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PELES NEGRAS - MÁSCARAS FEITICEIRAS - EM PAULINA CHIZIANE

Tânia Lima*

Resumo
Este trabalho esmiúça alguns elementos que perfazem o discurso feminino em Paulina
Chiziane. Essa autora é considerada uma das primeiras escritoras moçambicanas em
língua portuguesa a publicar romance. Apesar de se considerar ‘contadora de histórias’
e não, romancista, Chiziane é uma dessas “contadeiras” que, ao abordar temas
polêmicos referentes à questão da mulher, amplia um olhar sugestivo sobre a alteridade
cultural no mundo contemporâneo. Nessa travessia, é importante averiguar a
experiência do ‘eu-fêmeo’ sobre outra perspectiva: a das identidades em construção. A
escritora estabelece diálogos preciosos com o universo familiar, ao mergulhar nas raízes
culturais que se movimentam em busca das encruzilhadas ‘multiétnicas’. O que está por
trás do romance Niketche – uma história da poligamia, a exemplo, não é apenas
assinalar o discurso da diferença, mas destacar a importância de as mulheres falarem e
escreverem a respeito de suas subjetividades. No intuito de se descobrirem como
linguagem, como mulher, em Niketche, Paulina Chiziane se volta para personagens ‘re-
partidas’ em busca de suas próprias origens diaspóricas. Por esse percurso da literatura,
o marco teórico desta pesquisa é conduzido pela reflexão de G. Spivak, Linda
Hutcheon, Susan Sontag, F. Fanon.

Palavras-chave: Gênero, Transculturação, Hibridismo.

1 PELES NEGRAS - MÁSCARAS FEITICEIRAS

Áfricas é literaturas em torno das linguagens da cultura. Quando conta, a


escritora extravasa a noção de temporalidade e espiritualidade. Contar, para os povos
africanos, tinha uma relação de espiritualidade, uma proximidade com a arte de curar.
Daí, a contadora ou contadeira ser aquela que enfeitiça o dizer do mundo. O que
enfeitiça os olhos tem encanto. A verdade de quem contava trazia uma forma de
libertação espiritual. O contador de história era uma pessoa espiritualizada, não podia
trair nem mentir. Nesse tempo, bem antes da chegada dos colonizadores portugueses, a
palavra estava inserida na verdade do mundo, uma verdade que, ao fabular, profere o
inominável. A verdade surgia com Maa-Ngala que trazia na gênese da fala o fogo
sagrado. Ali se vivia no tempo da literatura oral que vem de um tempo movido pela
sugestão e, como toda sugestão, vem de uma idade longínqua, nascida com a descoberta
das fogueiras. Nesse tempo se sabia que as horas do mundo corriam ao redor do círculo.
do grande reino mágico que ditava o lado mítico da sacralidade.
*
Professora Departamento de Letras - UFRN. Doutora em Teoria da Literatura, UFPE, 2007. Professora
da UFRN.
Quando pensamos em contação de hitórias, pensamos no lado secreto, que toda
palavra oral contém. Oralidade envolve o mistério de como e quando se diz a memória.
A memória do texto oral é o que nomeia, mas também o que não se sabe definir. O ato
de contar envolve o desconhecido mundo soterrado pela arqueologia da memória oral.
A memória oral nasce com a literatura, pelo que há de mais antigo no mundo. A
rememoração, que usa o ato de contar, abre as fendas das palavras, em mote de
sonoridade. Quem se debruça sobre a memória é sempre um ser ‘cascavinhador’ de
ancestralidade. A memória é sopro de voz que pensa a condição do ser mundo no meio
do caminho do mundo. A memória na voz da mulher traz sempre rotas fragmentadas
de raízes que foram silenciadas. Uma espécie de rizoma, que percorre o caos e não se
sabe do início. Toda voz nasce e vive em labirinto, tecendo fios de nascer do eu-fêmeo.
A literatura de Chiziane, nesse sentido, sugere esse renascer e faz com que beleza
silenciada pela violência do trauma possa ser agora recontada.
A memória do trauma e o trauma são constituídos no presente, como causa de
um comportamento político para se compreender as reivindicações sociais. Na história
da memória afro-descendente, quem conta não amplia o que viveu, muito menos recria
o que testemunhou, inventa o que não viveu, concretiza o que imaginou. Narrar sobre o
percurso identidade é recontar o passado, pelo que ele tem de avesso e venenoso. Contar
sobre esse tempo é ficcionalizar o mundo como arte, como possibilidade de sentido para
os povos extemporâneos de ontem e amanhãs. Arte, nesse sentido, como elo de
politização contra a barbárie.
A memória da voz em Chiziane faz a contação flutuar pelo que há de
imaginário no terceiro espaço da linguagem. Busca-se, com isso relatar, em verdade, a
voz da superfície para se encontra o grande lodo que esconde a lama. Cada imagem
recolhida pela memória fabulária reconhece como percurso as raízes mais tradicionais
de um povo. Como toda grade da narração histórica, para se contar, exige-se uma
‘sabença’ de saber inventar verdades na boa arte de ficcionalizar a realidade. Narrar é
uma chave para se abrir as figuras ‘identitárias’ de um povo. Quando uma escritora
escreve suas memórias o tempo revisita o que foi abafado no tecido da subaternidade,
pensando aqui em Spivak. Dos subalternos, a voz da mulher é a que mais ficou
relegada, por isso que essas escritoras precisam falar. A fala traz sempre às margens
aquilo que foi apagado nos livros da história oficial. Nesse sentido, a memória da voz
feminina faz lembrar o que esquecemos, pois traz à deriva a necessidade de não
esquecer. Revigora a missão catártica de lembrar. Lembrar traz à tona o remorso de
amar em um contexto cultural falocêntrica. Há que se fazer de agora para frente uma
crítica dessa imagem falocêntrica no mundo Ocidental e Oriental. Cabe a nós mulheres
fazer uma espécie de levante sobre essas questões. Falar é falar contra, escrever é
escrever também contra, lembrando aqui de F. Fanon.
Paulina Chiziane1 sinaliza-nos, nas páginas iniciais de Niketche, o que estaria
por trás da trama que, em primeira pessoa, profetiza sobre a condição do amor em
Moçambique. Na África, falar de amor tem uma relação de proximidade com a cultura.
Falar de amor tem um elo importante com o mistério que cobre escutar o ser humano.
Não é tão simples, ouvir o contar. Resgata-se sempre a cura de quem escuta. O roteiro
de escrever pela mão de um tambor exige de quem conta o en-canto dessa marcação
sensual do lado espiritual afro. Perto disso, a tradição é também uma espécie de ritual.
Em cada ritual, o contar chama o poder da voz interior. O conto chama todos os cantos.
Todo canto é mantra, manto negro.
Em Niketche1, a narração vai sendo recortada pela dança da memória e pelos
traços da cultura corporal do lugar, como se o lugar fosse a largura da cintura de um
corpo africano. O corpo da dança africana vem sendo no livro de Chiziane observado
pelo olhar crítico. Descrente de tudo que toca os olhos do colonizador. Uma crítica que
se volta para enxergar as consequências da imagem eurocêntrica de que fala Ella Shohat
não apenas ontem, mas principalmente hoje nesse novíssimo continente chamado
mundo contemporâneo onde o maior luxo do nosso tempo ainda é as relações humanas
por mais que a todo custo tentem negar ou nos fazer desacreditar de que “os seres
sensíveis adoram valores frágeis”. Só nos tornamos pessoas apaixonantes quando nos
mostramos em nossa mais que humana fragilidade, demasiadamente humana. Como não
lembrar aqui os textos imagéticos sensuais de Paulina Chiziane!

Aprende bem esta lição: O amor é um investimento. Nasce e renasce


como o ciclo do sol. Olha, não diz que não te ensinei. O amor é pavio
aceso, cabe a ti manter a chama. Todo o resto são truques, minha
linda. Técnicas e artimanhas. Tudo na vida é mortal, tudo se apaga.
[...] Tu és feitiço por excelência e não deves procurar mais magia
nenhuma. Corpo de mulher é magia.2

1
Niketche é um ritual, uma dança que acontece na parte norte de Moçambique. Ritual de amor e e
erotismo desempenhada pelas moças moçambicanas do norte durante a cerimônia de iniciação. Lugar
oposto de onde reside Rami que irá atravessar a fronteira do norte à procura de encontrar a si mesmo.
No romance Niketche, amor e solidão são palavras providas de uma sobrecarga
de dor. Amor é palavra que se abisma a cada mudança dos ventos. ‘Amor palavra que
muda de cor’.3 Cantar o amor no continente africano é um mistério que, no correr da
fala, reflete os segredos de um bom contador de memória. Quem fala de amor, amplia o
que se vive, recria o que bem segredaram os amantes, concretiza o que imaginou a alma,
fabula o tempo da morte. Quantos não morreram ou enlouqueceram de amor? Sobre o
amor e a morte, quantos escritores e filósofos se debruçaram?

Amor. Tão pequena, esta palavra. Palavra bela, preciosa. Sentimento


forte e inacessível. Quatro letras apenas, gerando todos os sentimentos
do mundo. As mulheres falam de amor. Os homens falam de amor.
Amor que vai, amor que vem, que foge que se esconde, que se
procura, que se encontra, que se preza, que se despreza, que causa
ódios e acende guerras sem fim. No amor, as mulheres são um
exército derrotado, é preciso chorar. Depor as armas e aceitar a
solidão. Escrever poemas e cantar ao vento para espantar as mágoas.
O amor é fugaz como a gota de água na palma da mão.4

Em Niketche, Paulina Chiziane se debruça, não propriamente sobre a


condição do amor na África, mas sobre a solidão de se amar no mundo contemporâneo.
Sobre a condição de se amar no mundo contemporâneo, Giddens5 observa que o amor
se torna cada vez mais inviável. Em Chiziane, o amor vem conjugado pelo traço da
tensão permanente. Nesse livro, a autora retrata a forma como se estabelece o amor
vivenciado por Rami e Tony, em meio a culturas repartidas pelo traço do domínio do
colonizador: poligamia ao norte; monogamia ao sul. Mulçumanos polígamos X cristãos
monogâmicos. Sincretismo emocional africano, em que o amor é discurso. Paixão é
animismo. Questão de Fé. “O desejo de um homem são desejos de deus não se devem
negar.”6 Em uma sociedade machista, amar deixa de ser condição para se tornar poder.
Amar é poder. É discurso. E tudo é discurso. “Falar é, sobretudo assumir uma cultura,
suportar o peso de uma civilização.”7
Deus meu, socorre-me. Aconselha-me. Protege-me. Diz-me o que é
amor segundo a tua doutrina. Deus meu, o amor deste mundo não é
matemática. Não tem fórmulas estáticas, nem mágicas. O amor é
caprichoso como o tempo. Num dia frio. Noutro quente, noutro ainda,
chuva e vento. No amor a solução de um dia não serve para outro dia.
Os conselhos de amigo de nada servem para meu caso. A urgência de
transformar este amor atrai-me perigosamente para caminhos nunca
dantes pisados. Eu, mulher casada há vinte anos, mãe de cinco filhos,
experimentei, andei de boca em boca, de ouvido em ouvido,
auscultando de toda a gente a forma mais certa de segurar marido. A
minha mãe faz discursos de lamentos. As minhas tias velhotas
repetem ladainhas antigas. Algumas amigas falam-me de feitiços de
natureza vegetal. De origem animal. Outros falam ainda de correntes
espirituais, de batuques, velas e rezas.8

Amor é discurso. Desejo é falta. Solidão compartilhada. Amor, casa da


memória. Labirinto onde o inconsciente se guarda. Quando contamos nossa história de
amor, um baú de histórias vem carregado de um tecido primoroso, bordado por um tipo
de renda dolorosa, que jamais alcançaremos a valer. A falta. Por isso, que o amor é
9
fenda de uma melancolia, cuja margem toda arte bebe. Como diz Comte-Sponville
“Ser melancólicos é ser desejosos de verdade”. Sofremos de melancolia porque
sofremos de verdade partilhadas, contraditórias. Amor é solidão compartilhada em
doçura, mas, muitas vezes, em violência. O que se ama é idealidade, dizia Platão.
Quando se ama, busca-se a utopia do útero, isso é Freud.
O que se ama no amor é a verdade do que nunca alcançaremos. Não é tanto a
falta de verdade que faz sofrer o amor, mas o desejo que a verdade fere. ‘Amar é
cuidar’”, lembrando aqui Heidegger.10 A casa do amor, seja ela poligâmica ou
monogâmica, é um estado exaltado de cuidado contente. Quem cuida com cuidado vive
um estado de melancolia sublime, porque a melancolia, segundo Comte-Sponville11,
não é doença da razão, mas doença do desejo. “Não é a verdade que nos falta: nós é que
a deixamos escapar, porque não paramos de procurar outra coisa que ignoramos, para
dar sentido ao real que conhecemos”.
Sem meia verdade, amar de verdade só é possível com liberdade. O amor é
contrário à força. E isso não tem haver com força bruta, mas com a prisão da alma.
Amor é prisão por vontade. Amar se aprende amando. Como observa Spinosa12: “não é
porque uma coisa é boa que nós a desejamos, é porque a desejamos que a julgamos
boa”.
Em Niketche, Rami sofre de uma melancolia profunda, porque vê o mundo
por outra ótica que é da poesia. Vê a vida, não como salvação, mas como pura
libertação. “Só é livre quem não tem nada a esperar nem a temer.”13 Se olharmos
atentamente, a personagem tem veia libertadora, pois consegue, ao final da trama,
libertar, não apenas a si mesmo, mas consegue sugerir as outras companheiras, que
também se libertem das garras de um amor dominador e opressor, que infantiliza
qualquer relacionamento. Tony é um Don Juan, um menino que se esqueceu de crescer.
No entre-lugar do discurso amoroso, o amor cede espaços aos caminhos
intersticiais da cultura, onde o falo vem regido pela falta, pelo signo do poder. Um
diálogo que Chiziane trava, repensando o lugar da mulher na África. Nesse percurso,
Rami, casada com Tony por quase vinte anos, descobre que o marido vive relações
extra-conjugais com mais quatro mulheres. No desenrolar do enredo, Rami vai à
procura dessas mulheres e encontra em cada uma delas a mais humana condição: o ser
vulnerável. A vulnerabilidade, como nos faz lembrar Ortega y Gasset14: é o retrato mais
sublime do ser homem, porque, somente quando nos mostramos vulneráveis, é que
somos dignos de paixão ou de compaixão. Como diz o narrador, em primeira pessoa,
de Niketche:

Por isso, afirmo e reafirmo, mulher como eu, na sua vida, não há
nenhuma. Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo. Desde
que ele subiu de posto para comandante da polícia e o dinheiro
começou a encher as algibeiras, a infelicidade entrou nesta casa. Os
antigos namoricos eram como chuva miúda caindo sobre os guarda-
chuvas, não me atingiam. Agora danço a solo num palco deserto.
Estou a perdê-lo. Ele passa a vida a fazer companhia às mulheres mais
lindas de Maputo, que chovem aos pés como. 15

O romance de Chiziane é repositório de um discurso, que se fortalece ao falar


do amor, mas que busca, sobretudo, recuperar as vozes das minorias silenciadas. A
escritura transgride, portanto, os valores esféricos consagrados. A cultura é a avó da
tradição africana, mas quando Chiziane fala de amor entre culturas distintas, o que está
por trás é o grau da diferença, em meio a uma crítica cortante ao poder colonizador.
Mesmo quando ela fala de amor, o que está por trás é o que fizemos do amor? Como
falar da condição da mulher ou mesmo da relação amorosa, se o legado que veio de fora
contaminou a tudo e a todos com a herança do mercado, do machismo e da exploração?

A minha casa é dos lugares mais agradáveis deste mundo. Cheia de


espaços abertos. Relva farta, fresca. Flores em todas as épocas do ano.
Mas esta casa é melhor ainda. Foi construída com o dinheiro do meu
marido, por isso, é minha. Esta mulher imita-me e tenta ser mais
perfeita do que eu. Fico com raiva e toco a campainha.16

O que faz Paulina Chiziane, em sua verdade ficcional, é repensar o amor a


partir do local da cultura. É sugerir sobre a condição da mulher, em diálogo com outras
culturas dentro do território africano, mas também pensa a África a partir da África. O
olhar de dentro que tanto questiona Chiziane, no fundo no fundo, são os valores
negados pela cultura do mais forte sobre o mais frágil. Nesse sentido, suas memórias
são histórias dentro de várias histórias. Na arte de fabular, o amor é mais um resgate da
arte de costurar os costumes e rituais africanos no mundo contemporâneo. Suas
narrativas são palavras em sintonia com a memória das nações africanas. ‘As nações’,
como repensa Bhabha,17 “tais como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do
tempo e efetivam seus horizontes apenas nos olhos da mente”. A memória, no contexto
de Chiziane, funda sentido para a história coletiva africana ao instalar valores para o que
há de mais sagrado: a lembrança mítica. Os mitos e ritos tornam vivo o lugar em que a
memória foi apagada.

Entro em pânico, enquanto eu soluço a imagem dança. Paro de soluçar


e fico em silêncio para escutar a canção mágica desta dança. É o meu
silencio eu escuto. E o meu silêncio dança. É o meu silencio que
escuto. E o meu silencio dança, fazendo dançar o meu ciúme, a minha
solidão, a minha mágoa. A minha cabeça também entra na dança,
sinto vertigens, Estarei eu a enlouquecer? [...] Celebro o amor e a
vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e a solidão.
Piso para o fundo da terra todos os males que me torturam. A dança
liberta a mente das preocupações do momento. A dança é uma prece.
Na dança celebro a vida enquanto aguardo a morte. Por que é que não
dança? Dançar. Dançar a derrota do meu adversário. Dançar na festa
do meu aniversário. Dançar sobre a coragem do inimigo. Dançar no
funeral do ente querido. Dançar à volta da fogueira na véspera do
grande combate. Dançar é orar. 18

Bhabha 19 abre seus estudos justificando essa questão primordial de que são os
mitos, as fantasias e experiências de diferentes grupos espalhados em diferentes lugares
que vão reconduzindo a pintura imagética de uma nação. Segundo Bhabha20, a imagem
de uma nação se concretiza em sua forma de expressão, em Chiziane encontra-se. “Sou
uma mulher derrotada, tenho as asas quebradas. Derrotadas? Não. Nunca combati.
Depus as armas muito antes de as empunhar. Sempre me entreguei nas mãos da vida.
Do destino. Nunca mexi nenhum dedo para que as coisas corressem de acordo com
meus desejos. Mas será que algum dia tive desejo?” 21
E o que significa teu, quando se trata de um homem? Gera-se um
momento de pausa, grave, profundo. Desafiamo-nos, olho por olho. A
Julieta revela-me uma verdade mais cáustica que uma taça de veneno.
Ter é uma das muitas ilusões da existência, porque o ser humano
nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos
emprestado pela vida durante pouco tempo. Teu é filho no ventre. Teu
é filho nos braços na hora da mamada. Mesmo o dinheiro que temos
no banco só o tocamos por pouco tempo. O beijo é um simples toque e
o abraço dura apenas um minuto. O sol é teu, lá no alto. O mar é teu.
A noite, as estrelas. Cada ser nasce só, no seu dia, na sua hora, e vem
ao mundo de mãos vazias. Penso naquilo que tenho. Nada,
absolutamente nada. Tenho um amor não correspondido. Tenho a dor
e a saudade de um marido sempre ausente. A ansiedade. Ter é
efemeridade, eterna ilusão de possuir o inatingível.22

Sem querer aqui concluir até mesmo porque todo discurso crítico é imparcial e
inacabado, há em Chiziane uma memória do corpo que fala, uma memória africana que
não se cala, que nasce da necessidade de dizer e que não encontra quem a detenha, nem
mesmo a memória do que veio colonizar. A partir do relato da narrativa, as personagens
femininas aproveitam para recuperar a identidade que se perdeu tempo afora e que
agora mais do que nunca está em reconstrução. A importância desta narrativa é
importante para restaurar o que se encontra ameaçado de desaparecer. Falar não é
apenas uma forma de relembrar. Fala-se para não esquecer. Falar muitas vezes é uma
maneira de aquecer o passado. Falar é preciso para se Ser, para contar o que não pode
ser verbalizado; para desatar os nós das raízes entrelaçadas de encruzilhadas culturais.
“O diálogo entre o passado e o presente, entre o velho e o novo é o que proporciona
expressão formal a uma crença na mudança dentro da continuidade.”23 Falar sobre o
amor exige coragem para contar a memória da história da mulher africana, mergulhada
na dor e no sentimento que, por sua vez, movimenta o véu não apenas da África, mas de
toda condição humana. A cada época o amor muda de língua, descortina horizontes até
então imaginados.
REFERÊNCIAS

1
Chiziane, 2004.
2
Chiziane, Idem, p. 42
3
Dídimo, 1984.
4
Chiziane, 2004, p. 42
5
Gidens, 2000
6
Chiziane, 2004, p. 38
7
Fanon, 1983, p.17
8
Chiziane, 2004, p. 31
9
Comte-Sponville, 2006, p.103
10
Heidegger, 2002
11
Comte-Sponville, 2006, p.49
12
Spinosa, 2007.
13
Comte-Sponville, 2006, p.49.
14
Ortega y Gasset,1973.
15
Chiziane, 2004, p. 14.
16
Chiziane, idem, p. 20.
17
Bhabha, 2003.
18
Chiziane, 2004, p. 16.
19
Bhabha, 2003.
20
Bhabha, idem.
21
Chiziane, 2004, p. 18.
22
Chiziane, iem, p. 25.
23
Hutcheon, 1991, p. 55.

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