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Tânia Lima*
Resumo
Este trabalho esmiúça alguns elementos que perfazem o discurso feminino em Paulina
Chiziane. Essa autora é considerada uma das primeiras escritoras moçambicanas em
língua portuguesa a publicar romance. Apesar de se considerar ‘contadora de histórias’
e não, romancista, Chiziane é uma dessas “contadeiras” que, ao abordar temas
polêmicos referentes à questão da mulher, amplia um olhar sugestivo sobre a alteridade
cultural no mundo contemporâneo. Nessa travessia, é importante averiguar a
experiência do ‘eu-fêmeo’ sobre outra perspectiva: a das identidades em construção. A
escritora estabelece diálogos preciosos com o universo familiar, ao mergulhar nas raízes
culturais que se movimentam em busca das encruzilhadas ‘multiétnicas’. O que está por
trás do romance Niketche – uma história da poligamia, a exemplo, não é apenas
assinalar o discurso da diferença, mas destacar a importância de as mulheres falarem e
escreverem a respeito de suas subjetividades. No intuito de se descobrirem como
linguagem, como mulher, em Niketche, Paulina Chiziane se volta para personagens ‘re-
partidas’ em busca de suas próprias origens diaspóricas. Por esse percurso da literatura,
o marco teórico desta pesquisa é conduzido pela reflexão de G. Spivak, Linda
Hutcheon, Susan Sontag, F. Fanon.
1
Niketche é um ritual, uma dança que acontece na parte norte de Moçambique. Ritual de amor e e
erotismo desempenhada pelas moças moçambicanas do norte durante a cerimônia de iniciação. Lugar
oposto de onde reside Rami que irá atravessar a fronteira do norte à procura de encontrar a si mesmo.
No romance Niketche, amor e solidão são palavras providas de uma sobrecarga
de dor. Amor é palavra que se abisma a cada mudança dos ventos. ‘Amor palavra que
muda de cor’.3 Cantar o amor no continente africano é um mistério que, no correr da
fala, reflete os segredos de um bom contador de memória. Quem fala de amor, amplia o
que se vive, recria o que bem segredaram os amantes, concretiza o que imaginou a alma,
fabula o tempo da morte. Quantos não morreram ou enlouqueceram de amor? Sobre o
amor e a morte, quantos escritores e filósofos se debruçaram?
Por isso, afirmo e reafirmo, mulher como eu, na sua vida, não há
nenhuma. Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo. Desde
que ele subiu de posto para comandante da polícia e o dinheiro
começou a encher as algibeiras, a infelicidade entrou nesta casa. Os
antigos namoricos eram como chuva miúda caindo sobre os guarda-
chuvas, não me atingiam. Agora danço a solo num palco deserto.
Estou a perdê-lo. Ele passa a vida a fazer companhia às mulheres mais
lindas de Maputo, que chovem aos pés como. 15
Bhabha 19 abre seus estudos justificando essa questão primordial de que são os
mitos, as fantasias e experiências de diferentes grupos espalhados em diferentes lugares
que vão reconduzindo a pintura imagética de uma nação. Segundo Bhabha20, a imagem
de uma nação se concretiza em sua forma de expressão, em Chiziane encontra-se. “Sou
uma mulher derrotada, tenho as asas quebradas. Derrotadas? Não. Nunca combati.
Depus as armas muito antes de as empunhar. Sempre me entreguei nas mãos da vida.
Do destino. Nunca mexi nenhum dedo para que as coisas corressem de acordo com
meus desejos. Mas será que algum dia tive desejo?” 21
E o que significa teu, quando se trata de um homem? Gera-se um
momento de pausa, grave, profundo. Desafiamo-nos, olho por olho. A
Julieta revela-me uma verdade mais cáustica que uma taça de veneno.
Ter é uma das muitas ilusões da existência, porque o ser humano
nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos
emprestado pela vida durante pouco tempo. Teu é filho no ventre. Teu
é filho nos braços na hora da mamada. Mesmo o dinheiro que temos
no banco só o tocamos por pouco tempo. O beijo é um simples toque e
o abraço dura apenas um minuto. O sol é teu, lá no alto. O mar é teu.
A noite, as estrelas. Cada ser nasce só, no seu dia, na sua hora, e vem
ao mundo de mãos vazias. Penso naquilo que tenho. Nada,
absolutamente nada. Tenho um amor não correspondido. Tenho a dor
e a saudade de um marido sempre ausente. A ansiedade. Ter é
efemeridade, eterna ilusão de possuir o inatingível.22
Sem querer aqui concluir até mesmo porque todo discurso crítico é imparcial e
inacabado, há em Chiziane uma memória do corpo que fala, uma memória africana que
não se cala, que nasce da necessidade de dizer e que não encontra quem a detenha, nem
mesmo a memória do que veio colonizar. A partir do relato da narrativa, as personagens
femininas aproveitam para recuperar a identidade que se perdeu tempo afora e que
agora mais do que nunca está em reconstrução. A importância desta narrativa é
importante para restaurar o que se encontra ameaçado de desaparecer. Falar não é
apenas uma forma de relembrar. Fala-se para não esquecer. Falar muitas vezes é uma
maneira de aquecer o passado. Falar é preciso para se Ser, para contar o que não pode
ser verbalizado; para desatar os nós das raízes entrelaçadas de encruzilhadas culturais.
“O diálogo entre o passado e o presente, entre o velho e o novo é o que proporciona
expressão formal a uma crença na mudança dentro da continuidade.”23 Falar sobre o
amor exige coragem para contar a memória da história da mulher africana, mergulhada
na dor e no sentimento que, por sua vez, movimenta o véu não apenas da África, mas de
toda condição humana. A cada época o amor muda de língua, descortina horizontes até
então imaginados.
REFERÊNCIAS
1
Chiziane, 2004.
2
Chiziane, Idem, p. 42
3
Dídimo, 1984.
4
Chiziane, 2004, p. 42
5
Gidens, 2000
6
Chiziane, 2004, p. 38
7
Fanon, 1983, p.17
8
Chiziane, 2004, p. 31
9
Comte-Sponville, 2006, p.103
10
Heidegger, 2002
11
Comte-Sponville, 2006, p.49
12
Spinosa, 2007.
13
Comte-Sponville, 2006, p.49.
14
Ortega y Gasset,1973.
15
Chiziane, 2004, p. 14.
16
Chiziane, idem, p. 20.
17
Bhabha, 2003.
18
Chiziane, 2004, p. 16.
19
Bhabha, 2003.
20
Bhabha, idem.
21
Chiziane, 2004, p. 18.
22
Chiziane, iem, p. 25.
23
Hutcheon, 1991, p. 55.
ÍTALO, Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
LIMA, TANIA. Uma introdução à poética dos mangues. Tese de Doutorado. Recife:
UFPE, 2007. 401 pág.
SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
SONTANG, Susan. Ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.