe método na minha loucura – respondeu o gaélico. – Sei que há


poucos guerreiros por aqui; a maioria dos chefes está se reunindo com
Arthur Pendragon para uma grande campanha simultânea. Pendragon...
rá! Ele não é mais filho de Uther Pendragon do que você. Uther era um
louco de barba negra... mais romano que bretão e mais gaulês que
romano. Arthur é tão loiro quanto Eric ali. E ele é celta puro... um pária de
uma das tribos ocidentais que nunca se curvaram para Roma. Foi
Lancelot quem o convenceu a se tornar rei... do contrário, ele não seria
mais do que um chefe selvagem, saqueando as fronteiras.

- Ele se tornou cortês e polido, como os romanos eram?

- Arthur? Rá! Qualquer um de seus dinamarqueses pareceria uma


dama perto dele. Ele é um selvagem de cabeleira desgrenhada, com um
amor por batalha. – Cormac sorriu larga e ferozmente, e tocou nas
próprias cicatrizes. – Pelo sangue dos deuses, ele tem uma espada
faminta! Nós, saqueadores de Erin, temos lucrado pouco em suas costas!

- Eu queria poder duelar com ele – grunhiu Wulfhere, passando o


polegar no gume brilhante de seu grande machado. – E quanto a
Lancelot?

- Um renegado galo-romano, que fez do corte de pescoço uma arte. Ele


se alterna entre ler Petronius, e conspirar e intrigar. Gawaine é um
bretão de sangue puro, como Arthur, mas tem inclinações romanas. Você
riria ao vê-lo imitar Lancelot... mas ele luta como um demônio faminto
por sangue. Se não fossem por esses dois, Arthur não seria mais do que
um chefe de bandidos. Ele não consegue ler nem escrever.

- E daí? – ribombou o dinamarquês. – Nem eu consigo... Veja! Aí está o


templo.

Eles haviam entrado na ranhura alta, em cujas sombras havia a larga


e atarracada construção que parecia olhar malevolamente para eles, de
trás de uma fila oculta de colunas.

- Este não pode ser templo dos bretões – resmungou Wulfhere. – Achei
que quase todos fossem de uma doentia seita nova, chamada cristãos.

- Os mestiços bretões-romanos são – disse Cormac. – Os celtas puros


mantêm os antigos deuses, como nós de Erin. Pelo sangue dos deuses,
nós, gaélicos, nunca nos tornaremos cristãos, enquanto um druida viver!

- O que fazem esses cristãos? – perguntou Wulfhere, curioso.

- Eles comem bebês durante suas cerimônias; é o que dizem.

- Mas também dizem que os druidas queimam homens em jaulas de


madeira verde.

- Uma mentira espalhada por César, e engolida por idiotas! – Cormac


disse impacientemente, com voz áspera. – Não tenho nenhum louvor
especial pelos druidas, mas a sabedoria dos elementos e eras não lhes é
negada. Esses cristãos ensinam a mansidão e a curvar o pescoço para o
golpe.

- O que está dizendo? – O grande viking estava francamente


assombrado. – É verdadeiro o credo deles de tomarem golpes como
escravos?

- Sim... retribuir o mal com o bem e perdoar seus opressores.

O gigante meditou sobre esta declaração por um momento:


- Isto não é um credo; é pura covardia – ele finalmente determinou. –
Esses cristãos são todos loucos. Cormac, se você identificar um dessa
raça, aponte-o e eu testarei a fé dele. – Ele ergueu significativamente o
machado. – Pois, veja você – ele disse –, esta é uma doutrina insidiosa e
perigosa, que pode se espalhar como mangra no trigo e minar a
masculinidade dos homens, se não for pisada como uma jovem serpente
sob o pé.

- Deixe-me ver apenas um desses loucos – Cormac disse


sombriamente –, e eu começarei a pisar. Mas vamos ver este templo.
Espere aí... sou da mesma crença desses bretões, se sou de uma raça
diferente. Esses druidas vão abençoar nossa incursão contra os saxões.
Eles têm muita pantomima, mas, pelo menos, a amizade deles é
desejável.

O gaélico andou a passos largos entre as colunas e desapareceu.


O Hausakliufr se curvou sobre seu machado; parecia-lhe que, de dentro,
vinha um fraco matraquear – como os cascos de um bode num chão de
mármore.

- Aqui é um lugar maligno – murmurou Osric Jarl’s-bane. – Acho que vi


um estranho rosto espionando ao redor do topo da coluna, há um
momento atrás.

- Era uma trepadeira de fungo, crescida e enrolada ao redor dela –


Black Hrothgar o contradisse. – Veja como o fungo brota por todo o
templo... como se ele se retorce e contorce como almas atormentadas...
e quão humana é sua aparência...

- Vocês dois estão loucos – interrompeu Hakon, filho de Shorri. – Foi


um bode que vocês viram... eu vi os chifres que crescem sobre a cabeça
dele...

- Sangue de Thor – rosnou Wulfhere –; silêncio... ouçam!

Dentro do templo, havia soado o eco de um grito agudo e incrédulo;


um súbito e demoníaco bater, como o de cascos fantásticos sobre lajes
de mármore; o raspar de uma espada saindo de sua bainha, e um pesado
golpe. Wulfhere agarrou o machado e deu o primeiro passo de uma
investida precipitada para os portais. Então, de entre as colunas, em
pressa silenciosa, veio Cormac Mac Art. Os olhos de Wulfhere se
arregalaram, e um horror se arrastou lentamente sobre ele, pois nunca,
até este momento, vira os nervos de aço do esguio gaélico estremecidos
– mas agora, a cor havia desaparecido do rosto de Cormac, e seus olhos
estavam arregalados como os de um homem que havia olhado para
dentro de golfos escuros e sem nome. De sua lâmina caíam pingos
vermelhos.

- O que, em nome de Thor?... – resmungou Wulfhere, perscrutando


temeroso o interior do santuário cheio de sombras.
Cormac enxugou gotas de suor frio e umedeceu os lábios.

- Pelo sangue dos deuses – ele disse –, nós nos deparamos com uma
abominação... ou, do contrário, estou louco! Da escuridão interior, ele
veio saltando e dando cabriolas... subitamente... e quase me agarrou,
antes que eu tivesse percepção suficiente para puxar a lâmina e golpear.
Pulava e piruetava como um bode, mas corria ereto... e, à luz fraca, não
era diferente de um homem.

- Você está louco – disse Wulfhere inquieto; sua mitologia não incluía
sátiros.

- Bom – retrucou Cormac –, a coisa jaz sobre as lajes lá dentro; siga-


me, e eu vou lhe provar se estou louco.

Ele deu a volta e caminhou através das colunas; e Wulfhere o seguiu,


com o machado pronto, seus vikings andando em fila atrás dele, em
formação cerrada e avançando cautelosamente. Eles passaram pelas
colunas, as quais eram simples e sem qualquer tipo de ornamentação, e
adentraram o templo. Lá, eles se viram dentro de um enorme salão,
flanqueado por pilares atarracados de pedra negra – e estes eram de fato
entalhados. Uma figura atarracada se acocorava no alto de cada um,
como se sobre um pedestal, mas, à luz fraca, era impossível distinguir
que tipo de criaturas estas figuras representavam, embora houvesse uma
odiosa insinuação de anormalidade em cada forma.

- Bem – disse Wulfhere impacientemente –, onde está seu monstro?

- Ele caiu ali – disse Cormac, apontando com sua espada – e... pelos
deuses negros!

As lajes estavam vazias.

- Névoa da lua e loucura – disse Wulfhere, sacudindo a cabeça. –


Superstição celta. Você está vendo fantasmas, Cormac!

- É? – falou bruscamente o irritado gaélico. – Quem viu um troll (*) no


farol de Helgoland, e acordou todo o acampamento com gritos e
bramidos? Quem manteve o bando armado a noite inteira, e manteve
homens alimentando as fogueiras, até quase desmaiarem, para afugentar
as criaturas das trevas?

Wulfhere resmungou pouco à vontade, e olhou ferozmente para seus


guerreiros, como se para desafiar qualquer um que risse.

- Veja! – disse Cormac, abaixando-se. Nos ladrilhos, havia uma grande


mancha de sangue recém-derramado. Wulfhere deu uma única olhada e
então se endireitou rapidamente, olhando de forma feroz para dentro das
sombras. Seus homens se juntaram, olhando para fora, com suas barbas
eriçadas. Reinava um tenso silêncio.

- Sigam-me – disse Cormac em voz baixa, e eles avançaram bem


próximos aos seus calcanhares, enquanto ele descia cuidadosamente o
largo corredor. Aparentemente, não havia entrada entre os pilares
meditativos e malignos. À frente deles, as sombras empalideceram, e
eles chegaram a uma larga câmara circular, com um teto abobadado. Ao
redor desta câmara, havia mais pilares, espaçados regularmente, e, à luz
que, de alguma forma, fluía através da cúpula, os guerreiros viram a
natureza daqueles pilares e as formas que os coroavam. Cormac
praguejou entre dentes, e Wulfhere cuspiu. As figuras eram humanas, e
nem mesmo os gênios mais perversos e degenerados da decadente
Grécia, e mais tarde Roma, conseguiriam conceber tais obscenidades,
nem soprar na pedra torturada tal vida repugnante. Cormac carranqueou.
Aqui e ali, nas esculturas, os artistas desconhecidos haviam dado um
toque de irrealidade – uma sugestão de anormalidade além de qualquer
deformidade humana. Tais toques despertavam nele um vago
desconforto, uma arrepiante e estremecedora sugestão de medo, a qual
espreitava, de cabeleira branca e horrivelmente, nos fundos de seu
pensamento...

O pensamento de que ele teria sido brevemente entretido, de que teria


visto e matado uma alucinação, desapareceu.

Ao lado da porta, através da qual eles haviam adentrado a câmara,


outros quatro portais apareceram – portas estreitas e arcadas. Não havia
altar visível. Cormac caminhou até o centro do domo e olhou para cima;
sua cavidade sombreada se arqueava, sombria e meditativa, sobre ele.
Seu olhar procurou o chão no qual se encontrava, e ele notou o modelo:
mais de ladrilhos que de lajes, e colocado num desenho cujas linhas
convergiam até o centro do chão. O centro daquele desenho era uma
única, larga e octogonal laje, na qual ele estava de pé...

Então, ao perceber que estava sobre aquela laje, ela cedeu


silenciosamente sob seus pés, e ele se sentiu mergulhando num abismo
sob ela.

Somente a rapidez sobre-humana do gaélico o salvou. Thorfinn Jarl’s-


bane estava ao seu lado e, quando o gaélico caiu, este último estendeu
um dos braços longos e agarrou o cinto da espada do dinamarquês. Os
dedos desesperados erraram, mas se fecharam sobre a bainha – e,
quando Thorfinn instintivamente firmou as pernas, a queda de Cormac foi
detida e ele ficou suspenso, a vida pendurada no aperto de sua única
mão e na força da alça da bainha. Num instante, Thorfinn havia lhe
agarrado o pulso, e Wulfhere, saltando para a frente com um rugido
sobressaltado, adicionou o aperto de sua mão enorme. Ergueram o
gaélico entre eles, para fora da escuridão que se abria, Cormac ajudando-
os com um torcer e erguer de sua forma esguia, que girou as pernas
sobre a borda.
- Sangue de Thor! – exclamou Wulfhere, mais abalado pela experiência
que Cormac. – Foi por um triz... Por Thor, você ainda segura sua espada!

- Quando eu largá-la, a vida não estará mais em mim – disse Cormac. –


Pretendo carregá-la até o inferno comigo. Mas deixe-me olhar para dentro
deste golfo que se abriu tão repentinamente sob mim.

- Mais armadilhas podem surgir – disse Wulfhere inquieto.

- Eu vejo os lados do poço – disse Cormac, curvando-se e olhando –,


mas meu olhar é rapidamente engolido pela escuridão... Que cheiro
repugnante sai de lá de baixo!

- Afaste-se – disse Wulfhere apressadamente. – Esse fedor nunca


nasceu sobre a terra. Este poço deve guiar até algum Hades romano... ou
talvez à caverna onde as serpentes pingam veneno sobre Loki.

Cormac não prestou atenção.

- Agora vejo a cilada – ele disse. – Essa laje foi equilibrada sobre
algum tipo de eixo, e aqui está o trinco que o sustentava. Como ele
funcionava, eu não sei dizer, mas este trinco foi solto, e a laje caiu,
segura num lado pelo eixo...

Sua voz se arrastou. Então, ele disse subitamente:

- Sangue... sangue na beira do buraco!

- A coisa que você talhou – grunhiu Wulfhere. – Ela se arrastou para


dentro do golfo.

- Não, a não ser que coisas mortas rastejem – rosnou. – Eu a matei, eu


lhe digo. Ela foi carregada e lançada aí dentro. Ouça!

Os guerreiros se curvaram próximos; de algum lugar lá embaixo – uma


distância incrível, parecia ser –, vinha um som: um som asqueroso,
esmagador e chafurdante, misturado com sons indescritivelmente
irreconhecíveis.

Unanimemente, os guerreiros se afastaram do poço e, trocando


olhares silenciosos, apertaram suas armas.

- Esta pedra não queimará – resmungou Wulfhere, expressando um


pensamento comum. – Não há saque aqui, e nada humano. Vamos
embora.

- Esperem! – O gaélico de ouvidos agudos ergueu a cabeça como um


cão de caça. Ele franziu a testa, e se aproximou de uma das aberturas
arcadas.
- Um gemido humano – sussurrou. – Não ouviu?

Wulfhere curvou a cabeça, pondo a mão em concha no ouvido:

- Sim... dentro daquele corredor.

- Sigam-me – falou bruscamente o gaélico. – Fiquem juntos. Wulfhere,


agarre meu cinto; Hrothgar, segure o de Wulfhere, e Hakon, segure o de
Hrothgar. Pode haver mais buracos. O restante de vocês, use seus
escudos, e cada homem fique bem perto do próximo.

Assim, numa massa compacta, eles atravessaram o portal estreito, e


acharam o corredor muito mais largo do que haviam pensado. Lá era
mais escuro, mas, seguindo mais adiante para dentro do corredor, viram
o que parecia ser um fragmento de luz.

Apressaram-se até lá e pararam. Aqui era realmente mais iluminado,


de modo que as indizíveis obscenidades, que se aglomeravam na parede,
estavam totalmente visíveis. Esta luz vinha de cima, onde o teto havia
sido perfurado com várias aberturas – e, amarrada à parede entre as
esculturas repugnantes, pendia uma forma nua. Era um homem,
pendurado nas correntes que o mantinham semi-ereto. A princípio,
Cormac pensou que estivesse morto – e, olhando fixamente para as
pavorosas mutilações que haviam sido lavradas sobre ele, decidiu que
seria melhor assim. Então, a cabeça se ergueu lentamente, e um gemido
baixo foi suspirado através dos lábios amassados.

- Por Thor – praguejou Wulfhere assombrado –; ele está vivo!

- Água, em nome de Deus – sussurrou o homem na parede.

Cormac, pegando, de Hakon filho de Snorri, um frasco cheio, o


segurou nos lábios da criatura. O homem bebeu em grandes e
convulsivos goles, e depois levantou a cabeça com um esforço enorme. O
gaélico mirava olhos profundos que eram estranhamente calmos.

- A bênção de Deus em vocês, meus senhores – saiu a voz, fraca e


matraqueando, mas de alguma forma sugerindo que ela outrora havia
sido forte e ressonante. – Será que o longo tormento acabou, e eu estou
finalmente no Paraíso?

Wulfhere e Cormac olharam curiosamente um para o outro. Paraíso!


Estranho realmente, pensou Cormac, tais saqueadores de mãos
ensangüentadas, como nós, sermos isso no templo dos humildes!

- Não, não é o Paraíso – murmurou o homem, em delírio –, pois ainda


estou preso nestas correntes pesadas.
Wulfhere se curvou e examinou as correntes que o prendiam. Então,
com um grunhido, ele ergueu seu machado e, abreviando seu aperto no
cabo, deu um breve e poderoso golpe. Os elos se partiram sob a lâmina
afiada, e o homem despencou para a frente nos braços de Cormac, livre
da parede, mas com as pesadas algemas ainda em seus pulsos e
tornozelos; estas, Cormac viu, afundaram na carne à qual o metal rude e
enferrujado havia envenenado.

- Acho que você não viverá muito, bom senhor – disse Cormac. – Diga-
nos qual o seu nome e onde fica sua aldeia, para que possamos contar ao
seu povo sobre sua morte.

- Meu nome é Fabricus, milorde – disse a vítima, falando com


dificuldade. – Minha cidade é qualquer uma que ainda mantenha os
saxões encurralados.

- Pelas suas palavras, você é um cristão – disse Cormac, e Wulfhere


olhou atenta e curiosamente.

- Sou um humilde sacerdote de Deus, nobre senhor – sussurrou o


outro. – Mas você não deve demorar. Deixe-me aqui e vá logo embora,
antes que lhe aconteça algum mal.

- Pelo Sangue de Odin – bufou Wulfhere –, não saio deste lugar, até
saber quem é que trata seres vivos de forma tão repugnante.

- Um mal mais negro que o lado escuro da lua – murmurou Fabricus. –


Diante dele, as diferenças entre os homens desaparecem, de modo que
você me parece um irmão de sangue e leite, saxão.

- Não sou saxão, amigo – roncou o dinamarquês.

- Não importa... todos os homens na forma legítima de homens são


irmãos. Assim é o mundo do Senhor... o que eu não havia compreendido
totalmente, até chegar a este local de abominações!

- Thor! – murmurou Wulfhere. – Aqui não é um templo druida?

- Não – respondeu o moribundo –; nem um templo onde os homens,


mesmo no paganismo, deificam as formas mais limpas da Natureza. Oh,
Deus... eles me cercam bem de perto! Fora, demônios repugnantes da
Escuridão Exterior... rastejando, rastejando... formas rastejantes de caos
vermelho e loucura uivante... blasfêmias deslizantes e ocultas, que se
esconderam como répteis nos navios de Roma... seres horríveis
desovados na lama do Oriente, transplantados para terras mais limpas e
criando raízes profundas em solo britânico... carvalhos mais antigos que
os druidas, alimentando-se sobre coisas monstruosas, sob a lua cheia...
O murmúrio de delírio vacilou e desapareceu, e Cormac sacudiu
levemente o sacerdote. O moribundo despertou como um homem que
acorda lentamente de um sono profundo.

- Vão, eu vos imploro – ele sussurrou. – Eles fizeram o pior que


puderam comigo. Mas vocês... eles vão lhes envolver com feitiços
malignos... quebrarão vossos corpos, como quebraram o meu... eles
procurarão quebrar suas almas, como quebraram a minha, exceto pela
minha fé em nosso bom Senhor Deus. Ele virá; o monstro, o sumo-
sacerdote da infâmia, com suas legiões do condenado... ouçam! – A
cabeça do moribundo se ergueu. – Agora mesmo, ele está chegando! Que
Deus nos proteja a todos agora!

Cormac rosnou como um lobo, e o grande viking girou, ribombando um


desafio como um leão encurralado. Sim, algo vinha saindo de um dos
corredores menores, o qual se abria para um mais largo. Houve um bater
de inúmeros cascos no ladrilho.

- Cerrem as fileiras! – rosnou Wulfhere. – Façam uma parede de


escudos, lobos, e morram com seus machados vermelhos!

Os vikings formaram rapidamente uma meia-lua de aço, cercando o


sacerdote moribundo e olhando para fora, no exato momento em que uma
horda hedionda irrompeu da abertura escura para dentro da relativa luz.
Numa inundação de loucura negra e horror vermelho, caíram de assalto
sobre eles. Muitos deles eram criaturas em forma de bodes, que corriam
eretas, tinham mãos humanas, e rostos compartilhando
assustadoramente feições tanto de bodes quanto de humanos. Mas,
entre suas fileiras, havia formas ainda mais medonhas. E, atrás de todos
eles, luminoso com uma luz maligna na escuridão do corredor sinuoso do
qual a horda saíra, Cormac viu um rosto profano – humano, embora mais
e menos que humano. Então, a horda barulhenta se chocou contra aquela
sólida parede de ferro.

As criaturas estavam desarmadas, mas tinham chifres, presas e


garras. Elas lutavam como as bestas lutam, mas com menos astúcia e
habilidade que as bestas. E os vikings, com os olhos ardentes e barbas
eriçadas pelo desejo de batalha, giraram seus machados em poderosos
golpes mortais. Chifres curvos, garras retalhadoras e presas
mastigadoras encontraram carne e arrancaram torrentes de sangue,
mas, protegidos por seus elmos, malhas e escudos sobrepostos pelas
bordas, os dinamarqueses sofreram relativamente pouco, enquanto seus
machados sibilantes e lanças perfuradoras cobravam uma taxa medonha
entre seus desprotegidos atacantes.

- Por Thor e pelo sangue de Thor – praguejou Wulfhere, partindo uma


cria-bode ao meio com um único golpe de seu machado ensangüentado –;
talvez vocês achem mais difícil matar homens armados do que
torturarem um sacerdote nu, crias de Helheim!
Diante daquela chuva de aço cortante, a horda infernal recuou, mas,
atrás deles, o homem entrevisto por entre as sombras os mandou de
volta à matança, com estranhas palavras cantadas, ininteligíveis para os
humanos que lutavam contra os vassalos dele. Assim, suas criaturas se
voltaram novamente para o conflito, com fúria desesperada, até as
coisas mortas jazerem em pilhas altas aos pés de seus matadores, e os
poucos sobreviventes recuarem e fugirem corredor adentro. Os vikings
iam se dispersar em perseguição, mas o bramido de Wulfhere os deteve.
Mas, quando a horda se desfez, Cormac saltou pelos cadáveres
alastrados e correu para dentro do corredor sinuoso, em perseguição a
um que fugia à sua frente. Sua caça saiu por outro corredor, e finalmente
correu para dentro da abobadada câmara principal, e lá ela ficou
encurralada – um homem alto, com olhos inumanos e um estranho rosto
escuro; nu, exceto por fantásticos ornamentos.

Com sua estranha espada curta e curva, ele tentou deter o ataque
impetuoso do gaélico – mas Cormac, com sua fúria vermelha, empurrava
seu inimigo diante de si, como palha diante do vento. O que quer que
fosse esse sumo sacerdote, ele era mortal, pois recuava e praguejava
numa língua estranha, enquanto a longa e estreita lâmina de Cormac o
empurrava inexoravelmente, até hesitar na própria beirada do buraco
aberto – e lá, quando a ponta da espada do gaélico lhe adentrou o peito,
cambaleou e caiu para trás, com um grito selvagem...

Por um longo momento, aquele grito ressoou para o alto, cada vez
mais fraco, desde profundezas invisíveis – então, cessou abruptamente.
E, de lá de baixo, se ergueram sons de um festim medonho. Cormac
sorriu ferozmente.

(*) – Troll: Ente sobrenatural da mitologia germânica, ora um gigante,


ora um anão, que habitava as cavernas, os montes, etc (Nota do
Tradutor).

Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

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