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Denise Morado Nascimento


Moradia
é possível pensar em alternativas?

pós-doutora em Geografia pelo Instituto de


Denise Morado Nascimento Geociências/UFMG (2019). Atualmente,
é graduada em Arquitetura e Urbanismo pelas Faculdades Metodistas é professora associada da Escola de Arquitetura
Integradas Izabela Hendrix (1986); mestre em Arquitetura pela da UFMG e coordenadora do grupo de pesquisa
University of York, Inglaterra (1990); doutora em Ciência da PRAXIS-EA/UFMG (práticas sociais no espaço
Informação pela Escola da Ciência da Informação/UFMG (2005) e urbano). dmorado@gmail.com
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RESUMO estabelecida pelo neoliberalismo.


Isso quer dizer que não trarei contribuições à
Artigo apresentado na mesa redonda “Acesso à Mo- mesa sobre alternativas em torno da moradia, pois
radia e Direito à Cidade: pensando alternativas”1, não entendo que estas existam (se entendermos ‘al-
proposto para o XVIII Enanpur, cujo objetivo era ternativa’ como substituição do que temos hoje por
“analisar e debater alternativas possíveis para as outra coisa). Mas pretendo expor minha melancolia
políticas habitacionais, em especial no que diz como antídoto àquilo que está nos destruindo, essen-
respeito ao modelo de propriedade privada vigen- cialmente no plano das palavras e da linguagem.2
te em praticamente todos os programas habita- 2) o segundo ponto refere-se à urgência de pen-
cionais públicos e às possibilidades de mudança, sarmos em outro jogo de linguagem, assim defen-
a partir da atuação dos movimentos de luta por dido por Ricardo Sanín-Restrepo (2018), teórico
moradia”. constitucionalista colombiano. Em seu jogo, Sanín-
-Restrepo propõe imaginar que todo símbolo escrito
Palavras-chave: Moradia; Linguagem; Direitos.
de qualquer linguagem seja transformado em um X
e, a partir daí, se pergunta sobre quais mudanças de-
SUMMARY veriam ocorrer na proposição de outro pensamento
e outra lógica.
Paper presented at the debate entitled “Access Em meu jogo, proponho que favelas, vilas,
to Housing and to the Right to the City: Thinking ocupações urbanas, ocupações organizadas, aglo-
Alternatives”, proposed for the XVIII Enanpur in merados, cortiços, aldeias, quilombos, mocambos,
order “to analyze and to debate possible alterna- loteamentos periféricos, assentamentos informais,
tives to housing policies, especially with regard assentamentos subnormais, assentamentos precários,
to the model of private property in practically all assentamentos de interesse social e habitação social
the public housing programs and the possibilities sejam transformados em moradia. E pergunto se se-
of change viewing the action of the social move- ria possível questionarmos tais categorias, impostas
ments for housing”. de forma despercebida ou alienada, em busca de ou-
tro pensamento e outra lógica sobre a cidade.
Keywords: Housing; Language; Rights. Com base nesses pontos de partida, começo re-
lembrando que as cidades brasileiras não são pobres,
mas são extremamente desiguais socialmente e espa-
PONTOS DE PARTIDA cialmente. A condição violenta de pobreza é o cerne
da crise urbana que é cotidianamente agravada pela
Gostaria de colocar dois pontos de partida para
intensificação do padrão periférico das cidades, pela
todos, em razão da leitura de dois autores que, em
vinculação do capital imobiliário ao capital financei-
grande medida, estarão permeados na minha fala:
ro, pela imobilidade política em se realizar a reforma
1) o primeiro ponto refere-se à melancolia da
urbana, pela imposição da propriedade privada nas
esquerda, aos olhos do cientista político italiano
cidades, pela ineficiência do judiciário, pela “associa-
Enzo Traverso. A esquerda é entendida como “os
ção Estado-mercado” e pelos discursos políticos es-
movimentos que lutaram para mudar o mundo ao
trategicamente construídos, em nada propositivos.3
colocar o princípio da igualdade no centro de sua
agenda” (Traverso, 2018, p. 15), e a melancolia
é tratada como uma “constelação de emoções e 2 Acato a sugestão de Laura Erber em seu prefácio no livro de
sentimentos que envolvem uma transição histórica”, Traverso (2018).
como lugar de “busca por novas ideias e projetos” 3 Considerando o atual padrão de poder mundial neoliberal
que pode coexistir com o “pesar e o luto após o fim entre Estado e capitalismo, cabe esclarecer a expressão usada
ao longo desse trabalho - associação Estado-mercado. Ainda
de experiências revolucionárias” (Traverso, 2018, que frequentemente seja sugerido na literatura que Estado e
p. 17). Traverso propõe viver esse luto a partir da mercado são entidades contraditórias em seu caráter orga-
autocrítica em relação aos fracassos do passado, nizacional, bem como institucional e, por isso, dissociáveis
mas também da não resignação à ordem mundial no processo de neoliberalização, os núcleos dominantes do
Estado tornaram-se privados. O caráter público do Estado
permanece, mas está tomado por corporações globais, pela
1 Texto apresentado pela autora na mesa redonda “Acesso à tecnocracia administradora das entidades financeiras e das
Moradia e Direito à Cidade: pensando alternativas”, orga- políticas econômicas e pelas instituições intergovernamentais
nizada pela Profa. Camila D’Ottaviano (FAU-USP), com do capital financeiro como, por exemplo, o Fundo Monetário
Prof. Adauto Lúcio Cardoso (IPPUR/UFRJ) e Prof. Edésio Internacional (FMI) e o Banco Mundial (QUIJANO, 2002).
Fernandes (DPU Associates/Lincoln Institute), no XVIII É isso que a expressão “associação Estado-mercado” quer ma-
Enanpur, Natal, Maio/2019. nifestar.

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Imersos na permanente crise urbana, agravada pela tos em torno do tema proposto – moradia, pensando
também permanente crise habitacional, é importante alternativas:
reconhecermos que, por um lado, as moradias para os 1) a moradia na cidade neoliberal brasileira;
pobres ocupam áreas desvalorizadas ou não passíveis [Não pretendo analisar os fundamentos econômi-
de valorização, enquanto, por outro lado, programas cos que regem o neoliberalismo e a financeirização;
habitacionais públicos, como o ”Minha Casa Minha evito, assim, os riscos de analisar dogmaticamente
Vida”, repetem a lógica de “pobres no lugar de po- o modelo neoliberal dos países desenvolvidos recei-
bres”, determinada pela implantação de grandes par- tados ao Brasil. Meu argumento está em torno da
celas populacionais em áreas sem cidade. forte ampliação da exclusão nos últimos anos, como
Sabemos que a autoconstrução responde por cer- prática normativa do processo de financeirização da
ca de 70 a 85% da provisão habitacional brasileira, sociedade neoliberal].
ainda que esse número não seja precisamente com- 2) a moradia como elemento estruturante da ex-
provado por agências estatísticas ou por órgãos do clusão como prática;
Estado. Sendo a posse do terreno o aspecto central [O conceito de prática está associado à teoria so-
desencadeador da autoconstrução menos ou mais es- cial de Bourdieu (2009) – o modo como cada um,
tável socialmente, politicamente, economicamente e cada grupo ou cada instituição efetivamente age e
construtivamente, a narrativa da precariedade ou do reage em determinadas situações, distante da obedi-
baixo desempenho dessas casas não deve e nem pode ência de regras e normas, mas constituído em razão
se sobrepor às eficazes respostas dadas pelos morado- dos traços estruturais da sociedade e das estratégias
res às suas necessidades habitacionais (Morado Nas- acionadas quando fazem escolhas, tomam decisões
cimento, 2016). ou lutam por interesses].
Há um número importante de famílias e indiví- 3) a moradia como parte do processo de oculta-
duos vivendo em condições de vulnerabilidade – mu- mento da denominação das coisas;
lheres, crianças, idosos, portadores com deficiências, [Meu argumento alinha-se novamente aos argu-
LGBT, negros, migrantes –, que não têm seus direi- mentos de Sanín-Restrepo (2016): a dominação se
tos garantidos pela constituição como, entre outros, dá onde o poder é exercido por aquele que captura a
o saneamento básico. De acordo com o IBGE, em linguagem do outro e impõe esquemas qualificados
2017, mais de um terço (35,9%) da população bra- e codificados de unidade e de identidade da lingua-
sileira apresentava restrição de acesso ao serviço de gem, impossibilitando a reprodução das diferenças.
esgotamento sanitário. Vivemos em condições seme- Para Sanín-Restrepo, só temos acesso ao mundo se
lhantes à Europa do século XIX. tivermos acesso à política e, se assim é, não podemos
Sem surpresas, as desigualdades continuarão a responder politicamente ao mundo se a linguagem
crescer em todo o mundo, entretanto, longe de ali- estiver encriptada e o lugar da enunciação e da comu-
mentar um ciclo renovado de lutas de classe, os con- nicação da linguagem estiver reservado aos sujeitos
flitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racis- qualificados ou negado aos sujeitos que produzem
mo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas diferença.]
e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões 4) a moradia como outro jogo de linguagem e ou-
mortais, assim apontado por Mbembe (2016). tra lógica da prática;
Se, por um lado, não esperamos um consenso [Afirmo que o acesso ao direito à moradia e à
entre aqueles que sofrem a crise urbana e a exclusão cidade estão impossibilitados, na medida em que
com os que – em alguma medida – se beneficiam os processos de decisão sobre a moradia e a cidade
das mesmas; por outro lado, não podemos mais en- são realizados em fóruns, instâncias, instrumentos
tender as cidades sob as égides da gentrificação e da e canais que têm regras, protocolos, ritos, normas,
segregação. Entendo a cidade menos desigual, para processos e atos visíveis, mas em nada inteligíveis ou
além da cidade que deve democraticamente permitir democráticos. Quando o encontro das diferenças e
o acesso aos bens e serviços, atrelado ao abrangente, das assimetrias é mediado por força externa de poder
mas esvaziado debate em torno do direito à moradia que, na cidade neoliberal, serve aos interesses da “as-
e à cidade. Refiro-me às possibilidades efetivas de re- sociação do Estado-mercado”, define as regras sobre
distribuição dos processos de tomada de decisão em os processos de tomada de decisão e hierarquiza as
torno de uma cidade que deve prover a todos o direito singularidades, a dominação se faz presente, amea-
de existir. Somente a partir desse ponto, poderemos çando outro direito, aqui já nomeado como direito
falar em cidade justa, ainda que com suas diferenças de existir].
explícitas. Pretendo demonstrar que é preciso provocar dú-
Sendo assim, minha fala irá apontar quatro aspec- vidas, abrir fendas, fazer surgir outras regras, contu-

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do temporárias e mutáveis, em busca da inserção de menos relacionados, incluindo mudanças na ideolo-


outro jogo de linguagem e de outra lógica da prática gia gerencial que orientam cada vez mais as empresas
a partir das incongruências, imprecisões, irregula- para os mercados financeiros, o aumento das dívidas
ridades e incoerências das nossas próprias práticas. em nossa economia, a tendência dos mercados finan-
Talvez essa seja a minha proposta de alternativa para ceiros passarem por ciclos entre períodos de altos e
a moradia. baixos e o poder crescente de um conjunto de atores
Os argumentos teórico-metodológicos aqui apre- aos quais estão referidos como “financeiros” ou “ca-
sentados fazem parte do meu estágio pós-doutoral, pital financeiro”. Contudo, de forma geral, Krippner
finalizado no Instituto de Geociências da Universi- define financeirização como uma fase no desenvol-
dade Federal de Minas Gerais (IGC/UFMG), sob vimento capitalista em que os lucros se acumulam
a supervisão da Profa. Heloisa Costa, construídos principalmente (ou, pelo menos, crescentemente)
por projetos de pesquisa e extensão realizados pelos através de canais financeiros.
pesquisadores do grupo PRAXIS-EA/UFMG, sob Mas é a partir de 2008 que o neoliberalismo se
minha coordenação e do Prof. Daniel Medeiros de transforma em ordem construída dominante, saindo
Freitas.4 de sua condição ideológica e tornando-se processo, as-
sim apontado por Dardot e Laval (2016). Em 2008,
o neoliberalismo apresenta a novidade de “fazer do
A MORADIA NA CIDADE mercado tanto o princípio do governo dos homens
NEOLIBERAL BRASILEIRA como o do governo de si” – a racionalidade governa-
mental, assim nomeada por Dardot e Laval (2016,
Os termos neoliberalismo e financeirização têm sido p. 34). Estratégias e práticas são redesenhadas tanto
debatidos por entre diferentes significados e varia- pelo Estado quanto pelo mercado, em prol da per-
ções, a depender da abordagem teórica de distintos manência de uma coerência global, novamente sus-
autores. tentadas pela narrativa de crise.
Sobre o neoliberalismo, a socióloga histórica Contudo, Krippner (Lemoine, Ravelli, 2017)
Greta Krippner, em entrevista à Lemoine e Ravelli alerta sobre o fato de que, ainda que as contribuições
(2017), aponta três visões: (i) conjunto de políticas políticas feitas pelo setor financeiro tenham se sobre-
que privilegiam os resultados do mercado (por exem- posto às contribuições de outros setores, não tornam-
plo, monetarismo, desregulamentação econômica, -se em si, métrica muito útil sobre a capacidade do
contenção do bem-estar social, livre comércio, etc.); “capital” agir de maneira coerente e eficaz na busca
(ii) configuração de instituições que dominam a so- de seus objetivos. Nesse sentido, o poder do “capital”
ciedade capitalista (por exemplo, o Banco Mundial, é mais resultado da desregulamentação financeira do
o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Reserva que sua causa. O Estado se associa aos proprietários
Federal dos EUA, o Wall Street Treasury Complex);5 do capital para elaborar estratégias onde, ao fim,
e (iii) ampla tendência em nossa cultura de avaliar vários grupos se beneficiam da desregulamentação
tudo de acordo com uma métrica de mercado. No financeira, das privatizações e do enfraquecimento
sentido mais geral, o neoliberalismo é usado como estatal. Quanto às classes sociais, Krippner (Lemoi-
uma espécie de atalho para uma forma perniciosa de ne, Ravelli, 2017) afirma, entretanto, que devemos
exploração hipercapitalista que, segundo Krippner, analisá-las, mas de forma cuidadosa, sobre como são
pode ser mais precisamente capturada com outra lin- constituídas e quando se unem em torno de inte-
guagem. resses coletivos que, muitas vezes, são tênues, como
Na rubrica da financeirização, Krippner (Lemoi- por exemplo, o consumo, que na desregulamentação
ne, Ravelli, 2017) aponta que há uma série de fenô- financeira doméstica teve papel muito importante.
No Brasil, consumimos moradia, tendo em vista, por
exemplo, o “Minha Casa Minha Vida”.
4 Ver <http://praxis.arq.ufmg.br> A lógica da prática constituinte do processo de
5 O advogado Jagdish Bhagwati cunhou o termo Wall Street
neoliberalização forma-se e amplia-se pela regula-
Treasury Complex que, como o complexo militar-industrial,
se refere ao conjunto de poderosos e ricos lobistas agindo ção do mercado para o mercado, possibilitada pelo
em interesse próprio, vindos da comunidade financeira e domínio histórico crescente de atores financeiros,
que também, de tempos em tempos, marcam presença no mercados, práticas, medidas e narrativas, em várias
governo dos EUA, servindo em posições importantes como, escalas, resultando em uma transformação estrutu-
por exemplo, secretários do Tesouro. Mais informações ver:
https://www.globalpolicy.org/globalization/globalization-of-
ral das economias, empresas, instituições financeiras,
-the-economy-2-1/general-analysis-on-globalization-of-the- agentes internacionais, Estado, famílias, indivíduos e
-economy/48261-qwall-street-treasury-complexq.html programas públicos.

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A MORADIA COMO ELEMENTO A MORADIA COMO PARTE DO


ESTRUTURANTE DA EXCLUSÃO PROCESSO DE OCULTAMENTO
COMO PRÁTICA DA DENOMINAÇÃO DAS COISAS
Na cidade neoliberal brasileira, a redução da desi- Segundo Sanín-Restrepo (2016), o ocultamento das
gualdade não se concretiza, já que depende fortemen- coisas, ou seja, da linguagem – o sentido formal das
te da renda do trabalho e do governo politicamente palavras, a estrutura de comunicação, o acesso à in-
solidário. Por um lado, tem sido um grande desafio terpretação e, de forma essencial, a realidade a que se
fazer com que os pobres brasileiros se apropriem das refere – está engendrado por relações de poder. Esse
maiores parcelas de crescimento econômico a partir conjunto de elementos é nomeado como jogo de lin-
dos rendimentos do trabalho; por outro lado, as po- guagem, onde o significado das coisas faz sentido aos
líticas sociais atrelam-se a um determinado governo especialistas (Nós), impondo-se de forma silenciosa e
que, por sua vez, sustenta-se por estruturas de poder, violenta aos não especialistas (Outros), mantendo-se
nem sempre democráticas ou igualitárias. Assim, a o aparato das práticas vigentes. Wittgenstein (2009,
moradia tem estado historicamente imersa no mun- p. 19) já havia usado o termo jogo de linguagem para
do econômico da financeirização. Dentro do que nos expressar a “totalidade formada pela linguagem e
interessa, os excluídos – sem moradia na cidade neo- pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”,
liberal – são os incapazes de absorverem os riscos e de considerando-o uma forma de vida. O jogo da lin-
existirem diante das práticas estruturadas economica- guagem cunhado por Wittgenstein refere-se à prática
mente pela “associação Estado-mercado”. do uso da linguagem atrelada aos significados das pa-
Ainda que saibamos que a redução das desigual- lavras, mas também ao modo como os outros agem
dades por meio da melhor distribuição de renda ten- de acordo com o uso das palavras.
de igualmente a reduzir processos excludentes, há Isto quer dizer que a explicação da coisa não é
outro ponto importante, em nada desprezível. De possível, mas apenas a sua denominação, que é dada
acordo com a Agência IBGE (2018), em 2017, 10% por quem já sabe o que fazer com ela ou por quem se
das pessoas com os maiores rendimentos (de todas as responsabiliza por ela, que se torna processo oculto
fontes) do país acumulavam 43,1% da massa total ou jogo contaminado, já que não se expõe algo, mas
desses rendimentos, enquanto os 40% com os meno- um meio de expor algo ou a maneira de vermos as
res rendimentos detinham apenas 12,3%. Para além coisas.
desse aspecto, Piketty (2014) nos alerta que, mesmo Regras, mapas, planos, modelos, determina-
se a desigualdade dos rendimentos pudesse ser con- dos pontos de vista e particulares abordagens, bem
trolada, a história nos fala de outra força maligna que como categorias, conceitos, indicadores e índices da
tende a amplificar as desigualdades de riqueza até arquitetura, do urbanismo e do planejamento urba-
atingir níveis extremos: os retornos revertem para os no conformam um jogo de linguagem que alinha
proprietários de capital mais rápido do que o cresci- determinadas perspectivas e escolhas teórico-práticas
mento da economia, dando aos capitalistas uma par- contaminadas por lacunas, falhas, desordens, super-
cela cada vez maior dos despojos, à custa das classes posições e incompatibilidades.
média e baixa. Tal força alimentou a desigualdade no Afirmo, entretanto, que não pretendo desapare-
século XIX e as atuais condições econômicas e políti- cer nem desqualificar a temática urbana historica-
cas tornaram-se susceptíveis, ao ponto de aprofundar mente construída por todos nós, mas entendo que a
as desigualdades sociais e econômicas no século XXI. exclusão se tornou regularidade e ordem que regem
No início de 2017, os seis maiores bilionários brasi- as cidades. As categorias, conceitos, mapas, planos e
leiros juntos possuíam riqueza equivalente à da me- regras das quais me refiro estão presentes no jogo de
tade mais pobre da população, mais de 100 milhões linguagem institucionalizado pelas universidades, pe-
de pessoas, sendo que metade desses patrimônios fo- los órgãos públicos, pelas organizações não governa-
ram herdados da família, sem ser fruto do próprio mentais e intergovernamentais sobre a problemática
trabalho (OXFAM Brasil, 2017). Soma-se às desi- habitacional e as políticas públicas.
gualdades de raça e gênero, a disparidade regional da Esse jogo de linguagem, historicamente, trata das
renda; dados de 2017 do IBGE revelam que 49,9% moradias e de seus territórios pelo que não são ou
da região norte e 48,1% da região nordeste tiveram pelo que não têm – ou seja, pela ausência. As regras de
rendimento médio de até meio salário mínimo. formação de parte da cidade são evidenciadas: a tipi-
Isto posto, pergunto: existe acordo possível para ficação da forma – as moradias dos pobres são irregu-
se constituir o bom Estado brasileiro em prol da re- lares; o legalismo das normas jurídicas – as moradias
dução da desigualdade e, portanto, pensarmos em são informais e ilegais; a homogeneização da aparên-
alternativas efetivas para a moradia? cia – são moradias de baixo padrão; a personificação

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da pobreza – são pobres com baixa renda; a negati- (Silva, 2009, p.17), e por modelos de ocupação e de
vidade da ausência – sempre falta algo de bom nos uso do solo “referenciados em teorias urbanísticas
territórios; a ampliação do perigo – estão em áreas e pressupostos culturais” (Silva, 2009, p.21). Nesse
de risco. Não importa quais são os autores desse jogo sentido, as regras são tanto alheias ao fato de que a
de linguagem, mas é este que rege as intervenções cidade é lugar da prática de todos os seus moradores,
do Estado, das organizações internacionais e do setor quanto arbitradas pelos capitais políticos, intelectu-
privado sobre esses espaços, incluindo-se, em grande ais e jurídicos de determinados indivíduos, grupos,
medida, a pesquisa e a extensão da academia. Nada classes sociais e instituições, em razão da posição so-
mais colonizador. cial que esses ocupam na cidade.
A regularidade ou a ordem que rege a cidade está
na demarcação de moradias que não são e de mo-
radias que não têm, criando pessoas que não são e A MORADIA COMO OUTRO JOGO
pessoas que não têm, justificando diversas formas DE LINGUAGEM E OUTRA LÓGICA
históricas de práticas sociopolíticas fisicamente ou DA PRÁTICA
simbolicamente violentas, como remoções, despejos,
reassentamentos, desapropriações, etc. Reafirmo, fazemos escolhas políticas que nomeiam,
[Eu gostaria de abrir parênteses. Na penúltima circunscrevem, descrevem, analisam e definem mo-
semana do mês de maio, a empresa Vale, que tem radia com palavras, categorias e conceitos que ali-
como jargão “preservar e proteger a vida de todas as mentam regras, modelos, normas e programas que
comunidades”, mandou pintar uma faixa laranja em não mostram o que a cidade é, nem o que a cidade
passeios e ruas de Barão de Cocais como representa- tem. Como diz Nigel Thrift (apud Paiva, 2018), não
ção da linha da lama, caso a barragem de Gongo Soco é a geografia do que acontece.7 Nós (universidades,
se rompa. A Vale disse, em nota, que “é comum que instituições, Estado, especialistas, etc.) não com-
parte do talude que fica mais no alto se desprenda”, preendemos os processos da vida cotidiana e nem
mas “a segurança é prioritária pra gente”; um jogo explicamos como os espaços, estruturas, práticas,
de linguagem institucionalmente travestido por uma identidades e relações sociais produzem experiên-
faixa laranja em frente às casas de seis mil pessoas que cias e afetações no dia a dia que potencializam ou
perderam o direito de existir. Fecha parênteses].6 são geradas pelos acontecimentos mundanos. Quero
Voltando ao nosso debate, as favelas, vilas, ocu- terminar provocando um breve exercício dentro da
pações urbanas, ocupações organizadas, aglome- proposta de outro jogo de linguagem e outra lógica
rados, cortiços, aldeias, quilombos, mocambos, da prática.
loteamentos periféricos, assentamentos informais, Sempre analisamos aqueles que estão em terre-
assentamentos subnormais, assentamentos precários, nos ou edificações de propriedade de terceiros ou de
assentamentos de interesse social e habitação social propriedade alheia, submetidas ao conceito jurídico
são nomeados, circunscritos, descritos, analisados e de propriedade privada individual. A doutrinação da
definidos por Nós como formação discursiva sempre propriedade privada, acima de todos os outros direi-
sob a exclusão. Esse jogo de linguagem gera outro tos, “legitima a destruição do outro, dos desiguais ou
jogo de linguagem – favelados, invasores, da perife- diferentes por natureza”, como afirma a professora de
ria, bandidos, vagabundos, etc. filosofia da USP, Maria Sylvia Franco (1993, p. 46),
Segundo Foucault (2008), esses tipos de enuncia- e continua: “determina-se, com isso, uma oposição
ção recebem qualificações designadas segundo deter- radical: de um lado, os naturalmente iguais, os pro-
minados graus de racionalização, códigos conceituais prietários – humanos, perfeitos, pacíficos, membros
e tipos de teoria, instâncias autorizadas pela socieda- da comunidade harmoniosa e legal; de outro, os na-
de que representam um papel de direito e, inevitavel- turalmente diferentes, os não proprietários – inuma-
mente, como partes fragmentadas de um todo. No nos, degenerados, animalescos, ferozes, alheios às leis
caso das cidades, as regras de formação são estrutura- da razão” (Franco, 1993, p. 46). Pergunto: e se essas
das pela e estruturantes da exclusão, constituindo-se definições enunciassem as ocupações em terrenos ou
em políticas urbanas de órgãos públicos e ações coo- edificações como: moradias existentes em áreas que
perativas de organizações internacionais em si pauta- não cumprem função social de propriedade? Não como
das por ausências “urbanas, sociais, legais e morais” discurso, mas como prática, estratégia e escolha.
A degradação, a precariedade e a inadequação,
correntemente presentes nos discursos, são adjetivos
6 Ver <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noti-
cia/2019/05/21/talude-de-mina-pode-se-romper-a-qualquer-
-momento-e-vale-esta-em-alerta-maximo-em-barao-de-co- 7 Thrift, N. Non-representational Theory: Space, Politics,
cais.ghtml> Affect. Oxon: Routledge, 2008.

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passíveis de relativização que depende da subjetivi- Boitempo, 2016.


dade de quem olha ou de quem fala. Isto é, a de- FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janei-
gradação, a precariedade e a inadequação existem em ro: Forense Universitária, 2008.
relação a qual critério, estabelecido por quem? E se as FRANCO, M. “All the world was America” - John
favelas, vilas, ocupações urbanas, aglomerados, cor- Locke, liberalismo e propriedade como conceito
tiços, aldeias, quilombos e mocambos fossem com- antropológico. Revista USP, n. 17, p. 30-53, 30
preendidos como: moradias possíveis para cidadãos em maio 1993.
razão das condições políticas, sociais, culturais, tecnoló- IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das
gicas e econômicas que enfrentam? condições de vida da população brasileira, 2017.
A ilegalidade e a informalidade são reflexos de nor- Rio de Janeiro: IBGE, 2017.
mas, leis e tratados jurídicos que indubitavelmente LEMOINE, B.; RAVELLI, Q. The Politics of fi-
indicam a complexidade da questão, mais associada à nancialization: an interview with Greta Kripn-
imposição de interesses econômicos e políticos, bem ner. Revue de la régulation, 2017. Disponível em:
como parâmetros técnicos, do que preceitos legais. E <http://journals.openedition.org/regulation>.
se a legitimidade das práticas produzidas pelos mo- Acesso em: 28 novembro 2018.
radores, moradias autoconstruídas, fossem reconhe- MBEMBE, A. The age of humanism is ending. Mail
cidas pelo fato de representarem, em si, os conflitos & Guardian Online, 2016. Disponível em: <ht-
decorrentes dos próprios princípios que instruem a tps://mg.co.za/article/2016-12-22-00-the-age-
legalidade e a formalidade? E se definirmos a auto- -of-humanism-is-ending>. Acesso em: 10 janeiro
construção como: moradias legítimas da cidade con- 2017.
temporânea? Insisto, não como discurso, mas como MORADO NASCIMENTO, D. (org.) Saberes
prática, estratégia e escolha. [auto]construídos. Belo Horizonte: Ed. AIC, 2016.
Por fim, permanecem outros questionamentos OXFAM Brasil. A distância que nos une. 2017. Dis-
que acompanham minha melancolia de esquerda: é ponível em: <https://www.oxfam.org.br/a-distan-
possível construirmos outro jogo de linguagem? A cia-que-nos-une>. Acesso em: 03 agosto 2018.
quem interessaria esse outro jogo? A quem ou a quais PAIVA, D. Teorias não-representacionais na geogra-
instituições ou organizações não interessam em ter fia I: conceitos para uma geografia do que aconte-
outras regras de formação da cidade ou outro jogo de ce. Revista Portuguesa de Geografia, v. 52, n. 106,
linguagem? Somos capazes de ver a cidade estrutura- 2018, p. 159-168.
da pelo direito de existir? Seria possível reconhecer- QUIJANO, A. Colonialidade, poder, globalização e
mos nossas práticas a partir da autocrítica e do luto democracia. Novos Rumos, Ano 17, n.37, 2002,
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12 nº 37 ▪ ano 10 | junho de 2019 ▪ e-metropolis

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