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Quando pensamos no perdão, a nossa reação imediata é sentirmo-nos diante de alguma coisa
que somos chamados a fazer: devemos ser nós a perdoar. Revela-se aqui um reflexo daquele
instintivo juízo positivo que fazemos acerca de nós mesmos, e, portanto, se houver
necessidade de perdão, trata-se do perdão que nós devemos conceder. Numa dinâmica cristã,
porém, não é esse o ponto de partida. O primeiro passo é o reconhecimento do fato de que
nós, antes de mais, fomos perdoados, de que o perdão nos precede e nos constitui naquilo
que somos. Segundo uma lógica profundamente evangélica, ele precede cada uma das nossas
respostas e o nosso próprio estar no mundo. Nós existimos porque fomos perdoados, como
sobreviventes resgatados por puro ato de misericórdia.
Deus, portanto, é amor preveniente que se manifesta antes de mais no perdão com que
acompanha a humanidade e cada ser vivo. A consciência desse sentimento divino é o
fundamento de qualquer experiência de fé. Daí poderemos concluir que ser crentes significa,
em primeiro lugar, acreditar no perdão concedido.
Todavia, não basta reconhecer o perdão de Deus, ou seja, ter uma vaga opinião sobre o fato
de Ele ter perdoado os nossos pecados: também é necessário acolher esse perdão, dar-lhe
espaço; trata-se de uma operação só aparentemente simples, pois pressupõe o discernimento
do próprio pecado e a disponibilidade para nos perdoarmos a nós mesmos. Chegamos assim
ao segundo movimento do itinerário, que se torna ativo, mas não se trata ainda do perdão a
conceder ao outro; há qualquer coisa que o precede: deixar-se perdoar e perdoar a si próprio.
Deixar que o perdão entre, antes de mais, no próprio ser, constitui uma ação que pressupõe a
dolorosa obra da verdade, da admissão da necessidade de se ser perdoado e, portanto, do
próprio pecado. Significa aceitar uma imagem de si mesmo que não corresponde à imagem
ideal que por vezes se cultiva no próprio íntimo, e que muitas vezes também se tenta
apresentar aos outros. O acolhimento do perdão de Deus pressupõe o reconhecimento da
própria verdade que, como recordam os Padres, é o ato mais difícil, mas também o maior ato,
que um ser humano pode praticar. Diz Isaac de Nínive, fazendo-se eco de um apoftegma dos
Padres do Deserto, ampliando-o:
«Aquele que é sensível aos seus pecados é maior do que aquele que socorre a terra habitada,
mostrando-se a ela.
Aquele que geme [nem que seja] por um único instante sobre si próprio é maior do que aquele
que ressuscita os mortos com a sua oração [...] Aquele que se tornou digno de se ver a si
mesmo, é maior do que aquele que se tornou digno de ver os anjos.»
O verdadeiro prodígio não é ver os anjos, mas ver o homem que se é, ver-se a si próprio. Aliás,
Jesus tinha dito que viera para os pecadores, e não para os justos (cf. Mt 9,13). Assim, quem
julga não ter necessidade de perdão coloca-se fora da sua ação amorosa. Facto ainda mais
grave, contudo: coloca-se num espaço de falsidade, segundo o que afirma a Primeira Carta de
João: «Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está
em nós. Se confessamos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda a iniquidade. Se dizemos que não somos pecadores, fazemo-lo
mentiroso, e a sua palavra não está em nós» (1 Jo 1,8-10).
Esse discernimento abre a porta ao perdão de Deus, que assim pode penetrar no homem e
sarar as suas feridas. Ao mesmo tempo, enquanto deixamos o campo livre à ação de Deus,
começamos a tornar-nos, também nós, dispensadores de perdão, mas para conosco mesmos.
Ainda não chegou o momento do perdão do outro; ainda há alguma coisa que o precede:
perdoarmo-nos a nós mesmos. Deus perdoa-nos, e nós consentimos em perdoar-nos a nós
próprios. De facto, só se formos capazes disso, poderemos também tentar perdoar o outro,
segundo uma dinâmica que recorda a do amor: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mt
19,19), que poderíamos parafrasear assim: «Perdoarás ao teu próximo como a ti mesmo.»
Perdoar ao outro
A par e passo com o perdão para conosco, e como seu corolário, é possível empreender um
caminho de reconciliação com o outro. Quem chegou a acolher o perdão de Deus e a perdoar-
se, também poderá usar de misericórdia. Poderá fazê-lo porque, graças à consciência do
próprio pecado, será capaz de ver o outro não só na sua qualidade de causa do mal, mas
também saberá apreender nele os traços de quem é, ao mesmo tempo, vítima, talvez
inconsciente, daquilo de que também é artífice. Depois de se ter feito, na própria carne, a
experiência devastadora do mal de que se é capaz e se reconheceu a sua ação, também será
possível reconhecer a mesma dinâmica no outro. A consciência da própria vulnerabilidade em
relação ao mal, e do próprio pecado, poderá levar àquele auto descentramento e àquele
desmantelamento da própria autossatisfação tão necessários para olhar o ofensor com olhos
novos, com os olhos de Deus.
Esta complexa dinâmica do perdão ao outro faz-nos compreender, então, que este nunca é
fruto do nosso esforço, pois, se confiássemos apenas nas nossas forças, seria impossível, e o
peso da nossa incapacidade para perdoar correria o risco de nos esmagar. Inevitavelmente,
portanto, ele ocorre sempre numa dinâmica que envolve o próprio Deus, porque, em última
análise, é obra sua. Não consiste numa prestação de contas entre dois adversários. Se assim
fosse, na melhor das hipóteses, chegar-se-ia a um pacto ou a umas tréguas. «O perdão não é
uma coisa que eu crio em mim – escreve José Tolentino. – É uma coisa que eu deixo Deus fazer
em mim. Deixar que Deus venha à minha história e que a sua lógica se faça minha. Para
conseguir perdoar, eu tenho de abrir a minha relação com o outro à presença de um terceiro,
que é Deus. E tentar que seja, de facto, a maneira de ver de Deus aquilo que predomina».
Para perdoar é necessário deixar Deus atuar e deixar que Deus entre na história entre mim e o
outro. Isso permitir-nos-á sair da pura horizontalidade, não por uma fuga espiritualista para o
alto, mas por uma descida às profundezas do ser e da relação, onde será possível descobrir
uma presença comum aos dois sujeitos, na qual também poderão reencontrar uma via de
comunhão. Desse modo, é como se se concedesse a Deus um espaço de intervenção no
conflito, dando-lhe voz, a fim de que prevaleça a sua lógica, e não a nossa.
U.I.O.G.D.