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A dinâmica do perdão - Deixar-se perdoar e perdoar"

Quando pensamos no perdão, a nossa reação imediata é sentirmo-nos diante de alguma coisa
que somos chamados a fazer: devemos ser nós a perdoar. Revela-se aqui um reflexo daquele
instintivo juízo positivo que fazemos acerca de nós mesmos, e, portanto, se houver
necessidade de perdão, trata-se do perdão que nós devemos conceder. Numa dinâmica cristã,
porém, não é esse o ponto de partida. O primeiro passo é o reconhecimento do fato de que
nós, antes de mais, fomos perdoados, de que o perdão nos precede e nos constitui naquilo
que somos. Segundo uma lógica profundamente evangélica, ele precede cada uma das nossas
respostas e o nosso próprio estar no mundo. Nós existimos porque fomos perdoados, como
sobreviventes resgatados por puro ato de misericórdia.

Trata-se de uma mensagem que perpassa as Escrituras. O Antigo Testamento, em particular,


para transmitir de modo eficaz esse conceito, utiliza uma linguagem ousada, quando afirma
que Deus, perante um «justo» castigo com que ameaçara o povo, «se arrepende» e detém a
própria mão. A forma verbal hebraica utilizada (yinnahem) remete, precisamente, para esse
movimento: arrepender-se, mudar de ideias. É apresentado, portanto, um Deus que «se
arrepende» do mal que está prestes a infligir e que detém a sua mão destruidora (cf. Ex 32,14;
2 Sm 24,16; Jr 18,8; Am 7,1-3; Jn 3,10). Em relação à visão clássica de um Deus imutável e
onisciente, tal afirmação poderia parecer um contrassenso; contudo, ela é capaz de expressar
a ideia de que a humanidade subsiste em virtude de um ato de misericórdia de Deus, por ter
sido poupada por Ele.

O perdão está inscrito no próprio nome de Deus, segundo a autorrevelação concedida a


Moisés em Êxodo 34,6: «Senhor! Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira,
cheio de bondade e de fidelidade, que perdoa...» É esse o seu nome e esta também a sua
atuação, desde o início. Deus estremece perante o pecado dos homens e enche-se de ira, mas,
depois, é o primeiro a sofrer por causa do mal, e também é Ele que lhe dá remédio. Frente à
rebeldia dos seres humanos, Deus mostra constantemente sentimentos de compaixão que se
transformam em perdão e cuidado, desde aquele primeiro gesto de ternura no jardim do «no
princípio», quando confecciona túnicas de pele para os nossos primeiros pais, já conscientes
da sua própria nudez, para que possam proteger-se da sua vergonha (cf. Gn 3,21). Gesto
extraordinário em que o perdão se manifesta sobretudo como tentativa de aliviar o peso da
vergonha que sobrecarrega e avilta aqueles que prevaricaram. Deus apercebe-se desse peso e,
num primeiro gesto, ajuda o ser humano a não ser esmagado por ele.

Deus, portanto, é amor preveniente que se manifesta antes de mais no perdão com que
acompanha a humanidade e cada ser vivo. A consciência desse sentimento divino é o
fundamento de qualquer experiência de fé. Daí poderemos concluir que ser crentes significa,
em primeiro lugar, acreditar no perdão concedido.

Deixar-se perdoar e perdoar-se a si próprio

Todavia, não basta reconhecer o perdão de Deus, ou seja, ter uma vaga opinião sobre o fato
de Ele ter perdoado os nossos pecados: também é necessário acolher esse perdão, dar-lhe
espaço; trata-se de uma operação só aparentemente simples, pois pressupõe o discernimento
do próprio pecado e a disponibilidade para nos perdoarmos a nós mesmos. Chegamos assim
ao segundo movimento do itinerário, que se torna ativo, mas não se trata ainda do perdão a
conceder ao outro; há qualquer coisa que o precede: deixar-se perdoar e perdoar a si próprio.
Deixar que o perdão entre, antes de mais, no próprio ser, constitui uma ação que pressupõe a
dolorosa obra da verdade, da admissão da necessidade de se ser perdoado e, portanto, do
próprio pecado. Significa aceitar uma imagem de si mesmo que não corresponde à imagem
ideal que por vezes se cultiva no próprio íntimo, e que muitas vezes também se tenta
apresentar aos outros. O acolhimento do perdão de Deus pressupõe o reconhecimento da
própria verdade que, como recordam os Padres, é o ato mais difícil, mas também o maior ato,
que um ser humano pode praticar. Diz Isaac de Nínive, fazendo-se eco de um apoftegma dos
Padres do Deserto, ampliando-o:

«Aquele que é sensível aos seus pecados é maior do que aquele que socorre a terra habitada,
mostrando-se a ela.
Aquele que geme [nem que seja] por um único instante sobre si próprio é maior do que aquele
que ressuscita os mortos com a sua oração [...] Aquele que se tornou digno de se ver a si
mesmo, é maior do que aquele que se tornou digno de ver os anjos.»

O verdadeiro prodígio não é ver os anjos, mas ver o homem que se é, ver-se a si próprio. Aliás,
Jesus tinha dito que viera para os pecadores, e não para os justos (cf. Mt 9,13). Assim, quem
julga não ter necessidade de perdão coloca-se fora da sua ação amorosa. Facto ainda mais
grave, contudo: coloca-se num espaço de falsidade, segundo o que afirma a Primeira Carta de
João: «Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está
em nós. Se confessamos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda a iniquidade. Se dizemos que não somos pecadores, fazemo-lo
mentiroso, e a sua palavra não está em nós» (1 Jo 1,8-10).

Esse discernimento abre a porta ao perdão de Deus, que assim pode penetrar no homem e
sarar as suas feridas. Ao mesmo tempo, enquanto deixamos o campo livre à ação de Deus,
começamos a tornar-nos, também nós, dispensadores de perdão, mas para conosco mesmos.
Ainda não chegou o momento do perdão do outro; ainda há alguma coisa que o precede:
perdoarmo-nos a nós mesmos. Deus perdoa-nos, e nós consentimos em perdoar-nos a nós
próprios. De facto, só se formos capazes disso, poderemos também tentar perdoar o outro,
segundo uma dinâmica que recorda a do amor: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mt
19,19), que poderíamos parafrasear assim: «Perdoarás ao teu próximo como a ti mesmo.»

Perdoar-se significa reconciliar-se consigo mesmo (que é o pressuposto essencial para a


reconciliação com o universo inteiro); acolher-se na própria verdade, desmascarando a ilusão
de ser diferente. Significa, em suma, perdoarmo-nos a nós mesmos por não sermos diferentes,
por não sermos aquilo que sonhámos, que projetámos, com que nos iludimos, até nos
convencermos que o somos, e, portanto, sofrermos de cada vez que isso é desmentido; e, a
partir daí, a começarmos a amar-nos na nossa própria autenticidade.

Perdoar ao outro

A par e passo com o perdão para conosco, e como seu corolário, é possível empreender um
caminho de reconciliação com o outro. Quem chegou a acolher o perdão de Deus e a perdoar-
se, também poderá usar de misericórdia. Poderá fazê-lo porque, graças à consciência do
próprio pecado, será capaz de ver o outro não só na sua qualidade de causa do mal, mas
também saberá apreender nele os traços de quem é, ao mesmo tempo, vítima, talvez
inconsciente, daquilo de que também é artífice. Depois de se ter feito, na própria carne, a
experiência devastadora do mal de que se é capaz e se reconheceu a sua ação, também será
possível reconhecer a mesma dinâmica no outro. A consciência da própria vulnerabilidade em
relação ao mal, e do próprio pecado, poderá levar àquele auto descentramento e àquele
desmantelamento da própria autossatisfação tão necessários para olhar o ofensor com olhos
novos, com os olhos de Deus.

Esta complexa dinâmica do perdão ao outro faz-nos compreender, então, que este nunca é
fruto do nosso esforço, pois, se confiássemos apenas nas nossas forças, seria impossível, e o
peso da nossa incapacidade para perdoar correria o risco de nos esmagar. Inevitavelmente,
portanto, ele ocorre sempre numa dinâmica que envolve o próprio Deus, porque, em última
análise, é obra sua. Não consiste numa prestação de contas entre dois adversários. Se assim
fosse, na melhor das hipóteses, chegar-se-ia a um pacto ou a umas tréguas. «O perdão não é
uma coisa que eu crio em mim – escreve José Tolentino. – É uma coisa que eu deixo Deus fazer
em mim. Deixar que Deus venha à minha história e que a sua lógica se faça minha. Para
conseguir perdoar, eu tenho de abrir a minha relação com o outro à presença de um terceiro,
que é Deus. E tentar que seja, de facto, a maneira de ver de Deus aquilo que predomina».

Para perdoar é necessário deixar Deus atuar e deixar que Deus entre na história entre mim e o
outro. Isso permitir-nos-á sair da pura horizontalidade, não por uma fuga espiritualista para o
alto, mas por uma descida às profundezas do ser e da relação, onde será possível descobrir
uma presença comum aos dois sujeitos, na qual também poderão reencontrar uma via de
comunhão. Desse modo, é como se se concedesse a Deus um espaço de intervenção no
conflito, dando-lhe voz, a fim de que prevaleça a sua lógica, e não a nossa.

Nesse processo, revela-se de fundamental importância a memória do perdão recebido de


Deus. Dizer que Deus está presente no perdão concedido ao irmão significa dizer que aquilo
que se concede é apenas um reflexo do perdão recebido de Deus. Dizer que Deus está
presente no perdão concedido ao irmão significa que aquilo que se concede é apenas um
reflexo do perdão recebido de Deus, que agora passa de um sujeito para outro, e aquele a
quem foi oferecido torna-se, por sua vez, capaz de o conceder. É esta a lógica subjacente a
uma das passagens neotestamentárias mais conhecidas sobre o tema do perdão: «Pedro
aproximou-se e perguntou-lhe: “Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe
deverei perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até
setenta vezes sete”» (Mt 18,21-22). Pedro considerava-se generoso ao mostrar-se disposto a
um perdão tão abundante, mas ainda limitado; Jesus, porém, pede mais, apresentando em
seguida uma razão incontestável com o relato da parábola dos dois servos devedores ou do
servo implacável (cf. Mt 18,23-35). A incapacidade de perdoar é, muitas vezes, consequência
do esquecimento do próprio pecado e da remissão obtida. Essa parábola, porém, ousa ir mais
longe, afirmando que aquilo que cada um concede ao outro é sempre muito menos do que
aquilo que lhe foi perdoado. Só essa consciência poderá tornar o perdão possível.

U.I.O.G.D.

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