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Balanço inicial da literatura sobre a Gestão Lula

Rudá Ricci*

O livro de Juarez Guimarães, uma


coletânea de artigos publicados
originalmente no boletim eletrônico
Periscópio, possui um prefácio
elaborado por Marilena Chauí que
sintetiza as observações do autor, que
passou a reproduzir:
[o autor] examina, sobretudo, cinco
tradições políticas brasileiras que
A literatura sobre as duas gestões do apontam na direção do
lulismo está ainda em formação. republicanismo: o comunitarismo
cristão, o nacional-
Mas é possível compreendê-la, num desenvolvimentismo, o liberalismo
balanço da produção analítica até 2009, ético, o socialismo democrático e a
entre dois pólos que se cristalizam em tradição popular, apontando em
duas obras: a caracterização do governo cada uma delas as contribuições e
como de transição e a caracterização limites a serem superados. O
como continuísmo da agenda neoliberal comunitarismo cristão (de origem
ou liberal. No primeiro pólo, destaca-se ibérica) afirma o primado do bem
comum e o senso concreto da
a obra de Juarez Guimarães, “A
justiça, traz para o republicanismo a
Esperança Equilibrista” idéia e a prática da solidariedade,
(GUIMARÃES, 2004); no outro mas falta-lhe a experiência do
extremo, a coletânea organizada por pluralismo democrático. O
João Antônio de Paula, “Adeus ao nacional-desenvolvimentismo
Desenvolvimento” (PAULA, 2005). afirma uma perspectiva
antioligárquica (mesmo que não
Entre os dois extremos, há obras de
chegue a ser democrático), traz as
testemunho (BETTO, 2006; POLETTO,
2005; KOTSCHO, 2006), de narração
(ANTUNES, 2006; HIPPOLITO,
2005); de balanço e análise (ARAÚJO, ideológico ou partidário - por ser um campo
demarcado por interesses nem sempre explícitos
2006; FILGUEIRAS & GONÇALVES,
do jogo de poder, que dificultaria a localização
2007; GALL, 2005), além de tentativas do leitor. Há publicações que se situam na franja
de teorização, ainda que num preâmbulo entre um libelo político-partidário e uma
ensaístico, como os de José de Souza tentativa de análise da gestão Lula. Este é o
Martins e Francisco de Oliveira1. caso, entre outros, do livro de José Prata Araújo
(ARAÚJO, 2006). Em virtude do autor deste
livro procurar estabelecer uma constante
comparação do governo Lula com o governo
FHC, declaradamente negativa para o segundo,
1
Excluí deste rol toda produção de natureza decidi excluí-lo deste capítulo por sua baixa
oficial - por sua baixa capacidade crítica -, capacidade crítica, aproximando-se de uma
assim como aquela dedicada ao embate político, defesa incondicional.

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idéias de autonomia e soberania da O esforço de Guimarães tem início pela
nação e as de cidadania e inclusão tentativa de demonstrar que o Partido
social, mas seu limite encontra-se dos Trabalhadores é o partido talhado
no privilégio conferido ao Estado e para implementar a plataforma
não ao público, e à unidade
republicana. O autor sustenta que a este
nacional e não aos conflitos. O
liberalismo ético, cuja dimensão
partido convergiriam a força orgânica
dramática e, por vezes, trágica se ligada às classes trabalhadoras com a
exprime na obra de seu expoente, ordem política, em torno da construção
Raymundo Faoro (e por isso, para da nação (referindo-se a Caio Prado), a
Juarez Guimarães, o liberalismo superação do subdesenvolvimento em
não é uma “idéia fora do lugar”, uma dinâmica que combina mercado
seja no sentido de Oliveira Vianna, interno e distribuição de renda
seja no de Roberto Schwarz) traz as (referindo-se a Celso Furtado), a
idéias dos direitos civis e do delimitação entre público e privado
pluralismo político, mas seu limite (referindo-se a Raimundo Faoro) e a
é dado pela incapacidade para
ética da compaixão (referindo-se ao
formular uma resposta à questão
nacional e oferecer uma concepção
comunitarismo cristão).
forte de justiça social. O socialismo Em seguida, procura traçar um
democrático traz a promessa laica programa de transição, iniciado pela
de um novo princípio civilizatório, redução do poder dos mercados, em
alternativo ao capitalismo, especial, o financeiro, num aberto
afirmando o abandono da ordem
confronto com a plataforma neoliberal.
mercantil por uma lógica assentada
na expressão do público e numa
Em seguida, a diminuição da
visão épica da democracia vulnerabilidade externa da economia
participativa. A tradição popular nacional. E, finalmente, a emergência
traz a vida associativa e do Estado regulador, que adote política
participativa, sedimentada no keynesianas anticíclicas ou
sentimento de solidariedade e no estimuladoras do desenvolvimento.
senso da justiça. (GUIMARÃES, Desenha etapas concretas, em cinco
2004: 13). atos:
Chauí ressalta a hipótese de Guimarães a) A consolidação da
a partir desta peculiar contribuição de governabilidade, em que a força
matrizes políticas ao republicanismo política eleita toma posse do
brasileiro: ao governo Lula restaria manejo dos instrumentos do
apenas três atitudes. A primeira, o Estado;
socialismo imediatamente implantado, b) A transição dos
que isolaria a esquerda, segundo o paradigmas, estabelecendo políticas
autor. A segunda, do liberalismo de tipo de regulação do mercado;
economicista, que colocaria como c) Novo paradigma
aliadas as forças conservadoras e consolidado;
patrimonialistas do país. E a terceira, a
d) Crescimento sustentado,
do republicanismo, ampliando o espaço
com distribuição de renda e
público, fundando a noção sistêmica de inclusão social;
nação, do ideal cívico da cidadania
ativa. Ocorre que, segundo se sugere, o e) A implantação do que o
republicanismo bebe nas águas autor denomina de economia do
originadas em muitas fontes. setor público, marcada pela
regulação estatal, pela negociação

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permanente dos agentes públicos concertação, estaria fadada a
com agentes privados e retomada instabilidades e múltiplas tentativas de
do planejamento estatal (“choque inclusão do maior número possível de
de regulação”). atores sociais. Daí não se tratar de um
O programa Fome Zero é, assim, pacto social, formal e definido a partir
compreendido como parte integrante do Estado, mas de um processo de
desta perspectiva republicana, inclusiva, negociação, acionado por um governo
de ampliação da cidadania. Guimarães que vai formalizando acordos
sugere que vai além do nacional- gradativamente.
desenvolvimentismo, porque se sustenta O lulismo, contudo, não se forjou
na dimensão pública e não meramente nitidamente desde o início da primeira
na estatal. Esta trajetória analítica gestão. Foi se formatando e ganhou seus
deságua, finalmente, na construção do contornos mais nítidos após a crise
que seria um contrato social aberta em 2004. Neste sentido, a análise
republicano, a partir do lulismo: um de Guimarães apresenta com clareza
pacto social que firmasse as bases de seus limites e não necessariamente suas
um novo desenvolvimento. A Carta ao virtudes e intenções. O autor faz uma
Povo Brasileiro, de 2002, e a criação do digressão pos factum que lhe confere
Conselho de Desenvolvimento sentido e acabamento.
Econômico e Social (CDES) seriam os
dois pilares visíveis da tentativa de No outro extremo, encontra-se a obra
formalização deste pacto. Contudo, organizada por João Antonio de Paula,
ainda na primeira gestão, o autor admite “Adeus ao Desenvolvimento: a opção
que a nova contratação social havia se do governo Lula”. Trata-se de uma
implantado apenas parcialmente. coletânea de artigos extremamente
Segundo autor, em virtude da assimetria críticos ao governo Lula que tem como
da presença dos interesses privatistas na pedra de toque a permanência do
ordem estatal brasileira e, ainda, pela capitalismo dependente e da agenda
falta de lugar do capital financeiro nesta neoliberal, no que seria uma evidente
nova lógica, pela sua própria natureza capitulação do governo petista. A
autóctone e desregulamentada, até caracterização do governo Lula para o
então. Os casos de corrupção que se autor da coletânea é assim sintetizada:
avolumam a partir de 2004 seriam,
nesta ótica, a face da republicanização
incompleta, em que o privatismo faz da maior, pois representa "a instrumentação formal
corrupção um sistema endógeno das de um processo de negociação coletiva
práticas políticas nacionais. deliberadamente instalada para alcançá-la",
enquanto a concertação social é "apenas a troca
O livro de Guimarães é a tentativa mais informal de pontos de vista que possam dar
elaborada de compreensão dos limites lastro a normatização estatal ou profissional"
do lulismo. Tratar-se-ia de uma (PINTO, 1998:199). Para Cassio Mesquita de
transição a partir de uma nova Barros "a doutrina considera, hoje, a
concertação social um processo enquanto que os
concertação social2. E, como toda Pactos Sociais, acordos básicos resultado de
discussões e contratos que podem ou não
resultar de um sistema de concertação social. O
2
A doutrina jurídica distingue pacto de foro onde o sistema de concertação social se
concertação social, sendo o primeiro um acordo desenvolve é muito informal e até pode não
formal e o segundo o resultado de uma existir" (Pacto social e a construção de uma
negociação política. Para José Augusto sociedade democrática. Rev. LTr. Vol. 52, n.º
Rodrigues, o pacto teria uma relevância jurídica 03, março de 1988. p. 283).

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“(...) não é injusto ou inexato capital, o que manteria o país em rota de
caracterizar o governo Lula como dependência neocolonial, retomando
social-liberal, isto é, um governo conceitos que se reportam ao debate
que promovendo algumas políticas clássico do marxismo.
com conteúdo social, não
assistencialistas, se caracteriza, Num terceiro artigo, Fernando Cardim
essencialmente, por sua submissão de Carvalho destaca o divisor de águas
ao neoliberalismo e suas nefastas que a crise aberta em 2004 e 2005 teria
conseqüências, sobretudo, sobre o significado no interior do PT. Sugere
emprego, a renda, a infra-estrutura, que, de um lado, estariam alinhados os
sobre as condições de vida de realistas que lançariam mão da
grande parte da população
correlação de forças ainda desfavorável
brasileira.” (PAULA, 2005:33).
para uma ação efetivamente
Na mesma coletânea, João Machado transformadora, além do governo Lula
Borges Neto reforça a caracterização: ainda estar aprendendo a governar e
“(...) já não cabem dúvidas quanto à negociar interesses. Na outra ponta,
natureza do governo Lula. Sua estariam perfilados os petistas que o
orientação geral está perfeitamente autor denomina de moralistas que teria
clara: adotou uma política macro- se desapontado com o governo Lula.
econômica explicitamente (PAULA, 2005:93). O autor, contudo,
neoliberal, enquanto pôde, sugere que ambos os segmentos
encaminhou reformas (de fato, estariam limitados à redistribuição de
contra-reformas) cujo conteúdo renda via política fiscal e ampliação do
neoliberal é indiscutível (a reforma acesso à propriedade e não efetivamente
da Previdência, a Lei de Falências,
à ruptura com o padrão societário do
o projeto das Parcerias Público-
Privadas). Além disso, foram país, o que significaria uma derrota
anunciados projetos, já com política e moral para a esquerda
contornos básicos definidos, que nacional.
têm o mesmo caráter (os projetos As ações e políticas adotadas pelo
das reformas sindical e
governo Lula na sua segunda gestão
trabalhista).” (PAULA, 2005:69).
atenuam o vaticínio deste conjunto de
Mas João Machado, logo adiante, análises mais críticas. Possivelmente
admite que existiram atenuantes a esta porque esta coletânea organizada pelo
tipologia, citando a gestão de Carlos professor de economia da Universidade
Lessa (à frente do BNDES) como foco Federal de Minas Gerais tenha adotado
de resistência à orientação neoliberal, esquemas analíticos clássicos do
assim como a Secretaria de Economia marxismo e, em especial, do trotskismo,
Solidária (do Ministério do Trabalho, limitando o foco sobre a realidade
dirigida por Paul Singer) e a política errática e permanente em construção da
externa. Também cita os ministérios do gestão Lula. Daí certa dificuldade em
Desenvolvimento Agrário e das Cidades enquadra esta gestão como neoliberal,
(na gestão Olívio Dutra) que teriam obrigando alguns autores a deslocar a
mantido “diálogo importante com análise para aproximações gradativas
setores dos movimentos sociais que geram um rol significativo de
brasileiros” (PAULA; 2005: 70). A exceções. Não por outro motivo, a
análise se desloca, a partir daí, para a análise sobre a política econômica
compreensão do governo como tendo aparece mais segura que a realizada
vínculos preferenciais com o grande sobre a movimentação política do

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governo e os impactos das políticas – enfim, para não me alongar mais,
sociais sobre a mobilidade social em um governo que é o terceiro
curso. Este livro, entretanto, emerge mandato de FHC.” (OLIVEIRA,
como a tentativa mais organizada de 2003)
crítica, pela esquerda, ao governo Lula, O autor vincula o programa do governo
configurando um esforço interpretativo à mudança de percurso do partido do
importante. Suas fragilidades analíticas Presidente da República. E se alinha à
revelam justamente as dificuldades sugestão de Luis Werneck Vianna,
deste campo ideológico e político (ou indicando que o PT no governo seria o
mesmo acadêmico) em estabelecer prolongamento da longa “via passiva”
referenciais concretos e inovadores de brasileira, a “expansão do capitalismo
teorização sobre um governo que rompe da exclusão, a repetição do mesmo,
com a lógica histórica do sistema desde o aliancismo desembestado até as
partidário do país. políticas dos tíquetes de leite”, que teria
As dificuldades de teorização do mundo deslocado este partido para o centro do
acadêmico sobre o governo Lula, como sistema partidário.
veremos, não se limitam aos esforços No início de 2006, Oliveira concede
desta corrente de estudiosos. Perseguiu entrevista em que reafirma que o
expoentes de maior projeção pública, governo Lula negou a possibilidade de
Francisco de Oliveira. Em sua carta de transformação social do Brasil a partir
desfiliação do PT, Oliveira critica o do “seqüestro dos movimentos sociais”,
governo Lula que teria adotado um configurando o “quarto mandato
programa que não havia sido neoliberal”. Caracteriza o governo Lula
apresentado aos eleitores. Sua carta é como
ácida:
“Um governo conservador, com
“Nem o presidente nem muitos dos uma inclinação de centro-direita,
que estão nos ministérios nem com ausência de participação
outros que se elegeram para a popular e uma presença e atuação
Câmara dos Deputados e para o muito fortes de lideranças
Senado da República pediram meu empresariais burguesas liberais, que
voto para conduzir uma política são a marca do governo.”
econômica desastrosa, uma reforma (OLIVEIRA, 2006a).
da Previdência anti-trabalhador e
pró-sistema financeiro, uma
Acrescentou, desta feita, um ingrediente
reforma tributária mofina e à carta de desfiliação: o seqüestro da
oligarquizada, uma campanha de sociedade civil pelo governo,
descrédito e desmoralização do desmobilizando movimentos sociais,
funcionalismo público, uma cooptando o movimento sindical
inversão de valores republicanos através, inclusive, da indicação do
em benefício do ideal liberal do presidente da CUT como ministro.
êxito a qualquer preço – o “triunfo Também aprofunda sua crítica à
da razão cínica”, no dizer de César mudança no perfil do PT, em que o
Benjamin -, uma política de grupo dirigente teria constituído uma
alianças descaracterizadora, uma
nova classe social, ocupando conselhos
“caça às bruxas” anacrônica e
ressuscitadora das piores práticas
de administração das principais fontes
stalinistas, um conjunto de políticas de recursos para investimentos no país,
que fingem ser sociais quando são entre elas o Banco de Desenvolvimento
apenas funcionalização da pobreza Econômico e Social e os fundos de

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pensão. Denominando-os de “novos desenvolvimento induzido pela base
gestores” Oliveira sugere um paralelo social”.
com a nomenklatura soviética. Deparamo-nos, portanto, com um
Em meados do mesmo ano, em movimento analítico dos mais erráticos.
entrevista concedida ao jornal Folha de Justamente porque Oliveira confunde
São Paulo ensaia, pela primeira vez, por algum tempo o governo com a
comparação entre Lula e Getúlio, trajetória do partido. Em seguida,
afirmando que seriam antípodas. Lula percebe que governo supera o partido
não seria, para Oliveira, populista para, em seguida, retomar o papel do
justamente porque não inclui o partido como liderança de um novo
proletariado na política, mas o inverso. ciclo de desenvolvimento do país, desde
E reafirma que “o papel transformador os de baixo. Percebe-se a tentativa de
do PT se esgotou” (Oliveira, 2006b). O encontrar o demiurgo que incitaria a
partido teria ficado dependente da massa dos brasileiros marginalizados da
figura do Presidente da República, política a provocar a “modernização
sugerindo que poderia ter o mesmo completa” de nosso país, rompendo com
destino que o peronismo, onde grupos a tentação – como já havia citado em
disputariam o espólio de seu governo, sua carta de desfiliação – do governo
numa luta interna constante. Lula completar a “revolução passiva”
Surpreendentemente, Oliveira opera brasileira. A busca do demiurgo parece
uma guinada brusca em 2009, logo após vinculada à urgência de uma crise
internacional de grandes proporções,
a crise econômica iniciada nos EUA e
criando condições concretas para a
Europa que denomina de “primeira
mudança e quebra de paradigmas da
grande crise da globalização
ordem política nacional (ao qual o PT e
capitalista”. Dada a gravidade da crise,
o governo Lula, segundo Oliveira,
o autor não concebe espaço para um
teriam se enredado). Uma liderança que
reordenamento elitista como ocorreu em
provocasse a mudança cultural,
1930, mas “induzida pelas forças da
subjetiva. Enfim, um modelo de
base da sociedade brasileira”. Mais
transformação dos mais conhecidos da
surpreendente é a nova ossatura
tradição das esquerdas brasileiras o que
assumida pelo PT em seu discurso:
revelaria grandes dificuldades do autor
“O PT tem a força sindical, a em aprofundar o mérito e originalidade
estrutura sindical tem todos os deste governo mutante.
fundos de pensão sobre seu
controle. Então tem recursos para José de Souza Martins também
serem remanejados e repactuados procurou decifrar o governo Lula. Mas
com a base trabalhadora; dentro adotou um viés muito distinto dos
dela o PT desfruta igualmente de outros autores, oscilando entre
massa e representatividade.” compreender o lulismo como fenômeno
(OLIVEIRA, 2009). meramente conjuntural ou sociológico.
No desenho montado por Oliveira, o PT Seu artigo mais acabado foi publicado
sofreria um aggiornamento frente aos no Caderno Aliás, do jornal O Estado de
desafios mundiais, assumindo ousadia São Paulo, em setembro de 2006. O
ainda superior ao de JK e Vargas, texto revela certa perplexidade por Lula
fazendo “por baixo o que eles tentaram ser o “o mais abençoado político
e fizeram por cima; um arranque do brasileiro pela hierarquia católica. E é
também abençoado por setores até

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importantes das igrejas evangélicas. No como projeto. Porque, segundo Martins,
âmbito das religiões mais reúne do que a alma do povo brasileiro, que Lula
espalha. Isso é um milagre”. parece compreender como ninguém, é
Martins não cita esta relação de dividida.
preferência arbitrariamente. Procura, ao O lulismo seria, assim, um projeto real
contrário, destacar que a imagem de ou uma permanente relação com as
Lula se confunde com a lógica massas urbanas emergentes? Teria um
contraditória de nossa cultura e povo: projeto racionalmente armado – como
“Ele é um poço de imperfeições, sugerem todos autores até aqui
que são as imperfeições de todos analisados – ou sua arquitetura de
nós. Vence-as rindo, fazendo pouco gestão seria forjada a partir da prática
caso da perfeição dos outros. Seu de mediação entre interesses
partido e seus aliados envolveram- contraditórios que formam a alma
se até as a boca nas águas podres da brasileira?
corrupção para o projeto de
permanecerem no poder, na cara Este parece ser o cerne do enigma. Algo
nova e insustentável da ditadura do próximo do que Boaventura Santos
proletariado. Nem uma gota de denominou de carvalização da nossa
lama espessa parece tê-lo atingido. cultura política: a transgressão sem
(MARTINS, 2006) ruptura com a ordem. A técnica
Sua análise situa-se no plano da discursiva de Lula é o exercício
legitimação política. Algo que os outros permanente deste jogo de cena com suas
autores aqui citados pareciam relegar ao permanentes quebras de protocolo. O
mundo das aparências (o que, enfim, lulismo ensaiaria, assim, a pedagogia
não seria a essência deste governo). política da mediação de uma alma
Mas é justamente neste ponto que nacional desde sempre dividida. Não
parece estar localizado o enigma apartada, mas contraditória e dividida
lulismo: sua racionalidade se constrói a em cada cidadão brasileiro que
partir da consolidação de sua construiu sua identidade pelo reflexo
legitimidade e não a despeito dela. O que os abastados ou marginalizados
lulismo é justamente uma construção fazem em sua vida.
política popular, vocacionado para se
relacionar com as massas urbanas,
amorfas e sedentas pela inclusão social.
Martins procura cavar esta trincheira.
Sustenta, neste artigo, que Lula
permanece porque não deixou o PT se
realizar no governo. Lula teria navegado
sobre águas seguras porque leu os sinais
de sua eleição, que não teria abraçado
seu partido. E, assim, colocou-se à
serviço das mediações e negociações
entre forças contraditórias. Trata-se de
uma maneira mais profunda de analisar
o pragmatismo, marca do lulismo. Por
ser pragmático mantém-se como
mediador, o que resulta no pragmatismo

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Referências Estado de São Paulo, domingo, 03 de setembro
de 2006, p. J5.
ANTUNES, Ricardo. Uma esquerda fora do
lugar: o governo Lula e os descaminhos do OLIVEIRA, Francisco. “Sociólogo Chico de
PT. Campinas: Autores Associados, 2006. Oliveira sai do PT”, Folha de São Paulo,
14/12/2003,
ARAÚJO, José Prata. Um retrato do Brasil: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96
balanço do governo Lula. São Paulo: u56441.shtml.
Fundação Perseu Abramo, 2006.
__________________ “Chico de Oliveira: o
BARROS, Cássio Mesquita. “Pacto social e a governo Lula negou a necessidade de
construção de uma sociedade democrática”. transformação”, ALAI, América Latina en
Revista LTr. Vol. 52, n.º 03, março de 1988.. Movimiento, 2006-01-04,
BETTO, Frei. A mosca azul: reflexão sobre o http://alainet.org/active/10264&lang=es.
poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. __________________ “A política interna se
FILGUEIRAS, Luiz & GONÇALVES, tornou irrelevante, diz sociólogo”,
Reinaldo. A Economia Política do Governo www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u8064
Lula. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. 1.shtml , em 24/07/2006.
GALL, Norman. Lula e Mefistófeles. São __________________ "Vargas redefiniu o país
Paulo: A Girafa, 2005. na crise de 30; a chance é que o PT faça o
mesmo na primeira grande crise da
GUIMARÃES, Juarez. A Esperança globalização", Carta Maior, 06/01/2009.
Equilibrista: o governo Lula em tempos de http://www.cartamaior.com.br/templates/materi
transição. São Paulo: Fundação Perseu aMostrar.cfm?materia_id=15467
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PAULA, João Antonio (org.). Adeus ao
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KOTSCHO, Ricardo. Do golpe ao Planalto - PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito
Uma vida de repórter. São Paulo: Companhia sindical e coletivo do trabalho. São Paulo:
das Letras, 2006. LTr, 1998.
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está na alma do povo”, Caderno Aliás, O perdidas. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

*
RUDÁ RICCI é professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da
Universidade Vale do Rio Verde. Blog: http://rudaricci.blogspot.com/

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