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GT 8. Marxismos latino-americanos
Marxismo, anti-imperialismo e
revolução nas obras de
Mariátegui e Haya de la Torre
Ricardo Neves Streich1
Resumo: O presente artigo busca analisar um dos mais importantes debates da história
política latino-americana. Trata-se do embate entre os intelectuais peruanos José Carlos
Mariátegui e Victor Raúl Haya de la Torre sobre o caráter da revolução latino-americana.
A disputa entre os dois pensadores peruanos forneceu muitos dos parâmetros que ainda
hoje são utilizados para analisar política e teoricamente a situação da América Latina.
Desta maneira, observar a abordagem (com o cuidado de atentar para as transformações
das posições de ambos) que os autores deram à articulação entre o problema da revolução
na América Latina e a luta anti-imperialista é pertinente para constatar as semelhanças e
diferenças entre as perspectivas dos autores (tanto no que diz respeito à sua produção
teórica, quanto no tocante à prática política).
Palavras-chave: Mariátegui, Haya de la Torre, marxismo na América Latina, anti-
imperialismo na América Latina.
Introdução
Michael Löwy (2009, p. 9) sugere como parâmetro para análise do marxismo
(enquanto prática política e formulação teórica) na América Latina a questão dos debates
sobre a natureza da revolução. Neste debate, as relações entre as concepções marxistas e
América Latina foram caracterizadas por dois extremos: o excepcionalismo latino-americano
e o eurocentrismo (LÖWY, 2009, p.10).
O excepcionalismo latino-americano entendia como absoluta a particularidade
(histórica, política e social) da América Latina e, por isto, tendeu a negar o marxismo, por
conta da sua origem europeia. O eurocentrismo, por outro lado, se limitou a transpor as
categorias explicativas e históricas da Europa para a América Latina, desprezando suas
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Mestrando em História Social pela FFLCH/USP
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Teixeira (2002, p.72-3) alerta que, embora Haya faça uso da ideia de que a sua geração é que superou o “olhar
sentimental” sobre o imperialismo ianque e que, por isto, teria descoberto a dimensão econômica da dominação,
Manuel Ugarte já em 1901 esboçava esta faceta da dominação.
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As classes que exploram o indígena são as mesmas que vendem a América Latina ao
imperialismo e mantêm seu poder através de uma estrutura agrária “feudal”, por isto, a luta
contra o imperialismo possui um caráter de luta antifeudal, Ao mesmo tempo, se trata da luta
pela segunda independência. Se a primeira independência se limitou à esfera do político, no
século XX a tarefa seria a de conquistar soberania econômica, o que só seria possível
derrotando as oligarquias latifundiárias.
As duas passagens citadas anteriormente foram escritas antes da transformação da
APRA em partido (1925 e 1927, respectivamente). Embora o autor trabalhe com uma
perspectiva uma classista de resolução dos problemas (tanto do indígena, quanto da América
Latina), a mediação da nação já se faz sentir de maneira evidente. Entretanto, ainda em 1927
ao transformar a APRA em partido, o autor se afastou dos comunistas e consequentemente
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Pero ese fenómeno de expansión que responde a una necesidad de expansión de los
grandes países capitalistas industriales sobre los que no lo son, significa también
para éstos el necesario e inevitable comienzo de la etapa de su industrialización de
gran estilo. Vale decir, que en las zonas a donde el imperialismo llega se inicia la
primera etapa de una modernización económica. La cual se halla en su más alta
etapa en las zonas en las que el capitalismo industrial culmina y se expande. Ésta es
la tesis de nuestro espacio y nuestro tiempo económicos diferentes de los que viven
y se desarrollan en un grado más avanzado de desenvolvimiento y de los que se
hallan en retraso. (PLANAS, P; RIVAROLA, M., 1988, p.87)
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(tanto com a teoria marxista, quanto com os políticos comunistas) existentes em sua obra
intelectual e política para compreender as transformações e as continuidades existentes na
trajetória de um dos políticos mais importantes na história do nosso continente.
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burguesia que, distante do povo, preferia se associar aos grandes centros do capitalismo
mundial (Londres, inicialmente, e depois Nova Iorque).
A articulação entre os setores burgueses e oligárquicos pode ser constatada desde a
fundação da República – que deveria ser o lugar, por excelência, do regime burguês –, na
medida em que não eliminou os gamonales,3 não realizou sua tarefa fundamental: destruir a
herança colonial. Pode-se dizer, portanto, que a República foi fundada, sem, e contra, os
índios. Por isto, do baixo grau de coesão na formação social do Peru (além das diferenças
regionais entre Costa, Serra e Selva, havia, por exemplo, a questão das línguas diversas que
até hoje coexistem como espanhol e quéchua), “Mariátegui depreende sua tese mais cortante:
o Peru, seu contemporâneo, é uma formação nacional incompleta, um esboço de nação.”
(BOSI, 1990, p.60)
A questão nacional, sempre enfrentada pelos marxistas com grande dificuldade, (cf.
HOBSBAWM, 1980) se tornou uma variável importante no projeto político de Mariátegui
(1986, p.221):
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Referente a Gamonal, conceito que trata das grandes propriedades latifundiárias, nas quais o trabalho ocorria
sob o regime de servidão.
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explicava sua posição: “somos de esquerda (ou socialistas), porque somos anti-imperialistas”.
De tal forma que:
O alerta de que antagonismo das classes persistia, mesmo quando articuladas em torno
de um projeto nacional, era importante, pois, ao contrário do que supunham os nacionalistas,
os interesses econômicos das classes latifundiárias e do capital imperialista não eram
necessariamente os mesmos:
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núcleo autônomo de organização proletária. Tratava-se de uma tática para angariar forças até
que o partido proletário pudesse existir e atuar de maneira autônoma.
Podemos dizer, então, que para Mariátegui, como aponta Galindo (1982, pp.75-6):
El partido era necesario e imprescindible para introducir en el Perú esa especia de
planta europea que era el socialismo; pero el partido no era exactamente el inicio de
esa tarea, sino casi su estación final. La idea intuida en el Perú, madurada en Europa,
debía discutirse y prepararse al regreso. Es en ese derrotero que se inscribe el
proyecto de Amauta y toda la labor publicista desplegada por Mariátegui. También
sus conferencias en las Universidades Populares González Prada y sus chalas con los
jóvenes dirigentes obreros, como Larrea, Portocarrero o el ferroviario Avelino
Navarro. El partido exigía el desarrollo de la “conciencia de clase.
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Considerações finais
O rico debate teórico e político entre os peruanos Victor Raul Haya de la Torre e José
Carlos Mariátegui é um marco político importantíssimo da história contemporânea da
América Latina. Embora o debate tenha ocorrido fora dos meios acadêmicos, pois ambos
participantes foram organizadores de partidos políticos e tinha preocupações imediatamente
políticas, ele plantou questões sobre as quais as ciências sociais vão se debruçar ao longo de
todo século XX – em especial as relações entre o centro do capitalismo e a América Latina
que vão ser atentamente analisadas pelos chamados “teóricos da dependência”.
O interesse acadêmico também é justificado se pensamos que este foi o primeiro
momento em que os latino-americanos se utilizaram, implícita ou explicitamente, do arsenal
teórico marxista para pensar a opressão dos países centrais do capitalismo. A retomada deste
debate nos dá pistas importantes sobre o verdadeiro divórcio entre marxismo e América
Latina ocorrido (salvo raros momentos, é claro) ao longo do século XX e que tantos prejuízos
políticos e acadêmicos nos causou.
Mariátegui e Haya de la Torre, iniciaram juntos a jornada política. Neste primeiro
momento eles partilhavam diversas posições, a principal delas, era o dilema entre uma
independência formal e uma dependência substancial (para utilizar termos caros à tradição
marxista). Concordavam, portanto, na crítica ao imperialismo e na necessidade da Frente
Única para contrapô-lo. Outra preocupação comum era a questão indígena, que ambos
seguiam os passos de González Prada ao enxerga-la como questão econômica e social, cuja
solução era política.
Contudo, logo as divergências se fizeram evidentes. As preocupações de Haya de la
Torre com as particularidades latino-americanas renderam acusações de “europeísta” a
Mariátegui. Este debate sobre “o lugar das ideias” são manifestações de divergências
ideológicas e concepções políticas muito mais profundas. A principal delas é a relação entre a
questão nacional e a revolução socialista. Se a perspectiva da frente única era comum aos dois
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grandes teóricos da esquerda peruana, o papel revolucionário atribuído a cada força do bloco
de classes é radicalmente distinto. Enquanto Haya defendia a liderança dos setores
intelectualizado e pequeno-burgueses, Mariátegui defendia que a hegemonia do processo
revolucionário deveria ser dos setores proletarizados.
Outra fonte de divergência é a relação que os dois autores mantinham com o
marxismo. Enquanto Mariátegui enxerga o marxismo como uma crítica do status quo, ou seja,
como um “guia para ação” (com todos os problemas que a ausência sistemática de uma
reflexão epistemológica traz), Haya de la Torre enxerga o marxismo como “filosofia da
história”, cuja validade repousa apenas para o território europeu.
A concepção de marxismo de Haya de la Torre traz como implicação a luta de classes
e eleição da nação como elemento central da ação revolucionária (“somos de esquerda,
porque somos anti-imperialistas”). Mariátegui, em sua tese da “formação nacional
incompleta” se localiza numa posição diametralmente oposta. A criação da nação é o meio em
torno do qual a classe trabalhadora se organizaria para realizar a sua Revolução (“somos anti-
imperialistas, porque somos socialistas”).
Trata-se, portanto, de uma divergência entre “meios” e “fins” da ação política. Entre
uma concepção que busca ser revolucionária, por ser nacionalista e outra que busca ser
nacionalista por ser revolucionária. Esta é questão da mais alta conta, pois a tradição marxista
latino-americana (salva raras exceções) sempre encontrou dificuldades para formular soluções
satisfatórias, tanto no campo da teoria quanto no campo da prática política, aos dilemas de um
continente que subsiste na periferia do capitalismo.
À primeira vista, podemos pensar que no mundo globalizado onde o Estado
supostamente perde sua força esta questão seja algo menor sobre a qual não vale a pena deter
atenção. Contudo, é preciso apontar que a retomada deste e dos outros debates que situam a
América Latina no contexto do mundo capitalista são importantes para repensarmos a
situação de hoje, em que a América Latina vai se configurando como um player importante
no jogo de forças da política internacional.
Referências
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