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Os dias passaram muito rapidamente, e antes que eu pudesse perceber, a reconciliação

com Enzo já havia acontecido há tempos. Sentávamos como de costume, lado a lado, e
em alguns dias, Enzo também lanchava perto de mim e de Fernando. O gringo sempre
me deixava e me buscava na porta da sala, o que era fofo, mas levantava mais suspeita.
Claro, eu sabia que muitos da faculdade já haviam visto um beijo que trocamos, mas
não todos. E quanto menos gente para encher a paciência, melhor.

Não tirei notas muito boas, mas consegui manter-me da média para cima. Em uma
matéria, eu fui para prova final, já que não consegui estudar o suficiente para passar de
primeira. O ano já estava quase no fim, e faltava cerca de um mês para que minhas aulas
acabassem. Meu aniversário estava próximo, o que não só indicava que eu completaria
dezoito anos, como também seria o aniversário de um ano do meu namoro. Pensei em
perguntar o que poderia dar a Fernando de presente para Enzo, mas depois voltei atrás;
não seria lá uma idéia digna.

Durante as tardes, eu sentia falta do trabalho. Estava acostumado a ir direto para o


estágio depois do almoço, e agora eu apenas colocava matéria em dia, vez ou outra
parando para descansar o punho e a mente. Ainda não havia conversado com os irmãos
do apartamento ao lado, mas eu sabia quando um deles estava em casa. Quando eu
chegava da faculdade, Igor destrancava a porta. Ao crepúsculo, Igor saía antes mesmo
de Thomas chegar, e quando o caçula botava os pés no corredor, dava duas batidinhas
na porta. Era triste saber que eles não estavam se falando ainda. E que também não
estavam falando comigo.

Numa noite, enquanto lanchávamos, toquei no assunto com Fernando, mas ele falou o
que eu esperava que ele falasse: “Isso é assunto deles, e não podemos nos intrometer.
Não dá pra gente fazer nada”. Sabia que o loiro estava certo, mesmo porque os irmãos
não nos davam muita abertura para o assunto. Uma semana antes da última do mês de
outubro, entrei na casa deles. Estava tudo muito silencioso, e eu chamei pelo nome de
Igor. Demorou, mas ele me mandou entrar, e eu descobri que ele estava em seu quarto,
trabalhando.

Não conversamos muito; e a única coisa que conseguiu realmente tirar aquela expressão
lacônica do rosto de Igor foi quando contei que já estava falando com Enzo novamente.
Ele parou de ler um grande volume de folhas grampeadas, largando a lapiseira e apoiou
as costas na cabeceira. Contei como tudo se desenrolou, não omitindo a briga e a
reconciliação que tive com Fernando. Depois voltamos às amenidades, o que o fez
baixar os olhos. E tudo ficou quieto. Pigarreei, levantando-me de sua cama.

- Igor,… Semana que vem é meu aniversário, e eu…


 

- Eu sei. – Respondeu prontamente.

- Tá. E eu tava pensando em fazer alguma coisa; nada de mais, lá em casa mesmo, só
pra gente.

- Isso é bom. – Observou – Já pensou no que quer ganhar de presente?

- Não, e nem precisa me dar nada, basta aparecer lá em casa que eu fico satisfeito.

- Mas eu não. – Piscou, mantendo o olhar.

- Enfim,… Você vai poder ir?

- Claro. – Respondeu, sem vacilo.

- E… Tem como você passar isso pro Thomas? – Arrisquei falar no irmão.

Igor ficou me olhando um bom tempo, sem alterar em nada seu semblante, até que deu
de ombros, baixando os olhos para o que quer que fosse.

- Não acho que vou ter oportunidade pra isso. Ele não quer falar comigo.

- Mas, não vai nem tentar?

- Eu já tentei. – Respondeu, como se fosse óbvio.


 

- Ué, mas quem sabe ele pára e escuta dessa vez? Sei lá, é uma coisa que não é sua, eu
quem pedi… Mas pode até ajudar a voltar aos contatos, né? E seria importante pra
mim…

-… Vou tentar.

Não consegui conter um sorriso, e fui em direção a Igor. Passei meus braços por seu
pescoço, apertando-o fortemente contra meu próprio corpo. Senti que ele também me
abraçou, embalando-me com ternura. Um quentinho diferente do que sentia com
Fernando surgiu em mim, e eu me sentia seguro naqueles braços. Levantei, mais
animado, e vi um sorriso muito discreto brotar nos lábios de Igor. Conversamos mais
um pouco, depois voltei para casa. Nesse dia, antes de ir trabalhar, Igor foi me dar
tchau.

Thomas chegou não muito depois; arrisco a dizer que se demorasse mais algum
segundo, Igor acabaria esbarrando com o irmão. Deu as batidinhas de sempre, depois
entrou em casa. Fiquei pensando se deveria ir convidá-lo para meu aniversário, mas
deixei que Igor tentasse mais algum contato. Acabei de ler mais algumas folhas da
matéria incompleta de Enzo, concluindo que teria de pedir a de Túlio emprestada.
Guardei minhas coisas, arrumei a mochila e fui ver televisão. Acabei adormecendo
diante da tela luminosa, e só acordei quando senti um roçar em meu rosto.

Entreabri os olhos, ainda zonzo pelo sono, mas lentamente minha mente voltou a
funcionar, bem como minha memória. Bem próximo a mim estavam os olhos azulões,
penetrantes, que mergulhavam dentro de mim, me deixando sem defesa. Levei um
susto, pulando para trás, e acabei caindo do sofá. Fernando correu para me ajudar,
agarrando meu braço e pondo-me de pé. Balancei a cabeça, tentando colocar meus
pensamentos em ordem, depois virei para o loiro; ele me olhava com gravidade.

- Gui, você tá bem?!

-… Tô! Tô.

- Que houve? Tomou susto?


 

- É! – Minha voz saiu muito alta, e eu me repreendi mentalmente – É, me assustei.

-… Hum.

Fernando me encarou atentamente por alguns segundos, um pouco receoso, mas acabou
beijando minha bochecha e indo tomar uma ducha. Aproveitei o tempo e grelhei
hambúrgueres para nós, colocando a maionese e o catchup na mesa. Já estava colocando
refrigerante para mim quando o gringo aparece, e pára ao batente da porta da cozinha.
Lancei-lhe um sorriso, mas notei que ele baixou os olhos. Coloquei a garrafa na mesa,
olhando preocupado para Fernando.

-… Você me confundiu de novo com ele, né?

- Do que você tá falando?

- Na hora que eu cheguei. Você me confundiu de novo, né?!

Fiquei sem saber o que falar. O que eu poderia dizer? Mentir? Certamente, não era uma
opção viável. Suspirei, segurando um dos braços, e meneei a cabeça positivamente.
Fernando ergueu rapidamente as sobrancelhas, bem como os ombros, finalmente
sentando-se à mesa.

- Só pra constar, mesmo…

-… Desculpa.

O gringo apenas sorriu de lado, a covinha exibindo-se só para mim. Mas isso foi um
breve momento. Comemos sem conversar, e fomos para o sofá no mesmo silêncio.
Fernando apoiava o rosto em uma das mãos de um lado do sofá, enquanto eu inclinava
minha cabeça para trás do outro. Estava escuro, e somente a televisão iluminava o
apartamento. No comercial, levantei e fui para a varanda, apoiei-me nos dois braços e
fiquei olhando para os pontinhos apressados lá em baixo. Meu ombro quase não doía
mais.

Como o doutor Rafael pedira, eu fora ao hospital para conferir a cicatrização do


ferimento. Tirara os pontos havia alguns dias, e já podia erguer o braço além de minha
cabeça. É óbvio, ainda não podia carregar coisas pesadas, meu ombro ainda estava
ferido por dentro, mas não ter que me preocupar com pontos já havia se mostrado um
grande alívio. Sei lá, não gosto muito de ver pontos. Dei a sorte de encontrar com o
doutor Rafael em todas as vezes que fui ao hospital, mas arrisco dizer que foi ele quem
possibilitou essas coincidências.

Quando Mila saía, e ficávamos apenas nós dois, colocávamos a conversa em dia. O
doutor Rafael nunca deixava de me implicar, principalmente quando Fernando aparecia
no assunto. Criamos uma estranha amizade, de origem espontânea, e não precisávamos
dizer diretamente que um confiava no outro; já ficava subentendido em nossas
conversas. Ele me ajudava bastante, convencendo-me de que estava fazendo a coisa
certa, enquanto que eu o ajudava com aquele complexo ridículo que ele tinha. Em duas
ou três oportunidades, o doutor Rafael me acompanhou pelos fundos; os repórteres
continuavam xeretando.

Cocei o queixo, não pensando em nada exatamente, e me peguei relembrando o dia em


que fui atingido. Repassei meus passos desde a última conversa com o senhor Colin até
a volta para casa. E, ao me lembrar de meu chefe, comecei a ficar irritado. Como o
senhor Colin podia permitir que seus subordinados entrassem na cena do crime antes
mesmo da perícia? Qual seria o acordo sujo que ele sustentava para conseguir matérias e
fotos mais precisas do que os outros jornais? O policial Almeida, eu sabia que estava
envolvido; pareceu receber o pacote de dinheiro com muita familiaridade.

Respirei fundo o ar da noite, apoiando o queixo na mão direita, dobrando a coluna. De


algum jeito, a mídia ia descobrir o que havia acontecido. Um estagiário que foi ferido
enquanto cobria uma fatalidade que nem a polícia tinha detalhes ainda não era uma
coisa que se passava em branco; os carniceiros, na certa, procurariam saber o que havia
efetivamente acontecido. E com toda a pressão da televisão e dos jornais, alguém ia
acabar cedendo. Aquele prédio devia estar em colapso, bem como o próprio senhor
Colin.

Será que a polícia já saberia o que havia ocorrido? Era estranho, nada ter vazado ainda.
Já havia um bom tempo, e ninguém me procurou, nem mesmo o senhor Colin;
entretanto, estranhamente, meu salário continuava sendo depositado em minha conta no
banco. Eu tinha muita vontade de ir até o escritório de Colin e enchê-lo de perguntas,
apontar o dedo para seu rosto e criticá-lo um pouco. Mas eu ainda não podia pegar o
carro para ir tão longe, e nem Igor, muito menos Fernando, me deixariam sair de casa
para isso; principalmente, para isso.

Rolei o corpo, ficando de costas para o mundo e de frente para casa. Fernando ainda
estava no sofá, na mesma posição. Ri tristemente, mais para mim mesmo do que para
qualquer coisa. Nossa vida não podia estar mais tumultuada: eu corria risco de vida,
porque um assassino seqüestrador podia estar me seguindo; nossos vizinhos e melhores
amigos não se falavam, e mal falavam com a gente também; eu passava parte do dia
com uma das pessoas que Fernando mais odiava no mundo, e ele trabalhava o mesmo
tempo com outra que era odiada por mim; estava indo mal na faculdade; e confundia
meu namorado com o cara que tentara me matar.

Apertei os olhos, quase gargalhando da minha desgraça. Como é que a vida podia ser
assim, tão impiedosa? Por que não podemos simplesmente ser feliz? É tudo tão
complicado, tão difícil, que me deixava exausto só de tentar encontrar alguma resposta
para essas e outras muitas perguntas que surgiam em minha mente. Essa é a verdade, é
muito difícil viver; a maioria apenas sobrevive. Respirei, meio que tomando coragem, e
voltei para dentro de casa. Fernando apenas levantou os olhos quando me aproximei
novamente. Observei-o de soslaio por alguns instantes, e me arrastei para apoiar-me em
seu corpo, e imediatamente, ele me envolveu.

Contudo, o silêncio parecia eterno. E ficamos calados durante todo o filme. E fomos
dormir assim. Foi aí que começou nosso bloqueio: desde aquela noite, não
conseguíamos mais sustentar uma conversa por mais de vinte segundos. Mesmo não
precisando mais, vez ou outra eu ia ao hospital conversar com o doutor Rafael, que
estava se mostrando um ótimo amigo. E era realmente a única pessoa que me restara; eu
não podia ficar comentando essas coisas com Enzo, apesar de já estarmos nos falando, e
Igor e Thomas estavam distantes demais para tal. Minha esperança era que, em meu
aniversário, as coisas pudessem melhorar.

Saí do banco, pegando o primeiro ônibus que passou, e acabei perdendo meu ponto. Só
me dei conta de onde estava quando o ônibus fez uma curva fechada que não me era
estranha. Olhei em volta, acabando por me localizar: eu estava perto do prédio do
senhor Colin. Por um momento, pensei que eu devia ser muito estúpido para ter perdido
o ponto e estar exatamente no lugar mais perigoso para mim. Mas aquele era o lugar
mais esclarecedor também. Talvez muitas de minhas dúvidas e frustrações se
resolvessem lá. Dei de ombros, sabendo o quanto eu ia ouvir de todos depois, e saltei do
ônibus.

 
Vi-o partir, barulhento, e voltei minha atenção para o prédio familiar. No saguão, o
porteiro se lembrou de mim, entregando-me o cartão de sempre. Estava intacto, do
mesmo jeito que eu me lembrava. Antes que a porta do elevador se fechasse, notei que
algo havia mudado: havia guardas de prontidão nos flancos do saguão. Resolvi ir direto
para a sala dos estagiários, talvez encontrasse alguém conhecido. Mas a pequena saleta
estava vazia. Fui atrás de Flora; antes de falar com Colin, eu queria saber como tudo
estava. Encontrei-a no andar da gráfica, e assim que me viu, a empolgada jornalista
correu e me abraçou.

- Guilherme! Eu não acredito! Como você conseguiu ficar tanto tempo sumido?! Você
tá bem?!

- Tô, sim, Flora. E você, como andam as coisas por aqui?

- Não! – Gritou ela, me assustando, depois baixou a voz – Não podemos falar dessas
coisas aqui!

- Como?!

- Vem!

Agarrando um de meus pulsos, Flora guiou-me para o que eu concluí que fosse sua sala.
Fechou a porta, passando a tranca, e me fez sentar frente a sua mesa. Cruzou os dedos,
olhando-me profundamente; parecia tensa em demasia.

- Conte-me tudo, não me esconda nada!

- O quê?!

- Eu quero saber o que aconteceu naquele prédio! – Exigiu, em murmúrio. Pelo visto,
Flora já sabia.
 

- O que você sabe até agora?

- Mais do que muitos, mas não o suficiente. Antes de você ir ao hospital e da polícia e
do nosso pessoal chegar lá, a Marina me ligou. Eu costumava ajudá-la com revisão de
artigo, e ela só deve ter lembrado de mim quando tudo aquilo aconteceu.

- Mas então, você já sabe o que houve.

- Não! – Cortou, batendo na boca por ter falado alto demais – Não, não! Tudo foi
omitido, nem mesmo para o nosso pessoal o Colin liberou a verdade dos fatos!

- Ué, mas a Marina…

- A Marina está sendo coagida! Ela ficou no setor de montagem, ninguém vai lá! Eu sei
que Colin tá fazendo isso de propósito, ele não quer que a gente saiba de alguma coisa!
Nunca vi aquela menina tão amedrontada!

Flora parecia profundamente abalada. Como uma das mais antigas e confiáveis
funcionárias, é claro que ela tinha o direito de se sentir assim. Não era à toa que, assim
que me viu, correu para falar comigo, me levando para um local seguro onde pudesse
descobrir os verdadeiros acontecimentos do dia da matéria sobre o advogado
seqüestrado e executado. Fiquei pensando em como o senhor Colin era capaz de fazer
isso, e na sua influência sobre os meios de comunicação. Suspirei.

- Eu sei que tem alguma coisa errada, Guilherme, eu sei! Eu gosto demais do Colin, mas
eu já reparei, tem coisa errada por trás! E não é de hoje! Eu preciso saber o que está
acontecendo, o que aquele homem tá fazendo!

- E Vivian?

 
- Ela também está escondendo, eu sei. Aquela mulher sempre foi muito seca e fria, mas
dá pra saber quando ela fala menos do que o normal. – Pareceu refletir por alguns
segundos, depois voltou os olhos para mim – A Marina também não esteve com você o
tempo todo.

- É, nós nos separamos. Ela ficou com a parte da entrevista, e eu fui tirar fotos.

- Guilherme. Conta tudo desde que você recebeu a ordem.

Fiquei hesitante quanto a contar a ordem autoritária que recebi do senhor Colin, o
acordo com o policial Almeida de tirarmos fotos antes da perícia, e do encontro com o
assassino. Mas achei justo que Flora soubesse, não só porque era uma pessoa boa, como
porque tinha, depois de tanto tempo de trabalho, o direito de saber o que acontecia por
trás dos panos da imprensa. Respirei fundo, tomando fôlego, e contei mais uma vez toda
a história, desde o momento em que recebi a ordem, até minha consciência no hospital.

Vez ou outra Flora expressava surpresa, ou espanto, mas não ousou me interromper.
Quando terminei, a mulher continuou calada, talvez encontrando explicações para
coisas passadas que ela nunca soube explicar. Olhava fixamente para um ponto de sua
mesa, o rosto fino apoiado sobre uma das mãos, mal piscava. Receber a informação de
que se era enganado quando se ocupava um cargo importante numa empresa era como
um soco no estômago, e eu via que era essa a exata sensação de Flora.

- Ele mesmo deu o dinheiro?

- Foi.

- Num pacote pardo, né?

- É.

-… Isso é tão…!
 

Fez uma careta, como que resmungando a situação. Parecia desacreditada, como se
tentasse entender como nunca aquela hipótese havia passado por sua cabeça. De
surpreso, seu semblante foi passando para indignado, e até irado. Voltou os olhos
expressivos para mim, a voz num fio.

- Isso não é ético!

- Não, não é. – Concordei sinceramente.

- Mas, você o fez!

- Eu sei. – Falei com pesar – Eu devia ter dito “não”. Mas não consegui, foi fraqueza
minha.

- Isso é ilegal!

- Está pensando em fazer alguma coisa? – Perguntei, curioso. Ela apenas desviou os
olhos.

- Não sei se devo. Pelo menos, não agora.

- Mas você pretende levar isso à tona?

Flora apenas me encarou, seus olhos brilhando em chamas de indignação e fúria.


Levantando as sobrancelhas, acabei descobrindo que ela seria a pessoa quem deixaria a
história vazar, não por pressão, mas por livre e espontânea indignação. A mulher ainda
me perguntou alguns detalhes, e eu acabei falando mais sobre meu encontro com o
assassino. Aproveitei e perguntei se ela havia visto alguém com o mesmo perfil na
imprensa, ou pelo menos por perto. A resposta foi negativa.
 

Flora abriu uma gaveta ao seu lado, puxando alguns papéis e jogou-os à minha frente.
Encarei-os, percebendo que um era uma proposta de trabalho numa imprensa rival à
nossa, enquanto a outra era um pedido formal de demissão, já assinado por ela, mas em
branco em frente aos nomes de Vivian e de Colin. Ergui a cabeça, olhando para ela, e
Flora apenas fulminava-me com o olhar.

- Você tava desconfiada de acordos há muito tempo?

- Desconfiada, sim. Certa, não. Eu recebi essa proposta de emprego, e por um tempo ela
me pareceu extremamente tentadora, sabe? Cheguei a fazer esse pedido de demissão
formal. Só que acabei desistindo, afinal, eu adoro esse lugar. Mas eu sempre soube,
Guilherme, que por trás daquele sorriso tranqüilo do Colin tinha muita coisa. Só não
sabia que eram coisas que iriam me enojar.

- Então, você vai mesmo sair daqui?!

- Agora, mais do que nunca. Tecnicamente, eu não sei de nada, afinal não tivemos essa
conversa. – Piscou um olho para mim – Não haveria problema nenhum em eu sair
daqui. E eu não preciso explicar nada pra ninguém, já sou grandinha!

- Você vai mesmo acusar o senhor Colin?! Isso vai acabar com a credibilidade dele!

- Isso pouco me importa! – Acabou esbravejando – Nós estamos aqui para relatar a
verdade pela verdade! Nunca, nunca eu me submeteria à artimanha tão… baixa e suja!

- Certo, certo! Já entendi!

- E você vai comigo!

 
Foi aí que o bicho pegou. Olhei atônito para Flora, sua expressão determinada chegou a
me incomodar. Eu, em outra imprensa?! E ainda para revelar o esquema da pessoa com
quem mais aprendi sobre minha futura profissão?! Isso não poderia nunca acabar bem.
Flora deve ter notado minha hesitação, porque espalmou as mãos na mesa, olhando-me
autoritariamente.

- Nós temos o dever de dizer isso a todos!

- Flora, eu não posso ir para outra imprensa, eu não posso sequer estar aqui, como
estou!

- Você está fugindo!

- Não estou fugindo, Flora! Acontece que tem um assassino psicopata atrás de mim, e se
uma matéria dessas for publicada, o cara me acha fácil! Eu não deveria nem estar aqui,
porque se aquele homem desconfiar que eu vi a cara dele, o que com certeza ele sabe,
vai ficar de olho em tudo que sair no jornal sobre isso!

-… É, você está certo. – Pareceu ponderar, seus olhos mais piedosos – Mas eu vou
revelar os esquemas com a polícia! Isso você não pode impedir!

- Não estou impedindo você de nada. Só acho que, bem… Eu não quero fazer parte
disso.

-… E como você acha que vou poder provar que sei disso tudo?! – Acabou soltando.

- Você é uma jornalista, Flora! Você não precisa provar nada pra ninguém!

Flora ficou quieta por um tempo, talvez me xingando mentalmente, mas acabou
encostando as costas no apoio da cadeira. Pediu-me para que contasse novamente o
acontecido, mais vagarosa e detalhadamente. Paciente, repeti para ela, me esforçando
verdadeiramente para lembrar de mais algum detalhe que eu poderia ter esquecido ou
deixado de notar. Ela anotou algumas coisas dessa vez, pedindo para que eu repetisse
quando tocava em alguma parte mais importante.

Reparei que ela prestou muito mais atenção ao início de meu relato do que ao fim, o
que, para mim, chegava a ser desconexo. Se bem que não era a vida dela que estava em
perigo. Para mim, era essencial saber a correta descrição do assassino, e também de
como o advogado havia sido encontrado; para o senhor Colin, pouco restara do fascínio
que um dia havia existido. Passadas duas horas desde minha chegada saí de sua sala,
completamente abatido. Não sabia se conseguiria encarar meu chefe, e acabei pegando o
elevador para ir embora.

Já estava no ponto de ônibus, atento a tudo ao meu redor, quando uma idéia pouco
sensata havia brotado em minha cabeça: eu precisava ir à polícia. Decidido, parti para o
outro lado da rua, pegando o ônibus que me deixaria na esquina do departamento de
polícia. Fiquei parado um tempo frente ao prédio branco e cinza, pensando se realmente
seria ajuizado falar tudo o que acontecera naquele funesto dia. Colin ainda não havia
feito contato comigo, muito embora eu soubesse que o dinheiro em minha conta deveria
estar pagando meu silêncio. Bom, eu não precisava mais dele.

Subi as escadas, e entrei na delegacia. Insisti, quase irritando a atendente, que precisava
falar com o delegado imediatamente. Ela resistia bravamente, mas quando citei que era
sobre o advogado que havia sido assassinado, a mulher prontamente se levantou,
agarrou um de meus pulsos e me levou para o andar superior, na última porta ao fim de
um corredor. Bateu com os nós dos dedos, entrando em seguida. Dentro da sala, estava
um homem com seus quarenta e muitos atrás de uma escrivaninha de madeira escura,
um senhor já grisalho com vários arquivos a mão e outro, talvez uns dez anos mais
velho do que eu, sentado a um lado.

Engoli em seco, sentindo os olhos de todos dentro daquele limitado espaço pesarem em
mim. A mulher aproximou-se do homem sentado, que eu julguei ser o delegado,
cochichou algo em seu ouvido, depois se empertigou numa postura severa e saiu da sala,
fechando a porta atrás de si com tamanha força que cheguei a piscar os olhos. Fiquei
estático, ainda próximo à porta, apenas esperando que algo acontecesse. O velho senhor
deu uma boa olhada em mim, sorriu de lado e depositou os arquivos sobre a mesa;
talvez minha presença ali interessava mais do que eu podia pensar.

O delegado apoiava o queixo numa mão, as sobrancelhas pesadas davam-lhe um ar


constantemente carrancudo. O senhor, calvo e de expressão marcada, continuava com o
peculiar sorriso em minha direção. Voltei meus olhos para o mais novo deles, que me
olhava com muita atenção, seus olhos transbordando determinação. Com um aceno, o
homem me pediu para que eu me aproximasse, o que prontamente fiz, embora um
pouco relutante.

- Ora, não se aflija, rapaz! Só queremos conversar com você.

A voz do senhor era fina, e um pouco esganiçada, mas pareceu-me mais confortante do
que eu poderia pensar. Descruzei meus braços, tentando parecer que não estava tanto na
defensiva. Empurrando alguns papéis, o senhor sentou-se na mesa, enquanto que o
delegado inclinou o corpo largo para frente, apoiando os cotovelos e não tirando os
olhos dos meus. O velho riu e acenou para o jovem mais ao lado.

- Sim, sim, dê-lhe uma cadeira.

Quando reparei, o homem que parecia o mais novo segurava a própria cadeira próximo
a mim. Notei que ele era da mesma estatura que Fernando e, agora que estávamos mais
próximos, pude analisar melhor suas feições. Definitivamente, ele não tinha mais do que
trinta e dois. Havia experiência naquele rosto, mas também havia juventude. Deixei que
meu queixo caísse despropositalmente quando fixei meus olhos nos deles. Que cor mais
absurda era aquela?! Os olhos dele eram tão azuis, que pairavam o violeta. Sentei, ainda
encarando seus olhos, até ouvir a risada do velho.

- He, he, he! Não há um que não reaja assim, né, Roberto?! – Cutucou o delegado com o
cotovelo.

- Poupe-me das piadas, Baptista.

- Ora, um pouco de humor num ambiente tão pesado não faz mal a ninguém. –
Comentou animado o velho.

- Muito bem, filho. – O delegado baixou as mãos – Comece a falar.

- Não seja tão grosso com ele, Roberto. – Alfinetou o velho Baptista.
 

- Não estou sendo grosso, estou sendo direto. – Justificou-se.

- Mas não vai nem se apresentar?

Eu não sabia quem era aquele senhor que parecia ter imensa influência naquele lugar,
porque o delegado passou a mão no rosto, olhando-o impaciente, mas decididamente
pronto para obedecê-lo. O jovem ao meu lado esquerdo não mostrava reações, e sentia
que seus olhos violetas ainda estavam em mim.

- Eu sou o delegado Neves, e esse velho inconveniente aqui é o Baptista. O homem ao


seu lado é o detetive Abikair.

Olhei para o jovem, que apenas acenou brevemente com a cabeça. Talvez ele fosse o
detetive do caso e, por isso, permanecera na sala do delegado Neves. Voltei minha
atenção ao quarentão, que já apoiara os cotovelos novamente sobre a mesa. Fiquei
observando seus olhos miúdos e escuros por um tempo, até que ele pareceu enfezar-se
ainda mais.

- Vamos, filho! Não tenho o dia todo!

- Não assuste o garoto, Roberto! – Riu-se Baptista.

- Pare de criticar meus meios, Baptista!

- Não estou criticando, Roberto, estou apenas…

- Senhores, por favor!

 
A voz era potente e grossa, daquelas que fazem até seus pêlos da nuca se arrepiarem. Os
dois se calaram, e todos os olhos detiveram-se no detetive Abikair. Ele olhava um pouco
escandalizado para os dois, os braços cruzados frente ao peito, as costas apoiadas na
parede ao lado de um arquivo de cor grafite.

- Um pouco de ética, eu peço!

- Oh, perdão, jovem Abikair. – O velho riu, tirando os óculos redondos e limpando-os
numa pequena fronha branca, para depois apoiá-los novamente sobre o nariz – Acho
que Roberto se deixou levar pela coisa.

- Eu me deixei levar?! – Indignou-se o delegado, levantando-se da cadeira.

- E não foi? – Concluiu ironicamente Baptista, juntando as mãos sobre as coxas.

- Vamos deixar que o jovem fale, ou não?! – Cortou Abikair, antes que Neves cuspisse
mais uma resposta para Baptista.

Ao que pareceu, o delegado conteve-se por considerar as palavras do jovem detetive


sensatas. Voltou a sentar na cadeira, enquanto Baptista o olhava com implicante
meiguice. Com a certeza de que a discussão havia acabado, Abikair deixou-se encostar
novamente à parede. Cheguei o corpo para frente, pensando que, se não falasse logo,
nunca sairia daquele escritório.

- Eu sei de algumas coisas que talvez possam ajudar vocês a encontrar o assassino do
advogado Henrique Sardenberg.

- Disso já sabemos. – Disse Neves, enfadonho – Conte logo o que sabe.

- Hãm,… Bem,… Vocês já devem saber da pessoa que foi baleada, certo?

 
- É claro que sabemos! O que acha que fazemos aqui, comemos rosquinhas?!

- Vamos, Roberto, deixe o garoto falar. – Pediu Baptista. Neves apenas o olhou,
fuzilante.

- Sim, sabemos que um jornalista foi atingido enquanto estava ilegalmente no covil do
seqüestrador. Era isso o que tinha pra dizer?!

- Não era um jornalista, delegado Neves. – Girei a cabeça, vendo os olhos do detetive
Abikair deslocarem-se do chão para mim – Era um estagiário.

-… Isso não muda coisa alguma!

- Muda. – Abikair olhava-me com extrema fixação – Muda tudo.

- Ele é o detetive, Roberto. – Baptista deu uns tapinhas no braço do delegado – Ele sabe
o que fala.

- Que seja, um estagiário! – Deu de ombros – O que mais, filho, o que mais?!

- E se eu dissesse que conheço esse estagiário? – Falei.

Aí sim, o clima mudou dentro do pequeno ambiente. O delegado Neves pareceu


surpreso, talvez impressionado demais para voltar à carranca habitual e fingir que nada
o atingia. O senhor Baptista também pareceu surpreender-se, mas esboçou logo um
sorriso de satisfação. Apenas o detetive Abikair continuava o mesmo.

- Você o conhece?! – Recompôs-se o delegado.

 
- A essa altura, ele já deve ter recebido alta, não? – Baptista balançou a cabeça – E
como ele está?

- Hãm, ele está bem.

- E por que não o trouxe aqui?! – Protestou Neves.

- Ora, Roberto, leva tempo para recuperar-se de um tiro! Vai ver ele contou tudo o que
aconteceu a seu amiguinho, e pronto, cá está ele. – Sorriu, quase fechando os olhos com
as rugas.

- Eu acho… – Notei que Abikair começou a se aproximar por trás de mim – que depois
de um susto desses, qualquer um teria motivo suficiente para não sair de casa.
Entretanto,…

Senti suas mãos apoiarem-se no encosto da cadeira em que eu estava sentado. Baptista o
olhava com interesse, enquanto que o delegado parecia levemente transtornado.

- Parece que o senso de justiça de nosso estagiário falou mais alto.

- Bem pontuado, jovem Abikair.

- Filho, preste atenção. – Olhei para Neves, seus olhos apertados pelo cenho franzido –
Precisamos que você lembre de tudo o que seu amigo lhe contou! E rápido!

- Não pressione o garoto, Roberto.

- Precisamos de qualquer informação sobre isso, Baptista! Agora, mais do que nunca, há
uma chance de começarmos a completar o quebra-cabeça desse caso! Eu não posso
perder tempo!
 

- Não há com que se preocupar, delegado Neves. – Estranhamente, eu sentia que o


detetive já sabia quem eu era – Ainda não disse seu nome.

-… O senhor é o detetive do caso? – Abikair não pareceu tão pasmado com minha
pergunta como os demais, apenas inclinou um pouco a cabeça.

- Sim, eu sou. E você, quem é?

- Guilherme. Guilherme Azevedo Zheinkner.

- Pois então, filho! Fale!

Respirei fundo, tomando coragem para contar tudo o que lembrava do ocorrido naquela
tarde. Tive de me esforçar para não escorregar e acabar colocando a história em
primeira pessoa, chegando a omitir alguns detalhes para que parecesse mais convincente
a minha história de que era apenas um conhecido do verdadeiro estagiário. Não era uma
coisa certa de se fazer, mentir para as autoridades. Mas o olhar do detetive Abikair caía
sobre mim tão centrado que me convencia de que ele sabia que fora comigo que
acontecera o tal fato. A certeza disso foi que, quando falei do tiro no ombro esquerdo,
sua mão recuou um pouco da cadeira, desencostando-se de mim.

O senhor Baptista parecia divertidamente interessado em minhas palavras; era quase


assustador ver seu sorriso crescer diante de algum detalhe mais sórdido, enquanto que as
pessoas normais, como o delegado Neves, arregalavam os olhos, para depois fazer
perguntas e ficar pensativo. O detetive ouvia tudo com exclusiva atenção, parecendo
fazer anotações mentais quando vez ou outra levantava os olhos. Terminada a narração,
emudeci-me, esperando alguma reação daqueles senhores.

O delegado Neves me olhava, a mão escondendo a boca denunciava que estava


pensando em alguma coisa. Já o velho Baptista desviava os olhos de Neves para mim, e
depois para Abikair. O detetive mantinha os olhos arroxeados na porta do escritório,
mas quando se sentiu observado, focou-os em mim.

 
- Você acha que seu amigo se lembra bem do rosto que ele viu?

- Bom, ele me disse que só viu uma parte do rosto dele. Mas ele deve se lembrar, sim.

- Acha que ele estaria em condições de fazer um retrato falado? – Arriscou o detetive.
Engoli em seco.

- Só perguntando.

- Por que não vai visitar o amigo de Guilherme, Abikair? – Sugeriu Baptista, enquanto
Neves ainda pensava.

- Não é má idéia. – Concordou, tirando os cabelos quase negros dos olhos.

- Nós precisamos dessa testemunha aqui! – Berrou o delegado, subitamente –


Precisamos que conste nos autos!

- Delegado Neves, eu sei que sua autoridade aqui é absoluta; entretanto, a minha é ainda
superior e, como responsável do caso, creio que posso encontrar-me com a testemunha e
fazer constar nos autos a nossa conversa.

O delegado apenas piscou, emudecendo. Baptista começou a rir baixinho, tentando


esconder a boca com uma das mãos enrugadas. O detetive Abikair falava muito bem;
não consegui notar nenhum pingo de hesitação, e ele parecia muito certo de seu lugar,
enaltecendo-o de maneira a deixar claro ao delegado que era ele quem decidia o que
fazer.

- Se não fosse detetive, seria um advogado, jovem Abikair! – Elogiou Baptista. O


detetive apenas olhou-o por alguns segundos.

 
- Acha que poderíamos encontrar com seu amigo agora? – Perguntou, seus olhos
excêntricos em Neves.

- Eu… Eu vou ligar pra ele. Se me derem licença, eu…

- Te levo ao telefone.

- Mas…! Que afronta é essa?! – Urrou o delegado.

- Ora, Roberto! O rapaz está certo! Você está abaixo dele!

- Não venha com churumelas, Baptista!

- Oh, Roberto! Vai perder o controle novamente?! – Incitou-o.

- Velho,…!

Antes mesmo que eu pudesse ouvir mais alguma coisa, uma mão grande e espalmada
postou-se no meio de minhas costas, num toque frio, diferente. Pulei, olhando nas
gemas do detetive, que me fez um sinal com a cabeça. Levantei, e comecei a segui-lo
para fora do escritório do delegado Neves. Passamos por várias mesas, e todas as
pessoas pareciam olhar para nós, o ar de curiosidade me deixava embaraçado a ponto de
eu sentir minhas bochechas em brasa.

O detetive fez uma curva fechada, e eu me apressei a acompanhá-lo, mas assim que fui
escondido pela parede, senti meu braço direito ser agarrado, bem como meu pescoço, e
fui jogado contra a parede. A impassibilidade de Abikair havia sumido, e seu rosto
estava muito mais severo do que antes. Fiquei olhando aquela expressão fria, um pouco
irada, sem reação alguma. Ele finalmente piscou, e soltou um pouco o meu pescoço,
permitindo-me abaixar a cabeça.

 
- Você sabe que acabou de falar um falso testemunho?

-…

- Você mentiu para as autoridades.

-…

- Isso é crime.

-… Mas você sabia!

Abikair me encarou longamente, talvez na dúvida entre eu ser mais um espertalhão que
tentava se safar, ou se realmente estava com medo de falar, o que era a verdade. Só de
entrar naquela sala fechada, com três pessoas que me encaravam insistentemente,
querendo arrancar de mim toda e qualquer informação me deixou em pânico, e eu
acabei encobrindo minha identidade. O detetive soltou meu pescoço, ainda segurando
meu braço. Desviou os olhos para o corredor, depois os voltou para mim.

- De fato, eu sabia. – Asseverou o olhar – Mas nem pense em mentir ou omitir alguma
coisa de mim. Porque eu vou descobrir.

- Eu sei, senhor Abikair, sinto muito. – Falei, meio sem jeito – Eu estava… enfim, não
importa. Vai querer mesmo o tal retrato falado?

- Por que não?

Continuando o caminho pelo corredor, entramos numa salinha apertada. Não havia nada
senão trabalho naquele ambiente; nenhuma foto, nenhuma decoração, nem objetos
pessoais, e isso provavelmente porque ele acabara de chegar. O detetive puxou a
cadeira, indicando que eu devia sentar também. Abriu uma das gavetas ao lado da
perna, puxou um bloco e um lápis, deixando-os sobre a mesa, depois cruzou os dedos,
apoiou os cotovelos sobre a mesa e dedicou atenção suprema à minha descrição do
assassino.  

Enfatizei cada detalhe que me pareceu mais importante da pessoa que eu havia visto
naquela tarde, esforçando-me verdadeiramente para lembrar mais alguma coisa que
poderia ter deixado escapar pela intimidação na sala do delegado Neves. Passei mais
tempo de olhos fechados, repassando cada momento em minha mente, e tal foi minha
surpresa quando, ao abri-los, dei de cara com um desenho muito semelhante ao homem
que atirara em mim, o que fez com que eu me afastasse, empurrando acidentalmente a
cadeira.

- Então? Está parecido?

Abikair virou o desenho para mim e, enquanto eu o analisava, ele limpava a mão suja
pela grafite. Notei alguns traços imperfeitos, e pedi para que o detetive acertasse-os.
Passados quarenta minutos, pude ver a cópia fiel da faixa do olhar daquele homem.
Fiquei meio apreensivo, pensando se a imagem que guardara em minha memória ainda
era a mesma da pessoa que eu havia visto. Pedi para que o detetive pintasse os olhos
com a caneta azul. Paciente, ele atendeu ao meu pedido. Entregou-me o papel algum
tempo depois, e não tive mais dúvidas; era ele.

- É ele.

- Tem certeza? – Perguntou, incerto, talvez um pouco incomodado.

- Absoluta. Esses olhos não enganam. – Apontei-os com o dedo.

- Você disse que só viu o olhar dele, certo? Apenas esta faixa do rosto? – Indicou com
os dedos.

- É, foi isso. Ele estava usando algum gorro, meia, sei lá o que era aquilo.

 
-… Espere um pouco.

O detetive abriu a gaveta, tirando uma pasta cheia, abriu-a e pegou um envelope branco
e gordo de dentro dela. Tirou seu conteúdo, que se revelou serem fotos, e colocou-as na
minha frente. Todos os que apareciam nas fotos eram homens de olhos azuis, entre
trinta e quarenta e cinco anos.

- Acha que consegue identificar o tal homem como sendo um desses?

-… Posso tentar.

Puxei as fotografias uma a uma, atentando para o tipo físico dos homens, bem como
escondendo seu corpo e todo o resto que não me fora revelado naquele dia. Alguns, eu
descartei desde a primeira olhada; os olhos não eram os mesmo. Depois, foi ficando
mais difícil, tive que pensar bastante para ter certeza do que ia decidir. Mas, no fim,
nenhum deles era o homem que havia me alvejado. O detetive Abikair não pareceu
muito feliz com isso, mas pareceu aceitar consideravelmente o fato de não ter
conseguido achar o tal.

Voltou com a pasta grossa para cima da mesa, mas assim que a puxou novamente para
colocá-la na gaveta, reparei numa foto nova, uma que eu tinha certeza de que ele não me
mostrara.

- Espera aí…

- Como?

Coloquei a foto bem próxima à borda, e abaixei a cabeça. Dei uma olhada rápida para o
detetive, que me encarava um pouco confuso, depois escondi as partes que eu não havia
visto no homem. Aquele estava muito parecido, parecido até demais. Puxei minha blusa,
cobrindo do nariz para baixo do homem, escondendo seus cabelos com um dedo, e
aproximei meu rosto. Ali estava ele, eu tinha certeza! Aqueles olhos eram únicos, quase
impossíveis de se encontrar. Era exatamente o mesmo homem, cujos olhos eu sempre
confundia com os olhos de Fernando.
 

- É esse!

- Esse?!

- É esse, eu tenho certeza, detetive, certeza absoluta! Esses olhos, é ele mesmo!

-… Você tem certeza disso?!

- Absoluta! A mais absoluta certeza! Eu nunca poderia esquecer esses olhos!

- Acho que você está um pouco equivocado. – Disse Abikair, tomando a foto de minhas
mãos.

- Não, não estou! Eu tenho certeza!

- Guilherme, esse suspeito não é nem do mesmo caso.

- Senhor Abikair, por favor! – Por que ele não acreditava em mim?! – Eu tenho plena
certeza de que é ele! Eu não poderia me enganar! Eu sei que é ele!

-… Então, temos um grande problema.

Olhei para as belas esferas arroxeadas do detetive Abikair, enquanto elas pareciam
fixadas no nada. Ouvi seu suspiro, e ele fechou fortemente os olhos por alguns
segundos. Será que ele não acreditava em mim? Eu não estava mentindo para ele, e ele
fora o único para quem não menti.

 
- Senhor Abikair, eu estou certo do que falo. É ele, é sim!

-… – Continuava imerso em pensamentos.

- O que poderia impedir esse homem de ser o assassino desse caso?!

- Tecnicamente, nada.

- Então?!

Eu realmente não estava entendo paçocas! Criminosos poderiam praticar vários crimes,
então por que o suspeito de um crime não poderia ser o autor de um outro? O mais
estranho, apesar de tudo, era que Abikair parecia extremamente preocupado com a
minha certeza, ou melhor, perturbado.

- Essa foto não é de nenhum caso, Guilherme.

- Mas eu… Hãm?!

- Não pertence a nenhum caso.

- Ué, então como é que ela apareceu aqui?! Eu sei do que estou falando, é esse cara,
mesmo!

- Essa foto é minha, Guilherme. – Encarei Abikair, petrificado – É a foto do meu irmão.

Não sabia mais o que dizer. Como dar a certeza para alguém de que seu irmão era um
assassino?! Eu tinha certeza, era ele, era ele mesmo, não estava enganado. Várias vezes
tentei falar alguma coisa, mas a expressão do detetive não era lá muito motivadora.
Segurava a cabeça com o braço apoiado sobre a mesa, a foto do irmão nas mãos, bem
frente aos olhos. Engoli em seco, deixando-me escorrer na cadeira, me sentindo um
pouco mal e acuado.

- Eu…

- Você tem essa certeza toda? – Cortou, fazendo com que eu me calasse. Tomei ar para
responder.

-… Tenho.

-… Muito bem. Preciso de alguns dados seus, se não se importa.

Puxando uma folha da gaveta, o detetive pediu para que eu respondesse algumas coisas
e, conforme eu fazia a caneta correr, levantava os olhos para olhá-lo. O semblante
pensativo denunciava preocupação, um pouco de desapontamento e, pasme,
incredulidade. Entreguei meus dados, não mais pensando em quanto tempo eu ainda
precisava ficar lá, mas curioso para saber o que o detetive ia fazer. Não que ele tivesse
cara de quem aceita alguém para conversar nessas horas, mas eu tampouco poderia sair
sem ter a certeza de que estava bem.

- Senhor Abikair?

- Pois não? – Voltou os olhos anormais para mim.

- O senhor… O senhor acredita em mim, certo?

Primeiro, o detetive me olhou longamente, e tal atitude me deixou preocupado a


princípio. Mas depois, Abikair empertigou-se, cruzando levemente os braços, suspirou e
brandeou as expressões.
 

- Você já mentiu para as autoridades antes.

- Senhor,…

- E poderia muito bem estar fazendo de novo.

- Não, eu…!

- Pessoalmente, eu não acho que…

- Eu não menti pra você! – Acabei me exaltando – Eu nunca mentiria pra você!

Abikair ficou quieto um longo tempo, mas depois descruzou e apoiou os antebraços na
mesa, inclinando-se para frente e ficando mais próximo de mim. Daquele jeito, a luz da
pequena janela refratava em sua íris, produzindo um efeito sem igual: seus olhos,
originalmente azuis, pareciam aquarelas azuladas, violetas e arroxeadas pinceladas de
maneira espetacularmente vívidas.

- Eu sei, Guilherme. Eu não duvido da sua sinceridade.

Aquilo foi diferente. Não foi como contar alguma coisa ruim para um amigo, ele
duvidar, mas depois confirmar que continuava a acreditar no quer que você dissesse. O
senhor Abikair passava-me estranhos sentimentos, como que parte de seu diferente ser.
Pediu para que eu não saísse da cidade, mas também pediu para que eu ficasse em
alerta, já que, como Fernando, ele acreditava na possibilidade de uma perseguição
súbita por parte do assassino. Não chegou a falar do irmão novamente, o que me deixou
morto de curiosidade.

Acompanhou-me até a porta de saída da delegacia de polícia, chegando a andar comigo


até o ponto mais próximo. Pouco falei nesse percurso, fiquei mais atento ao que
acontecia à minha volta, e às dicas de proteção que o detetive me passava. Ao ar aberto,
pude ver mais daquele homem tão contido em suas formalidades. O cabelo era castanho
escuro, mas com as luzes da tarde, o brilho por eles exibido pairava o mesmo tom que
tinha um vinho tinto. Os olhos, escuros e penetrantes, pareciam uma mistura de cores,
com uma grossa borda negra que continha as cores.

Sua pele era originalmente morena, cor de jambo, e cintilava a cada toque de luz, como
se fosse uma seda muito fina. Do mesmo tamanho que Fernando, tive a impressão de
que seus ombros eram um pouco mais largos, enquanto que a cintura era mais estreita.
Entrei no ônibus, sentando mais ao fundo, ainda a tempo de ver seus olhos grudarem
nos meus. Ficamos nos encarando fixamente, sem desviarmos os olhos, até que o
veículo começou a se mexer. Tive que virar a cabeça para continuar olhando para ele,
mas logo veio uma curva, e o detetive ficou para trás.

Olhei para minhas mãos, meio às minhas pernas; o que estava acontecendo comigo?!
Por que havia um volume começando a se erguer em minhas calças?! Senti-me
extremamente envergonhado, cheguei a olhar em volta para ver se mais alguém havia
reparado. A verdade era que aquele detetive era, simplesmente, maravilhoso; um
morenão que, com aquela cara de provocante austeridade, conseguira me excitar com
apenas um olhar.

Tudo nele parecia peculiar: o toque frio, os olhos severos, a postura, o jeito de falar, o
efeito que provocava. Uma excentricidade que me atraiu, com os olhos arroxeados, a
pele brilhante e morena, os cabelos diferentes. Apoiei a cabeça no vidro, escondendo
minha ereção com as mãos. Não estava certo. Achar outros bonitos, excitar-se quando
se vê uma cena de sexo, tudo bem. Mas me desarmar com apenas o olhar,… Isso só
Fernando sabia fazer. Só ele costumava saber.

E pensar em meu namorado não me animou mais, uma vez que não estávamos nos
falando direito. E acusar o irmão do detetive como assassino, depois de mentir para o
delegado, não era também o melhor dos consolos. Precisava chegar logo em casa,
resolver de uma vez por todos os pepinos da minha vida: falar e juntar novamente os
irmãos do apartamento ao lado, me acertar com meu namorado, ajudar o doutor Rafael
com aquele complexo ridículo e Enzo com o sumiço do irmão, cooperar com o detetive
Abikair, e fugir de um homicida.

Quem disse que seria fácil?


Minha cabeça estava tão transtornada, que ainda não sei como não perdi o ponto no qual
deveria descer. Afinal, o que estava acontecendo comigo?! Tá certo que o detetive
Abikair era um homem bonito, extremamente exótico, com um corpo moreno
artesanalmente esculpido, mas daí a ficar… Não conseguia nem pensar na palavra, não
conseguia crer que ficara naquele estado com um simples encarar de olhos. Escondi os
olhos no braço apoiado à janela; baixar os olhos não era a melhor das opções. Acabei
descendo dois pontos depois do meu, já que não achava prudente levantar antes disso.

Segui pelas ruas a passos largos, não consegui olhar para os lados, como tanto meus
amigos me pediam. Entrei correndo no prédio, puxei a porta das escadas e subi de dois
em dois degraus até chegar em casa, arfante. Tranquei a porta, antes que qualquer um
dos irmãos notasse minha chegada, depois fui para o quarto e me escondi debaixo das
cobertas. Tirei a camisa, troquei a calça por um short e fiquei com as meias. Com o
corpo encolhido, apertei os olhos, sentindo uma incrível raiva brotar dentro de mim.
Minhas reações não eram justas, nem comigo nem com Fernando. Eu não podia ficar
tão desarmado só com o olhar de outro homem, isso era exclusividade do meu
namorado. Então, por que raios eu estava ali, com a cueca melada?!

Num acesso de raiva, joguei os travesseiros em qualquer direção. Um deles derrubou


alguns livros da mesa, e o outro quase voou pela janela. Bufei, socando o colchão
repetidas vezes, até que simplesmente não consegui mais me mover. Eu não podia
continuar daquele jeito. Eu precisava fazer alguma coisa para resolver a minha vida,
principalmente no aspecto amoroso. Comecei a sentir raiva de mim mesmo, do que
estava fazendo com a minha vida e com a vida dos outros. Meu peito doía tanto, a
garganta apertava e ficava cada vez mais difícil respirar normalmente. Eu não podia
nem fechar os olhos, que o rosto de Fernando surgia diante de mim.

Meus olhos arderam, quentes, o que só me deixou mais raivoso ainda. Lágrimas de ira
riscavam ardentemente meu rosto, o maxilar contraído parecia aumentar minha dor de
cabeça. O telefone estava na mesinha de cabeceira, nem meio metro de mim, entretanto,
meu braço estava pesado demais para se esticar até o aparelho. Não sei precisar quanto
tempo passei naquela mágoa de mim mesmo, mas quando finalmente consegui mover
meu corpo, o céu já estava escuro. Suspirei, incomodado com o rastro das lágrimas em
minha face, e virei a cabeça. Encarei o telefone, a mente em branco, e peguei-o com a
mão direita. Apoiei-o no estômago com as duas mãos, mirando-o, mordendo o lábio
inferior como num velho hábito de indecisão. Puxei na memória o número do ramal do
loiro; àquela hora, ele já devia estar no escritório.

Os toques cadenciados aumentavam minha expectativa, já estava para desligar quando a


voz familiar atendeu a ligação. Quando respondi à saudação, Fernando ficou mudo e
pediu um momento, o que me deixou mais aflito ainda. Ouvia sua conversa com outras
pessoas, o barulho de uma porta se fechando e o fio do telefone sendo suspenso.

- Gui?

- Oi.

- Hãm,… Oi.

-…

O antigo silêncio voltou, pesado. Sentia todo o meu ser se contrair, uma sensação de
vazio dentro do corpo. O fato de Fernando não falar nada também contribuía para o meu
nervosismo, porque eu só escutava sua longa e calma respiração. Engoli em seco, fora
eu quem ligara, então nada mais justo do que eu puxar assunto.

- É,…

- Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

- Não, eu… Não aconteceu nada.

- Hum,… Certo. Que bom, então.

- É…

-…
 

-…

Por que eu não consegui falar nada? Eu não sabia ao certo o que eu queria tanto falar,
mas eu sabia que precisava falar alguma coisa, qualquer coisa. Estava sentado na ponta
da cama, os dois pés apoiados no chão, o braço esquerdo sustentando parte do peso ao
lado de minha perna. Novamente, ouvíamos nossas próprias respirações. Apertei meus
olhos, trancando a mandíbula. Meus olhos começavam a esquentar novamente. “Fala
alguma coisa, seu imbecil! Fala alguma coisa!”, só podia pensar. Mas não saía nada.
Deixei que uma expiração rápida escapasse sem querer, e ele deve ter percebido que eu
estava uma pilha de nervosismo.

- Gui,… Tá tudo bem, mesmo?

-…

- Gui… Fala comigo…

-… Fê?

- Fala comigo, meu amor…

Fechei os olhos, espremendo-os fortemente. As gotas quentes rolavam, desenfreadas,


mas eu não me importei. Prendi a respiração, soltando uma expiração rápida outra vez.
Limpei o rosto com as costas das mãos, piscando muito para desembaçar a vista, já
fungando.

- Fê…?

- Que foi, Gui? – Sua voz era doce, delicada – Que aconteceu?
 

- Nada, eu só… – Respirei fundo, não sabia o que dizer. Precisava dele ao meu lado –
Tá tudo bem com a gente, né?

-… Claro, Gui. Como sempre… – Solucei alto, mais lágrimas brotavam de meus olhos.

- Fê,… Volta logo pra casa, tá?

-…

- Fê?

-… Já tô indo praí, Gui. Espera só um pouco, que eu já tô chegando.

- Tá. – Funguei, colhendo novamente minhas próprias lágrimas – Tá, eu… Fê…

- Te amo. – Aquelas palavras fizeram-me desabar – Te amo, Gui.

- Eu também, loiro. Muito…

- Já tô chegando.

- Tá. Vem logo.

- Tá.

 
Nem nos despedimos. Desligamos o telefone mais ou menos na mesma hora, e assim
que deixei o aparelho sobre a mesinha, levantei e fui ao banheiro. Entrei debaixo do
chuveiro, tentava ao máximo me acalmar. Estava tudo bem. Fernando dissera que estava
tudo bem, não havia mais com o que me preocupar. Ele mesmo falara, eu não precisava
mais me preocupar com aquela falta de conversa, com a ausência de toques mais
íntimos. Enquanto me secava, olhei para minha imagem no espelho. Meus olhos ainda
estavam vermelhos, destacados meio ao meu rosto claro. Fernando chegaria a qualquer
momento do trabalho, voltaríamos a ser como antes. O alívio era tão grande que sentei
na cama e fiquei lá, pelado e molhado, consolado.

Vesti uma bermuda e uma camisa de manga curta; se o loiro me pegasse sem roupas
depois de ter tomado banho, eu ia levar muito esporro. Foi quando eu acabava de grudar
o velcro da bermuda que me toquei o que acabara de acontecer. Minhas dúvidas eram
besteiras; como eu poderia ter duvidado do amor que eu sentia por Fernando, assim, tão
facilmente? A dor que eu senti fora tamanha, que sanou todo e qualquer vacilo meu
quanto ao sentimento que eu tinha por meu namorado. Comparado com o momento em
que estava com o detetive Abikair, meu coração parecia retumbar mil vezes mais
rápido. E lembrar do detetive me fez pensar se eu deveria contar ou não a Fernando o
que tinha feito naquele dia.

Esporro seria pouco para o que eu ouviria. O gringo iria gritar, espernear, apontar o
dedo e o diabo; falaria que era um absurdo eu sair sozinho e ir direto pra toca do lobo e
esperar não ser mordido. Honestamente, não sei o que ele acharia pior, eu ir ao meu
antigo trabalho ou me dispor a colaborar com a polícia. Engolindo em seco, conclui que
aquele não era o melhor momento para Fernando saber do meu diazinho agitado.
Contaria o que me havia ocorrido num momento mais pacífico. Quando terminei de
puxar a barra da camisa, me dei conta de minha ansiedade. Não sabia onde colocar os
braços, que pareciam adendos desengonçados de meu corpo. Pensei em sentar, mas no
momento em que o fiz, estar de pé parecia mais cômodo. Entretanto, agora que não
estava mais sentado, não conseguia ficar parado.

Os reflexos do pulsar de meu coração martelavam minha garganta, ecoavam em meu


ouvido. Caminhei até a cozinha, certo de que um copo de mate acalmaria meus nervos,
mas o ribombar produzido por meu próprio corpo pareceu somar-se aos goles que eu
tomava. Batucava a colher na pia enquanto esvaziava o copo de chá gelado, impaciente,
qualquer ruído me alarmava. Respirei fundo depois de lavar o copo, achei que ver um
pouco de televisão me acalmaria. Com o controle, passava os canais, mas não parava
em nenhum. Não que nada fosse interessante, mas eu não conseguia me concentrar em
uma única coisa. Desliguei a tevê, minha ansiedade já não tinha mais canais para ser
extravasada.

 
Sentei no chão, de frente para a porta, as coxas junto ao peito. Baixei a cabeça, apoiando
a testa nos joelhos. Queria que o loiro chegasse logo, todavia ao mesmo tempo gostaria
de poder adiar o contato; sabia que não conseguiria falar nada, ficaria travado e em
angustiante silêncio. Ruídos para além da porta de entrada de meu apartamento se
fizeram ouvir, e eu levantei a cabeça rapidamente. Olhava para o teto, tentando
distinguir a origem dos barulhos. Parecia uma marcha, como se muitas pessoas
estivessem andando juntas, mas descompassadamente. Levantei, segurando o encosto de
umas das cadeiras da mesa de jantar, minhas pernas pareciam bambas. Engoli em seco,
um estrondo ecoou no corredor, e o barulho familiar de chaves soou para além de meus
tímpanos.

Minha mão começou a tremer, meu joelho já estava cedendo. As chaves pareciam estar
desesperadamente sendo balançadas, e cada segundo de espera me deixava mais
nervoso. A maçaneta se torceu, e a folha de madeira se abriu. A primeira coisa que
consegui enxergar, antes mesmo da porta estar totalmente aberta, foram seus fios
dourados, arrepiados certamente por sua corrida até a casa. Depois, de uma única vez, a
figura do gringo surgiu meio ao escuro do corredor. Sua boca estava entreaberta, as
rosadas maçãs do rosto a denunciar seu esforço. A mão ainda segurava a maçaneta, mas
o corpo estava estancado; o olhar era fixo, impactante, que me fulminava com toda
intensidade. Pisquei, fiz menção de falar, mas não saiu nada.

As esferas azuis não piscavam, nem quando ele começou a se aproximar de mim. Cada
passo por Fernando dado tornava meus joelhos mais fracos, e eu me senti prestes a cair
quando ele parou a menos de dois passos de distância. Baixei os olhos por alguns
instantes, mas voltei a erguê-los, encarando meu namorado. O loiro ainda respirava com
dificuldade, mas eu duvido muito que fosse apenas pela corrida. Não conseguia desviar
meus olhos dos dele, sendo facilmente tragado por aquele profundo oceano com
tormentas emocionais. Por um momento, parecia que Fernando não sabia bem onde
colocar as mãos, agitado. Mas depois seu real desespero se revelou nas feições
preocupadas, e ele venceu a distância entre nós enlaçando minha cintura estreitamente.
Senti seus braços comprimindo-me contra seu corpo quente, e fechei os olhos.

Permiti-me abraçar seu pescoço, enlaçando-me forte ao homem que amava. Nada mais
passava em minha mente, nada mais apertava meu coração a não ser a presença de
Fernando. Seu cheiro adentrava minhas narinas com impressionante força, deixando-me
inebriado, fazendo meu peito apertar ainda mais. Sentia que estava prestes a chorar,
meus olhos ardiam imensamente. Eu queria conversar com o loiro, falar qualquer coisa,
mas nada saia de minha entalada garganta. Afundei o rosto na curva de seu pescoço,
fungando o perfume da pele sensível. Ele arfou, senti uma de suas mãos soltar meu
corpo para segurar minha face. Seu olhar era sôfrego quando as esferas azuis detiveram-
se em mim, e eu não consegui reagir diante de tamanha beleza.

 
Piscando uma vez, Fernando tomou minha boca não muito delicadamente, mas eu não
esperava que ele fosse cuidadoso, posto que precisava daquele contato tão urgentemente
quanto ele. Nossas línguas estavam saudosas, e massageavam-se incansavelmente,
dando voltas, curvas, lambendo e chupando lábios superiores e inferiores. Senti que era
empurrado e dei de costas com a parede da sala ao lado da porta de acesso ao corredor.
O gringo apertava o quadril contra o meu, me deixando louco. Sentia que não conseguia
respirar, desfiz o beijo na busca de ar e meu pescoço foi imediatamente atacado. Sentia
chupões fortes na pele sensível de meu pescoço, a outra mão ocupava-se em apertar
minhas nádegas. Eu precisava de mais, desejava mais contato com o corpo tão quente e
desejável de Fernando.

Agarrei um de seus ombros, passando o outro braço por seu pescoço e, com um
impulso, montei no tronco do gringo, minhas pernas firmemente atadas em seu quadril.
Ele me empurrou com mais força contra a parede, segurando meus dois pulsos e
colocando meus braços acima de minha cabeça. Meu coração ribombava como um
tambor de olodum, e por alguns segundos temi que meus tímpanos estourassem com
tamanha intensidade de pulsação. A língua de Fernando lambeu meu lábio inferior, e
meus dedos deslizaram automaticamente para seus cabelos, penetrando-os e agarrando-
os com força. Puxei a cabeça do loiro para o lado, sua boca entreaberta, e rocei a língua
em seu lóbulo, descendo para o pescoço, onde inconscientemente cravei meus dentes.

Ele gemeu, senti seu membro endurecer ainda mais contra minha virilha. Suas mãos
afundavam-se em minhas coxas, um de seus dedos muito próximo de minha entrada.
Senti-o cutucar de leve meu ponto, o que só fez com que meu quadril se empinasse
instintivamente. Abri os olhos, demorando a conseguir concentrar-me para focar a
imagem meio ao turbilhão de desejos e taras que me acometia, e encontrei a face de
Fernando próxima a mim. Suas bochechas mais que rosadas, os lábios vermelhos. Os
cabelos revoltos agrupavam-se em tufos esporádicos por mim puxados e, quando sentiu
que era observado, os olhos oceânicos direcionaram-se em minha direção, selvagens,
animalescos. A franja arrepiada concedia-lhe um aspecto ainda mais ferino, e um sorriso
matreiro de dentes brancos brilhou rapidamente.

Fernando espalmou as mãos o suficiente para conseguir segurar minhas duas nádegas de
forma a quase penetrar-me com os dedos médios, minhas coxas apoiadas em seus
antebraços. Rebolei levemente, seus dedos tocaram minha entrada, e meu baixo ereto
roçou o dele. Não agüentei me reprimir mais, e deixei que minha voz escapasse
livremente. Fernando me fazia esquecer dos vizinhos, dos prédios de frente para nossa
janela, da faculdade, de Abikair, do mundo todo. Éramos só nos dois, e estávamos nos
amando tão loucamente, que nem o tempo parecia existir. Eu arfava rápido, meu corpo
estava tão quente, e parecia queimar ainda mais nos locais tocados pelo gringo.

 
Agarrei-me a ele, meu coração louco bombardeava meu peito, e minhas pernas tremiam
precariamente. Minha garganta arranhava enquanto Fernando lambia e sugava a frágil
pele de meu pescoço. Meu quadril jogava-se inconscientemente contra o do loiro, eu
sentia que estava me descontrolando. Procurei novamente seu pescoço, mordendo-o
com força, depois lambendo e chupando o local machucado. Minhas costas bateram
novamente contra a parede, uma dor deliciosa me incitou a morder Fernando com mais
força. De repente, o loiro empurrou a pelve contra a minha, seu volume rijo quase a
rasgar nossas calças.

- Aaahhh…

Fechei os olhos para gemer. Era bom demais ter o gringo daquele jeito, tão imprensado
contra mim, e foi ainda melhor quando ele arrancou minha blusa e abocanhou um
mamilo enquanto o outro recebia atenção especial de uma de suas mãos. Respirei fundo,
mas estava impossível suportar mais daquela tortura; eu precisava de Fernando, e o
queria naquela hora. Ele sugava fortemente o botão em meu peito quando me curvei e
abracei sua cabeça, colando a boca em seu ouvido e falando uma das frases que até hoje
tenho vergonha de repetir.

- Me fode…

Meu sussurro saiu rouco. Foi só eu terminar de falar que a língua do gringo parou. Ele
ainda estava com meu mamilo na boca, uma das mãos com os dedos enfiados entre
minhas nádegas, quando ergueu a cabeça para olhar para mim. Os olhos azuis cintilaram
perigosamente em minha direção, aumentando a louca sensação que a adrenalina
causava em mim. A língua ainda pressionava a carne túrgida, os lábios avermelhados,
os cabelos despenteadamente selvagens. Eu o encarei, arfando, e vê-lo daquela maneira
tão provocante me fez erguer umas das sobrancelhas e rir de lado.

- Que foi, loiro? Quer que eu repita?

Obviamente que não precisei repetir. Acho que devo ter mostrado uma cara muito
safada, porque pela reação do gringo, eu devia estar parecendo um garoto de programa
bem devasso que se oferecia de graça. Ele piscou, e nem um segundo depois eu já
estava sendo fortemente beijado, seus dedos definitivamente querendo penetrar por
minha bermuda. Senti que estávamos nos movendo, e rebolei devagar sobre o volume
de Fernando. Mal chegamos ao nosso quarto, fui arremessado para a cama. Ainda não
havia erguido o torso completamente quando Fernando, depois de fechar a porta, se
livrou das próprias roupas e colocou-se nu sobre meu corpo. Suspirei, sorrindo
involuntariamente; dessa vez, nem se eu quisesse muito conseguiria escapar. Aliás,
nunca daria pra escapar, se fosse Fernando.

Os movimentos felinos me hipnotizavam quase ao ponto de babar. O modo como seus


músculos se contraíam só para que seu torso ficasse erguido me fascinava, a tênue luz
dos postes da rua fazia com que fracos feixes luminosos refletissem o brilho daqueles
cabelos dourados e da pele beijada pelo sol. Levei minhas mãos ao cós de minha
bermuda, mas ele não me deixou tirá-la. Empinando o traseiro, o loiro ajoelhou-se entre
minhas pernas e, agarrando minhas coxas com firmeza, separou minhas virilhas. Os
olhos oceânicos fixaram-se nos meus, brilhantes e provocantes, e então a cabeça loira
abaixou-se. O pano de minha bermuda era muito fino, portanto ficava mais fácil sentir e
distinguir qualquer coisa. Primeiro ele apoiou a mão espalmada, conseguindo tocar
desde meu membro até os testículos. Depois, para meu profundo êxtase, ele deitou a
cabeça sobre meu baixo.

Senti automaticamente que meu volume crescia e endurecia a cada novo roçar do
gringo. Passando os braços por baixo de minhas coxas, Fernando segurou minhas
pernas bem abertas, chegando a erguê-las um pouco, e afundou novamente o rosto entre
meus documentos, fazendo questão de tocar cada coisa de uma vez. Minha barriga
contraiu-se sozinha, levantei um pouco e apoiei meus braços atrás do corpo para ver
melhor o que Fernando estava fazendo para me deixar tão excitado. Uma das mãos veio
auxiliar a carícia, e como o nosso primeiro beijo, seus toques eram mais eficazes do que
carinhosos. Eu estava me sentindo completamente preso, e acho que Fernando também
não estava agüentando muito, porque no pequeno instante que se separou de mim foi
para sumir com minha bermuda e minha cueca.

Vi-o jogar a peça para trás e voltar a se afundar entre minhas pernas, me levando ao
delírio. Nosso ritmo estava muito rápido, ele mal me despira e sua boca já abocanhara
meu membro, sugando mais forte que o de costume, uma de suas mãos massageando
meus testículos enquanto a outro tocava um de meus mamilos. Eu já respirava com a
boca há muito tempo, mas ficou ainda mais difícil colocar qualquer ar para dentro dos
pulmões e, como respirar parecia um jeito de me controlar, era mais um motivo para eu
esquecer de fazê-lo direito. Os toques não eram nada delicados, às vezes minhas
contrações involuntárias eram de dor. Mas eu não me importava. Era Fernando.

Suas mãos pressionavam minhas partes, meu corpo esquentava rapidamente,


queimando-me como se estivesse em uma fogueira gigante. Não controlava mais minha
voz, que saía livre para ecoar por toda a casa. Fernando acariciava a cabeça de meu
membro arrastando a língua, massageava meus testículos e, de súbito, penetrou-me com
dois de seus dedos já úmidos por minha própria semente. Perdi o apoio dos braços ao
agarrar o lençol e puxá-lo, minha cabeça quase bateu na cabeceira da cama.
 

- Ah… Ah… Isso… Ah…

Eu não sabia o que fazer, aquele jeito diferente e agressivo do loiro de me excitar estava
me fazendo perder as estribeiras. Eu gemia, empurrava minha pelve contra seu rosto,
quase rasgava o lençol de tanto puxar por meu corpo estar tão trêmulo. Senti que estava
muito próximo do alívio, então agarrei o gringo pelos cabelos e tirei aquela boca quente
e safada de meio baixo. De primeira ele me olhou feio, dava pra perceber que ele queria
continuar ali, me torturando, me chupando igual nunca havia feito. Depois passou a
língua pelos lábios e, agarrando-o pelo braço, puxei-o para um beijo. Senti meu próprio
gosto naquela língua macia e experiente, mas não me importei. Queria mais de nossa
intimidade.

Abracei o corpo em brasas e fiz com que Fernando ficasse sob mim. Agarrei suas coxas
e as abri, enfiei minha língua na entrada dele enquanto brincava com seu membro. Ele
tentou me tirar de lá, mas eu não saí, e assim que minha boca encontrou com seu baixo,
enfiei dois dedos em seu pequeno orifício.

- Aaah… Ai…

Eu senti que fora um gemido de dor. O jeito como ele apertava os olhos e o tom de voz
denunciaram que ainda não havia prazer naquela invasão. Bem, não era à toa, afinal, nas
últimas vezes, quem havia desempenhado esse papel fora eu. Entretanto foi só dar uma
atenção especial a um de seus mamilos rijos e seu membro que o loiro relaxou. E eu não
perdi tempo. Assim que percebi que meus dedos deslizavam com mais facilidade, me
enfiei dentro dele. Fernando gritou alto e forte, quase esmagando meus braços, mas
puxou-me para junto do corpo e, passando sua língua para dentro de minha boca, iniciou
um beijo feroz. Aquilo me excitou tanto que eu estava decidido a arrombar Fernando.
Empurrei seu corpo contra o colchão, me posicionando melhor.

- Ué…? Você não queria… que eu te fudesse?

Vi os olhos oceânicos cintilarem em minha direção, cheios de luxúria, selvageria,


desejo. Dei um sorriso de lado, voltando meu corpo e deixando-me de ponta a cabeça
para ele. Deitei sobre seu corpo, nossos abdomens se encontrando, e abri um pouco as
pernas, voltando minha atenção para o que estava logo à frente de meus olhos. Aqueles
pêlos claros… Aposto que poucos tinham pêlos claros como os de Fernando num lugar
como aquele. Sem dó, agarrei seu membro duro e melado, enfiando-o em minha boca,
enquanto meus dedos cuidavam de sua entrada. Com um espasmo, a boca do gringo
envolveu-me com volúpia, e senti-me penetrado com tanta firmeza quanto estava
penetrando. Não sei precisar quanto tempo ficamos assim, na nossa primeira
experiência na posição “69”, mas tive que me deter.

- Aaahh… Espera… Loiro… Eu vou…

- Hungh… Hunf… Hum…

-… Ah!

Apertei o tornozelo de Fernando, encostando o rosto em sua virilha, e me aliviei na boca


dele. Ainda segurava o membro do loiro em minha boca, por isso meus gemidos saíram
sufocados. Ele ainda estava rígido como uma pedra quente. Meu corpo tremia
debilmente, sentia que seus dedos ainda estavam dentro de mim e, olhando fixamente
para o baixo do gringo, abocanhei-o, sugando o mais forte que pude, esfregando minha
língua na ponta e massageando seus testículos, como ele havia feito comigo. Não
demorou nem um minuto, e seu corpo começou a tremer tanto quanto o meu. Já estava
esperando por seu suco, quando senti meus flancos serem agarrados o suficiente para
que Fernando saísse de baixo de mim.

O membro dele se arrastou por meu corpo, melando meu abdômen, encontrando-se
brevemente com meu próprio membro para, enfim, cutucar minha entrada. A partir de
movimentos bruscos, o loiro me colocou arqueado sob si, minhas pernas arreganhadas,
meu traseiro empinado. E foi tão sem aviso quanto eu o havia feito. Seu baixo entrou
torturante por minha entrada, e eu gritei de êxtase misturado à dor. Ele não esperou que
eu me acostumasse com seu volume túrgido e começou os movimentos forte e
rapidamente. Sentia meu corpo ser jogado para depois ser trazido de novo pelas mãos
que seguravam com força meus flancos.

Gritei, me sentindo insano, os mamilos duros de Fernando raspavam em minhas costas,


aquele barulho típico de corpos e choque e algo muito úmido sendo batido. Não
demorei muito para me aliviar novamente, mas Fernando estava incrivelmente
resistente. Não agüentei o peso do meu corpo e caí de cara no colchão, ainda sendo
impulsionado para frente e para trás. Uma de minhas pernas foi agarrada, e vi estrelas
quando o gringo me virou de frente para ele. Sentir seu membro entrando e saindo de
mim tão forte, e depois girando… Berrei, abrindo o peito na tentativa vã de me
controlar. Eu estava explodindo, suava, gozava, gemia e tremia, tudo ao mesmo tempo.

Até que Fernando se enfiou tão forte dentro de mim que eu achei sinceramente que iria
desmaiar, e se aliviou. Seu gemido foi longo, rouco e delirantemente luxurioso. A voz
grave me deu calafrios, minhas mãos alcançaram automaticamente seu pescoço e eu
puxei sua boca para juntar-se a minha. Beijava-o insanamente enquanto sentia que sua
semente me preenchia ternamente. Estávamos arfantes, suados e cansados. A cama
estava toda suja, desarrumada. E finalmente, nós desmontamos. Fernando caiu para um
lado, e eu para outro. Minha entrada latejava, mas eu ainda tremia de prazer, os olhos
apertados, uma sensação úmida em minha entrada. Puxava o ar com força para dentro
de meus pulmões, mas era quase impossível fazer aquela sensação de excitação
desaparecer. Eu estava doido por causa do sexo selvagem que acabáramos de fazer.

Algo tocou minhas costas e, embora eu estivesse cansado demais para virar a cabeça
imediatamente, sabia que era a mão grande e precisa de Fernando. Trouxe o corpo para
o lado, ficando de frente para o loiro. Ele respirava com a ajuda da boca, os cabelos
tinham as pontas molhadas pelo suor, a pele parecia reluzir e a face estava muito corada.
Os olhos, tão expressivos, ainda sustentavam aquele ar selvagem e perigoso. Porém, seu
toque suave em meu peito me disse que ele estava tão esgotado quanto eu. O calor
parou acima de meu coração, e senti sua mão esquentar-me o sangue. Fechei os olhos,
suspirando, para depois fixar-me novamente nas esferas azuis. Ele piscou, e depois
ficamos nos encarando por um longo tempo.

Eu não sabia o que ele queria me dizer com aquele olhar silencioso, mas eu também não
queria falar nada com minha mirada constante e meu silêncio mórbido. Nossos olhos
não se desgrudaram, passamos minutos apenas nos olhando, nos analisando. Até que o
loiro respirou mais fundo, agarrou-me gentilmente pelo tronco e me trouxe para perto de
si. Abraçamos-nos, seus dedos afundaram-se em meus cabelos molhados, a outra mão
segurava minha nuca. Segurei com delicadeza seu rosto, minha outra mão passara por
trás de seu pescoço e repousara em seu ombro. Olhamos-nos, distantes, e Fernando
aproximou o rosto. Fechei os olhos, senti seus lábios macios pressionarem-se contra os
meus. Nossas línguas se encontraram, e beijamo-nos devagar. Suspirei, ouvia meu
coração bater forte.

O loiro desfez o beijo, mirando-me inexpressivo, depois deitou a cabeça em meu peito.
Expirei, abraçando seu corpo e acariciando seus cabelos. Esquecemos do tempo.
Esquecemos de nosso bloqueio. Esquecemos tudo aquilo que existia entre nossos
corpos, e o que estava a nossa volta também. O corpo quente me esquentava, mas era
sua respiração em meu peito que mais mexia comigo. Calma e tranqüila, como se nunca
nada tivesse acontecido para que problemas surgissem em nosso relacionamento. Beijei
seus cabelos, murmurei palavras doces. Ele acariciou meu braço em resposta, beijando
meus lábios. Adormecemos assim.

Acordei um pouco atordoado, sem noção de espaço e tempo. Meus olhos ardiam com a
claridade, e meu corpo estava cansado. Respirei fundo, como que tomando coragem
para mexer qualquer músculo, quando finalmente lembrei do que havia acontecido na
noite anterior. Eu nunca havia feito um sexo tão animal como aquele! Fora pervertido,
devasso, lascivo, animalesco…! No entanto, eu não podia deixar de sorrir e sentir meu
peito esquentar só de lembrar de como Fernando havia me amado, mesmo que sem o
carinho cuidadoso de sempre. Não havíamos trocado uma só palavra de amor e, no
entanto, aquele me pareceu o ato mais passional por nós dois praticado.

Suspirei, tomando coragem para sair da cama e senti algo deslizar por minha lombar, e
fiquei impressionado em como ainda não havia reparado que Fernando estivera
adormecido ao meu lado durante todo esse tempo. Apoiei meu braço ao colchão, segurei
minha cabeça e fiquei observando suas feições serenas. Seus cabelos finos estavam
completamente desalinhados, estava de bruços com a cabeça virada para mim. Levei
meus dedos aos fios loiros, acariciando-os, depois escorreguei minha mão por sua face.
A barba estava começando a crescer. Fechei os olhos, sem pensar em mais nada a não
ser na felicidade que estava sentindo naquele momento. Superando a preguiça, decidi
fazer o café da manhã para nós dois, e foi ao tentar levantar que me dei conta do
ocorrido.

Ao mover as pernas, senti algo melado entre as coxas e em minha entrada. Arregalei os
olhos, não assustado, mas surpreso: não havíamos usado camisinha! A semente de
Fernando ainda estava dentro de mim, e parecia escorrer, quando tentei me levantar.
Coloquei a mão em concha entre minhas nádegas e caminhei devagar até o banheiro,
completamente envergonhado e com medo de sujar o chão no caminho. Tomei um
banho, vesti uma samba-canção e peguei uma de suas muitas blusas estampadas. A que
eu colocara na oportunidade dizia “Good at being bad”, e o perfume inebriante de
Fernando adentrava efetivamente por minhas narinas. Foi difícil me concentrar em fazer
torradas com aquele cheiro tão delicioso. Estava colocando leite em um copo quando
braços circundaram minha cintura.

- Wow! – Me assustei, derramando um pouco de leite.

- Bom dia… – Seus lábios roçaram minha orelha, fazendo com que eu ficasse arrepiado.

 
- Bom dia, Fê…

- Você tá bem? – A voz veio baixa, cuidadosa.

- Tô. – Virei o corpo, ficando de frente para ele e tocando seu braço – E você?

- Também. – Piscou, tombando a cabeça – Não fui muito delicado com você, ontem…

- Eu não esperava que fosse. – Passei meus braços por seu tronco, puxando-o para mais
perto.

Fernando fixou os olhos nos meus, encarando-me. Jogou meus cabelos para trás,
acariciando minha face. Repousou uma das mãos em meu rosto, as esferas azuis ainda
sustentando o olhar.

-… Eu não sei o que te dizer. – As sobrancelhas arquearam-se.

- Eu não preciso que diga alguma coisa. – Abracei o gringo, suspirando – Só fica do
meu lado.

-… Desculpa.

- Desculpar pelo quê?

- Por ontem,… por semana passada… Por tudo.

Franzi o cenho, afastando-me um pouco do abraço e olhando para as esferas do loiro.


Embora o foco de suas pupilas estivesse em mim, Fernando não parecia estar
exatamente me olhando. Segurei seu rosto com as duas mãos, como que o acordando, e
beijei sua boca rapidamente. Meneei a cabeça negativamente com um sorriso nos lábios.

- Esquece isso, Fê. Eu não me arrependo nem por ontem, nem por semana passada nem
por nada. E o que aconteceu, aconteceu. O que importa é que a gente tá bem agora.

- Eu sei.

- Não parece! – Puxei seu nariz, e ele riu gostosamente.

Sentamo-nos à mesa e comemos nosso desjejum conversando trivialidades, como se


aquele fosse um dia qualquer. Rimos juntos, eu particularmente não conseguia me
conter depois dos comentários irônicos que Fernando soltava. O clima estava leve,
agradável, e eu me sentia renovadamente confortável. Depois de nos arrumarmos
correndo, porque com momentos tão bons esquecemos da hora, fomos à faculdade. De
praxe, o loiro me deixou à porta da sala, despedindo-se com um beijo rápido, porém
terno. Sentei-me ao lado de Enzo, que me recebeu com um sorriso amigável e assisti às
aulas sem maiores problemas. No segundo tempo, aproveitei a folga depois dos
exercícios que o professor havia mandado para conversar com Enzo.

- Escuta, meu aniversário…

- Eu sei, eu lembro. – Respondeu, um pouco desconcertado.

- Tô pensando em fazer alguma coisa. Nada demais, só pros mais chegados, tipo nós
dois, você, Thomas e Igor, talvez o doutor Rafael…

- Guilherme, agradeço o convite, mas…

Vi as mãos claras de Enzo se abraçarem, como se ele não soubesse muito bem onde
colocá-las. Eu não estava preocupado ao chamar Enzo para meu aniversário porque
sabia que haveria mais pessoas com as quais ele poderia conversar sem ter que se sentir
mal. Os lábios levemente avermelhados deram um sorriso de lado, as esferas castanho-
esverdeadas dirigiram-se para baixo e embora ele tenha respirado fundo, não disse nada.

- Por que não?

- Eu,… – Coçou a nuca de cabelos louros – Acho que ainda tá muito cedo.

- Cedo pra quê? – Não era ingenuidade; eu realmente não compreendia Enzo.

- Pra… Ah, Guilherme, você sabe. – Apoiou o queixo na mão, os olhos em mim.

- Não, não sei, mesmo. Enzo, uma hora ou outra a gente vai ter que se encarar.

- Eu já não faço isso? – Indagou, obviamente falando de seu olhar fixo em mim.

- Se a gente quer continuar a amizade, a gente precisa de laços, né? Eu sei que por
enquanto a gente tá como colegas, mas… Hunf…

Suspirei, rodando o pescoço e voltando a olhar para Enzo. Seus olhos esverdeados ainda
me encaravam à espera da conclusão de minha frase.

- Você não acha que a gente merece mais que isso?

-…

Os glóbulos voltaram-se para o lado, como se Enzo estivesse imerso em seus próprios
pensamentos e analisasse com cuidado minhas palavras. Sacudi a caneta preta em
minhas mãos, como que num movimento de ansiedade. Não esperei por sua resposta,
voltei minha atenção ao celular que vibrava em meu bolso. O número me era estranho,
mais um motivo para não atender a uma ligação no meio da aula. Mas fosse quem fosse,
foi tão insistente que depois de cinco chamadas, saí de sala para atender o infeliz que
me importunava.

- Alô! – Atendi, meio irritado.

- Guilherme, sou eu, Abikair.

Engoli em seco, correndo para entrar num dos boxes do banheiro. Meu coração pulsava
dolorosamente, sentia uma estranha sensação escorrer por minha coluna e minhas
entranhas reviraram incomodamente. Imediatamente, a imaginei do detetive Abikair e
toda sua fisionomia exótica e atrativa: seus cabelos escuros de tons vinho, as íris tão
azuis que beiravam o arroxeado, contidas em grossas bordas negras, o olhar expressivo,
os ombros largos e a cintura delgada, a pele morena como bronze polido… Meu corpo
reagiu, e eu agarrei meu próprio membro, tentando me conter.

- Guilherme?

- Ah! Sim, detetive, pois não?

- Está ouvindo bem?

- Estou, eu… Como conseguiu meu número?

- Você preencheu o formulário com seus contatos. – Sua formalidade era notória – Tem
um minuto?

- Claro, pode falar. – Olhei para o meio de minhas pernas, sentindo-me perturbado.

 
- Vou precisar que você compareça à delegacia. Ainda não posso precisar a data, mas
acredito que seja daqui a três dias, dia 27 de outubro.

- Ah,… E que horas?

- Durante a noite, não vou arriscar sermos vistos por ninguém, nem de dentro nem de
fora. – Respondeu, veemente.

- Não tem como ser em outra data, detetive Abikair?

-… Por quê?

Senti meu baixo pulsar em minha mão. Não era possível que estava reagindo assim
somente com a voz do detetive por telefone. Joguei a cabeça para trás, sentando-me no
vaso sanitário e apoiando a testa na parede do boxe. Respirei fundo, fechando os olhos;
ele devia saber que eu me sentia assim, devia fazer de propósito.

- Guilherme?

- É meu aniversário, senhor Abikair.

- Oh! – Ele pareceu verdadeiramente surpreso; adoravelmente surpreso – Verdade, não


havia reparado isso no formulário. Perdão.

- Que isso, detetive.

- Não, Guilherme, foi falta de atenção minha. Mil perdões. – O barulho indicava que ele
havia acabado de sentar – Na noite seguinte, então? Dia 28?

 
- Tudo bem.

- O endereço que você deixou é mesmo o seu?

- É, sim. Por quê?

- Não vou deixar você ir à delegacia sozinho durante a noite, Guilherme. – Censurou-
me, como se eu não percebesse o óbvio.

- Mas eu tenho com quem ir, não precisa…

- Eu não estou perguntando se tem quem te leve ou não à delegacia, Guilherme.


Também não estou pedindo que aceite que eu o escolte. – Me calei, surpreso – Eu VOU
escoltá-lo, queira você ou não, porque caso você não tenha percebido ainda, você é uma
testemunha ocular de um seqüestro combinado com homicídio.

- Eu sei, senhor Abikair…

- Não, Guilherme, acho que você não sabe a dimensão da situação em que você se
meteu ao entrar naquele quarto. – A voz de Abikair era potente e severa, embora em
baixo volume – Estamos falando de um criminoso seqüestrador e assassino que está à
solta, esperando pacientemente o estagiário tolo sentir-se acomodado à falsa sensação
de segurança para esticar as pernas em algum local provável para dar um fim à única
pessoa que pode comprometer sua identidade e liberdade.

- Eu…

- E como você bem sabe, eu não sou dessa cidade, nem desse estado. Venho
perseguindo os passos desse criminoso há algum tempo, e nunca antes chegamos tão
perto de poder prendê-lo, uma vez que nunca antes conseguimos evidência ou
testemunha alguma para incriminá-lo. Essa é a primeira vez que alguém consegue
cruzar seu caminho sem morrer no processo. E se eu precisar escoltá-lo da sua casa até a
delegacia com mais quinze policiais à paisana, por mais que sejam dois metros de
distância, é isso que vou fazer!

Ouvi o detetive respirar fundo, ainda quieto. Eu não sabia se estava levando esporro ou
se, depois de tanto tempo atrás do cara, como ele mesmo dissera, o detetive Abikair
apenas sentira a extrema necessidade de extravasar um pouco. Continuei calado, meio
sem jeito de dizer qualquer coisa. Conseguia ouvir a respiração levemente
descompassada de Abikair, e fechei os olhos, imaginando como ele estaria naquele
momento: sentado atrás de sua mesa, de pé e apoiado à parede, sentado sobre a mesa ou
deitado em sua cama, nu, o corpo ligeiramente molhado pelo banho que acabara de
tomar, os cabelos úmidos jogados ao colchão, o peito…

- Guilherme?

Acordei de meus devaneios luxuriosos quando a grave voz adentrou por meu ouvido e
arrepiou os pêlos de minha nuca.

- Sim?

- Perdão novamente. Eu falei demais.

- Tudo bem, detetive. Deve ser bem frustrante tentar pegar um cara desses e nunca
conseguir. – Levei a mão à boca assim que terminei a frase; o que eu estava insinuando,
que o detetive Abikair era incompetente?!

- É, Guilherme. Mais do que se pode imaginar. E esse em especial é meu calcanhar de


Aquiles.

Tombei a cabeça para o lado, sorrindo de leve. As palavras de Abikair pareciam as de


uma criança que admitia que não conseguia alcançar a prateleira de cima: sinceras e
fofinhas. Dei de ombros, finalmente consegui tirar minha mão de minhas partes íntimas.

 
- Eu acredito no senhor, detetive. Eu sei que, dessa vez, o senhor consegue.

- Espero que sim, Guilherme. E espero contar com sua ajuda, também.

- Claro. Então, dia 28, certo?

- Eu ligo confirmando. Mas até então,… Dia 28.

- Certo.

- Se precisar de algo, liga para este número. É meu celular pessoal, irei prontamente
encontrá-lo. – Aquelas palavras me fizeram morder os lábios.

- Pode deixar, detetive.

- Tenha um bom dia.

- Você também.

Suspirei fundo antes de desligar o aparelho. Estava acontecendo de novo. Eu não


conseguia entender por que o detetive conseguia, com absurda facilidade, me tirar do
sério. Eu estava nitidamente fora de controle, meu quadril ameaçava jogar-se para frente
e para trás, meu membro não parava de ficar túrgido só de lembrar daquela voz grave e
rígida ao meu ouvido. Olhei para o teto, imaginando qual seria a explicação para aquela
reação, mas a única coisa que consegui foi um silêncio profundo quebrado apenas pelo
barulho de minha própria respiração. Apertei o celular em minha mão, levando a outra à
testa. Isso tinha que parar.

- Não faça isso com você mesmo, Guilherme… – Murmurei para mim mesmo – Não
faça isso com ele…
 

Inspirei profundamente e expirei com força, balancei a cabeça e juntei minhas mãos
entre as coxas ao curvar o tronco. Acalmei-me um pouco, depois guardei o celular no
bolso e fui lavar o rosto. Não demorou muito e o sinal do término da aula soou. Apoiei-
me com as duas mãos na pia de granito rajado, e encarei meu rosto. A pele clara
contrastava com os cabelos castanhos escuros. Os olhos cor de mel, atípico na minha
família, chamavam a atenção se olhados mais de perto. Os lábios pouco pronunciados
davam contorno a uma boca sem graça, e os cabelos no corte desalinhado emolduravam
um rosto meio quadrado, meio oval. Passei mais uma água no rosto antes que meus
olhos descessem e eu começasse a pensar em como não gostava de meu corpo.

Estalei alguns dedos no caminho de volta, muitas pessoas no corredor me faziam


desviar e chegar lentamente à sala de aula. Arrumava minhas coisas quando notei que
Enzo ainda estava sentado ao meu lado. Encarei-o por algum tempo, sem entender
muito bem o que ocorria.

- Onde você foi?

- Ao banheiro.

- E quem era? – Franzi o cenho.

-… Hãm?

- No celular. Você saiu para atender, né?

- Ah, sim. Não era ninguém. – Continuei a juntar minhas coisas e enfiá-las na mochila.

- Eu não me importo de você não falar quem era, mas não é a mim que você afeta
quando mente desse jeito.

 
Enzo levantou-se, colocando a mochila num dos ombros e foi embora. Ainda estava
com a agenda na mão quando o acompanhei com os olhos e encontrei meu namorado à
porta de minha sala. Ergui as sobrancelhas, ele sorriu de lado e apoiou as costas ao
batente da porta. Acabei de arrumar minhas coisas e desci as escadas junto a Fernando.
Quando chegamos ao estacionamento, o carro vermelho de Enzo já havia partido. Fiquei
quieto na volta para casa, e provavelmente foi por isso que Fernando notou que alguma
coisa acontecera. Estávamos almoçando num restaurante perto de casa quando, ao
terminar de mastigar um pedaço de nhoque de aipim, os olhos azuis fixaram-se
incomodamente em mim.

- Aconteceu alguma coisa, Gui? – Levantei os olhos pra ele, ainda mastigando minha
couve, e meneei negativamente a cabeça – Tem certeza?

Parei de mastigar por uns instantes, engolindo a comida. Limpei a boca com o
guardanapo e tomei um gole do meu suco. Ele ainda me mirava, o garfo suspenso pela
mão esquerda, a outra mão parara o movimento e o saleiro ficara na diagonal.

- Tenho. Por que, alguém comentou alguma coisa?

- Não, nada. – Continuou o movimento com o saleiro – Só achei você estranho, agora
no carro.

- Não, tá tudo bem.

Fernando apenas ergueu as sobrancelhas quando baixou os olhos para o saleiro em


forma de anuência. Mas apesar disso, eu sabia que ele ainda voltaria no assunto. O jeito
como me olhava enquanto comíamos me pressionava, como se o gringo estivesse me
comprimindo contra uma parede. Cada garfada parecia um sacrilégio, e ficava difícil
continuar sustentando o ar de normalidade a cada momento. O loiro não falou nenhuma
palavra sequer depois disso. Formou-se novamente um silêncio no carro, dessa vez
muito mais pesado do que antes. Chegamos em casa e Fernando foi direto para o banho.
Joguei a mochila na cadeira de nosso quarto e deixei que meu corpo caísse sobre o
colchão, os braços largados. Olhei pela janela, imaginando se agora era o momento de
falar para Fernando que eu estava cooperando com a polícia.

 
Desfiz-me das calças, trocando-as por um short confortável, e troquei a camisa de malha
por uma camiseta confortável. Espreguicei-me longamente, rolando e ficando de barriga
para baixo. Apoiei a cabeça num dos braços, o outro flexionado de modo que a mão
ficasse frente à minha boca. Respirei fundo, refletindo que talvez fosse melhor
compartilhar desse segredo primeiro com os irmãos do apartamento ao lado. Porém, aí
havia outra dificuldade, já que eu não poderia falar com os dois ao mesmo tempo. Eu
não sabia por que não conseguira falar para Enzo que estivera conversando com o
detetive Abikair logo depois de “criticá-lo” de não se permitir criar laços novamente
comigo, e esse era um provável motivo para ele ter me dado a resposta que me deu.
Fechei os olhos e, suspirando, permiti-me um descanso mental. Cocei a nuca, subi um
pouco a barra da camiseta porque a janela fechada fizera com que o quarto ficasse
abafado.

Senti o colchão afundar, mas nada mais que isso. Torci o tronco para olhar o gringo, que
se sentara de lado para mim, embora sua cabeça estivesse em minha direção.
Encaramos-nos por um tempo até que suas sobrancelhas se ergueram levemente e eu
entendi que ele estava ali para conversar. Sentei com as pernas flexionadas numa típica
posição defensiva, apoiando-me com um dos braços atrás do tronco e levando meus
olhos aos deles. Suas mãos abraçavam-se comodamente enquanto descansavam em seu
colo, a toalha amarrada à cintura fazia uma fenda profunda sobre a coxa direita e o torso
nu brilhava por ainda estar úmido do banho. Engoli em seco, tentando tirar minha
atenção do corpo pecaminoso de Fernando e prestar mais atenção em seu olhar, olhar
esse que não estava para muita simpatia.

- Quê que tá acontecendo, Gui? – Fernando ergueu os ombros, como se estivesse


fazendo um enorme esforço para entender alguma coisa. Continuei imóvel – Eu sei que
aconteceu alguma coisa, e você não tá querendo me contar.

- Não foi nada, Fê.

- Como não foi nada?! – O loiro estava se alterando rápido, o típico hábito de gesticular
se manifestando – Claro que aconteceu alguma coisa, Gui! Eu não sou idiota!

- Eu não vou continuar essa conversa com você gritando desse jeito. – Declarei,
desviando o olhar.

O gringo tomou ar, mas fosse o que quer que fosse, guardou para si mesmo quando
fechou a boca e expirou longamente. Com as duas mãos colocou os cabelos para trás,
parando o movimento quando as mãos alcançaram a base do pescoço. Baixou a cabeça,
permaneceu em silêncio por alguns segundos até que finalmente virou os olhos para
mim, as expressões muito sérias e com um ar de gravidade.

- Por que a gente sempre briga depois que transa? – Franzi o cenho – A gente teve um
sexo tão gostoso ontem, e não passa um dia, volta pro arranca-rabo.

- A gente não tá brigando.

- A gente tá brigando!

- Você tá brigando! Você que tá gritando! – Argumentei, mas só consegui que suas
sobrancelhas se arqueassem mais.

- E eu não estaria gritando se você me falasse a verdade, porra!

Já estava pronto para retrucar, porém só conseguir arregalar os olhos enquanto as


palavras morriam em minha garganta. Fernando estava certo, ele sabia e sabia
principalmente que eu também sabia disso.

- Que merda, Guilherme! Eu nunca tinha transado com você daquele jeito, nunca tinha
me sentido assim com você! Não tô entendendo o que aconteceu nesse tempo pra você
ficar me escondendo coisas! – Girou o corpo, ficando completamente de frente para
mim – Que eu te fiz, que te deixou desse jeito e eu não sei?! O que você tá me
escondendo?!

- Nada, eu já disse!

- Pára de negar! – Berrou, e eu recuei o corpo. Mas logo pareceu se arrepender ao fechar
os olhos e levar uma mão aos olhos – Por favor, pára de mentir pra mim.

 
Não consegui falar nada, apenas fiquei encarando meu namorado em seu sofrimento
silencioso com um dilema difícil degladiando-se em meu íntimo: contar a Fernando que
eu havia ido ao meu trabalho e encontrado com Flora, além de ir à polícia e cooperar
com o detetive Abikair; ou continuar escondendo até uma hora mais apropriada, mas
correndo o risco de o loiro ficar verdadeiramente magoado comigo. Não consegui
decidir, e meu silêncio só irritava mais ao gringo.

- O que foi?! Foi porque eu te mordi, porque te arrombei demais?!

- Fê,… – Tentei começar, mas ele continuou falando.

- Foi porque fui violento demais com você?! Você não queria daquele jeito?! Ou foi
porque a gente fez sem camisinha?!

- Fernando, pára!

Acabei usando um tom muito alto, e o gringo ficou quieto. Olhava-me um pouco
surpreso, mas não revidou com qualquer grosseria típica de quando se enervava e
passava dos limites. As mãos, que haviam parado meio ao seu processo de gesticulação,
baixaram-se até suas coxas, onde descansaram e assentaram-se abraçadas. Seus olhos,
azuis de um profundo mar aberto, encaravam-me fixamente, sem trégua, e notei que
seus lábios pronunciados estavam levemente crispados. Ele esperava por alguma
revelação minha, mas eu decidira que o melhor seria contar ao loiro tudo, só que em
outro momento. Suspirei, cansado da troca de argumentos inflamada, depois voltei meus
olhos para meu namorado; ele ainda me encarava.

Levantei, e estendi a mão espalmada para que Fernando não se levantasse, afinal eu não
estava saindo do quarto. Dei a volta, ficando de frente para o gringo, e ajoelhei-me aos
seus pés. Via-o me olhar de cima, não com arrogância, e sim com austeridade. Recolhi
as mãos bronzeadas de cima de suas pernas, segurando-as com as minhas. Fernando
tinha dedos longos e elegantes, mas não eram finos. Respirei profundamente, depois
soltei o ar devagar. Tentei me acalmar, não adiantava nada pedir calma a alguém se
você mesmo estava irritado.

- Fê,… Escuta,… Vamos falar disso depois, okay?


 

- Depois, quando? – Havia um tom repressivo em sua voz, mas Fernando não estava
alterado.

- Depois do meu aniversário. Vou te contar tudo, tá?

- Por quê?

- Eu prometo que te conto tudo. – Insisti, mas ele recolheu as mãos das minhas,
inconformado.

- Não, Guilherme! Eu quero saber agora!

- Agora não dá!

- Por que não dá?!

- Porque eu não quero falar!

- Ótimo! – O loiro quis se levantar, mas antes de passar por mim, derrubei-o novamente
na cama – Wow!

- Eu te prometi que ia te contar depois do meu aniversário! Tá achando que eu tô


mentindo?!

- Bem, não seria a primeira vez! – Alfinetou, me fazendo apertar os olhos.

 
- Porra, tô falando que vou te contar, quê que custa esperar?!

- Custa a minha confiança em você, Guilherme! – Arregalei os olhos, espantado, a


expressão do loiro era dura – Custa a base do nosso relacionamento, que era pra ser a
sinceridade!

- Fernando, por favor! – Quase implorei – Eu vou te contar tudo, só espera um pouco
até…

- Qual a porra do drama de falar agora, caralho?!

- Fernando, me escuta! – Berrei, ficando de pé – Tô falando que vou te falar, cacete!


Espera!

- Por quê?! Pra dar tempo de você inventar uma boa história e mentir na minha cara de
novo?!

Não me agüentei. Eu já estava nervoso, Fernando estava nervoso, cada vez nossas vozes
se exaltavam ainda mais e falávamos coisas que, apesar de nosso inconsciente estar
gritando, não desejávamos que fosse expresso. E foi quando o gringo soltou sua última
frase que eu perdi as estribeiras. Meus instintos, inflamados por minhas emoções, foram
mais rápidos do que os reflexos de meu raciocínio, e antes que pudesse me conter, eu já
havia desferido um tapa de mão aberta em cheio na face esquerda de Fernando.

- Ai, caralho! – Recolhi a mão assim que havia percebido o que havia feito.

Fernando continuava com o rosto virado para a direita, a tez bronzeada de seu rosto
começava a ficar avermelhada. Seus olhos arregalados denunciavam tanto espanto
quanto minha mão sobre minha boca. Nós costumávamos brigar muito, mas nunca saia
da agressão verbal e, se saía, a gente acabava se machucando na cama. Mas nunca
nenhum de nós havia agredido o outro, nunca havíamos trocados socos, chutes ou tapas.
E eu havia esbofeteado Fernando. Sentia meu coração bater louco em meu peito, um
silêncio mortal havia de apoderado de meu quarto e me fazia escutar o tiquetaquear de
meu relógio de pulso. Vi uma das mãos grandes cobrir a face estapeada, e lentamente a
cabeça virou na minha direção. A boca estava semi-aberta, as esferas incrivelmente
azuis arregalavam-se para mim, ligeiramente trêmulas. Senti meu corpo tremer, mas não
consegui sair da posição em que estava.

O loiro desviou os olhos para o lado, baixando um pouco a cabeça, e vi quando lágrimas
escorreram, gordas e silenciosa, de seus olhos. Os glóbulos não se fixaram em nenhum
lugar, como se Fernando estivesse procurando a resposta em algum lugar de seu campo
de visão. O que eu estava fazendo?! O que eu havia feito?!

- Fê, eu…

Calei-me assim que ele voltou o olhar para mim. As sobrancelhas arqueadas como que
em dor, os olhos alagados e o rosto vermelho. Quando tirou a mão do rosto, distingui
com tristeza as marcas dos meus dedos, o que me fez passar as mãos nos cabelos e
segurar minha cabeça. Respirava com dificuldade, e embora quisesse desviar meus
olhos de Fernando, não conseguia deixar de me fixar no belo rosto. A quietude me dava
a sensação de vácuo, e só depois de um bom tempo o gringo piscou os olhos, como que
espantando as lágrimas para conseguir enxergar alguma coisa. Primeiro sorriu de
nervoso, mas depois meneou a cabeça em negativa. Quando se levantou, não tentei
impedi-lo novamente; limitei-me a acompanhá-lo com os olhos e, assim que ele parou
ao batente da porta, nossos olhos se encontraram.

- Eu realmente não sei o que dói mais… – A culpa tomou-me, intensa – Se foi você ter
mentido pra mim, ou se foi você querer continuar mentindo quando eu sabia que você…

Ele se deteve; parecia penoso demais terminar a frase, e também desnecessário, já que
ambos sabíamos como completar aquelas palavras. Segurando a maçaneta, o loiro saiu
de nosso quarto, certamente indo para o de visitas. Sentei-me na cama, inconsolável.
Como eu pude permitir que aquilo acontecesse?! Nós estávamos tão bem, e eu ficara
feliz de saber que Fernando gostara tanto da noite passada quanto eu, mas eu mesmo me
boicotei… Pus tudo a perder… Acabei piorando a situação. “Não, isso não pode ficar
assim…”, pensei comigo mesmo. Decidido, levantei, e consegui chegar a tempo na sala
antes que o gringo saísse de casa.

- Fernando!

 
O loiro parou, notava-se que estava cabisbaixo. Ouvi-o respirar profundamente, como
que tentando manter a calma, até que o tronco torceu-se e os olhos de um azul
impressionante novamente se focalizaram nos meus. Comecei a hiperventilar, não sabia
se de nervoso ou de ter conseguido que Fernando me ouvisse, e me apoiei à parede.
Abracei meu corpo, suspirando, e voltei a olhar para o loiro.

- Desculpa…

-…

- Só espera um pouco… Só mais um pouquinho…

-… Até seu aniversário?

- É. – Fernando baixou os olhos para os próprios pés, depois os voltou para mim.

-… Não sei se consigo esperar tanto, Guilherme.

- Três dias, Fê… – Quase suplicava.

- Você agüentaria três minutos, se eu mentisse pra você?

Depois disso, Fernando saiu de casa. Afinal, era uma pergunta retórica; ele não
precisava ficar para ouvir a resposta. Cocei a nuca, meio sem jeito, mas não ousei chorar
ou ficar mais abatido. Fora eu o responsável pela merda toda, então eu que arcasse com
as conseqüências. Olhei para cima, engolindo a tristeza, tentando ao máximo me
convencer de que, se Fernando havia parado para me escutar, certamente estaria aberto
para uma nova conversa. Mas só fui me acalmar mesmo quando, chegando ao quarto de
visitas, vi que suas coisas ainda estavam em nossa casa. Massageei minhas têmporas
quando sentei na cama do quarto de visitas, depois sentei com as pernas esticadas. Os
dias seguintes seguiram-se apáticos. Fernando e eu não nos falávamos: ele não puxava
assunto, e eu não conseguia começar a falar de nada. Enzo achou meu comportamento
estranho, eu notei, mas não ousou perguntar coisa alguma.

Acordei, uma manhã cinzenta indicava que o dia 27 do décimo mês seria chuvoso.
Tentei não me importar e, quando estava para me levantar, reparei que Fernando ainda
dormia. Talvez o despertador não tivesse funcionado, ou talvez o gringo simplesmente
estivesse cansado dos últimos dias, pois estava chegando o mais tarde possível, depois
que eu já havia me deitado para dormir. Pensei em chamá-lo, mas fiquei na dúvida se
seria melhor apenas tocá-lo. Ele estava deitado de lado, então toquei seu ombro. Como
não houve reação, acariciei a pele exposta e ele finalmente trouxe o corpo, ficando de
barriga para cima. Passou uma das mãos nos cabelos, afastando-os dos olhos e, depois
de esfregá-los um pouco, voltou-os para mim. Encaramos-nos por instantes e Fernando
virou a cabeça, se levantando e indo para o chuveiro. Não consegui copiar direito a
matéria naquele dia, e consegui o caderno de Túlio emprestado, já que o meu tinha
apenas alguns fragmentos soltos. Antes de sair da sala, ao fim da aula, Enzo tocou-me
as costas.

- Guilherme.

- Oi?

- Eu vou.

-… Hãm?

- No seu aniversário. Enfim,… Mas tô indo mais porque você parece estar com
problemas.

Encarei por alguns segundos os olhos castanho-esverdeados de Enzo, que pareciam tão
seguros de sua decisão, e sorri de leve.

- Valeu.

 
- Que horas?

- Umas oito, sete e meia… Apareça quando puder.

- Tá. Até mais.

- Tchau.

Enzo passou por mim e, quando percebi, Fernando já estava à minha porta. Aproximei-
me dele, e fomos de minha sala até o apartamento em silêncio. Almoçamos em casa, e
decidi que estava na hora de quebrar o gelo. Antes de ir para o consultório, segurei sua
mão. Ele ainda escovava os dentes, e parou exatamente com a escova no canto direito
da boca. Era uma abertura para que eu pudesse falar.

- Hoje, depois que todos forem embora,… Eu vou te contar tudo.

-… – Voltou a escovar os dentes.

- Eu sei que você vai ficar puto comigo, depois que eu te contar o que era. Mas eu
prometo, não vou esconder nada.

Fernando bochechava, cuspindo e limpando a escova de dentes. Secou a boca, passando


os dedos para ajeitar os fios loiros, depois parou de frente para mim.

- Tá.

-…

 
- Faz o que você quiser.

Desviou-se de mim, e saiu para trabalhar. Mesmo depois de Fernando deixar o


apartamento, fiquei ainda um tempo parado no mesmo lugar. De súbito, acordei e fui ao
apartamento ao lado. Já estava para apertar o botão da campainha quando me perguntei
o que estava fazendo lá. Antes de pensa em qualquer resposta, a porta se abriu e
deparei-me com o moreno de olhos verdes e barba por fazer. Igor me encarou
ininterruptamente, vi que ele levava a carteira nas mãos, e acabei indo com ele à
padaria. Comemos um lanche da tarde, eu pensativo com meu suco de laranja e Igor, os
olhos instigantes pousados de mim. Sabia que o moreno queria me perguntar o que
estava acontecendo, mas Igor nunca me obrigaria a dizer algo que não queria. Já ao final
de meu suco, achei melhor dizer alguma coisa.

- Como estão as coisas?

- Não muito bem, se você está perguntando da briga que tive com Thomas.

- Era isso, mesmo.

- Mas e você? Hoje é seu aniversário, não está nem um pouco animado?

- Não muito. – Sorri de lado – Acabei magoando o Fernando.

- Isso qualquer um suspeitaria. – Colocou o copo na mesa de centro – O que eu quero


saber é o que vai fazer agora?

- Não sei… – Respondi, sinceramente – Acho que é mais uma das muitas vezes que eu
fico perdido depois que brigo com ele.

- Mas alguma coisa você vai fazer, certo? – Pisquei, encarando as esferas de esmeraldas
– Ainda mais num dia como hoje.
 

- É, eu sei. – Aconcheguei-me ao sofá – E você? Algum progresso?

-… Quase nulo. – Recostou a cabeça, como se estivesse muito cansado – Não me


recordo de ter ficado tanto tempo brigado com Thomas.

- Mas você tenta falar com ele?

- Honestamente? – Meneei positivamente a cabeça – Não muito. Sei que ele não
agüenta minha insistência. Vez ou outra a gente se cruza, mas… nada mais animador
que isso.

Igor não era muito de demonstrar sentimentos, mas eu me surpreendi em como, naquele
momento em especial, ele estava sensível. Qualquer pessoa conseguiria ler suas
emoções, pois depois de tanto tempo brigado com o irmão, Igor estava
transparentemente infeliz. Fiquei triste por ele, e por Thomas também. Apesar de não
demonstrarem abertamente, sabia que os irmãos estimavam muito um ao outro.
Levantei, sentando ao lado de Igor, que imediatamente abraçou-me com um dos braços
compridos. Recostei-me em seu corpo, deixando minha cabeça em seu colo enquanto
ele acariciava muito levemente meus cabelos.

- Chegou a falar de meu aniversário? Não consegui falar com ele esses dias.

- Tentei. – Disse, suspirando – Mas ele foge de mim. Deixei um bilhete. Você sabe que
é desnecessário eu falar isso pra ele, mas agradeço a oportunidade de ter um assunto
para tentar um contato.

- Espero que você consiga conversar com ele lá em casa. – Ergui a cabeça para encará-
lo.

- Também espero, Guilherme. – Arqueou as sobrancelhas, numa expressão única de


sofrimento – Espero desesperadamente para voltar a falar com ele.
 

O barulho de chaves ecoou pelo apartamento. Olhei o relógio em meu pulso, já havia
passado tanto tempo?! Quando menos esperávamos, Thomas irrompeu pela porta. Ainda
segurava a maçaneta quando se petrificou ao ver a mim e a Igor. Os irmãos estavam
evitando-se ao máximo, e talvez minha visita tenha feito o moreno mais velho esquecer
de que era hora de sair de casa. Como nenhum dos dois falou, decidi que era hora de ir
embora, para que pudessem aproveitar a oportunidade e conversarem.

- Oi, Thomas! Faz tempo, heim?

-… Oi, Guigui… – Notei que estava um pouco incomodado, além de abatido.

- Bom, eu vou indo. Espero vocês hoje, mais tarde.

- Claro. – Assentiu Igor. Já estava pra sair quando Thomas agarrou meu braço.

- Guilherme, fica.

- Hum?

- Fica. – Seus olhos estavam tristonhos, como os de uma criança perdida. Fiquei sem
jeito.

- Thomas, eu… Eu preciso ir. Arrumar as coisas, e…

- Fica, por favor…!

O olhar do moreno estava baixo, direcionado para algum ponto entre nossas pernas.
Olhei para trás, procurando o rosto de Igor, mas ele nada expressava. Não queria ficar
no meio do desentendimento dos irmãos, mas também não queria que eles continuassem
brigados. Vacilei por um momento, mas decidi que era hora de arrumar as coisas para
receber os convidados.

- Thomas,… – Usei o tom mais compreensível que pude – Eu não quero ficar me
metendo. Desculpe.

Os olhos verdes, tão verdes quanto os de Igor, arregalaram-se brevemente, depois se


voltaram para o irmão sentado no sofá. Deixei a casa de meus vizinhos e voltei para
meu apartamento. Qual foi a minha surpresa quando, ao abrir a porta, encontrei
Fernando sentado à mesa da sala. Frente a ele, um pequeno embrulho quadrado preso
por um laçarote vermelho. Os glóbulos oceânicos, que antes repousavam sobre o
pequeno quadrado embrulhado, calmamente direcionaram-se para mim, me encarando
com tamanha intensidade que cheguei a ficar confuso sobre o que o gringo estava de
fato sentindo. Fechei a porta, passando a chave, depois me aproximei dele. Apoiei-me
no encosto da cadeira, ele brincava com as fitas do pequeno presente.

- Boa noite. – Acabei soltando casualmente.

- Boa noite. Feliz Aniversário. – Entregou-me a caixinha.

- Obrigado. – Sorri com o tamanho do presente. Fernando mordeu os lábios inferiores.

- Queria ter comprado algo melhor, mas tô guardando o dinheiro pra…

- Tudo bem, Fê. – Olhei diretamente para ele – Eu não me importo. Você tá aqui, isso
me basta.

-…

- Tive receio de você não vir. – Desabafei, indo para a cozinha e pegando um copo de
água – Sei lá, o jeito que eu te tratei…
- Eu não esqueci isso. – Virei para olhar o gringo apoiado à parede – Eu ainda quero
saber o que fez você mentir pra mim.

Seus braços cruzados denunciavam que o loiro ainda estava chateado comigo. Todavia,
só o fato de ele falar comigo, e mais, me comprar um presente, me deixou mais
relaxado.

- Eu sei disso. E eu falei que ia te contar, depois que todos fossem embora.

-… Então, o que você tá planejando fazer?

Com a ajuda de Fernando, foi fácil fazer de nossa casa um salão de festas. Nada muito
pomposo, mas a arrumação diferente fez com que houvesse mais espaço para melhor
acomodar as pessoas. Por mais que não fizessem as pazes, eu sabia que os irmãos
compareceriam. Enzo havia confirmado a presença, assim como o doutor Rafael, o qual
eu havia telefonado logo depois de conversar com Fernando. Também telefonei à Flora,
que ficou toda empolgada por ser lembrada. Pensei em chamar Marina, mas além de não
sermos muito chegados, poderia ser perigoso; afinal, ela estivera comigo no dia de meu
pequeno acidente, e o tal assassino poderia estar de olho nela. Por fim, convidei Túlio
quando pedi seu caderno emprestado. Estava todo suado, e resolvi ir para a varanda me
refrescar um pouco. Fernando veio logo depois, um copo de mate em suas mãos.

- Não parece, mas dá um puta trabalho fazer essas coisas.

- Né?! – Aceitei o copo que me foi oferecido.

- Agora, só falta tomar banho e se arrumar. – Fernando encostou-se ao parapeito – Não


vai abrir o presente?

- Ah, é! Desculpe.

Do bolso, puxei a caixinha, tirando a fita e o papel colorido. Confortadas em uma


confortável armação, havia duas abotoaduras prateadas. Sorri, imaginando onde poderia
usar aquelas coisas, já que nem sair para fazer estágio eu podia.
 

- São bonitas. Obrigado.

- São de prata, ainda. – Observou, apoiando o rosto numa das mãos.

- É? – Sorri para ele, aproximando-me um pouco – Espero ter a oportunidade pra usá-
las.

-… Você entendeu o que esse presente quis dizer?

-… Hãm?

O loiro continuaria falando, se o telefone não houvesse tocado. Era o doutor Rafael,
confirmando que viria e se desculpando por ter que aparecer em trajes de trabalho, já
que ele sairia direto do hospital. Depois da breve conversa, olhei para o relógio e vi que
precisava me apressar, já que nem banho eu havia tomado. Fernando já estava debaixo
do chuveiro, no banheiro social, e me decepcionei um pouco; mas tudo bem, seria pedir
demais para tomarmos banhos juntos depois de um desentendimento. Separei minha
roupa, uma camisa de manga curta preta com um pequeno símbolo no peito esquerdo,
uma calça jeans azul marinho e meus tênis, e me apressei no banho. Ainda me vestia
quando senti a fragrância inebriante invadir minhas narinas. Ouvi Fernando remexer as
roupas, mas não ousei me virar. Ele saiu do quarto e eu me permiti girar para sentar e
amarrar os tênis.

Quando cheguei à sala, Fernando já estava sentado no sofá, impecável: a camisa social
azul claro realçava extremamente seus belos olhos azuis, a calça preta deixava suas
pernas mais longas, e os sapatos negros brilhavam nos pés cruzados. Os cabelos, ainda
molhados, estavam cuidadosamente despenteados, mechas douradas mesclando-se a
outras que, por ainda estarem molhadas, eram de um loiro escuro. Topei o pé numa das
cadeiras da sala, o que me acordou e fez com que o gringo reparasse que era observado.
Notando meu olhar, as expressões de Fernando amenizaram-se, e um sorriso fraco,
porém sincero, surgiu em seus lábios. Pouco tempo depois, os convidados começaram a
chegar, um atrás do outro.

 
Primeiro foi Enzo, mas para seu alívio, Thomas foi o segundo a chegar. Alguns
segundos, e Igor também passou por minha porta. Túlio chegou alguns minutos mais
tarde, e o doutor Rafael veio logo depois. No meio de apresentações, Flora tocou a
campainha, e por fim, todos estavam conversando o mais descontraidamente que
podiam. Thomas estava conversando com Enzo e Flora, enquanto que Igor falava com o
doutor Rafael e Fernando. Vez ou outra os trios mudavam e passavam a ser duplas ou
quartetos. Tudo parecia bem, e então o telefone tocou. Era o Dan, que me ligava do sul
do país para me dar os parabéns. Também tive que agüentar a Karina, mas consegui
disfarçar bem. Depois, foi a vez de meus pais. Foram quinze segundos de conversa, e
esse o tempo de meu pai e minha mãe juntos. Não me importei, nem fiz nenhuma cara;
não queria que Fernando percebesse. Uma terceira vez o telefone tocou, mas a pessoa
do outro lado da linha nada respondia. Desliguei, voltando a conversar com meus
convidados. Mas, para a minha surpresa,  campainha tocou. Olhei automaticamente para
o loiro, ele me devolveu o olhar confuso.

- Você chamou mais alguém? – Falou, apenas com o movimento dos lábios.

- Não, ninguém. – Sibilei.

Fernando pediu licença e, junto a mim, fomos abrir a porta. O gringo olhou pelo olho
mágico, franziu o cenho e abriu a porta, me empurrando para que eu ficasse escondido à
vista de quem quer que fosse.

- Pois não?

- Hãm,… Essa é a casa do Guilherme?

- Marina?! – Fiz com que Fernando saísse da frente, arregalando os olhos.

- Oi! Hãm,… Eu sabia que a Flora ia te ver, afinal era o seu aniversário e, bem, eu… Eu
peguei seu endereço lá na imprensa… Não sabia que você estava dando uma festa,
desculpe.

- Não, tudo bem, eu… Pode entrar.


 

- Eu sei que você foi lá um dia desses, mas o senhor Colin não…

- Tudo bem! – Me apressei, mas Fernando já havia escutado, embora sua única reação
fora sair de perto assim que ouviu que Marina havia falado.

Marina me abraçou, entregando-me um embrulho macio. Conversamos um pouco, e


fiquei aliviado de minha colega de estágio não tocar no assunto daquele dia.
Novamente, a campainha tocou, e Fernando e eu voltamos a nos olhar. Percebi uma
ponta de impaciência no gringo, mas eu mesmo estava surpreso com os acontecimentos.
O loiro voltou a olhar pelo olho mágico, bufou e apoiou a cabeça na porta.

- Desculpa, essa fui eu quem não esperava. – Declarou, irritado.

Quando abriu a porta, deparei-me com Ricardo. Comecei a ficar com dor de cabeça.

- Fernando, acabei de sair lá do consultório, e reparei que tinha umas fichas que você
não tinha acabado de completar, e você sabe o que aconteceria se… Oh, uma festinha!
Não acredito que você não me chamou! Onde estão os strippers?

- Eu lembro de ter falado que era aniversário do Guilherme, Ricardo. – O loiro estava
enfadonho.

- Ih, é verdade. Nada de strippers, então. – Debochou – Mas eu realmente preciso que
você complete esses relatórios ou então, vai sobrar pra mim, você sabe que…

- Tá, tá! – Fernando agarrou o braço daquele enjoado de olho puxado, levando-o até a
mesa da sala.

Já estava para trancar a porta quando a campainha voltou a soar. Igor e Enzo olharam
para mim, desconfiados, e Fernando levantara os olhos dos papéis para me encarar. Eu
não queria acreditar no que estava acontecendo. O gringo deixou Ricardo e seus papéis
para verificar quem era. Voltou o rosto para mim, franzindo o cenho.

- Esse eu não conheço. Vê se você sabe quem é.

Fechei o olho direito e, pelo olho mágico, distingui a fisionomia da pessoa que eu
menos queria ver naquele momento. Um calafrio percorreu a minha espinha, e tremi
levemente. Batidas na porta, agarrei a maçaneta para abrir logo a porta, mas não
consegui ser mais rápido que as palavras daquele homem.

- Guilherme, sou eu, detetive Abikair.

Quando eu abri a porta, já era tarde demais. Lá estava o exótico detetive, mirando-me
com aqueles olhos profundos que me tragavam para dentro de suas íris arroxeadas.

- Boa noite. – Disse, em seu tom tipicamente formal – Desculpe vir sem avisar,
Guilherme, mas imprevistos me forçaram a pedir que me acompanhe agora à delegacia
para um segundo depoimento.

- Detetive? – A voz de Fernando era áspera, e me fez apertar os olho e encolher os


ombros.

- Detetive Brenno Abikair. – Estendeu a mão de cobre para cumprimentar Fernando –


Sou responsável pela investigação do caso cujo criminoso feriu Guilherme.

- Ah, é? – O loiro recusou a mão estendida do detetive, os olhos em fúria dardejavam-


me.

- Sei que é seu aniversário, mas precisamos novamente de sua colaboração. – Falou,
sempre muito sério, e não parecendo se importar muito com o gringo.

 
- “Novamente”?! – Fernando se alterou, e a maioria dos convidados voltou-se para nos
olhar – “Novamente”, Guilherme?!

Apertei os olhos, levando uma de minhas mãos às têmporas, escondendo meu rosto. Por
que diabos estava ocorrendo tudo aquilo justo naquele momento?! Eu não me importava
por ser meu aniversário, mas minha situação com Fernando não estava das melhores.
Em menos de meia hora, ele havia descoberto tudo o que eu estava escondendo. O
gringo estava indo em direção ao corredor, na certa querendo se fechar um pouco no
quarto ou no banheiro, e eu já estava para segui-lo quando, mais uma vez, a campainha
tocou. Fernando voltou-se rápido para mim, quase nos chocamos. Seu semblante era de
fúria, e eu sabia que ele pensava que fosse quem fosse, era mais uma coisa que eu havia
escondido dele. Fui mais rápido do que ele, e olhei pelo olho mágico. Afastei-me,
desacreditado, e abri a porta. Ninguém mais conversava, e foi no silêncio que aquela
mulher entrou por minha porta. Cabelos loiros, fartos e dourados, olhos azuis que
chegavam a doer ao se destacarem em sua pele clara, porém bronzeada. Era alta para
uma mulher, membros logos e delgados, corpo escultural e feições belas. O sorriso de
lado esboçado na boca de lábios rosados e pronunciados era debochado, porém belo.

- É, parece que a festa tá boa mesmo! Deu pra ouvir sua voz lá do saguão de entrada!
Extravagante como sempre, né, Fernando?! Não consegue ser discreto!

- Larissa?! – Fernando só conseguiu dizer.

- E eu achando que não dava para piorar… – Acabei soltando.

E começou meu inferno.

Era demais para minha cabeça. Acho que foi muita sorte não ter surtado, porque do jeito
que as coisas estavam, eu poderia justificadamente enlouquecer. De um lado, Flora e
Marina, representando o perigo que a imprensa era para mim; do outro, havia Ricardo,
mais uma vez atrapalhando minha vida ao não desgrudar de meu namorado. Ainda
havia o detetive Abikair, a figura que eu menos desejava encontrar naquele momento. E
pra completar, Larissa, a irmã mais velha de Fernando parecia ter descoberto nosso
refúgio. Isso só provou que a ironia do destino pode ser muito mais pesada e cruel do
que se imagina. Arriscaria dizer que, pra completar a catástrofe, só faltava mesmo o
senhor Colin aparecer junto com o assassino.

 
Larissa era uma figura luminosa. Os olhos, tão azuis quanto os de meu namorado,
dardejavam não só as pessoas à sua frente, como também o resto de meu apartamento.
Abikair parecia não se importar nem um pouco em estar participando no palco daquela
trama dramática que se formava na minha sala de visitas. Flora levara uma mão à boca,
na certa roendo umas das unhas pintadas de rosa-choque, Marina olhava-a de soslaio,
compartilhando de sua preocupação. Os irmãos estavam tensos, Enzo também foi capaz
de capturar a densidade do momento. Túlio estava perdido, e o doutor Rafael se
esforçava em transmitir normalidade, na certa tentando me acalmar. Ricardo apenas
esboçava um sorriso triunfante, que associei ao de Larissa. Eu mal podia respirar, mas
não pude deixar de, fleumaticamente, girar a cabeça para encontrar os olhos de
Fernando.

Seria muito difícil definir em poucas palavras o que as expressões do loiro esboçavam.
Era um misto de extrema irritação, cólera, indignação, ódio, mágoa, surpresa e, por
incrível que pareça, incredulidade. Os olhos oceânicos, profundos, brilhavam como
diamante, mais cortantes do que nunca. As sobrancelhas estavam tão arqueadas no
cenho franzido que mal se distinguia o início de uma e o término de outra. As mãos
estavam brancas, de tão rígido o punho fechado, trêmulo. Sentindo-se observado, as
esferas azuis voltaram-se para mim, pegando-me de súbito. Estranhamente, não parecia
que todos aqueles sentimentos pelo gringo sentidos eram direcionados, para não dizer
descarregados, a mim. Não pude me mexer ou falar, petrificado demais pela situação.

- Então, é aqui que você tá morando?! – Exclamou Larissa, quebrando o gelo do


silêncio que se formara desde sua chegada – Que lixo! Eu não acredito que você trocou
nossa casa por esse barraco, honey*!

- Eu te falei, Lalá! – Era a voz de Ricardo, mas eu não ousei olhar na cara daquele
japonês dos infernos – Te falei que você ia ficar de cara!

- De cara é pouco,… – Larissa avançou para mais perto de todos, os cabelos longos e
loiros, tão dourados como ouro, esvoaçavam a cada movimento seu – Mas eu não
esperava mais do que isso vindo de você, panaquinha.

 
 

Pelo visto, “panaquinha” era o apelido carinhoso que a irmã de Fernando dera ao caçula.
Meu queixo ainda caído, tive medo de olhar para o loiro novamente; não sei se podia ou
se queria impedi-lo de fazer alguma loucura. Mas nem precisei me virar e encarar meu
namorado para entender o que se passava em sua cabeça; ele fez questão de se
manifestar.

- Que diabos você tá fazendo na minha casa?! – Nunca, em todo o tempo que estivemos
juntos, ouvira a voz de Fernando carregada com tanta ira, com tanto ódio. Estava quase
irreconhecível – E que merda você tinha na cabeça quando inventou de dar o endereço
daqui pra ela?!

Consegui ver Ricardo desfazer o sorriso, os olhos pequenos se arregalaram, e ele


engoliu em seco. Mas Larissa não pareceu se abalar. Notei que o detetive Abikair
erguera uma das sobrancelhas, e ainda que continuasse mudo, senti que ele queria falar
alguma coisa. Percebi movimentos atrás de mim, e vi Flora segurar Marina perto de si,
seus olhos apertavam-se para o detetive.

- Eu tô aqui porque o Paulo quer você em casa agora. Parece que um casal amigo dele
vai jantar lá em casa e quer conhecer o filho varão da família. – Da bolsa prateada de
marca, pendurada num dos ombros delineados e escondidos pelas fartas mechas loiras,
Larissa puxou um isqueiro e um maço de cigarros – Meio difícil, já que um tá morto e o
outro é meia vara, né?

- Você não vai fumar na minha casa! – Esbravejou o loiro, me tirando do transe e
acordando-me para a situação-limite em que se encontrava.

 
- Nossa, que drama! – Larissa ergueu as mãos enquanto revirava os olhos, voltando a
guardar seus pertences, apoiando uma das mãos na esguia cintura – Não precisa repetir,
não vou violar a santidade do seu chiqueirinho!

- Eu não volto praquele lugar, já deixei isso bem claro da última vez que tive lá!

- Não é isso que o Paulo falou. – Abraçou a cintura estreita com um dos braços, o
cotovelo do outro apoiado ao primeiro – Agora, vamo logo que eu já tô cansada de ficar
bancando de babá o tempo todo pra um mané feito você.

Estalando os dedos, a irmã do gringo sustentou um olhar impaciente. Fernando tombou


a cabeça para o lado, e foi com esse movimento que eu finalmente comecei a me mover.
Era estranho ver alguém que não se intimidava com Fernando; porque, muito pelo
contrário, Larissa parecia fazer pouco de toda e qualquer reação do gringo. Tive que
obrigar-me a sair do torpor que me havia acometido para que conseguisse, no mínimo,
suavizar a situação; muito embora, eu soubesse que esse fosse um feito que já
atravessara até as barreiras do impossível.

- Larissa, não é?

Os olhos azuis e cortantes direcionaram-se para mim, como se fosse difícil para ela que
alguém tivesse esquecido quem ela era. Levantou as sobrancelhas, abrindo um pouco a
boca em anuência, enquanto eu me virava para o loiro com o olhar quase suplicante.

 
- Fernando, leva sua irmã pro quarto de hóspedes e converse com ela lá. – Notei que
Fernando estava pronto para soltar sua indignação sobre mim com todas as descobertas,
mas sustentei o olhar firme para ele – Por favor.

-… Vem. – Disse apenas, e apesar do esforço que expressava, Larissa seguiu o irmão.
Um problema temporariamente resolvido.

Virei-me para meus convidados, me desculpando e pedindo para que continuassem a


aproveitar a festa. Tentei tranqüilizá-los com um sorriso forçado, mas ninguém
acreditou muito, como eu esperava que fosse. Girei em meus calcanhares, chegando
perto o suficiente para que o detetive Abikair ouvisse meus sussurros.

- Me dê um minuto, já falo com o senhor.

Ele assentiu com graça, e eu me senti atraído por seu cavalheirismo notável. Respirei
profundamente, depois virei para o indivíduo inconveniente próximo à mesa de jantar.
Avancei em sua direção, meus lábios crispados e os olhos duros. Fiquei próximo a ele,
para que os demais não vissem que eu o havia agarrado pelo cotovelo.

- Você vem comigo.

- O que acha que está fazendo? – Desafiou-me. Mas eu não estava no humor.

 
- Lá pra fora. Agora.

Guiei Ricardo sem jeito nenhum para o corredor, fechando a porta atrás de mim. Ele se
desvinculou de mim, olhando-me com antipatia. Fiquei encarando-o por algum tempo
aquela figura deplorável, cansado demais e pronto para despejar nele toda e qualquer
frustração, fazer dele o meu saco de pancadas pessoal.

- Qual o seu problema? – Acabei soltando, depois de um suspiro.

- Qual o meu problema? Qual é o seu?!

- Não, eu tô falando sério. Você acha que me afeta com essas coisas, mas você acaba é
atingindo o Fernando, não eu. – Cruzei os braços, apoiando-me na porta de minha casa.

- Não sei do que você tá falando. – Desconversou, debochado. Felizmente, minha


paciência parecia ter ressurgido das cinzas.

- Bom, seja como for, quem vai acabar sozinho no fim das contas é você. Se posso ser
sincero com você em algum ponto, é dizendo que Fernando não tá te agüentando mais.

- Você não sabe do que tá falando. – Sorriu, dissoluto. Massageei brevemente as


têmporas.
 

- Olha, eu não sei o que você e Fernando tiveram no passado, e tô pouco me fudendo
também. – Ergui meus olhos, olhando-o de cima – Só sei que essa sua carência não vai
ser suprida do jeito que você tá querendo. Se não quer ficar sozinho, não é desse jeito
que você vai conseguir alguma coisa.

- Agora, virou conselheiro amoroso, é?! – Perturbou. Eu apenas ergui uma sobrancelha.

- Não é preciso ser psicólogo pra reconhecer um doente quando se vê um.

Ele ficou quieto, me olhando com fúria, mas eu tinha problemas maiores para resolver
além de trocar desavenças com Ricardo. Entrei para casa, riscando um pepino da lista e
partindo para outro. Cruzei a sala de visitas, e aproximei minha boca ao ouvido de
Flora.

- Flora, desculpe por isso, mas se importa de…? – Não precisei de mais uma palavra.

- Não se preocupe, Guilherme. Mas me ligue, quando puder. Se precisar.

- Claro. – Murmurei em resposta, já partindo para perto de Túlio enquanto Flora se


despedia dos demais carregando Marina.

 
 

- Não precisa nem falar, Guilherme. – Comentou meu colega de sala, despreocupado.
Ele e Enzo partiram, mas não sem esse último lançar para mim, à porta, um olhar
significativo.

Igor e Thomas esperavam por minhas palavras, ansiosos e desconfortáveis com a


presença um do outro. O doutor Rafael estava entre eles e assim que fiquei próximo o
suficiente, Igor fez o favor de tomar decisões por mim.

- Estamos indo para casa, Guilherme. – Antecipou o irmão mais velho – Dá pra notar a
situação delicada em que você se encontra, no momento.

- Agradeço a compreensão de vocês. – Respondi, com sinceridade.

Thomas deu um passo à frente, segurando-me pelos braços. Seus olhos pareciam querer
me passar forças, mas eu não fui capaz de absorvê-las. Ficamos assim por alguns
segundos, até que os irmãos iam saindo para o apartamento ao lado com o doutor Rafael
entre eles. Tombei a cabeça ao ver o médico direcionando-se ao apartamento de meus
vizinhos, mas não era hora de ficar encucado com aquilo. Puxei profundamente o ar
para dentro de meus pulmões, soltando-o vagarosamente, e finalmente me voltei para o
detetive Abikair. Só percebi o silêncio pesadamente anormal depois que todos os outros
convidados haviam deixado minha casa, e achei estranho que Fernando fizesse tão
pouco estardalhaço ao discutir com Larissa. Se não soubesse, diria até que nem estavam
dentro de casa.

Ergui a cabeça, o detetive ainda estava em sua posição inicial, próximo à porta da sala.
Cheguei perto dele, ele apenas me observava. Girei o corpo, caminhando para a entrada
da varanda.
 

- Detetive. – Chamei por sobre o ombro. Automaticamente, o homem da pele de cobre


me seguiu.

A noite estava fresca e, apesar do vento cortar meu rosto e fazer com que meus cabelos
dançassem ao seu bel prazer, o ar estava úmido. Ouvi que o detetive fechar a porta de
correr atrás de si, e estávamos sozinhos novamente. Ele se aproximou de mim, apoiando
os braços no parapeito e ficando de costas para o apartamento como eu fizera. Apertei
os olhos, abrindo-os novamente e finalmente me virando para o detetive. A luz da lua,
agora que o céu estava limpo, refratava em sua íris, evidenciando ainda mais a pupila
negra meio a aquarela arroxeada que era seu olho. Ele me fitava, silencioso e
penetrante, suas expressões levemente curiosas.

- Acho que não cheguei no melhor dos momentos. – Deu de ombros, as esferas roxas
voltando-se para a noite lá fora.

- Infelizmente. – Concordei. E respirei muito profundamente, sem querer sentindo a


fragrância natural do detetive, fechando os olhos. Cheiro de amêndoas.

- Não pude esperar até amanhã. Desculpe pelo transtorno. – Voltou os olhos para mim,
com sinceridade.

- Não esquenta. – Só pude dizer, ainda sentindo seus olhos em mim – Com ou sem você
aqui, essa noite já estava fadada.

 
 

- Se preferir, podemos ir à delegacia…

- Por favor, não. – Cortei. Só então, virei meu corpo inteiro para o detetive.

Abikair, à luz do luar, tinha sua beleza exótica ainda mais evidenciada. A pele, muito
morena, parecia reluzir como seda ou cetim, as esferas ainda mais expressivas, cada
elemento de suas feições evidenciado pelo conjunto de luzes e sombras proporcionados
naquela posição diante de uma noite escura iluminada por uma lua quase cheia. Fiquei
um pouco atordoado com aquela visão, esquecendo brevemente que Fernando estava
com a irmã no quarto de hóspedes e de como articular palavras. Com um passo, o
detetive venceu a distância existente entre nós, colando nossos braços.

- Não tem problema. Podemos conversar aqui.

Agora que murmurava, sua voz grossa e potente era ainda mais sedutora. Revirei os
olhos para mim mesmo, me odiando por conseguir notar tudo aquilo na situação em que
estava. Escondi meu rosto em minhas mãos, os cotovelos esfriando por se apoiarem no
parapeito da varanda. Abikair me fez uma série de perguntas, e notei que ele se absteve
de puxar de seu bolso interno o pequeno bloquinho e a caneta que eram demarcados em
seu peito esquerdo. Fiquei agradecido por isso, respondendo tudo o que o detetive me
perguntava. Repassamos algumas coisas, interrompendo-nos apenas com um estrondo
vindo de dentro do apartamento. Gritos furiosos ecoavam pelo ambiente, apesar de
inteligíveis de onde eu estava. Fernando atravessava a sala de visitas, suas feições
esboçando ira como eu nunca havia visto antes. Larissa, que parecia ter perdido toda a
compostura, o seguia, tão furiosa quanto o irmão. Os dois saíram de casa, e o silêncio
voltou a reinar.

 
Fiquei sem palavras e, apesar de ter a impressão de que o detetive Abikair chamava por
meu nome, não consegui nem responder nem me mover. O que havia acontecido? O que
eu fizera, em tão pouco tempo, para que tudo mudasse de uma noite presumivelmente
agradável e sem muitas surpresas para uma circunstância excessivamente catastrófica?
Por alguns segundos ainda fiquei perdido em meus pensamentos, até que senti o toque
em meu ombro. Virei o pescoço, encontrando os olhos preocupados do detetive,
olhando-me fulminantemente. Abri a boca, mas não consegui dizer nada e me limitei a
suspirar.

- Definitivamente, não era uma boa ocasião. – Declarou o moreno. Fechei os olhos,
cansado.

- Já disse para não se preocupar, detetive. – Balancei a cabeça.

- Me chame de “Brenno”. Se preferir, “Abikair”. – Pediu, erguendo levemente as


sobrancelhas – “Detetive” dá muita bandeira.

Concordei com leves movimentos, jogando a cabeça para trás. Consegui deixar
Fernando de lado, sabia que depois a conversa com ele ia pegar fogo. Eu já estava
exausto demais para me desgastar com apreensão por antecedência.

- Vamos entrar.

Novamente, o detetive me acompanhou e aceitou o copo de água que ofereci. Ouvi


batidas na porta, me alertando. Quem poderia ser? Já estava para atender quando a mão
grande e espalmada de Abikair me deteve. Olhei para ele, confuso, e notei sua
preocupação. Fosse que fosse, era ele quem iria checar. Parecia temeroso de ter sido
seguido. Mas o pior era que sua mão estava exatamente sobre meu peito, mais
precisamente sobre um de meus mamilos. Implorei para que ele não tivesse percebido
como ele havia acordado e enrijecido subitamente, apenas com aquele toque. Por sorte,
ele não percebera. Desencostando-se de mim, o detetive aproximou-se do olho mágico,
uma mão próxima ao flanco onde eu julgava estar uma arma.

Com uma rápida olhada, Abikair afastou-se o suficiente para abrir a porta e Igor entrar.
Os morenos trocaram um olhar que me pareceu ligeiramente cúmplice, e meu vizinho
aproximou-se vagarosamente de mim.

- Desculpe interromper.

- Não está interrompendo nada, Igor. – Declarei, apoiando-me ao batente da porta da


cozinha – Esse é um de meus vizinhos, Abikair.

- Certo. – Assimilou, parecendo memorizar, além da fisionomia, o nome e os dados de


Igor.

- Precisa de alguma coisa? Ouvimos Fernando sair, pensamos que… – Deu de ombros,
um pouco sem jeito – Acho que me preocupei à toa.

- Eu agradeço. Mas não tem muito que vocês possam fazer por mim, agora. – Disse, em
tom de desculpa. Igor só pôde sorrir.

 
 

- Receio que tirei proveito de toda a situação.

Franzi o cenho, aproximando-me da porta de meu apartamento enquanto


automaticamente o detetive Abikair se afastava para o centro da sala. O moreno me
encarava com as esmeraldas enigmáticas, um sorriso discreto nos lábios bem definidos.
Esperei que ele falasse alguma coisa.

- Acabou que estamos obrigatoriamente juntos no mesmo lugar, na mesma hora. Sem
subterfúgios, nem desculpas. – Igor ergueu as sobrancelhas, levemente dando de ombros
– Mas não sei o que fazer.

Meu meio sorriso fez com que os olhos de Igor baixassem, um tanto humorados. Passei
os dedos nos cabelos, tirando-os de minha fronte, meu vizinho voltando a erguer o
tronco. O rosto de Igor estava a centímetros do meu, podia sentir facilmente sua
respiração quente e compassada e ver cada nuance da cor de seus olhos verdes e vivos.
Ele depositou cada mão em um ombro meu, segurando-me por alguns instantes, depois
me beijou a testa. Ainda que acostumado com sua proximidade, não pude deixar de
sentir minhas bochechas esquentando. Aproveitei a oportunidade e perguntei o porquê
de o doutor Rafael ter acompanhado-os ao apartamento. O moreno sorriu, um pouco
incomodado, mas suspirou e olhou para além do corredor.

- Acho que complexado atrai complexado.

Não gostei de ouvir aquilo de Igor. Principalmente de Igor. Entretanto, não podia fazer
muito por eles, já seria intromissão ao extremo. Além disso, a situação não me permitia
muita liberdade para tentar ajudar outros com seus problemas. Lancei um olhar rápido
para o detetive recostado a uma das paredes da sala, e Igor pareceu entender meus
receios. Bufou, coçando a nuca.
 

- Eu vou indo. Oportunidade de ouro, você sabe. – Estancou por alguns segundos – O
que você precisar,… Estamos aqui ao lado.

- Eu sei, Igor. Eu sempre corro pra lá, uma hora ou outra.

-… Que bom.

Com um último sorriso, o que não era nada usual de Igor, o moreno deu as costas pra
mim e entrou em seu próprio apartamento antes que a porta de minha casa escondesse o
corredor. Continuei com uma mão à maçaneta e a outra espalmada na folha de madeira
por algum tempo. Minha mente estava levemente estuporada, e apesar da falsa
aparência letárgica, minhas sinapses se faziam com mais rapidez do que eu podia
esperar. Acho que é assim que se sente quando se fala em “banho de água fria”. Fiquei
um pouco perdido em mim mesmo, finalmente saindo de minha posição anormal e
voltando ao mundo real. Abikair me olhava curioso, ao mesmo tempo contido por a
etiqueta condenar os curiosos aos assuntos alheios.

Caminhei até o detetive, aproximando-me dele mais do que normalmente faria. O


espaço entre meu peito e o braço dele era ínfimo, e embora uma vontade louca de
recostar-me àquela pele brilhante e aparentemente quente começasse a me tomar, optei
por escorar as costas na parede e escorregar até o chão. Estiquei uma das pernas,
mantendo a outra dobrada para apoiar um dos cotovelos. Fiquei surpreso quando notei o
detetive repetindo minhas ações, mas em vez de sentar, ele permaneceu agachado sobre
as pernas dobradas. A calça social marcava bem os músculos largos e destacados de
suas coxas grossas, e fui prudente em desviar os olhos do corpo do detetive para a
luminária da cozinha.

 
- Sinto muito por estragar seu dia. – Manifestou-se o detetive, depois de longos minutos
de silêncio.

- Como eu disse antes, detetive, essa noite já estava fadada.

- Não me chame de detetive. – Sorri com o comentário de Abikair. Sua voz saíra mais
delicada que o usual.

- Desculpe.

-… Acho que já tenho o suficiente por hoje. Não quero ser um estorvo. – Novamente
deixei que meus lábios se alargassem.

- Acredite, senhor Abikair, de todos os problemas que eu já tenho, a presença do senhor


aqui é o menor.

- Não me chame de “senhor”, também.

Voltei meus olhos para os de Abikair, descobrindo que ele também me encarava. Fiquei
preso pelo magnetismo de suas íris arroxeadas de tão azuis, sem nem conseguir piscar.
Agora que me demorava mais no rosto do detetive, percebia que ele estava com
expressões diferentes das outras que eu já havia visto. Um misto de compaixão,
compreensão e pesar transbordava facilmente de seu semblante bronzeado, refletindo
suas reais emoções. E era incomum, para não dizer estranho, que essas exatas emoções
fossem a mim direcionadas pelo detetive. Peguei-me imaginando o que Abikair queria
precisamente me dizer com suas expressões. Mas ele desviou os olhos dos meus, e eu
tive que acompanhar seu gesto.

- Acha que amanhã poderá comparecer à delegacia?

- Pode não parecer, mas eu não gosto de misturar meus pepinos.

- Certo. Concordo com a estratégia, é o mais certo a se fazer.

- Malditas bolas de neve. – Foi a vez dele de sorrir fracamente com o comentário.

- É,… Malditas…

- Eu não percebi se o senhor… – Notei seu olhar e corrigi rapidamente minha falha – Se
você ligou pra cá ou pro meu celular.

Abikair deixou que a coluna se desenrolasse, apoiando-se mais à parede. Era estranho, e
ao mesmo tempo agradável, a inusitada proximidade que mantínhamos um do outro. A
sensação que eu tinha era a de relaxar facilmente, como alguém que fecha os olhos e
deixa-se guiar cegamente por outrem para atravessar uma rodovia movimentada. Não
sei ao certo se o que o detetive exalava era segurança, tranqüilidade ou hormônios
sexuais. Com os olhos ainda voltados para cima, puxou ar para responder.

- Não, não cheguei a ligar. Mas devia ter feito isso, ainda que você não atendesse. –
Baixou a cabeça, fitando os próprios pés – Acabei me deixando levar num rompante.

O detetive havia tomado mais fôlego para continuar sua fala, mas um barulho chamou
nossa atenção. Alerta, Abikair postou uma mão em meu ombro, prevendo que eu estava
prestes a levantar. Olhou profundamente em meus olhos, e eu entendi que deveria ficar
onde estava. O silêncio reinou novamente, uma quietude mórbida que me agonizaria
muito menos se não tomasse a tensão que o homem ao meu lado exalava pelo ambiente.
Minha garganta ficou seca, engolir me parecia ser um tremendo esforço. Devagar, e
flanqueando a sala de visitas, Abikair foi se aproximando da porta de entrada. Em seu
caminho, dardejou toda e qualquer entrada de ventilação que meu apartamento possuía
nos cômodos que seu raio de visão lhe permitia verificar.

Como um felino, o detetive esgueirou-se até ficar ao lado da porta, tomando cuidado, ao
que me pareceu, para que sua sombra sob a luz da sala não o denunciasse. Novamente
um barulho, porém, dessa vez mais baixo. Se não estivéssemos em silêncio, talvez não o
tivéssemos percebido. Comecei a sentir o pulsar incômodo em meu pescoço, em minhas
mãos, o suor frio parecia se formar promiscuamente em minhas têmporas. Não foi
difícil identificar a origem dos estranhos sons como vindas do corredor além da folha de
madeira escura. A mão foi ao flanco novamente, e com ela veio uma Desert Eagle .44
Magnum, uma pistola grafite com o punho negro e, certamente, com o pente completo
com suas 8 balas. Não era a primeira arma que eu havia visto na vida, nem a primeira
que eu havia visto em ação; quando ainda morava com meu pai, ele me ensinara a
manejar o 38, e no cativeiro de Henrique Sardenberg, bem…

Abikair aparentava em suas feições exóticas extrema frieza, mas eu só conseguia pensar
em como os nós dos meus dedos estavam brancos de tanta força com que fechava meus
punhos. Pensei que seria melhor termos continuado a conversar, mas acredito que tal
idéia já teria passado pela mente do detetive, e sido desconsiderada por um conjunto de
fatores que eu particularmente não conseguia enxergar. Voltando as aquarelas para
mim, Abikair apontou a cozinha, e andando devagar para não provocar suspeitas,
escorei-me à parede. Como a abertura na parede era larga, ainda conseguia ver o
detetive agir, ansioso e temeroso por ele. Passos. O som de passos começou a ecoar pelo
corredor, como quem quer que estivesse lá fora pretendesse denunciar sua presença.
Uma brincadeira de gato e rato, na qual eu me sentia estranhamente o local da briga,
pronto para ter sua integridade física maculada.

Arregalei os olhos quando notei o rosto de Abikair voltado para mim. Ele me lançava
um olhar penetrante e urgente, que me despia e bambeava os joelhos. Piscou de leve, e
sibilou algumas palavras. Gelei ao ler seus lábios, compreendendo todo o significado
que aqueles ruídos poderiam representar para mim: “Acho que ele me seguiu”. Todo o
sangue de meu corpo pareceu se concentra em minhas víceras, e uma sensação de torpor
enjoativo me tomou. Abikair continuou com os olhos em mim, muito embora ser fácil
de notar que sua atenção estava em algo mais. Tocou as costas na aresta atrás de si,
como que processando alguma coisa. Seu cenho franzido e os olhos inquietos
denunciavam a vontade de pensar rápido. E então, algo se chocou contra minha porta.

Habituado ao trabalho, o detetive não se moveu um milímetro sequer, ao passo que eu


pulei no lugar, levando uma mão à boca para contar qualquer reação de surpresa antes
que ela realmente se manifestasse. Fechei os olhos, me perguntando se minhas suspeitas
estavam certas, ou se fora apenas força do hábito do detetive; e rezava pela segunda
opção. Qual foi minha surpresa quando, ao abrir os olhos, encontrei o detetive ao meu
lado. A pistola ainda em sua mão esquerda, o rosto tão próximo de mim que podia sentir
seu cheiro de amêndoas, e então a colisão de corpos. Enquanto batia a cabeça no chão
frio da cozinha, o corpo grande e pertubadoramente quente de Abikair deitava-se sobre
o meu, envolvendo-me com seus braços e escondendo-me sob si. “Uma bomba”, pensei,
e antes que pudesse me refrear, já levara as mãos à cabeça, na tentativa tola e frustrada
de me proteger da eminente explosão.

Explosão essa que não chegou. Fiquei esperando, pensando em como os segundos se
arrastavam nas horas mais críticas e se era só eu quem, ao morrer, não via a vida inteira
passar pelos olhos. Sentia o cheiro da pele do moreno sobre mim adentrar minhas
narinas sem dó, e mesmo naquela situação, só consegui pensar em como era tentador
beijar a pele bronzeada de seu pescoço parcialmente desprotegido. Os glóbulos azulões
do detetive dardejavam para todos os cantos nos raros intervalos que me arriscava a
abrir os meus. Mas só o que ouvíamos era o som entrecortado de nossas próprias
respirações. Abikair respirava mais rapidamente do que jamais havia notado, e eu sabia
que meu peito não estava muito diferente. Entretanto, era só isso que acontecia. Nada
mais.

Aos poucos, o corpo de bronze foi se descolando do meu, ainda mantendo-me deitado
ao chão com uma das mãos morenas espalmada em meu abdômen. Soltei a cabeça,
minhas mãos parcialmente suspensas por não saber onde colocá-las. Engolia em seco,
piscando muito e sentindo a garganta arranhar cada vez mais doloridamente. Fitava
Abikair com gravidade, esperando alguma informação dele que pudesse me apaziguar e
me tirar daquela tensão que não me abandonava com o pesado silêncio que reinava em
meu apartamento. O detetive baixou a cabeça, aproximando seu rosto do meu muito
rapidamente, o que me fez fechar os olhos e entreabrir meus lábios. Senti sua respiração
quente e acelerada tocar minha bochecha, eriçando meus pêlos da nuca aos pés e, com a
voz mais rouca e grave que o normal, sussurrou ao pé de meu ouvido.

- Fique aqui, e deitado. Eu já volto. – Ele suspirou, me deixando ainda mais sensível ao
seu cheiro – Não saia daqui até eu vir te buscar.

Sem promessas ou garantias, o detetive Abikair ficou agachado e foi para a sala de
visitas, sumindo do meu campo de visão. Permaneci como estava, deitado, de barriga
para cima, as mãos agora se assentando sobre meu peito. Não conseguia piscar, e meus
olhos não paravam em nenhum ponto fixo. Sentia que suava frio, o sangue ainda
concentrado no centro de meu corpo, um leve tremor atravessando a espinha. O silêncio
me assustava, pois nem os movimentos de Abikair eu conseguia ouvir. Tentei me
distrair com alguma coisa da cozinha, e meus olhos pousaram nos imãs da geladeira. E,
embora eu fizesse força para respirar, não consegui puxar ar algum quando foquei o
pequeno Gato Félix e sua maleta amarela feitos de massa de modelar. Fernando.
Fernando!

- Fernando…! – Murmurei, assustado, arregalando os olhos.

Onde Fernando estava?! O loiro havia saído com a irmã, mas nada havia garantido que
estava fora do prédio! Ele poderia muito bem tê-la apenas acompanhado até o carro e já
estava no caminho de volta! E se houvesse acontecido alguma coisa com ele?! E se ele
estava ferido, ou sendo ameaçado?! Poderia ter sido seqüestrado?! E se tivesse sido
pego como refém?! Não havia preço no mundo que eu pudesse trocar pela vida de meu
namorado! Apalpei os bolsos, frenético, à procura de meu celular, mas eu
provavelmente o havia deixado em meu quarto. E, de qualquer maneira, Fernando ainda
não possuía celular. O número de Larissa, nem preciso falar que eu não tinha. Comecei
a hiperventilar, cada vez mais nervoso.
 

- Ah, não! Não, não…!

Meus vizinhos! Como estariam Igor e Thomas?! Teriam sido eles afetados?! E se a
bomba não pareceu surtir efeito porque, na verdade, explodira em outro apartamento?!
Seria possível?! Não, nós teríamos que ter ouvido alguma coisa, sentido algo que
denunciasse algum efeito. E o doutor Rafael também estava lá! O que seria da pequena
e meiga garotinha ruiva e mirrada com os olhos da mãe, que morava na Austrália?! Isso
não podia estar acontecendo! Isso não podia acontecer! Não por minha causa! Eu não
queria nem pensar que alguém havia se machucado por minha única e exclusiva
responsabilidade. Apoiei-me nos antebraços, decidido a me levantar, e com movimentos
pouco lentos fiquei de pé. O detetive levara o telefone ao ouvido quando me aproximei
dele, e seus olhos, primeiro sobressaltados, me encararam com censura, um dedo
apontando para a cozinha.

Meneei negativamente a cabeça enquanto ele ditava alguns comandos à pessoa do outro
lado da linha, sua testa se vincando com minha desobediência. Já estava para abrir a
porta quando sua mão livre agarrou com força meu punho, trazendo-me de volta para o
centro da sala. Mordi os lábios, nervoso; eu sentia a extrema necessidade de saber como
e onde meu namorado estava. Tentei me mover novamente, as palavras de Abikair
fluíam com certa irritação de seus lábios tentadores, mas sua mão havia se fechado de
tal maneira em meu pulso que eu não conseguia me desfazer de seu agarrão. Fechando o
flip do celular com um dedo, o moreno exótico permitiu-se direcionar toda a sua
atenção para mim. E eu me sentia cada vez mais agoniado com os segundos preciosos
que se passavam diante de minha imobilidade.

- Você está dificultando o meu trabalho aqui, Guilherme. – Declarou, um tom levemente
impaciente em sua voz grave.

- Eu preciso encontrar o Fernando. – Já o meu tom era urgente.


 

- Tenho certeza de que ele está bem. Ainda está discutindo com a irmã frente ao prédio.
– Balançou o celular algumas vezes – Não estamos sozinhos.

Não posso mentir que o alívio que senti me renovou, ao ponto de bambear minhas
pernas e me fazer suspirar. Levei uma mão à testa, me sentindo mais tranqüilo, ainda
que um pouco inquieto pela prévia situação. Analisando-me com olhos críticos, o
detetive pareceu menos tenso, talvez por notar que minha preocupação iminente havia
acabado de desaparecer. Ouvi-o tomar ar.

- Seus vizinhos também estão bem.

- Tem alguém no corredor? – Lancei a pergunta, me questionando se fora algum dos


homens de Abikair quem fizera aqueles barulhos.

- Não.

Franzi o cenho, juntando minhas sobrancelhas, um pouco confuso. Como ele poderia ter
tanta certeza de que estava tudo bem com Igor, Thomas e o doutor Rafael? Alguma
coisa no modo como ele sustentava o olhar me fez dar de ombros e jogar a cabeça para
trás; por um momento, não me pareceu absurdo confiar nas palavras dele. O apertão em
meu pulso afrouxou, e pude me mover até a cozinha e pegar um copo de água para mim.
Depois de tudo aquilo, minha garganta doía com os arranhões de tão seca. Sons
eletrônicos, um tanto baixos, tomaram parte de minha atenção. Era engraçado pensar
que o detetive estaria mandando algum torpedo para um de seus colegas. Ainda estava
colocando o copo na pia da cozinha quando mais uma vez senti meu corpo ser lançado
ao chão sem meu consentimento. Meu ombro bateu doidamente, latejando pela pancada,
e minha reação automática foi praguejar enquanto levava uma mão ao local dolorido.

- Guilherme,…!

Foi a última coisa que eu consegui escutar. Depois, tudo ficou silencioso, um zumbido
estranho e contínuo tomou meus sentidos e, embora eu conseguisse ver Abikair mover
seus lábios, seus olhos estavam desesperados como eu nunca havia visto. Vi-o passar os
braços em volta de mim e trazer-me para perto de seu próprio corpo. Mas dessa vez não
consegui sentir o doce cheiro de amêndoas que despregava dele. Estranho. Primeiro
aquela surdez incômoda, agora a falta de olfato. Felizmente, minha visão ainda
funcionava. E só depois de perceber isso, voltei minha atenção para o cenário que se
formava para além do detetive. Minúsculas partículas de pó dançavam lentamente sobre
meus olhos, fazendo com que o ar ficasse turvo e visível à luz da noite. Por alguma
razão, as lâmpadas da sala, da cozinha e da varanda não mais iluminavam os respectivos
cômodos.

Pereceu-me uma eternidade até que minhas sinapses nervosas fossem concluídas e eu
pude entender o que ocorrera em meu apartamento. Abikair não fizera mau julgamento;
ao que tudo indicava ele, de fato, havia sido seguido. E quem quer que estivesse
espreitando havia esperado pela melhor hora para fazer seu movimento, tentando pegar
o detetive com a guarda baixa. Um tremor tomou conta de minhas mãos, e a reação
automática foi abraçar o corpo sobre mim. Escondi minha cabeça naquele peito largo e
quente, os olhos espremidos de tão fechados. De súbito, todos os meus sentidos
voltaram, avassaladoramente, supersensíveis. Senti o gosto de poeira, madeira e gesso
na boca, o cheiro de demolição, os sons de estilhaços ainda em queda e minhas mãos
fincando-se nas costas do corpo que me protegia.

A consciência de mim mesmo e da mudança no ambiente se arrastava por mim,


enquanto eu preservava-me petrificado. Tive receios de abrir os olhos ou de parar de
agarrar-me a Abikair. Sabia que o torpor que estava sentindo logo passaria, e minha
atenção voltar-se-ia para os danos produzidos. No fundo de minha consciência, apenas
um pensamento de alívio: ainda bem que não havia mais pessoas em minha casa, pois
eu tinha certeza que não conseguiria suportar que outros passassem pelo que acontecera,
não conseguiria me perdoar se algo acontecesse aos meus amigos e colegas. Mesmo se
Ricardo e Larissa estivessem em meu apartamento, mesmo assim… Eu me sentiria
culpado.

Os sons foram se apassivando, e a atmosfera de estrago pareceu tranqüilizar-se numa


mórbida serenidade. Minhas mãos ainda se vincavam as costas do detetive, e meus
olhos continuavam cerrados como se minha vida dependesse da privação de constatação
do dano em minha casa feito. Um suspiro chamou minha atenção. O resfolego
intensificava-se a cada momento, e um chiado acompanhava cada invasão de ar nos
pulmões colados em meu corpo. Um estalo me fez abrir os olhos, e levantei a cabeça
para mirar Abikair. Um filete rubro e rutilante riscara o rosto de bronze polido, os
cabelos escuros esbranquiçados por uma fina camada de poeira. Vi-o balançar a cabeça
e, quando menos pude esperar, seu corpo tombou ao meu lado. O choque do detetive
com o chão da cozinha produziu um baque maciço, levantando levemente as partículas
de demolição assentadas no piso do cômodo. Levei um choque, e meu corpo resolveu
voltar a se mexer.

Agarrei Abikair pela cintura, passando os braços por baixo dos seus, e o puxei para
cima de meu próprio corpo. Senti o ombro alvejado latejar doloridamente, mas mordi os
lábios para conter o urro de dor que por pouco não escapou. Com o braço bom, puxei a
nós dois para a pequena área além da cozinha. Minhas pernas estavam ainda no ritmo do
torpor anterior e não queriam se mover, mas não me preocupei com isso na hora;
precisava chegar até o pequeno banheiro ao lado do tanque e nos esconder. O nervoso
me fazia tremer, e me parecia que a qualquer momento alguém me surpreenderia com
algum impacto. Apoiei meu tronco na baixa divisão entre a área e a cozinha,
espremendo os olhos com a força e a dor por mim desprendidas para arrastar o corpo
inerte do detetive. Suspirei ruidosamente ao acabar de puxar suas pernas, e olhei para o
caminho por mim feito.

O pavimento da cozinha era do tipo perfeito para enganar a sujeira, mas nem isso
impediu de se notar perceptivelmente a trilha que deixamos; acabamos por limpar o pó
que havia se assentado por todo o lugar. Meneei a cabeça negativamente, fechando
novamente os olhos, o desespero a poucos segundos de me tomar por inteiro. O que
fazer, o que fazer?! Não havia armas em casa, e não conseguiria pegar qualquer faca ou
cutelo sem despertar um quarteirão inteiro. Uma emboscada, exatamente como devia ter
acontecido a Henrique Sardenberg. E eu morreria do mesmo jeito: com um buraco de
grosso calibre bem aberto em minha nuca.
 

Passos. O barulho arrastado tomou conta do silencioso ambiente, e eu levei uma mão à
boca, me obrigando fortemente a respirar sem fazer qualquer ruído. Apertei mais os
olhos, o detetive ainda desacordado recostado sobre meu ombro. Não conseguia pensar
em nada, apenas no desespero pavoroso que me acometia diante da iminência da morte.
Como ele descobrira?! Não era possível que ele tivesse seguido Abikair com o exato
intuito de me encontrar. Ele não podia saber quem era Abikair, seu nome não fora
divulgado em nenhum lugar! Os passos cessaram. Peguei-me arregalando os olhos,
como se abri-los muito pudesse me fazer capaz de escutar melhor. Meu foco ia se
perdendo a medida que a quietude novamente reinava. Soltei devagar a expiração, que
saiu mais forte do que eu pretendia. O coração pulsava louco em minha garganta, e eu
temia que até os meus vizinhos pudessem escutá-lo.

Quem quer que fosse voltou a se mexer, dessa vez com movimentos mais rápidos.
Parecia remexer minha casa, meus móveis, como que a procura de algo. “Ele vai me
achar, ele vai me achar!”, só podia pensar. Não adiantava tentar ficar calmo; nessas
horas, só quem tem sangue frio para esse tipo de coisa consegue manter a cabeça no
lugar. Eu estava borrando de medo, quase que literalmente. Ergui a cabeça, a ansiedade
me desesperava mais do que tudo. A incerteza do destino é algo assombroso. Tentei
engolir a saliva, mas a garganta pulsante continuava seca e arranhando.

- Central, aqui é Delta Bravo, copia?

- Pode falar, Delta. – Respondeu uma voz feminina eletrônica que eu julguei ser de um
rádio transmissor;

- Explosão de pequeno porte no aparelho 673, responsável Alfa Bravo, ainda


incomunicável.

 
 

- Um momento, Delta Bravo. – Pediu a voz eletrônica, e eu ouvi o homem bufar,


estalando a língua – Delta Bravo, aparelho 673, líder Alfa Bravo, Operação “Israel”,
destacamento Alfa, Beta, Delta e Kapa Bravo, confirma?

- Confirma, central.

- Reforço à caminho, esquadrão anti-bombas na dianteira.

- Suspende o esquadrão, central. O detonador já foi ativado. – Pediu com enfado.

- Alguma estimativa do tipo de explosivo? – Pediu a mulher.

- Provavelmente caseiro, central.

- Certo, Delta Bravo, procure por Alfa Bravo, aguardando segundo contato.

- Positivo, central.

 
 

Não podia ser uma emboscada, certo? O cara não podia ter todo esse trabalho só para
me apanhar, certo? Não, era muita coisa para pegar um peixe pequeno como eu. Ainda
travava uma das minhas mais árduas batalhas internas quando o homem em minha casa
voltou a andar, dessa vez mais pausadamente. “E aí, o que vai ser?!”, perguntei a mim
mesmo. Eu confiava na sorte e denunciava a minha posição, ou continuava escondido,
acreditando ser aquele homem o fim de minha vida? Meus olhos voltaram-se para
Abikair, ainda desacordado, o sangue vertendo generoso do lanho na lateral de sua
cabeça. Ele não tinha culpa de eu ter me encontrado com o assassino de Henrique
Sardenberg, assim como meus amigos. E eu não podia deixar que nada lhe acontecesse
de ruim. Se fosse realmente alguém da equipe do detetive, bem… Estávamos salvos.
Mas se não fossem… Eu só esperava por uma morte rápida.

-… Hunf!

Os movimentos se interromperam quando eu deixei que um reclame de dor atravessasse


minha garganta. Ele, quem quer que fosse o Delta Bravo, apressou-se em nossa direção,
curvando o corpo grande e encarou-nos por alguns segundos. Puxou um pequeno rádio
do bolso, a cabeça tombando levemente: estava salvo.

- Central, encontrei Alfa Bravo. Mande uma ambulância.

- Já está a caminho, Delta.

Deixei que meu corpo relaxasse, expirando longamente. O alívio era revigorante, mas
também pareceu amolecer cada músculo meu.

 
 

- Você está ferido? – Veio a pergunta.

- Não. Acho que não… – Concertei a resposta, em dúvida – Mas ele tá com um
machucado sério na cabeça.

- Deixe-me ver…

O homem certificou-se de não mexer muito no detetive Abikair, virando-o apenas o


suficiente para examinar mais atentamente o talho muito próximo ao supercílio do
detetive. Sua expressão não foi das melhores. Puxou um lenço do bolso, tentando limpar
um pouco do líquido rubro da testa de Abikair, o cenho franzindo-se cada vez mais.
Levantou-se rapidamente, puxando uma das toalhas de rosto que estavam penduradas no
secador da área de serviço, colocando-a sobre o rasgo na pele bronzeada. Os olhos
castanhos e opacos voltaram-se para mim, que ainda não havia me movido um único
centímetro de minha posição inicial.

- Pressione aqui. – Pediu, um tom de preocupação e urgência tomando sua voz.

Fiz como o homem mandou. Virei levemente o corpo, sentindo o braço que me fora
alvejado doer de súbito. Com o braço bom, apertei a toalha contra a cabeça do detetive,
que me angustiava a cada segundo com seus olhos permanentemente fechados. Um
pensamento me passou pela cabeça.

- Ele,… Ele não…


 

-… Não, não. – O homem captou minha intenção – Mas vai, se a ambulância não chegar
aqui logo.

Assenti com a cabeça, e o homem se afastou para continuar a se comunicar pelo rádio.
Eu não consegui me prender às suas palavras, e minha mente começou a viajar para
longe, para o passado. Mais precisamente para quando o senhor Colin me mandou
entrar naquele apartamento, e eu não pude recusar sua oferta. Não era hora de se
remoer, novamente, por atos impensados e já cometidos, mas naquele momento de
“liberdade mental”, não consegui parar de pensar no quão idiota eu fora. Era óbvio que
alguma coisa errada iria acontecer. Eu fora covarde demais para admitir isso para mim
mesmo. Eu nem sequer pensara nas conseqüências que aquela ação poderia causar, nem
a mim nem àqueles próximos a mim. Entretanto, o que estava feito, estava feito.

- Acha que pode se levantar?

A voz do homem me trouxe de volta à realidade, e me peguei na dúvida. Meu braço


estava realmente doendo, mas tirando isso, o resto era desconforto muscular pelo
choque inesperado contra o chão. Meneei positivamente a cabeça e, assumindo meu
lugar, o homem pressionava o machucado de Abikair enquanto eu levantava. A perna
estava dormente, mas nada que umas batidas no chão não resolvessem. Ainda batia
minhas roupas, impressionado com a eficiência com a qual o sangue de Abikair havia
manchado minha blusa, quando me dei conta do que acontecera com meu apartamento.
Além da cozinha, pouco se via, a “neblina” das partículas de poeira ainda dificultavam a
exata percepção do que havia na sala. A porta havia sido destruída, seus restos ainda
permaneciam escorados na parede próxima ao acesso ao corredor. O sofá estava
chamuscado, e pela película branca e pegajosa sobre o estofado, concluí que o homem
havia apagado algum fogo com o extintor.

Da mesa, eu não via nem esboço, embora as pernas das cadeiras se sobressaíssem nos
escombros. A tela da televisão estava trincada, bem como o pequeno aparelho de som
que costumei a deixar na sala. Dois quadros estavam tortos, e alguns dos artigos de
decoração haviam-se quebrado. Deixei que meus olhos vagassem pelos destroços que há
pouco tempo formavam minha sala, demorando-me brevemente no trincado na porta de
vidro da varanda. Estalei a língua, direcionando meus olhos para o corredor que dava
acesso aos quartos; felizmente, aquela parte não parecia ter sido atingida. Suspirei,
cansado demais para lamentar pelos estragos e aliviado o suficiente para agradecer por
estar vivo. Num estalo, caminhei até a porta de meu apartamento, voltando-me para
olhar o apartamento de meus vizinhos. Apesar da pequena sujeira que os destroços de
minha casa causaram ao corredor do quarto andar, o apartamento ao lado estava intacto.

- Desculpe, posso perguntar algumas coisas? – Disse, ao voltar para a cozinha e encarar
o homem que trabalhava com o detetive.

- Tudo ao seu tempo. – Respondeu pacientemente.

- Por favor, eu preciso saber alguma coisa do que acabou de acontecer. Não é nada que
você não possa me falar. – Adicionei, ao notar sua relutância em ceder.

-… O que você quer saber?

Continuei sustentando o olhar opaco daquele homem de feições duras. Baixei a cabeça,
segurando o braço que ainda latejava.

- Meus vizinhos…

 
 

- Já foram removidos, e estão junto ao nosso pessoal lá fora.

- Alguém do prédio…?

- Não. Nem ninguém do seu andar. Foi só aqui. – Falou com certa amargura, como se
não quisesse admitir o crédito da pessoa que armara a explosão tão bem.

-… – Por um momento hesitei em pronunciar aquelas palavras, mas presumindo que


tudo o que o detetive sabia era compartilhado com seus homens, fiz a pergunta que mais
me incomodava – Meu namorado…?

- Já havia saído com a irmã antes da explosão.

-… Obrigado.

Puxei os lábios para dentro, mordendo-os por dentro e me segurando para manter a
respiração calma. Eu não tinha o número de Larissa, nunca quis guardar o de Ricardo,
que até poderia estar com eles, e Fernando ainda não comprara um celular novo. O jeito
era esperar até que ele desse notícias. Pelo menos, a certeza era a de que ele não havia
sofrido nada. Isso já era muito bom. Pensando nisso, e sentindo que a preocupação ia
diminuindo, consegui me locomover até o banheiro, onde consegui gazes, faixas e
remédio para tentar ajudar Abikair. Ao remover a toalha do corte, o homem
rapidamente voltou a pressionar o talho na cabeça do detetive. O corte era tão profundo
que em nada pude ajudar com as provisões que havia trazido do banheiro. O tecido
antes tão alvo agora se tingia de um vermelho rutilante, que saltava a vista e despertava
enorme desconforto.

- Acha que vai demorar muito pra ambulância chegar?

- Espero que não. – O homem voltou a puxar o rádio – Delta Bravo para Kapa Bravo,
copia?

- Copia, Delta, Kapa falando. – Respondeu o rádio, após alguns segundos de chiado.

- Sobe aqui que não sei quanto tempo ele vai agüentar.

- Afirmativo, Delta. – Veio a resposta rápida.

Em menos de um minuto, outro homem, mais baixo do que eu, surgiu à porta de meu
apartamento. Sua figura era um tanto ordinária, mas seus traços de pessoa normal
marcaram minha memória. A blusa preta acompanhava a calça jeans de um azul muito
escuro, a cabeça raspada denunciava que fazia menos de dois dias que ele havia cortado
o cabelo. Sua pele era marfim, os olhos de um castanho incomum, tão destacados que
quem não prestasse atenção falaria que ele estava usando lápis de olho e lentes de
contato.

 
- Guilherme. – Veio a voz, mais grave do que eu previa – Você está bem?

Só consegui menear positivamente a cabeça, um pouco surpreso de ver o quanto uma


pessoa normal, com características tão comuns, poderia ser tão marcante. Os lábios
abriram um sorriso no rosto ameno, e ele se aproximou devagar.

- Sabe onde está Souza e Abikair? – Limitei-me a apontar com o dedo – Certo. Venha
comigo, fique junto de nós.

Segui os passos do integrante Kapa da equipe do detetive, um pouco aflito com a


situação em que Abikair se encontrava. O homem baixou, ficando entre Souza e o
detetive, e só agora eu reparara que havia uma mochila em suas costas.

- Astuto da parte dele ter um ex-paramédico na equipe. – Comentou Souza, seus olhos
opacos ainda na toalha ensangüentada.

- O moleque não brinca em serviço, Souza. Deixa eu ver como tá.

- Se eu tirar a mão daqui, vai esguichar.

-… – Pareceu refletir um pouco, a testa de marfim se vincando – Espera um


momentinho.
 

Tirou a mochila das costas, puxando um pequeno aparelho metálico de dentro. Ao


enxergar as gazes e as faixas que eu havia trazido, pegou-as e as deixou na barriga de
Abikair. Suspirou, alongando rapidamente o pescoço, fechou os olhos por alguns
instantes e voltou a abri-los. Olhou para Souza.

- Quando eu disser “vai”, você aperta bem forte e tira a toalha.

- Certo.

- Huff… – Suspirou mais uma vez – Vai.

Souza fez como o homem havia instruído. Pressionou a toalha contra o ferimento de
Abikair, a outra mão amparando a cabeça, depois a tirou. Rapidamente, o homem levou
o objeto metálico à fronte do detetive, e ouvi alguns estalos vindos do apertar de seus
dedos. Ao que me parecia, o tal artefato era um tipo de grampeador. Pressionando as
gazes sobre o talho, o homem habilmente enfaixou a cabeça de Abikair, puxando forte
para que a gaze pressionasse tanto quanto a mão de Souza o fazia. Enquanto suas mãos
continuavam em ação, os olhos castanhos se voltaram para mim.

- Guilherme. – Levantei as sobrancelhas para indicar que estava ouvindo – Pode me


arranjar uma toalha maior do que essa?

 
Virei as costas, correndo para o armário do quarto de hóspedes e peguei umas das
toalhas na prateleira de cima. Voltei correndo, entregando-a para o homem, que
agradeceu com um meneio de cabeça e um sorriso brando rápido. Dobrando uma parta
da toalha, o homem colocou-a sobre a cabeça do detetive, segurando suas laterais para
que a pressão sobre o machucado fosse maior.

Ouvi o som da sirene da ambulância, constatando que o carro branco iluminado chegara
ao espiar pela janela. Vi o alívio pairar nas expressões dos dois homens; realmente,
Abikair era muito querido entre os membros de sua equipe.

- Central para Delta Bravo, copia? – Voltou a chamar o rádio.

- Copia, central.

- Qual a situação de Alfa Bravo?

- Estável. – Repetiu Souza, ao ler os lábios do homem ao seu lado – A ambulância já


chegou.

- Certo, Delta Bravo. Operação “Israel” no aparelho 673, encerrada. Câmbio final.

 
Souza guardou o rádio, o outro homem ainda o encarava com certa expectativa. Ao
notar meu olhar sobre si, tentou esboçar alguma despreocupação.

- Agora está tudo bem. – Tentava me tranqüilizar – Você vai precisar nos acompanhar
por essa noite. Separe umas mudas de roupa, assim vai ser melhor.

Um pouco confuso, assenti, e me direcionei para meu quarto. Peguei minha mochila,
coloquei algumas camisas, calças e cuecas. Joguei a escova de dente e o shampoo junto,
bem como uma toalha e meu carregador de celular. No caminho, carreguei minha
carteira e as chaves de casa. Ao voltar para a sala, para-médicos vestidos em branco já
haviam colocado o detetive Abikair numa maca móvel e saíam de meu apartamento, um
deles segurando uma bolsa de soro ao alto. Fiquei observando aquela cena, um pouco
desnorteado. Foi o toque de uma mão em meu ombro que me tirou da inércia.

- Precisa pegar mais alguma coisa? – Perguntou, seus olhos destacados me encarando
com certa preocupação.

- Acho que não.

- Certo. Vamos indo?

Pensei em deixar algum recado para Fernando; acho que ele se assustaria se encontrasse
a casa destruída. Mas assim que passamos pelo local onde a porta deveria estar, o
policial selou a entrada com algumas daquelas fitas amarelas que a polícia utiliza para
isolamento da cena do crime. Definitivamente, a equipe de Abikair devia ter vindo com
ele de outro estado; ações assim não costumavam ser vistas. O homem voltou a colocar
a própria mochila nas costas, ergueu-se e bateu as mãos.

- Vamos indo?

- Ahãm.

Descíamos pela escada, já que o elevador parecia estar interditado, e me pareceu uma
cena de filme quando, no saguão do meu prédio, viaturas da polícia e uma ambulância
faziam o cerco da entrada como que para impedir que curiosos se aproximassem
demais. As luzes ao alto e os flashes repentinos indicaram que a imprensa também sabia
ser ligeira e já metia o focinho no que mal terminara de acabar. Passando-me para seu
lado esquerdo, o homem de codinome Kapa colocou um braço envolta de meus ombros,
guiando-me para um dos carros pretos, parado em cima da calçada. Deu a volta e
sentou-se comigo no banco de trás. Identifiquei Souza próximo às portas traseiras da
ambulância, e vi-o entrar antes que elas se fechassem.

- Pra delegacia ou pra pousada? – Veio uma voz feminina.

- Pousada. – Respondeu o homem ao meu lado.

Fiquei surpreso ao constatar que o motorista, na verdade, era uma mulher. Ela carregava
um rádio semelhantes ao de Souza e do Kapa, bem como roupas escuras, mas que
facilmente se misturariam com a multidão lá fora. Ela era a última integrante da equipe
de Abikair, e tão logo ouviu a resposta do homem, engatou a primeira e tirou-nos da
aglomeração que se formara em torno de meu prédio. Os cabelos castanhos claros eram
ondulados e fartos, os lábios volumosos e as sobrancelhas finas eram muito escuras. Ela
me parecia muito baixa, mas a determinação em seu rosto tirava qualquer dúvida da
destreza de seus atos.

- Acha que precisa buscar alguma coisa?

Primeiro pensei que ela estava falando comigo, e já tinha buscado ar para formular uma
resposta, quando notei pelo retrovisor que ela direcionava seus olhos firmes à pessoa no
banco do carona.

- Não. Já tenho tudo aqui.

De cara, não acreditei. Afinal, o que aquela voz familiar estava fazendo ali? Ela já havia
ido embora de meu apartamento fazia um bom tempo, entretanto lá estava aquela
mulher sentada, uma pequena mala ao colo, justamente à minha frente. Ela girou o
corpo para trás, seus olhos escuros voltando-se para mim, decididos e um pouco
culpados.

- Olá, Guilherme. – Disse, depois de um tempo de silêncio – Não me importo se você


me odiar, mas pelo menos tente entender.

- Eu sei. Eu entendo, Flora. – Baixei a cabeça, notando que ela desviava os olhos de
mim.

 
 

O silêncio reinou por alguns segundos.

- Pegue a rua da direita. – Disse o homem ao meu lado.

Quando me dei conta para onde estávamos indo, notei que estávamos nos limites de
minha cidade. Pegamos uma estrada de chão, o carro sacolejava um bocado. Depois de
uns dois quilômetros, paramos frente a uma construção de madeira. Uma antiga
pousada, que os jornais falaram que havia sido desativada por causa de falência do
dono. Mas as luzes acesas, câmeras e dispositivos de alarme em sua redondeza
indicavam o contrário. Puxei o ar com força para dentro de meus pulmões; era o fim da
linha. Não havia mais como escapar. O destino me dera uma rasteira, e eu caíra em sua
armadilha.

Apenas o homem ao meu lado saiu do carro quando o veículo estacionou, e demorou
um pouco até que ele voltasse, entregando identificações para todos ali dentro. Coloquei
o cordão do cartão no pescoço, me perguntando no que aconteceria a partir daquele
momento. Vi-me cercado por outras pessoas que até então eu não havia notado.
Nenhum deles parecia muito animado com a minha presença; na verdade, o que eles
passavam era um cansaço acumulado. “Há quanto tempo eles estão aqui?”, me
perguntei enquanto seguia Flora e era seguido pela mulher que dirigira o carro negro.
Demos a volta nas instalações da pousada, os fachos das lanternas que haviam sido
acionadas iluminaram uma pequena abertura ao chão: um abrigo anti-bombas, próprio
do estilo de construção da pousada.

Arregalei os olhos quando, depois de alguns lances de escada, entrei numa sala espaçosa
e bem-estruturada. Era como se tivéssemos adentrado a um andar do prédio de uma
companhia grande. Havia computadores, várias mesas, telefones, rádios, rastreadores,
gravadores, fones, uma sala espelhada que eu julguei ser da perícia… Realmente,
ninguém pensaria que havia tanta coisa debaixo da construção abandonada. Sentado a
uma das mesas, rodeada de quadros com folhas afixadas, pilhas de documentos e
pessoas à volta, uma mulher de cabelos castanhos avermelhados direcionou os olhos de
cor âmbar e ergueu a mão para calar quem quer que estivesse falado com ela. A testa se
vincou, e ela levantou e caminhou até ficar próxima a mim e a Flora. Seus olhos
escanearam a nos dois, e ela estalou a língua enquanto cruzava os braços.

- Muito bem. Esta é uma unidade secreta montada pelo detetive Abikair, unicamente
para capturar o assassino do advogado Henrique Sardenberg. O nome da operação é
“Israel”, e de uma forma ou de outra, vocês dois estão envolvidos nessa. – Tombou a
cabeça para a direita – Até a volta do detetive, eu estou no comando.

Por um momento, parei para pensar, e só então reconheci a voz da mulher como sendo a
mesma que era emitida pelo rádio quando Souza e o homem chamado por Kapa
contatavam a “central”.

- Essa é a nossa equipe principal. Aqui é nosso lugar de investigação; nós não saímos
daqui, nem podemos ser vistos. Enquanto vocês ficarem aqui, vocês seguirão às nossas
orientações, sem questionar, pois elas serão para sua própria proteção.

Flora e eu nos olhamos; daí a pedirem para que pegássemos alguns de nossos pertences.

- Nós não temos a obrigação de passar todas as informações para vocês, mas
manteremos vocês atualizados da situação. Vocês não estão autorizados a fazer qualquer
ligação ou contato exterior sem nossa autorização. Alguma dúvida?

“Ah, que tal milhões delas?!”, satirizei em meu pensamento, espantado com o que
estava acontecendo, quase que novamente, comigo. Cocei a nuca, e notei que o olhar
dela recaiu em mim. Era o olhar sustentado por alguém forte, que parecia dar passos
firmes e não deixar pontas soltas. Os lábios permaneciam crispados, como se ela não
conseguisse relaxar e tivesse a obrigação de permanecer tensa o tempo todo.

- Podem me chamar pelo nome, Hanna. Sobrenomes serão confusos.

Franzi o cenho, tentando entender a informação implícita naquela declaração. Dando as


costas para nós, Hanna e o resto da equipe, inclusive aqueles que nos haviam escoltado,
voltaram sua atenção para os seus afazeres. Apenas o homem de olhos destacadamente
ordinários pareceu se importar com nossa presença.

- Vou levar vocês pra dentro.

Seguimos o homem para além das mesas e equipamentos, passando por um corredor
largo. Depois de entrar à esquerda, o homem empurrou uma porta, dando-nos acesso ao
que parecia uma sala de estar comum. Guiou-nos pela abertura da direita, abrindo uma
das portas que havia no último corredor, sem saída.

- Flora, você fica aqui. Pode usar tudo que tem no quarto, tente se sentir à vontade.

- Certo. Guilherme,…

- Depois. – Pediu o homem, com jeito. Flora não pôde recusar.


 

Continuamos pelo corredor, até chegar à última porta à esquerda. Ele girou a maçaneta,
deixando-me passar e entrar num quarto comum, com um pouco de decoração, duas
camas, uma mesa de cabeceira, armário, televisão, escrivaninha e banheiro. Deixei a
mochila sobre a cama, pensando no quão parecido aquele lugar era com o meu próprio
quarto.

- A porta ao fim do corredor é meu quarto, e o de Souza. Abikair dormirá com você de
vez em quando, mas o quarto dele é o da porta à frente. O que você precisar, é só nos
chamar.

Meneei positivamente a cabeça, sem jeito. Era difícil acreditar a que ponto a coisa havia
chegado. Deixei-me cair na cama, sem querer suspirando profundamente e permitindo-
me, pela primeira vez, deixar meus ombros caírem e meu pescoço alongar. Notei o olhar
do homem em mim, e observei sua expressão pensativa enquanto ele se aproximava de
mim.

- Guilherme. – Isso era um hábito dele, notei – Sei que tudo está muito confuso e
preocupante pra você,… Estamos aqui pra desatar esse nó.

- Eu sei. – Disse, abaixando a cabeça.

- Espero que compreenda nossas medidas extremas.

 
-… Eu só queria…

- Depois. – Pediu, no mesmo tom que havia usado com Flora. E eu também não pude
negar.

Antes, porém, de deixar meu quarto, o homem voltou seu tronco para mim.

-… – Continuei esperando suas palavras, e ele sorriu brevemente, como se estivesse se


sentindo culpado com aquela situação – É Antônio.

Fechando a porta atrás de si, Antônio me deixou naquele quarto estranho, pensando em
quando eu conseguiria ter a vida normal que levava um jovem aos seus dezenove anos.

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