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MALDIDIER, DENISE.

A INQUIETAÇÃO DO DISCURSO: (RE) LER


MICHEL PÊCHEUX HOJE. TRADUZIDO POR ENI P. ORLANDI.
CAMPINAS: EDITORA PONTES, 2003.
Resenhado por Janaina Nicola (PG-UFMS/CAPES)

Atrelada ao empreendimento de investigação dos “saberes”, a obra A Inquietação do


discurso: (Re) Ler Michel Pêcheux hoje, de Denise Maldidier, oferece um relato íntimo
referente ao percurso de construção teórica por que passou a Análise de Discurso em torno
da atuação fundadora de Michel Pêcheux. Traduzida por Eni P. Orlandi, as argüições diri-
gem-se aos analistas de discurso e outros, a fim de explicitar a história das teorias (e não
a historiografia); critério possível a quem, fundamentalmente participativa da disciplina,
associa teoria e prática, testemunhando os “movimentos de idéias” germinados na “aventura
teórica” a que se dispõem os estudos do discurso. A estrutura da obra desenha-se sobre
cinco capítulos que, exceto o primeiro, O objeto da ciência também merece que se lute
por ele – uma apresentação de Orlandi -, conferem à Denise Maldidier a tarefa de tomar
uma posição frente à história da ciência, usando da cronologia como pretexto ao objetivo
de instalar-se nos “bastidores” da produção e das convivências do pensador inaugural da
AD francesa.
No que tange ao segundo capítulo, (RE) Ler Michel Pêcheux hoje, atesta-se a força,
ainda hoje atuante, do pensamento pechetiano, responsável por deslocamentos que não
convergem à síntese ou ao sistema. Em outra esteira, o discurso sugere a Michel Pêcheux
a imagem de um nó, em que se fazem intrincados língua, história e o sujeito. Denise conta
a sua história do itinerário de Michel Pêcheux, o autor que apresenta aos estudos lingüís-
ticos de 1960 um projeto, progressivamente amadurecido, na articulação entre lingüística,
materialismo histórico e psicanálise. A entrada de Michel Pêcheux na vida intelectual, no
entanto, só se faria em 1966, com a publicação do seu primeiro artigo, sob o pseudônimo
de Thomas Herbert, na revista Cahiers pour l’analyse, da Escola ENS da rua d’Ulm, onde
realiza-se o encontro com Althusser e Canguilhem que, por suas vezes, aproximam-no do
CNRS no Laboratório de Psicologia Social, trazendo-o também ao conhecimento de Paul
Henry e Michel Plon.
No viés do terceiro capítulo, o tempo das grandes construções é inaugurado por
Análise Automática do Discurso (1969), uma máquina discursiva e um instrumento de
reviravoltas que lançava questões fundamentais sobre os textos, a leitura e os sentidos.
O fascínio pelas “máquinas” e a elaboração de uma análise automática alimentam suas
reflexões sobre as práticas e os instrumentos científicos; o dispositivo e os procedimentos
de informática, todavia, só se validariam ao passo em que se relacionassem à teoria. A
AAD 69 aponta para um novo objeto: o “processo discursivo”; o processo de produção
do discurso. É nos fins dos anos 60 que Michel Pêcheux, junto ao lingüista Jean Dubois,
apresenta as bases sobre as quais se funda a disciplina Análise de Discurso, na (pela) qual
se fez possível pensar algumas idéias fundamentais, como o conceito de condições de

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produção – segundo o qual o discurso seria determinado por um “exterior”; tratava-se de
um tecido histórico social - ou, ainda, da percepção de um conceito ausente: o não-dito,
que dominará, ademais, a elaboração do conceito de interdiscurso – no crivo do qual se
inscreve a maior parte de seus temas.
Com a chegada dos anos de 1970, Antoine Culioli, Catharine Funchs e Michel Pêcheux
publicam o texto Condições teóricas a propósito do tratamento formal da linguagem, que
lançou atenção à idéia de formações discursivas. Outubro de 1971 acolhe a publicação
do artigo intitulado A Semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso; é o
número 24 da revista Langages. Com efeito, Michel Pêcheux intervinha vigorosamente
na lingüística em torno de Saussure e contra a semântica. Contudo, seria o artigo de Al-
thusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, divulgado pela revista La Penseé,
que vincaria todo o trabalho de Michel Pêcheux nessa época. É, além disso, a força do
pensamento de Pêcheux que dissemina, em maio de 1975, uma obra forte de um filósofo
inquieto com a lingüística: o texto Semântica e Discurso configura uma produtiva articula-
ção em torno das dualidades lógica/retórica, objetivo/subjetivo, necessidade/contingência,
propriedade/situação.
O quarto capítulo, Tentativas -1976-1979, se volta a um tempo em que, ao contrário
das investidas antecedentes de Pêcheux, a fala é mais presente do que a escrita. O ano de
1976 registra o surgimento do seminário chamado HPP, sob as orientações de Paul Hen-
ry, Michel Pêcheux e Michel Plon. As argüições se assentavam em um espaço no qual se
cruzavam: língua, psicanálise e política. Sob a responsabilidade de Nicolas Pasquarelli, o
CERM, Centro de Estudos e Pesquisas Marxistas, discutia também as questões em torno
da lingüística, sua história e sua crise, que nesse momento se passa a pressentir. A Análise
de Discurso condiz, desde então, com um ponto de confrontos teóricos, compartilhados
por Pêcheux, Louis Guespin (que acabava de batizar a “Escola francesa de análise de
discurso”), François Gadet, entre outros.
É no ano de 1977 que Pêcheux apresenta uma comunicação intitulada Remontemos,
no simpósio do México nomeado O Discurso político: teoria e análises. A comunicação
acena a novas pistas para a teoria do discurso, ancorada na discussão referente à categoria
marxista da “contradição”; instaura-se a partir desse momento um “face a face” textual
entre Spinoza e Foucault. No ano seguinte, Pêcheux exibe a sua autocrítica retomando
Semântica e Discurso com o intento de mostrar que “só há causa do que falha”. Dessa
maneira, o quinto capítulo exibe, a partir de 1980, um período de reflexão crítica de Michel
Pêcheux a produzir, em uma Desconstrução Domesticada, novas (re)configurações sobre
a Análise de Discurso e seu objeto.
Enfim, em seus textos do último período, 1983, Michel Pêcheux se dispõe a uma
interpretação histórica de sua “aventura teórica”. O posicionamento radical sugere uma
“fissura” irreversível e difícil de se fazer entender. Pressentia-se a necessidade de construir
uma teoria para que a sua desconstrução florescesse iluminação, questionamentos. O dis-
curso mostrou-se a Michel Pêcheux como o lugar de todo o possível, e foi em busca dele
que, de maneira excepcional, Pêcheux se lançou nos interstícios da língua, destinando-nos
R G L, n. 5, jun. 2007.

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o complexo e riquíssimo legado de sua prática; investigação que deslocou os alicerces da
Análise de Discurso e ainda hoje se inflexiona a produzir uma multiplicidade de temas
e preocupações marcantes no pensamento contemporâneo daqueles que comungam da
mesma inquietação.

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