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Imersos na permanente crise urbana, agravada pela tos em torno do tema proposto – moradia, pensando
também permanente crise habitacional, é importante alternativas:
reconhecermos que, por um lado, as moradias para os 1) a moradia na cidade neoliberal brasileira;
pobres ocupam áreas desvalorizadas ou não passíveis [Não pretendo analisar os fundamentos econômi-
de valorização, enquanto, por outro lado, programas cos que regem o neoliberalismo e a financeirização;
habitacionais públicos, como o ”Minha Casa Minha evito, assim, os riscos de analisar dogmaticamente
Vida”, repetem a lógica de “pobres no lugar de po- o modelo neoliberal dos países desenvolvidos recei-
bres”, determinada pela implantação de grandes par- tados ao Brasil. Meu argumento está em torno da
celas populacionais em áreas sem cidade. forte ampliação da exclusão nos últimos anos, como
Sabemos que a autoconstrução responde por cer- prática normativa do processo de financeirização da
ca de 70 a 85% da provisão habitacional brasileira, sociedade neoliberal].
ainda que esse número não seja precisamente com- 2) a moradia como elemento estruturante da ex-
provado por agências estatísticas ou por órgãos do clusão como prática;
Estado. Sendo a posse do terreno o aspecto central [O conceito de prática está associado à teoria so-
desencadeador da autoconstrução menos ou mais es- cial de Bourdieu (2009) – o modo como cada um,
tável socialmente, politicamente, economicamente e cada grupo ou cada instituição efetivamente age e
construtivamente, a narrativa da precariedade ou do reage em determinadas situações, distante da obedi-
baixo desempenho dessas casas não deve e nem pode ência de regras e normas, mas constituído em razão
se sobrepor às eficazes respostas dadas pelos morado- dos traços estruturais da sociedade e das estratégias
res às suas necessidades habitacionais (Morado Nas- acionadas quando fazem escolhas, tomam decisões
cimento, 2016). ou lutam por interesses].
Há um número importante de famílias e indiví- 3) a moradia como parte do processo de oculta-
duos vivendo em condições de vulnerabilidade – mu- mento da denominação das coisas;
lheres, crianças, idosos, portadores com deficiências, [Meu argumento alinha-se novamente aos argu-
LGBT, negros, migrantes –, que não têm seus direi- mentos de Sanín-Restrepo (2016): a dominação se
tos garantidos pela constituição como, entre outros, dá onde o poder é exercido por aquele que captura a
o saneamento básico. De acordo com o IBGE, em linguagem do outro e impõe esquemas qualificados
2017, mais de um terço (35,9%) da população bra- e codificados de unidade e de identidade da lingua-
sileira apresentava restrição de acesso ao serviço de gem, impossibilitando a reprodução das diferenças.
esgotamento sanitário. Vivemos em condições seme- Para Sanín-Restrepo, só temos acesso ao mundo se
lhantes à Europa do século XIX. tivermos acesso à política e, se assim é, não podemos
Sem surpresas, as desigualdades continuarão a responder politicamente ao mundo se a linguagem
crescer em todo o mundo, entretanto, longe de ali- estiver encriptada e o lugar da enunciação e da comu-
mentar um ciclo renovado de lutas de classe, os con- nicação da linguagem estiver reservado aos sujeitos
flitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racis- qualificados ou negado aos sujeitos que produzem
mo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas diferença.]
e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões 4) a moradia como outro jogo de linguagem e ou-
mortais, assim apontado por Mbembe (2016). tra lógica da prática;
Se, por um lado, não esperamos um consenso [Afirmo que o acesso ao direito à moradia e à
entre aqueles que sofrem a crise urbana e a exclusão cidade estão impossibilitados, na medida em que
com os que – em alguma medida – se beneficiam os processos de decisão sobre a moradia e a cidade
das mesmas; por outro lado, não podemos mais en- são realizados em fóruns, instâncias, instrumentos
tender as cidades sob as égides da gentrificação e da e canais que têm regras, protocolos, ritos, normas,
segregação. Entendo a cidade menos desigual, para processos e atos visíveis, mas em nada inteligíveis ou
além da cidade que deve democraticamente permitir democráticos. Quando o encontro das diferenças e
o acesso aos bens e serviços, atrelado ao abrangente, das assimetrias é mediado por força externa de poder
mas esvaziado debate em torno do direito à moradia que, na cidade neoliberal, serve aos interesses da “as-
e à cidade. Refiro-me às possibilidades efetivas de re- sociação do Estado-mercado”, define as regras sobre
distribuição dos processos de tomada de decisão em os processos de tomada de decisão e hierarquiza as
torno de uma cidade que deve prover a todos o direito singularidades, a dominação se faz presente, amea-
de existir. Somente a partir desse ponto, poderemos çando outro direito, aqui já nomeado como direito
falar em cidade justa, ainda que com suas diferenças de existir].
explícitas. Pretendo demonstrar que é preciso provocar dú-
Sendo assim, minha fala irá apontar quatro aspec- vidas, abrir fendas, fazer surgir outras regras, contu-
da pobreza – são pobres com baixa renda; a negati- (Silva, 2009, p.17), e por modelos de ocupação e de
vidade da ausência – sempre falta algo de bom nos uso do solo “referenciados em teorias urbanísticas
territórios; a ampliação do perigo – estão em áreas e pressupostos culturais” (Silva, 2009, p.21). Nesse
de risco. Não importa quais são os autores desse jogo sentido, as regras são tanto alheias ao fato de que a
de linguagem, mas é este que rege as intervenções cidade é lugar da prática de todos os seus moradores,
do Estado, das organizações internacionais e do setor quanto arbitradas pelos capitais políticos, intelectu-
privado sobre esses espaços, incluindo-se, em grande ais e jurídicos de determinados indivíduos, grupos,
medida, a pesquisa e a extensão da academia. Nada classes sociais e instituições, em razão da posição so-
mais colonizador. cial que esses ocupam na cidade.
A regularidade ou a ordem que rege a cidade está
na demarcação de moradias que não são e de mo-
radias que não têm, criando pessoas que não são e A MORADIA COMO OUTRO JOGO
pessoas que não têm, justificando diversas formas DE LINGUAGEM E OUTRA LÓGICA
históricas de práticas sociopolíticas fisicamente ou DA PRÁTICA
simbolicamente violentas, como remoções, despejos,
reassentamentos, desapropriações, etc. Reafirmo, fazemos escolhas políticas que nomeiam,
[Eu gostaria de abrir parênteses. Na penúltima circunscrevem, descrevem, analisam e definem mo-
semana do mês de maio, a empresa Vale, que tem radia com palavras, categorias e conceitos que ali-
como jargão “preservar e proteger a vida de todas as mentam regras, modelos, normas e programas que
comunidades”, mandou pintar uma faixa laranja em não mostram o que a cidade é, nem o que a cidade
passeios e ruas de Barão de Cocais como representa- tem. Como diz Nigel Thrift (apud Paiva, 2018), não
ção da linha da lama, caso a barragem de Gongo Soco é a geografia do que acontece.7 Nós (universidades,
se rompa. A Vale disse, em nota, que “é comum que instituições, Estado, especialistas, etc.) não com-
parte do talude que fica mais no alto se desprenda”, preendemos os processos da vida cotidiana e nem
mas “a segurança é prioritária pra gente”; um jogo explicamos como os espaços, estruturas, práticas,
de linguagem institucionalmente travestido por uma identidades e relações sociais produzem experiên-
faixa laranja em frente às casas de seis mil pessoas que cias e afetações no dia a dia que potencializam ou
perderam o direito de existir. Fecha parênteses].6 são geradas pelos acontecimentos mundanos. Quero
Voltando ao nosso debate, as favelas, vilas, ocu- terminar provocando um breve exercício dentro da
pações urbanas, ocupações organizadas, aglome- proposta de outro jogo de linguagem e outra lógica
rados, cortiços, aldeias, quilombos, mocambos, da prática.
loteamentos periféricos, assentamentos informais, Sempre analisamos aqueles que estão em terre-
assentamentos subnormais, assentamentos precários, nos ou edificações de propriedade de terceiros ou de
assentamentos de interesse social e habitação social propriedade alheia, submetidas ao conceito jurídico
são nomeados, circunscritos, descritos, analisados e de propriedade privada individual. A doutrinação da
definidos por Nós como formação discursiva sempre propriedade privada, acima de todos os outros direi-
sob a exclusão. Esse jogo de linguagem gera outro tos, “legitima a destruição do outro, dos desiguais ou
jogo de linguagem – favelados, invasores, da perife- diferentes por natureza”, como afirma a professora de
ria, bandidos, vagabundos, etc. filosofia da USP, Maria Sylvia Franco (1993, p. 46),
Segundo Foucault (2008), esses tipos de enuncia- e continua: “determina-se, com isso, uma oposição
ção recebem qualificações designadas segundo deter- radical: de um lado, os naturalmente iguais, os pro-
minados graus de racionalização, códigos conceituais prietários – humanos, perfeitos, pacíficos, membros
e tipos de teoria, instâncias autorizadas pela socieda- da comunidade harmoniosa e legal; de outro, os na-
de que representam um papel de direito e, inevitavel- turalmente diferentes, os não proprietários – inuma-
mente, como partes fragmentadas de um todo. No nos, degenerados, animalescos, ferozes, alheios às leis
caso das cidades, as regras de formação são estrutura- da razão” (Franco, 1993, p. 46). Pergunto: e se essas
das pela e estruturantes da exclusão, constituindo-se definições enunciassem as ocupações em terrenos ou
em políticas urbanas de órgãos públicos e ações coo- edificações como: moradias existentes em áreas que
perativas de organizações internacionais em si pauta- não cumprem função social de propriedade? Não como
das por ausências “urbanas, sociais, legais e morais” discurso, mas como prática, estratégia e escolha.
A degradação, a precariedade e a inadequação,
correntemente presentes nos discursos, são adjetivos
6 Ver <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noti-
cia/2019/05/21/talude-de-mina-pode-se-romper-a-qualquer-
-momento-e-vale-esta-em-alerta-maximo-em-barao-de-co- 7 Thrift, N. Non-representational Theory: Space, Politics,
cais.ghtml> Affect. Oxon: Routledge, 2008.